Dalton Trevisan à queima-roupa, ensaio da professora Berta Waldman, que leciona literatura na usp, especialista em Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues, este ensaio é sobre Dalton e foi publicado na revista Metáfora, SP
O documento apresenta um resumo da obra do escritor brasileiro Dalton Trevisan, conhecido por seus contos curtos e linguagem enxuta que retratam a periferia e a marginalidade social de forma crua. O texto destaca a busca do autor por reduzir ainda mais a extensão e o estilo de seus contos ao longo da carreira, assim como seu foco em personagens marginalizados e situações de desesperança.
Similaire à Dalton Trevisan à queima-roupa, ensaio da professora Berta Waldman, que leciona literatura na usp, especialista em Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues, este ensaio é sobre Dalton e foi publicado na revista Metáfora, SP
A Rosa do Povo - Carlos Drummond de Andradevestibular
Similaire à Dalton Trevisan à queima-roupa, ensaio da professora Berta Waldman, que leciona literatura na usp, especialista em Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues, este ensaio é sobre Dalton e foi publicado na revista Metáfora, SP (20)
Dalton Trevisan à queima-roupa, ensaio da professora Berta Waldman, que leciona literatura na usp, especialista em Dalton Trevisan e Nelson Rodrigues, este ensaio é sobre Dalton e foi publicado na revista Metáfora, SP
1. Dalton à queima roupa
“Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta”
Dalton Trevisan
Por Berta Waldman*
O Anão e a ninfeta, o último livro do escritor curitibano Dalton Trevisan,
confirma sua busca de redução da linguagem, que toma como alvo o haicai,
as “ministórias”, a palavra descarnada. Mestre em descrever situações
significativas, Trevisan já tinha praticado diferentes procedimentos
formais, em sua obra, verticalizando o conto recortado em verso, propondo
poemas, reduzindo o conto a “ministória”. Enquanto amplia as formas, cria
novos ritmos. Diminui, em geral, a extensão dos contos e para isso a frase é
golpeada, fragmenta-se, eliminam-se verbos, conjunções, pronomes,
adjetivos, evita-se a subordinação e delineia-se a oração nominal como
predileta. Concomitante com essa redução, faz-se um recorte mais exigente
do universo de personagens que vai se acuando à periferia, em
consonância com a história presente do país, onde os desempregados,
excluídos, marginais e sem perspectivas formam maioria cada vez mais
visível.
Nascido em 1925, em Curitiba, Paraná, Dalton Trevisan é um
escritor que não faz concessões: não dá entrevistas, não se deixa
fotografar, não conversa com leitores, não recebe prêmios, nem participa
de encontros de escritores. Sem contar os textos publicados em folhetos
distribuídos de mão em mão ou enviados pelo correio, seu primeiro livro é
de 1959, Novelas nada exemplares. Antes dessa data participou ativamente
da organização da revista modernista curitibana Joaquim, cujo primeiro
número é de abril de 1946. Nela publicou vários textos. Contando hoje com
2. uma vasta e significativa obra, Trevisan é um escritor programático e
obsessivo que traça o itinerário de uma busca incessante, manifestada na
repetição de situações, de personagens, de um tema que se multiplica em
voltas infindáveis. Até 1972 – ano de publicação de O rei da Terra - as
narrativas de Trevisan são mais extensas, porque ele mais investiga sua
matéria literária do que enxuga sua linguagem, que, no entanto, sempre se
inova, para dar relevo estético e histórico às coisas de seu tempo e lugar.
Nesse sentido, a Curitiba que emerge dos seus contos, à maneira do que
acontece com o Nordeste de Graciliano Ramos ou o sertão de Guimarães
Rosa, é o próprio mundo, porque o mundo também é Curitiba no que tem
de grotesco e regressivo. Em outras palavras, a medida de um escritor,
principalmente nos países periféricos como o Brasil, deriva, em grande
parte, de um tipo de agudeza – da agudeza para perceber que a
complexidade do mundo contemporâneo também se expressa aqui, e que
uma representação artística eficaz dele contribui para a imagem correta do
conjunto.
A predominância dos textos curtos veio depois de 1974, com a publicação
de O Pássaro de cinco asas. Mas continuam desfilando, na periferia da
periferia e sob um facho de luz crua, funcionários públicos, lojistas,
prostitutas, donas de casa, domésticas, profissionais liberais, normalistas,
trabalhadores da terra, drogados, religiosos, montando a cena ficcional de
Trevisan como um universo sem saída, uma obra negativista, obra que
expõe o negativo, mas é construída segundo a melhor tradição literária no
mapa da narrativa contemporânea .
3. Box 1
As falas das ruas
O autor registra falas de grupos e as põe em circulação em seus livros.
Variadas e facilmente identificadas pelo leitor, o autor as vai atualizando.
Em obras mais recentes, ganha espaço o discurso do viciado em crack, do
cheirador de pó, do traficante. Esse discurso deslocado do real para a ficção
compõe com breves pinceladas uma espécie de “quadro vivo” concentrado
no essencial, sem alçapões ilusionistas, nem jogos de luz enganadores.
-O meu café da manhã é uma pedra. Se estou na pior, um baseado. Aí me
dá uma fominha desgracida. Vou chegando bem doidona: “Ei, tô com
fome. Ei, galera,tô com fome.”Até descolar um rango.
Ali no ponto de ônibus: “Ô tio, só pra inteirar a passagem? Valeu. Tem
condição, ô tia? valeu.” Quando você vê, tá riquinha de moeda. Esse golpe
é fatal.” ( Pico na veia, texto 2)
Box 2.
Na selva das cidades
A visão apocalíptica que emoldura o dia-a-dia das metrópoles modernas
toma Curitiba como parâmetro, e é nela que o autor mostra o cotidiano
vivido como o pão que o diabo amassou. Assim, sua cidade natal, essa
grande favela do primeiro mundo ( Pico na Veia, texto 18), funciona como
uma espécie de “zona zero”, por onde transitam e para onde convergem
vozes, interagem discursos, que prescindem de diálogos. Curitiba, nesse
sentido, é apresentada como um palco miniaturizado vazio de expectativas
positivas e ideologizadas, construídas para serem consumidas “aqui” e
“agora”, no grande supermercado em que se transformou o espaço global.
Pare na primeira esquina e conte os minutos de ser abordado por um
pedinte, assediado por um vigarista e trombado por um pivete – se antes
não tiver a nuca partida ao meio pela machadinha do teu Raskolnikov.
(Pico na Veia, texto 145)
4. ******
-Que cidade é essa? Nas praças o desfile de estátuas equestres- e nenhum
cavaleiro.
(234, texto 39)
******
- Ai de tua Curitiba do primeiro mundo da propaganda. Em toda calçada a
legião de meninos dormindo, cheirando cola, se trocando. Cada praça, um
cemitério de elefantes. Eis o pivete que te assalta o bolso. Um mendigo
rastejante puxa o teu pé. Corre, a bicicleta te derruba no passeio. Para, e
o carro te atropela na faixa de pedestre. Com a bênção do maioral que nos
promete um trio elétrico e o céu também.
(234, texto 75)
*******
Curitiba
ó maldito vaso de água podre
figo fervilhante de bichos
ó cedro retorcido de agulhas
hiena comedora de testículos quebrados
(234, texto 87)
*******
Box 3
Elogio da repetição
Dalton Trevisan é apontado muitas vezes pela crítica como um autor que se
repete, que conta sempre histórias terríveis de desencontro entre as pessoas.
Ele aproveita essa deixa e escreve uma ministória, em que a
responsabilidade da repetição não é do artista e sim das pessoas que,
segundo ele, são sempre iguais:
-Ora, direis, ele se repete. Eu vos direi, no entanto, como poderia se cada
personagem é baseado numa pessoa diferente? Se alguém se repete são
elas, essas pessoas iguais, sempre as mesmas. Pô, destino próprio, história
única, vida original – não há mais? (Pico na veia, texto 192)
Box 4.
5. Imprensa marrom
Clichês de cartas inspiradas no Consultório Sentimental incluído em
revistas femininas e construções calcadas na imprensa marrom e em
relatórios policiais fazem parte das narrativas de Trevisan.
Saudações.
Dr. Antônio, desculpe a ousadia de escrever, ontem fiquei arrependida de
não confessar a paixão que sinto, porque tive vergonha, vejo que o senhor
é casado e pai de tantos filhos, acho que isso não tem importância, a gente
sabe de tanta mulher casada gostando do homem de outra, quanto mais eu
que sou moça donzela, a diferença é que não sou correspondida. Venha na
mesma hora, eu espero no portão e mamãe não vai nos ver. Se o doutor
não vier é sinal que não tem a mínima simpatia.
Sem mais, sua criada obrigada, Ismênia.
(...)
Meu inesquecível Antônio
Não seja traidor, não iluda um pobre coração, você me enganou e não vem
matar essa paixão, você é mesmo mau, não quer o meu amor (...), sei que
está com raiva de mim.
O que te fiz, Antônio, que se tornou tão ingrato? A dona reclama o
aluguel, não queria te incomodar. Passei o dia bem amolada, escrevo esta
cartinha com lágrimas nos olhos, as letras como estão borradas?
Antônio, quero ser tua, inteirinha tua, e que seja meu também. Ismênia
“Ismênia, moça donzela”, em Morte na praça
Sub-box 4
Mulheres vítimas de opressão
Noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira,
prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã
Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou
cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um
de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda
civil, que a conduziu até a delegacia.
A menina nunca tinha visto os homens, não sabia a que atribuir o assalto.
Nem qual foi o primeiro, agarrada e derrubada, a cabeça coberta.
Arrastada pelo chão, fortes dores nos seios e noutras partes. A fim de não
gritar por socorro, barbaramente espancada. Apresentou-se com saia de
seda preta e blusa vermelha de malha, sujas de lama. No corpo além de
muitas feridas, folha seca, grama e barro. A hora lá pelas dez ou onze.(...)
6. Os tais a derrubaram do outro lado do muro. Fizeram o que bem
quiseram, largada bastante ferida no seio e nas partes, até que o guarda-
civil a encontrou, queixosa de frio e dor.(...) (O conto apresenta o relato de
todos os estupradores e termina sem sugerir uma punição para o ato.) O
guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte preta, viu uma
negrinha chorando”.
“Debaixo da ponte preta”, em O vampiro de Curitiba
Box 5
O sexo sem amor dos infelizes
A sexualidade tem como característica natural, ser, essencialmente, a
expressão das diferenças. Na obra de Trevisan, transformado em atividade
puramente mecânica, o sexo predica a ausência de um sujeito. Predica o
vazio. Concentrado no essencial, sem alçapões ilusionistas nem jogos de
luz enganadores, o autor mostra o amor como uma luta sexual. Não há
felicidade possível. Expressão da violência também no modo direto com
que aborda sua matéria, a linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, tem a
precisão de um tiro à queima roupa, que não prescinde de boa dose de
humor. É difícil, entretanto, sustentar o riso quando o leitor se dá conta de
que o que se apresenta é um mundo sem sentido e sem saída em relação ao
qual ele, leitor, quer estabelecer distância, mas é obrigado a se enxergar
nele. Esse mundo calcado no negro, sem o anteparo de qualquer
idealização ou promessa de redenção, provoca o leitor. A representação
formal do mundo degradado de Dalton Trevisan se faz através de uma
linguagem rebaixada que o autor desgasta e explora com esmero e rigor,
reduzindo-a ao mínimo, ao osso, faca no coração do leitor.
7. João era casado com Maria e moravam em barraco de duas peças no
Juvevê; a rua de lama, ele não queria que a dona molhasse os pezinhos. O
defeito de João ser bom demais – dava tudo o que ela pedia.
Garçom do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite
voltou mais cedo, as duas filhas sozinhas, a menor com febre. João trouxe
água com açúcar e, assim que ela dormiu, foi espreitar na esquina. Maria
chegava abraçada a outro homem, despedia-se com beijo na boca. Investiu
furioso, correu o amante. De joelho a mulher anunciou o fruto do ventre.
João era bom, era manso e Maria era única, para ele não havia outra;
mudaram-se do Juvevê para o Boqueirão, onde nasceu a terceira filha.
Chamavam-se novas Marias: da Luz, das Dores, da Graça. Com tantas
Marias confiava João que a dona se emendasse. Não foi que a encontrou
de quimono atirando beijos para um sargento da polícia?
“O senhor meu marido”, em A faca no coração
O amor é uma faca no coração. Cada dia enterra mais fundo, que não
deixe de sangrar.
“Haicai”, em A faca no coração
Box 6
Retrato da mesquinhez humana
Um dos contos mais conhecidos de Dalton Trevisan é “Uma vela para
Dario”. Nele o autor ressalta a mesquinhez humana, a falta de solidariedade
com o próximo, o egoísmo em tal grau que causa um estranhamento no
leitor. Esse estranhamento é uma forma de o autor provocar o leitor a olhar
criticamente, sem idealização, para si e para o mundo. Aliás, a encenação
da violência na obra de Trevisan tem essa função.
“Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra
a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela
escorrega, senta-se na calçada ainda úmida de chuva. Descansa na pedra
o cachimbo.
8. Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a
boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco,
diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou.
O rapaz de bigode pede aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-
lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos,
Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca. (...)
O senhor gordo repete que Dario sentou-se na calçada, soprando a
fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Mas não se vê
guarda-chuva ou cachimbo a seu lado. (...)
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do
cadáver. Parece morto há muito tempo, quase o retrato de um morto
desbotado pela chuva.
Fecharam-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à
espera do rabecão. A cabeça agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem
aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas de chuva, que volta a
cair.”
“Uma vela para Dario”, em Vinte contos menores
Box 7.
Em busca da essência
A medida aleatória dos textos (contos? haicais? poemas?) obedece a um
princípio rígido de corte. O autor corta no ponto a partir do qual o texto
alcança sugerir ao leitor uma imagem, uma metáfora, independentemente
de sua extensão, da definição das personagens, da organização do espaço e
do tempo, do enredo etc. Apenas numerados, os textos reforçam a
composição de um mundo alienado e indiferenciado. Lentamente, os
números ganham espaço na ficção descarnada de Trevisan, que já os usou
até mesmo como título de obra . É o caso de 234.
A indiferenciação dos sujeitos - também eles não nomeados (com exceção
de João e Maria – par sempre presente na ficção do autor), corre paralela
ao sexo, uma engrenagem a mais na enorme máquina da alienação. O
9. corpo, no texto, transforma-se em objeto mercável e dedica-se a distintas
formas de associação sexual, todas abstratas, porque voltadas a uma
combinatória erótica na qual o que conta são os mecanismos, o jogo de
poder, tornando-se assim matéria abstrata, número, frase, cujo sentido se
evapora. Longe de qualquer acordo amoroso possível entre pares, o autor
reinstala a cada livro a “guerra conjugal”, onde o desencontro, a destruição
do outro, as taras e a violência sexual seguem o curso de um beco sem
saída.
Um vulto ao longe – será a tua alma gêmea?
Ele se aproxima, um tipo qualquer.
De perto é sim João, o Estripador.
(Pico na veia, texto 23)
Atento à violência fora da retórica desgastada na afirmação de um bem
universal e abstrato, Trevisan mostra o mal inerente não ao homem, mas
ancorado a uma história humana. Nela, a exclusão ocupa papel importante.
Assim, repetir é um modo funcional de contar a repetição a que estamos
condenados. Na repetição, porém, o autor depura e lapida a palavra. Ele
sabe, como ninguém, que Um bom conto é pico certeiro na veia. (Pico na
veia, texto 3)
Os marginalizados da vida
Dalton Trevisan traz a cena a própria voz dos marginalizados da vida e
penetra em seus mais íntimos pensamentos. Ele expõe os meandros da
mente do vampiro que está em cada um de nós.
“Ai, me dá vontade até de morrer. Veja, a boquinha dela está pedindo
beijo - beijo de virgem é mordida de bicho cabeludo . Você grita vinte e
10. quatro horas e desmaia feliz. É uma que molha o lábio com a ponta da
língua para ficar mais excitante. Por que Deus fez da mulher o suspiro do
moço e o sumidouro do velho? (...) Se não quer, por que exibe as graças
em vez de esconder? Hei de chupar a carótida de uma por uma. Até lá
enxugo os meus conhaques. Por causa de uma cadelinha como essa que aí
vai rebolando-se inteira. Quieto no meu canto, ela que começou. Ninguém
diga sou taradinho. No fundo de cada filho de família dorme um vampiro -
não sinta gosto de sangue.” (O vampiro de Curitiba)
*Berta Waldman é professora titular aposentada da Universidade de São
Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Entre
suas linhas de pesquisa está o estudo da obra de Dalton Trevisan, que
resultou em sua tese de doutoramento, publicada em livro - Do Vampiro ao
Cafajeste – Uma Leitura da Obra de Dalton Trevisan - e, ainda, em aulas,
orientações, conferências, além de artigos como Mínimo Múltiplo: do
Conto ao haicai de Dalton Trevisan, Pico na veia, entre outros.