O texto descreve a memória do autor aos 4 anos de idade assistindo ao lançamento de um navio. Isso o inspirou a explorar o peso e a gravidade em sua arte, mais do que a leveza. Ele acredita que pode expressar mais sobre o equilíbrio, manipulação e movimento do peso do que sobre a leveza.
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Uma reflexão de Richard Serra sobre o que não é leve.
1. Uma reflexão de Richard Serra sobre o que não é leve
RICHARDSERRA
tradução PALOMA VIDAL
18/05/2014
SOBRE O TEXTO: O texto "Peso", que data de 1988, estará no livro "Richard Serra -
Escritos e Entrevistas (1967-2013)", a ser lançado na sede carioca do Instituto Moreira
Salles no próximo dia 29, quando ali se inaugura, para convidados, mostra de seus
desenhos (em cartaz até 28/9). Richard Serra participa ainda de debate com Michael
Kimmelman, crítico de arquitetura do "New York Times", no teatro Adolpho Bloch,
também no Rio. Já não há vagas para o evento, que abre, no dia 27, às 18h, o fórum
Arq.Futuro 2014 (arqfuturo.com.br).
PESO
Uma das minhasrecordaçõesmaisantigaséa de estar atravessandocom meu pai a ponte
Golden Gate de carro, ao amanhecer. Íamos para o antigo estaleiro da Marinha, onde ele
trabalhava como encanador, para a cerimônia de batismo de um navio. Era o outono de
1943, no dia do meu aniversário. Eu tinha quatro anos. Quando chegamos, o cargueiro
coberto de aço preto, azul e laranja, estava equilibrado num poleiro. Ele era
desproporcionalmente horizontal e, para um menino de quatro anos como eu, tinha as
laterais grandes como um arranha-céu. Eu me lembro de passear ao redor do casco com
meu pai e olhar a enorme hélice de cobre, espiando através dos suportes. Então, numa
lufada repentina de atividade, as estacas, as vigas, as placas, os postes, as barras, os
blocos da quilha, toda a proteção foi removida; os cabos foram cortados, as correntes
foram soltas, as travas foram abertas. Houve uma total incongruência entre o
deslocamento dessa enorme tonelagem e a velocidade e a agilidade com que a tarefa foi
executada. À medida que a estrutura de apoio foi desfeita, o navio começou a se mover
para baixo,ao longo da calha,na direçãodo mar.Ouviu-se o som da celebração,os gritos,
as buzinas, os berros, os assobios. Livre de suas amarras, com as toras rolando, o navio
escorregou do berço com um movimento sempre crescente. Foi um momento de
tremenda ansiedade quando o cargueiro chacoalhou, balançou, se inclinou e bateu de
encontro ao mar, meio submerso, para então emergir e se levantar e encontrar seu
equilíbrio. Não apenas o navio havia recobrado o equilíbrio, mas a multidão de
2. espectadores também. O navio havia passado por uma transformação: de um enorme
peso morto para uma estrutura brilhante, livre, flutuante e à deriva.
O espanto e a admiraçãoqueeu senti naquelemomento permaneceram.Toda a matéria-
prima de que eu necessitavaestá contida no reservatório dessa lembrança,que se tornou
um sonho recorrente.
O peso é um valor para mim. Não que ele seja mais expressivo que a leveza; mas
simplesmente eu sei mais sobre o peso do que sobre a leveza, e tenho, portanto, mais a
dizer sobre ele, mais a dizer sobre o equilíbrio do peso, a diminuição do peso, a adição e
a subtração do peso, a concentração do peso, a manipulação do peso, o suporte do peso,
a colocação do peso, o travamentodo peso, o efeito psicológicodo peso, a desorientação
do peso, o desequilíbrio do peso, a rotação do peso, o movimento do peso, o
direcionamento do peso, a forma do peso. Eu tenho mais a dizer sobre os ajustes
perpétuos e meticulosos do peso, sobre o prazer que deriva da exatidão das leis da
gravidade. Tenho mais a dizer sobre o processamento do peso do aço, sobre as forjas, as
usinas de laminação e as fornalhas.
É difícil empregar objetos do dia-a-dia para expressar ideias de peso, pois a tarefa seria
infinita. Há uma vastidão imponderável no peso. No entanto, eu posso registrar a história
da arte como uma história da particularização do peso. Tenho mais a dizer sobre
Mantegna, Cézanne e Picasso do que sobre Botticelli, Renoir e Matisse, ainda que eu
admireo que mefalta.Tenho maisa dizer sobre a história da escultura como uma história
do peso; mais a dizer sobre os monumentos à morte, sobre o peso e a densidade e a
concretude de inúmeros sarcófagos, sobre câmaras funerárias; mais a dizer sobre
Michelangelo e Donatello; mais a dizer sobre a arquitetura micênica e inca, sobre o peso
das cabeças olmecas.
Nós somos todos restringidos e condenados pelo peso da gravidade. No entanto, Sísifo
empurrando eternamente o peso da sua rocha montanha acima não me impressiona
tanto quanto o trabalho incansável de Vulcano no fundo da cratera fumegante,
martelando a matéria bruta. O processo construtivo, a concentração e o esforço diários
me atraem mais que o leve e o fantástico, mais que a busca pelo etéreo. Tudo que
escolhemos na vida pela sua leveza logo revela seu insuportável peso. Estamos diante do
medo do peso insuportável: o peso da repressão, o peso da constrição, o peso do
governo, o peso da tolerância, o peso da resolução, o peso da responsabilidade, o peso
da destruição, o peso do suicídio, o peso da história que dissolve o peso e erode o sentido
de uma construção calculada deleveza palpável.O resíduo da história:a página impressa,
a cintilação da imagem, sempre fragmentária, sempre dizendo algo aquém do peso da
experiência.
É a distinção entre o peso pré-fabricado da história e a experiência direta que evoca em
mim a necessidade de fazer coisas que ainda não foram feitas. Eu tento continuamente
3. confrontar as contradições da memória e fazer tábula rasa, de modo a ter que apelar
para asminhaspróprias experiênciaseosmeus próprios materiais,mesmodiantede uma
situação sem chance de realização.
Inventar métodos sobre os quais eu não sei nada, utilizar o conteúdo da experiência de
modo que ele se torne conhecido para mim, para então questionar a autoridade daquela
experiência e assim questionar a mim mesmo.
RICHARDSERRA,74, é escultor e desenhista norte-americano, célebre por suas peças de
grandes proporções.
PALOMA VIDAL, 39, escritora, tradutora e professora de teoria literária na Unifesp, é
autora do romance "Mar Azul" (Rocco).