Trata-se de um breve apontamento sobre o significado histórico do Cenotáfio, enquanto túmulo simbólico ou memorial em homenagem aos heróis caídos em defesa da pátria, da religião, da liberdade ou de supremos ideais humanitários.
Cenótáfio do bispo D. António Pereira da Silva na Sé de Faro
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
O cenotáfio do Bispo D.António Pereira da
Silva na sé de Faro
José Carlos Vilhena Mesquita
Trata-se de um monumento fúnebre, geralmente uma arca tumular, um
mausoléu individual ou colectivo, erigido em memória de alguém cujos
restos mortais não foi possível recolher, que repousam noutro local, ou
cujo paradeiro se desconhece. Por extensão também se designam como
cenotáfios os túmulos desocupados, pois que muitas vezes aconteceu que
alguém, com poder político ou económico, mandou construir o seu próprio
mausoléu, contando nele vir a ser sepultado, mas que por força de
circunstâncias diversas, não chegou a acontecer. Existem túmulos, que se
tornaram em involuntários cenotáfios pelo facto dos corpos a que se
destinavam repousarem noutro país ou noutro continente, de onde não
podem ser resgatados. Pior ainda é quando se desconhece o local exacto
onde pereceram, como acontecia nas guerras, em que os corpos eram
soterrados em valas comuns, ou nos naufrágios marítimos em que os
corpos nunca puderam ser recuperados. Em certos locais de batalha,
cujos campos se transformaram em cemitérios incógnitos, erigiram-se
monumentos em memória dos que ali pereceram, os quais tendo a
simbologia de uma perpétua homenagem fúnebre, podem ser também
considerados como cenotáfios.
Um dos casos mais curiosos – razão pela qual escrevo este pequeno
apontamento – é o do túmulo construído pelo Bispo do Algarve D. António
Pereira da Silva, que governou a diocese entre 1704 e 1715, sendo aqui
tão feliz que, na antiga Capela do Santo Lenho da Sé de Faro, mandou
construir o seu próprio túmulo na expectativa e desejo de nele vir a ser
sepultado. Acho que essa capela está actualmente sob a invocação de
São Francisco de Paula, sendo que originalmente se designava como
«Capela das Relíquias». Confesso que já nem sei bem qual a sua
designação mais apropriada, mas isso também de pouco interessa, pois
que sendo a mais bela e imponente de todas as preenchem a nave lateral
direita da histórica Sé de Faro é muito fácil de a encontrar, visto ser a única
que no Algarve apresenta um retábulo em forma de relicário, cujas paredes
revestidas de pequenos nichos, que parecem ostiários, são como que
sacrários da nossa hagiolatria.
Aproveito, a oportunidade para dizer que este António Pereira de Lacerda,
era fidalgo de conceituados pergaminhos, filho de Francisco Pereira da
Silva, senhor da casa de Bretiandos (cujo solar conheço muito bem, sendo
hoje local de admiração turística da Ribeira Lima) e de D.ª Joana de
Noronha, que era filha do célebre Damião de Sousa Menezes, senhor de
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
Francemil. No meu norte natal, esta gente pertence às melhores cepas da
sociedade tradicional portuguesa. Não admira, pois, que a família se
preocupasse com a sua educação e destino. E na verdade, o futuro bispo
do Algarve em breve se tornaria num homem de grande erudição. Estudou
Teologia na Universidade de Coimbra, onde recebeu o grau de doutor e a
beca do Real Colégio de São Paulo, honraria só ao alcance dos melhores.
Dali seguiu para a diocese de Évora, onde foi cónego magistral da Sé e,
por inerência, dignitário da Inquisição local, cuja jurisdição persecutória do
judaísmo superintendia por todo o Alentejo e Algarve. Depressa a sua
erudição, zelo e competência o tornaria conhecido e celebrado, a ponto do
rei D. Pedro II o nomear bispo de Elvas, entre 1701 e 1704, e secretário
de estado das Repartições e Mercês, o equivalente hoje a ministro. No
início do século XVIII, as remessas do ouro do Brasil – embora fossem
apenas um quinto do total minerado – deram um novo folgo às rendas da
coroa, permitindo-lhe ser mais magnânima para com os seus servidores e
mais faustosa nas suas obras de benemerência pública. A Igreja foi a
principal beneficiada, sendo o Convento de Mafra e sobretudo o estilo
Capela das relíquias ou do Santo Lenho, na Sé de Faro, onde se encontra à direita o cenotáfio
do Bispo D. António Pereira de Lacerda.
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
barroco, com a sua exuberante talha dourada, a fundamental evidência
prática do ouro do Brasil.
O nosso D.António Pereira de Lacerda, em 1704, via-se promovido a bispo
do Algarve, encarregando-se pessoalmente de restaurar os principais
templos da diocese, aprimorando os retábulos e capelas interiores mercê
da contratação de artistas e entalhadores, nacionais e estrangeiros, sendo
disso principal exemplo a Sé de Faro. Para além da recuperação e
restauro, coube-lhe também a honra de ter iniciado a construção da Igreja
do Carmo em Faro, que é uma das mais belas e imponentes de todo o
Algarve.
Como erudito e estudioso das nossas antigualhas históricas, dedicou-se à
escrita, primeiro de forma institucional para uso restrito da diocese
algarvia, depois mais mundana para divulgação dos seus pergaminhos
familiares e dos seus colaterais genealógicos. Assim, conhecedor das
suas origens nobiliárquicas, e de muitos dos seus parentes e
conterrâneos, dedicou-se à investigação genealógica das principais
famílias originárias da Província de Entre Douro e Minho, cujos escritos
serviram de fonte à grandiosa obra de Manuel Caetano de Sousa,
«História Genealógica da Casa Real Portuguesa». No arquivo histórico do
bispado do Algarve ainda encontrei vários livros da sua lavra, com
apontamentos pessoais e intransmissíveis sobre coisas que se passavam
na diocese e que se deveriam manter em segredo. São os chamados livros
negros, encadernados nessa cor, por serem reservados aos olhares
Nesta foto da capela do Santo Lenho ou das Relíquias vê-se bem à direita o túmulo vazio (cenotáfio)
do bispo do Algarve, D. António Pereira de Lacerda, que governou a diocese entre 1704 e 1715.
Distinguem-se perfeitamente nesta foto os vários relicários no interior dos nichos laterais da capela.
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
estranhos. Digo-vos que neles li algumas coisas que já sabia, e outras que
julgo nunca deveriam ter sido escritas…
O bispo D.António Pereira da Silva, embora morresse em Faro, em 1715,
acabaria por não ser sepultado no sumptuoso túmulo que construíra na
Capela do Santo Lenho ou das Relíquias, encontrando-se os seus restos
mortais ainda hoje depositados na cripta subterrânea da Sé de Faro. As
razões para o sucedido prendem-se com um imbricado processo judicial
que, em vida e mesmo para além da morte, manteve em acesa discussão
nos tribunais, por causa dos bens familiares de que deveria ter sido
ressarcido em partilhas. O caso arrastou-se nas pendências da justiça, e
a capela que estava a construir na Sé – na qual se inserira o mausoléu em
que o seu féretro deveria ter sido depositado – não a concluiu em vida, e
nem mesmo o sobrinho D. José Pereira de Lacerda, que lhe sucedeu na
cadeira episcopal de Faro, conseguiu resolver a contenda familiar que se
arrastou nos tribunais durante anos a fio.
De entre os manuscritos da sua
autoria permita-se-me destacar o
«Livro para me regular no
governo do Bispado», lavrado
numa caligrafia muito
harmoniosa e escorreita, de fácil
leitura, que se encontra
depositado no arquivo
eclesiástico de Faro, no qual se
podem colher preciosos informes
sobre a vida do bispado nos
primeiros anos do século XVIII.
Acresce dizer que o vocábulo
cenotáfio vem do Grego
Kenotaphion, que presumo ter
dado origem em Latim à palavra
Coenotaphium, que significa
túmulo ou monumento sepulcral,
erigido em memória de alguém,
cujos restos mortais não se
encontram ali depositados.
Existem vários casos destes,
nomeadamente no Panteão
Nacional, nos Jerónimos e em
variadíssimas igrejas nacionais.
Lembro por exemplo o túmulo de
D. João II, na Sé de Silves, cujos restos mortais foram pouco depois
trasladados para o Mosteiro da Batalha. Ainda lá está, no chão da nave
Cenotáfio de Marcus Caelius, primeiro centurião da
Legião XVIII, que morreu na batalha da floresta de
Teutoburgo, cuja lápide é a única prova epigráfica que
temos da existência desta legião. Este centurião serviu o
consul Publius Quinctilius Varus, comandante das três
principais legiões de Roma que foram trucidadas na
floresta de Teutoburgo pelo célebre general germânico
Armínio a 9 de Setembro do ano 9 d.C. Não houve
sobreviventes. Esta foi a página mais negra da história do
Império Romano.
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
central, em frente ao sacrário do retábulo-mor, o túmulo do grande rei a
quem chamaram o Principe-Perfeito, autor do grandioso projecto nacional
dos Descobrimentos, através do qual se perpectuaria o nome de Portugal
pelos cinco continentes de um mundo que as caravelas lusas ajudaram a
revelar, fortalecendo os laços de comunhão entre a civilização ocidental e
o cristianismo.
Em jeito de encerramento, lembro que os cenotáfios estavam entre os
principais monumentos que embelezavam a chamada Via Ápia, que era a
principal estrada de acesso a Roma. Os grandes generais, legionários e
tribunos, que não regressavam à pátria por terem caído heroicamente nos
campos de batalha, eram homenageados em aras fúnebres, consagradas
sob a designação de «cenotaphium», mas também de «tumulus
honorarious» ou simplesmente de «inanis», que eram singelas placas com
a inscrição do homenageado.
Atente-se como exemplo no
cenotáfio de Marcus Caelius,
primeiro centurião da Legião XVIII,
que morreu na batalha da floresta
de Teutoburgo, cuja lápide é a
única prova epigráfica que temos
da existência desta legião. Este
centurião serviu o consul Publius
Quinctilius Varus, comandante das
três principais legiões de Roma,
num total de 20 mil soldados, que
foram trucidadas na floresta de
Teutoburgo pelo célebre general
germânico Armínio, a 9 de
Setembro do ano 9 d.C. Não houve
sobreviventes. Esta foi a página
mais negra da história do Império
Romano. Segundo refere o
historiador romano Suetónio (Caio
Suetónio Tranquillo, de seu nome
completo), autor do célebre livro
«Os Doze Césares», o Imperador
Augusto quando soube do infausto acontecimento retirou-se para chorar
em privado a derrota, e num acesso de raiva rasgou as suas vestes
enquanto gritava histrionicamente "Quintili Vare, legiones redde!"
(Quinctilius Varus, devolve-me as minhas Legiões!). Em sinal de luto
recusou-se a cortar o cabelo durante muitos meses, e raramente apareceu
em público durante os anos seguintes. Os historiadores romanos
costumavam referir-se à batalha da floresta de Teutoburgo como os
«Hermannsdenkelmal», assim se designa este grandioso
monumento erigido no século XIX, próximo de Detmold, na
Floresta de Teutoburgo, à memória de Armínio. Sabemos
hoje que o veradeiro local da batalha foi a cerca de 80 km
dali, em Kalkriese.
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O cenotáfio do Bispo D. António Pereira da Silva na sé de Faro
"clados Variana" (desastre de Varus). A partir desta triste derrota militar, o
império romano desistiu de anexar a Germânia. Por seu lado, os alemães
ainda hoje celebram
esta vitória como a mais
importante da sua
história, dando ao
destemido Armínio o
epiteto de pai da nação
germânica. Na floresta
de Teutoburgo, próximo
da actual cidade de
Bramsche, só muito
recentemente é que os
arqueólogos alemães
conseguiram descobrir
o local certo da batalha,
que em boa verdade se
estendia por vários hectares, concluindo que não foi dada sepultura aos
vinte mil soldados romanos chacinados pela barbárie germânica. Durante
séculos os caçadores de tesouros e de antiguidades saquearam as
florestas de Teutoburgo, não deixando por isso a descoberto quaisquer
indícios do local da sangrenta batalha.
Mapa da batalha da Floresta de Teutoburgo. Está legendado em
italiano, mas se lerem em voz alta vão certamente perceber tudo o que
nele está escrito. Repare-se na extensão da batalha, e sobretudo na
cilada que foi muito bem engendrada por Armínio para vencer o
poderoso exército romano. Os germânico tinham um efectivo muito