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Medicina (Ribeirão Preto)                                                            Simpósio: MORTE: VALORES E DIMENSÕES
2005; 38 (1): 60-62                                                                            Capítulo IX




                                ASPECTOS LEGAIS DA MORTE

                                           LEGAL ASPECTS OF THE DEATH



                                                    Ricardo Gariba Silva


Docente. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP. Curso de Odontologia –UNAERP. Doutor em Direito - FHDSS de Franca
– UNESP. ricardogariba@yahoo.com.br




          Silva RG.   Aspectos legais da morte.   Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 60-62.

              Resumo: O presente trabalho pretende esclarecer e realçar os aspectos legais do evento
          morte para o médico, já que este, por atribuição normativa, e pelas circunstâncias fáticas e
          práticas, é quem, normalmente, a atesta em documento próprio. São enfocados os efeitos legais
          e jurídicos da morte, e sua repercussão no mundo do direito, com a importância e correlação que
          possui com a declaração médica da morte. Ao reavivar os conceitos, pretende-se que o médico
          esteja cada vez mais consciente do seu ato profissional enfocado no presente trabalho, e que
          seja, como sempre, diligente e zeloso com esta prática profissional pelas, dentre inúmeras
          outras coisas, repercussões que dela decorrem.

              Descritores:     Morte.Aspectos Legais.




INTRODUÇÃO                                                        encerramento do processo vital, como medida última
                                                                  destinada à pessoa, ressalvados os trabalhos de in-
       A questão da morte, quando analisada à luz do              vestigação e estudos post mortem.
direito, traz uma séria de conseqüências plenamente
claras e estabelecidas.                                           DESENVOLVIMENTO
       Ocorre que, em circunstâncias normais e roti-
neiras, referido evento é declarado por algum médico,                    Por paradoxal que possa parecer, ao abordar
que, normalmente, não tem pleno conhecimento dos                  os efeitos legais da morte, necessário se faz refletir
efeitos jurídicos e legais decorrentes do ato profissio-          sobre aqueles relacionados ao início da vida. E tal
nal que praticou.                                                 assertiva se torna mais clara ao entendermos que o
       Dessa forma, reveste de importância o escla-               evento morte põe fim àquilo que se iniciou e teve re-
recimento daqueles militantes da Medicina, já que, ao             percussões que, no caso presente, refletem no mundo
declararem o processo biológico que pôs fim à vida,               jurídico.
trazem com tal prática inúmeras conseqüências que                        A duração da vida coincide com a da persona-
emprestam importância e responsabilidade ainda mai-               lidade jurídica, que se constitui em um atributo da pes-
ores ao ato que praticam.                                         soa humana, e a ela está indissoluvelmente ligada.
       O objetivo do presente artigo é o de destacar              Assim, desde que vive e enquanto vive, o homem é
os aspectos legais do evento morte à luz do direito, e            dotado de personalidade1.
dirigido aos profissionais da Medicina, de modo que                      Não obstante a personalidade começar com o
estes possam ter pleno conhecimento e apreensão dos               nascimento e terminar com a morte2,3,4, a ordem jurí-
efeitos jurídicos dos seus atos profissionais após o              dica admite a existência da personalidade em hipóte-


60
Aspectos legais da morte




ses em que não ocorre a coincidência citada entre a        legatário; a morte do herdeiro livra os bens vinculados
ela e a vida, por meio de um processo técnico de fic-      da cláusula de inalienabilidade e semelhantes; a morte
ção. O direito admite que a personalidade fictícia, ar-    do fiduciário gera a consolidação do fideicomisso. Na
tificial, presumida, exista ao lado daquela denominada     seara penal, o autor aponta a extinção da punibilidade
real, verdadeira, autêntica5. Segundo o autor consul-      do criminoso com a morte deste, bem como a suspen-
tado, os casos em que se verifica a personalidade fic-     são da instância dos efeitos processuais.
tícia são do nascituro, do ausente e da pessoa cuja               Merece destaque o fato de que a morte, embo-
possibilidade de vir a existir é admitida para a aquisi-   ra determine a extinção da personalidade natural, não
ção de direitos.                                           impede que determinados atos do falecido ultrapas-
        Assim, ao declarar a morte de uma pessoa, o        sem-na, com efeitos legais previstos. É o que ocorre,
médico está, mediante esta prática, declarando, tam-       por exemplo, nos casos em que o morto se faz pre-
bém, que houve a extinção da personalidade daquele         sente no mundo dos vivos mediante a permanência da
indivíduo, já que, conforme dito anteriormente, referi-    sua vontade expressada por meio de testamento. Ain-
da extinção é decorrência do evento morte1,2,3,5/9.        da mais, tem o morto direito à revisão criminal, com o
        Ao médico compete atestar a ocorrência da          fito de absolvição, e, também, pode ser declarada a
morte, em documento solene, o atestado de óbito,           sua falência6.
que tem como finalidades principais a confirmação da              Não obstante os direitos do morto acima apon-
ocorrência do evento, a definição da causa mortis e        tados, Diniz (2002: 201)2 ressalta o respeito que é de-
a satisfação do interesse médico-sanitário, embora         vido ao cadáver, bem como o direito à imagem e à
tal testemunho possa ser feito por duas testemunhas        honra do falecido, que deve ser protegido por aqueles
idôneas, que tenham presenciado ou verificado o            legitimados para exercer tal tutela. Aponta a autora,
falecimento10, 11. O documento que contém a declara-       ainda, a possibilidade de ocorrência de promoção de
ção médica é o atestado de óbito, que se constitui em      militares e de servidores públicos post mortem.
garantia à família e à sociedade de que não há pos-
sibilidades de o indivíduo estar vivo, podendo ser         CONSIDERAÇÕES FINAIS
processada legalmente a inumação (França: 2001,
p. 329)10.                                                        A ocorrência da morte e a declaração deste
        Basta que se examinem as circunstâncias prá-       fato, na maioria dos casos, se dão mediante o acom-
ticas para se constatar a importância do ato médico        panhamento médico, senão em casos da evolução de
em comento, já que a declaração da morte por meio          doença, mas pela declaração da sua ocorrência me-
de testemunhas é de ocorrência mais rara, sendo o          diante atestado de óbito.
expediente mais comum a emissão pelo profissional                 Evidente se faz, pois, a presença do médico em
dos atestados.                                             virtude de tudo o exposto, e, da mesma, forma, a im-
        Uma vez emitido o atestado de óbito, estabele-     portância dos seus atos profissionais na declaração
cido, formalmente, está o fim da existência humana,        do evento morte. E, uma vez declarado o fim do pro-
bem como da personalidade civil10.                         cesso biológico vital, segundo os critérios profissio-
        Sendo a morte o limite do ciclo vital do homem,    nais médicos, surgem, no campo do direito, os efeitos
o conhecimento do momento em que tal limite foi atin-      anteriormente enumerados com o intuito de realçar as
gido constitui-se em um problema fundamentalmente          decorrências jurídicas do ato praticado que, nem sem-
médico-legal6. E, a partir dele, surgem as suas reper-     pre, os profissionais da saúde têm ciência deles.
cussões no mundo do direito.                                      Reveste-se de importância, pois, o realce das
        Os efeitos jurídicos da morte, na esfera civil,    decorrências jurídicas da morte, e a inserção do médi-
segundo Limongi França (1996: 64)6, são a dissolução       co no início de todo este processo, para que o profissi-
da comunhão de bens entre cônjuges, da sociedade           onal da saúde tenha, ainda mais, ciência e consciência
conjugal, do pátrio poder (atualmente entendido como       das repercussões do seu ato profissional de declara-
poder familiar), extinção do dever de alimentos, do        ção do evento morte e da sua importância em todo o
usufruto, dentre outros. Porém, o efeito civil de gran-    sistema jurídico, para que, também neste ato, o médi-
de repercussão, ou seja, a abertura da sucessão do         co, com a mesma diligência, critério, e dedicação que
falecido, além de outros como o legado de usufruto,        são peculiares a estes profissionais, possa atuar de
sem fixação de tempo, que perdura até a morte do           modo a refletir a verdade dos fatos.

                                                                                                                    61
Silva RG




       Normalmente, por mais paradoxal que seja, o                      do indivíduo, ou podem determinar, de plano, o fim da
fim da vida, do qual decorrem emoções tristes, pode                     reivindicação de alguns direitos.
representar o início de batalhas jurídicas, que provo-                         Dessa forma, por estarem diretamente ligados
carão emoções igualmente ruins.                                         ao fim da personalidade natural é que os atos médicos
       E, às vezes, o ato médico em comento, que está                   de declaração da morte são, da mesma forma, impor-
diretamente ligado às primeiras emoções, pode se li-                    tantes como os demais atos de preservação da vida.
gar às demais, por longo tempo, se não refletir a rea-                  São enfoques e fins diferentes, cada qual importante
lidade dos fatos. Nestas hipóteses, os atos profissio-                  em cada momento em que são praticados: a preser-
nais médicos prolongam-se para bem depois da morte                      vação da vida, e a declaração da morte.




            Silva RG. Legal aspects of the death. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 60-62.

                 Abstract: The present work intends to clarify and to enhance the legal aspects of the death
            for the physician. Physicians, as a result of normative attribution, and of the practical circumstances,
            normally, certify the death in proper document. The legal consequences of the death are focused,
            with its importance and correlation with the medical declaration of the death. The physician must
            be more conscientious of his professional act, and, therefore, be more diligent and always zealous
            with his practices, because of its effects.

                Keywords:        Death. Legal Aspects.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS                                               7 - Miranda, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte ge-
                                                                             ral. Tomo I. 1 ed. Campinas: Bookseller, 1999. p. 282-97.
1 - Pereira CMS. Instituições de direito civil. 18 ed. Rio de Janei-
                                                                         8 - Gagliano OS, Pamplona Filho R. Novo curso de direito civil.
    ro: Forense; 1997. Vol. 1. p. 148-50.
                                                                             Parte geral. São Paulo: Saraiva; 2002. Vol. !, p. 132-41.
2 - Diniz MH. Curso de direito civil brasileiro. 18 ed. atualizada de
                                                                        9 - Monteiro WB. Curso de direito civil. Parte geral. 39 ed. São
    acordo com o novo código civil. São Paulo: Saraiva; 2002.
                                                                             Paulo: Saraiva; 2003. p. 77-81.
    Vol. 1, p. 197-201.
                                                                        10 - França GV. Medicina legal. 6 ed. Rio de Janeiro:
3 - Wald A. Direito civil. Introdução e parte geral. 9 ed. São Paulo:
                                                                             Guanabara-Koogan; 2001. 580 p.
    Saraiva; 2002. p. 117-20.
                                                                        11 - Venosa SS. Direito civil. Parte geral. 4 ed. São Paulo:
4 - Rodrigues S. Direito civil. Parte geral. 34 ed. São Paulo: Sarai-
                                                                             Atlas, 2004. Vol. 1,p.191-200.
    va; 2003. Vol. 1, p. 35-8.

5 - Gomes O. Introdução ao direito civil. 18 ed. Rio de Janeiro:
    Forense; 2001. p. 143-4.

6 - Limongi França R. Instituições de direito civil. 4 ed. atualiza-
    da. São Paulo: Saraiva; 1996. p. 61-4.




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9 aspectos legais_%20morte

  • 1. Medicina (Ribeirão Preto) Simpósio: MORTE: VALORES E DIMENSÕES 2005; 38 (1): 60-62 Capítulo IX ASPECTOS LEGAIS DA MORTE LEGAL ASPECTS OF THE DEATH Ricardo Gariba Silva Docente. Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto – USP. Curso de Odontologia –UNAERP. Doutor em Direito - FHDSS de Franca – UNESP. ricardogariba@yahoo.com.br Silva RG. Aspectos legais da morte. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 60-62. Resumo: O presente trabalho pretende esclarecer e realçar os aspectos legais do evento morte para o médico, já que este, por atribuição normativa, e pelas circunstâncias fáticas e práticas, é quem, normalmente, a atesta em documento próprio. São enfocados os efeitos legais e jurídicos da morte, e sua repercussão no mundo do direito, com a importância e correlação que possui com a declaração médica da morte. Ao reavivar os conceitos, pretende-se que o médico esteja cada vez mais consciente do seu ato profissional enfocado no presente trabalho, e que seja, como sempre, diligente e zeloso com esta prática profissional pelas, dentre inúmeras outras coisas, repercussões que dela decorrem. Descritores: Morte.Aspectos Legais. INTRODUÇÃO encerramento do processo vital, como medida última destinada à pessoa, ressalvados os trabalhos de in- A questão da morte, quando analisada à luz do vestigação e estudos post mortem. direito, traz uma séria de conseqüências plenamente claras e estabelecidas. DESENVOLVIMENTO Ocorre que, em circunstâncias normais e roti- neiras, referido evento é declarado por algum médico, Por paradoxal que possa parecer, ao abordar que, normalmente, não tem pleno conhecimento dos os efeitos legais da morte, necessário se faz refletir efeitos jurídicos e legais decorrentes do ato profissio- sobre aqueles relacionados ao início da vida. E tal nal que praticou. assertiva se torna mais clara ao entendermos que o Dessa forma, reveste de importância o escla- evento morte põe fim àquilo que se iniciou e teve re- recimento daqueles militantes da Medicina, já que, ao percussões que, no caso presente, refletem no mundo declararem o processo biológico que pôs fim à vida, jurídico. trazem com tal prática inúmeras conseqüências que A duração da vida coincide com a da persona- emprestam importância e responsabilidade ainda mai- lidade jurídica, que se constitui em um atributo da pes- ores ao ato que praticam. soa humana, e a ela está indissoluvelmente ligada. O objetivo do presente artigo é o de destacar Assim, desde que vive e enquanto vive, o homem é os aspectos legais do evento morte à luz do direito, e dotado de personalidade1. dirigido aos profissionais da Medicina, de modo que Não obstante a personalidade começar com o estes possam ter pleno conhecimento e apreensão dos nascimento e terminar com a morte2,3,4, a ordem jurí- efeitos jurídicos dos seus atos profissionais após o dica admite a existência da personalidade em hipóte- 60
  • 2. Aspectos legais da morte ses em que não ocorre a coincidência citada entre a legatário; a morte do herdeiro livra os bens vinculados ela e a vida, por meio de um processo técnico de fic- da cláusula de inalienabilidade e semelhantes; a morte ção. O direito admite que a personalidade fictícia, ar- do fiduciário gera a consolidação do fideicomisso. Na tificial, presumida, exista ao lado daquela denominada seara penal, o autor aponta a extinção da punibilidade real, verdadeira, autêntica5. Segundo o autor consul- do criminoso com a morte deste, bem como a suspen- tado, os casos em que se verifica a personalidade fic- são da instância dos efeitos processuais. tícia são do nascituro, do ausente e da pessoa cuja Merece destaque o fato de que a morte, embo- possibilidade de vir a existir é admitida para a aquisi- ra determine a extinção da personalidade natural, não ção de direitos. impede que determinados atos do falecido ultrapas- Assim, ao declarar a morte de uma pessoa, o sem-na, com efeitos legais previstos. É o que ocorre, médico está, mediante esta prática, declarando, tam- por exemplo, nos casos em que o morto se faz pre- bém, que houve a extinção da personalidade daquele sente no mundo dos vivos mediante a permanência da indivíduo, já que, conforme dito anteriormente, referi- sua vontade expressada por meio de testamento. Ain- da extinção é decorrência do evento morte1,2,3,5/9. da mais, tem o morto direito à revisão criminal, com o Ao médico compete atestar a ocorrência da fito de absolvição, e, também, pode ser declarada a morte, em documento solene, o atestado de óbito, sua falência6. que tem como finalidades principais a confirmação da Não obstante os direitos do morto acima apon- ocorrência do evento, a definição da causa mortis e tados, Diniz (2002: 201)2 ressalta o respeito que é de- a satisfação do interesse médico-sanitário, embora vido ao cadáver, bem como o direito à imagem e à tal testemunho possa ser feito por duas testemunhas honra do falecido, que deve ser protegido por aqueles idôneas, que tenham presenciado ou verificado o legitimados para exercer tal tutela. Aponta a autora, falecimento10, 11. O documento que contém a declara- ainda, a possibilidade de ocorrência de promoção de ção médica é o atestado de óbito, que se constitui em militares e de servidores públicos post mortem. garantia à família e à sociedade de que não há pos- sibilidades de o indivíduo estar vivo, podendo ser CONSIDERAÇÕES FINAIS processada legalmente a inumação (França: 2001, p. 329)10. A ocorrência da morte e a declaração deste Basta que se examinem as circunstâncias prá- fato, na maioria dos casos, se dão mediante o acom- ticas para se constatar a importância do ato médico panhamento médico, senão em casos da evolução de em comento, já que a declaração da morte por meio doença, mas pela declaração da sua ocorrência me- de testemunhas é de ocorrência mais rara, sendo o diante atestado de óbito. expediente mais comum a emissão pelo profissional Evidente se faz, pois, a presença do médico em dos atestados. virtude de tudo o exposto, e, da mesma, forma, a im- Uma vez emitido o atestado de óbito, estabele- portância dos seus atos profissionais na declaração cido, formalmente, está o fim da existência humana, do evento morte. E, uma vez declarado o fim do pro- bem como da personalidade civil10. cesso biológico vital, segundo os critérios profissio- Sendo a morte o limite do ciclo vital do homem, nais médicos, surgem, no campo do direito, os efeitos o conhecimento do momento em que tal limite foi atin- anteriormente enumerados com o intuito de realçar as gido constitui-se em um problema fundamentalmente decorrências jurídicas do ato praticado que, nem sem- médico-legal6. E, a partir dele, surgem as suas reper- pre, os profissionais da saúde têm ciência deles. cussões no mundo do direito. Reveste-se de importância, pois, o realce das Os efeitos jurídicos da morte, na esfera civil, decorrências jurídicas da morte, e a inserção do médi- segundo Limongi França (1996: 64)6, são a dissolução co no início de todo este processo, para que o profissi- da comunhão de bens entre cônjuges, da sociedade onal da saúde tenha, ainda mais, ciência e consciência conjugal, do pátrio poder (atualmente entendido como das repercussões do seu ato profissional de declara- poder familiar), extinção do dever de alimentos, do ção do evento morte e da sua importância em todo o usufruto, dentre outros. Porém, o efeito civil de gran- sistema jurídico, para que, também neste ato, o médi- de repercussão, ou seja, a abertura da sucessão do co, com a mesma diligência, critério, e dedicação que falecido, além de outros como o legado de usufruto, são peculiares a estes profissionais, possa atuar de sem fixação de tempo, que perdura até a morte do modo a refletir a verdade dos fatos. 61
  • 3. Silva RG Normalmente, por mais paradoxal que seja, o do indivíduo, ou podem determinar, de plano, o fim da fim da vida, do qual decorrem emoções tristes, pode reivindicação de alguns direitos. representar o início de batalhas jurídicas, que provo- Dessa forma, por estarem diretamente ligados carão emoções igualmente ruins. ao fim da personalidade natural é que os atos médicos E, às vezes, o ato médico em comento, que está de declaração da morte são, da mesma forma, impor- diretamente ligado às primeiras emoções, pode se li- tantes como os demais atos de preservação da vida. gar às demais, por longo tempo, se não refletir a rea- São enfoques e fins diferentes, cada qual importante lidade dos fatos. Nestas hipóteses, os atos profissio- em cada momento em que são praticados: a preser- nais médicos prolongam-se para bem depois da morte vação da vida, e a declaração da morte. Silva RG. Legal aspects of the death. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38 (1): 60-62. Abstract: The present work intends to clarify and to enhance the legal aspects of the death for the physician. Physicians, as a result of normative attribution, and of the practical circumstances, normally, certify the death in proper document. The legal consequences of the death are focused, with its importance and correlation with the medical declaration of the death. The physician must be more conscientious of his professional act, and, therefore, be more diligent and always zealous with his practices, because of its effects. Keywords: Death. Legal Aspects. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 7 - Miranda, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte ge- ral. Tomo I. 1 ed. Campinas: Bookseller, 1999. p. 282-97. 1 - Pereira CMS. Instituições de direito civil. 18 ed. Rio de Janei- 8 - Gagliano OS, Pamplona Filho R. Novo curso de direito civil. ro: Forense; 1997. Vol. 1. p. 148-50. Parte geral. São Paulo: Saraiva; 2002. Vol. !, p. 132-41. 2 - Diniz MH. Curso de direito civil brasileiro. 18 ed. atualizada de 9 - Monteiro WB. Curso de direito civil. Parte geral. 39 ed. São acordo com o novo código civil. São Paulo: Saraiva; 2002. Paulo: Saraiva; 2003. p. 77-81. Vol. 1, p. 197-201. 10 - França GV. Medicina legal. 6 ed. Rio de Janeiro: 3 - Wald A. Direito civil. Introdução e parte geral. 9 ed. São Paulo: Guanabara-Koogan; 2001. 580 p. Saraiva; 2002. p. 117-20. 11 - Venosa SS. Direito civil. Parte geral. 4 ed. São Paulo: 4 - Rodrigues S. Direito civil. Parte geral. 34 ed. São Paulo: Sarai- Atlas, 2004. Vol. 1,p.191-200. va; 2003. Vol. 1, p. 35-8. 5 - Gomes O. Introdução ao direito civil. 18 ed. Rio de Janeiro: Forense; 2001. p. 143-4. 6 - Limongi França R. Instituições de direito civil. 4 ed. atualiza- da. São Paulo: Saraiva; 1996. p. 61-4. 62