Aqui você conhecerá Santiago jovem. Antes de se envolver com a página perdida, antes dos assassinatos do terrível serial killer, antes da grande aventura de sua vida.
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CHEIRA COMO
ESPÍRITO ADOLESCENTE
a CH´IEN
As armas e os Barões assinalados
Que da ocidental praia Lusitana
Por mares nunca dantes navegados
O progresso só pode ser Passaram ainda além da Taprobana
Conquistado no caminho Os Lusíadas – Canto I
que se harmoniza com as Estância 1
leis do universo
Colégio São Francisco Xavier, Ipiranga, São Paulo.
A aula de Português era a preferida do jovem Santiago Porto,
de doze anos. A professora Sueli, na opinião do rapaz e da maio‑
ria dos colegas de classe, era a melhor, mais didática e simpática
docente do colégio.Todos os dias, os alunos traziam doces, frutas
ou flores para presenteá la.
‑
Apesar desse favoritismo, aqueles eram os anos 1990. A efer‑
vescência cultural avassaladora afogava crianças e adolescentes em
novos ritmos, produções cinematográficas, novelas, quadrinhos e
livros. Ninguém mais se concentrava, e as salas de aula tinham vi‑
rado fóruns de discussão entre os simpatizantes do Nirvana contra
fãs do Guns´n Roses, sobre como o grunge estava acabando com
o hard rock. Tudo era autoafirmação no quente mês de outubro
daquele ano.
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2. Luciano Milici
Quieto e introspectivo, Santiago sonhava em ser escritor. Sua ca‑
pacidade de observação, dedução e criatividade para inventar mundos,
personagens e situações o subtraíam, vez ou outra, da realidade. Culti‑
vava poucos, mas verdadeiros amigos, e, como todo escritor, tinha uma
musa: Raquel, a mais bela garota da sala.
Além de linda, Raquel também exalava simpatia e humor. A forma
democrática com que recebia todos e se relacionava impedia que os
muitos garotos – inclusive de séries mais avançadas – se aproximassem
dela com intenções românticas. Como um Midas da amizade, Raquel en‑
cantava e transformava em amigo todos que eram tocados por sua beleza.
Neste ponto, Santiago estava em vantagem, afinal, nunca dirigira
palavra alguma a Raquel, e sabia que, se um dia o fizesse, seria como
um torpedo direto em seu coração, para que não houvesse chance de
a garota fixá lo no terrível campo da amizade, como fazia com abso‑
‑
lutamente toda a população masculina do colégio.
Enquanto a professora Sueli, de cabelo curto e sorriso charmoso,
falava diante de uma classe que só pensava nas terceiras partes de O
Poderoso Chefão e de De volta para o futuro, em Uma Linda Mulher e Es‑
queceram de Mim, Santiago rabiscava no caderno mais um capítulo de
seu livro As incríveis aventuras do Capitão Astrolábio.
Escrevia o tempo todo. Adorava inventar contos fantásticos, alguns
dos quais as professoras liam em sala para os colegas, caso estes se com‑
portassem. Naquela tarde, dedicado à sua própria narrativa, o rapaz não
atentou à explicação da aula.
– Camões navegava pelo rio Mekong, onde hoje fica o Vietnã,
quando naufragou. Alguém sabe qual importante escolha o poeta teve
de fazer naquele dia e do que abriu mão? – perguntou a professora
Sueli à sala.
Ninguém se manifestou.
– Eu já expliquei essa parte da vida de Camões umas quinze vezes,
gente. Alguém lembra? – insistiu, com pouca esperança. Ela sabia que
ícones da literatura representavam anacronismo, velharia e tédio para
aqueles jovens. Ainda mais um poeta caolho português do século XVI.
Preocupados em não decepcionar a professora, todos os alunos
vasculharam em livros e anotações qual seria essa grande escolha feita
pelo poeta português Luis Vaz de Camões no naufrágio. Todos, exceto
Santiago.
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3. A página perdida de Camões
– Ele escolheu perder o olho? – perguntou André, um dos raros
amigos de Santiago, na inocente intenção de agradar a professora.
– Não, André. Ele já tinha perdido o olho anos antes. Ninguém
mais arrisca? – instigou, provocando a curiosidade de todos.
Incomodada pelo pouco caso do aluno que considerava o mais
brilhante, Sueli provocou:
– E você, Santiago, sabe sobre qual perda de Camões me refiro?
Surpreendido, interrompeu a escrita. Alguns alunos riram do apa‑
rente susto, mas a resposta do menino foi ainda mais surpreendente:
– Professora, não acho que ele tenha aberto mão de nada ou feito
nenhuma escolha naquele naufrágio.
– Como assim, Santiago? Você ao menos sabe do que estou falando?
Toda a timidez de Santiago desaparecia quando surgia um de‑
safio intelectual. Enigmas, discussões e debates de qualquer natureza
enchiam no de energia. Empolgado, retrucou:
‑
– Claro que sei, professora. A senhora se refere à lenda que diz que,
no naufrágio do rio Mekong, Camões optou por salvar seus manuscritos
e deixar Dinamene, sua amada chinesa, morrer afogada, não é?
– Muito bem! Isso mesmo! Mas, você não acha que isso realmente
ocorreu? – perguntou, interessada.
– Professora, Dinamene era o amor da vida de Camões. Que poeta
deixaria sua musa se afogar? – argumentou Santiago, deixando escapar
um breve olhar a Raquel, constrangendo a garota.
– Mas ele mesmo cantou em seus poemas líricos que...
– ... que sentia falta dela, mas não que a deixou morrer, não é?
– Sim, mas...
– Os escritos poderiam ser resgatados do rio horas depois, mas
uma pessoa se afoga rapidamente, não? Por que Camões tentaria salvar
primeiro um objeto inanimado para, depois, tentar salvar um ser vivo?
– Porque ele dava muito valor à obra e...
– Isso é o que dizem os historiadores para valorizar a obra e ro‑
mancear a vida de Camões. Mas, será que é verdade?
A sala toda pareceu concordar com Santiago. Mesmo condescen‑
dente, a professora Sueli não gostou de ter seus argumentos inter‑
rompidos e de ser contrariada, ainda mais por alguém que não estava
prestando atenção à aula. Deixar esta atitude impune seria um péssimo
exemplo aos demais estudantes.
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4. Luciano Milici
– Santiago, venha à frente, por favor – pediu, em tom sério.
A classe emudeceu. O clima ficou tenso. Santiago foi até a lousa
esperando por uma bronca. Sueli colocou os óculos e pediu:
– Senhor Santiago Porto, recite algo de Camões para a sala. Qualquer
coisa que você se lembre que eu, sua professora, tenha dito nas muitas
aulas em que você prestou atenção – havia ironia naquelas palavras.
Todos sentiram pena de Santiago. Não havia esse tipo de teste oral
no colégio, e nunca tinham pedido que fossem decorados e declama‑
dos poemas antes. Sueli sabia que estava sendo levemente injusta, mas
aquele era o momento de ensinar uma lição de humildade ao menino.
Contrariando todas as expectativas, Santiago cantarolou baixinho,
para surpresa da classe:
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer
Todos riram e acompanharam Santiago nos famosos versos. O so‑
neto Amor é fogo que arde sem se ver, de Camões, havia sido usado pela
Legião Urbana na canção Monte Castelo, e era de conhecimento e
gosto geral das crianças e adolescentes da época.
A professora não se deu por satisfeita:
– Cante, ou melhor, recite outra. Esta já é conhecida e, como você
já deve saber, Renato Russo alterou o final do soneto.
Aquela era, finalmente, a oportunidade esperada. Como escritor,
ele sabia que o segredo de um bom protagonista era saber o momento
certo e definitivo de agir. Uma leve brisa soprou na sala e trouxe a
inspiração. Então, Santiago respirou fundo e lançou seu tão esperado
torpedo no coração de Raquel:
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia
Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando se com vê la
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5. A página perdida de Camões
Porém, o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia
Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começou a servir outro sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta vida
Assim que terminou de recitar a passagem bíblica do pastor Jacó
transformada em lírica por Camões, Santiago pegou uma rosa da mesa
da professora – presente de algum estudante – e entregou a Raquel.
A menina sorriu tímida enquanto toda a classe aplaudiu com euforia.
Sueli não confessaria nunca, mas também tinha gostado da cena.
Para manter a postura, a professora mandou o jovem Santiago, que co‑
nhecia Camões, dominava as palavras e saltara o campo da amizade de
Raquel, para a diretoria.
E esta foi a primeira vez em que Santiago se meteu em apuros por
causa de Camões. Mas não a última.
Nem a pior.
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