Prova da PPL Enem reapliaçõ de 2023 com todas as questões
As tradições profanas de teatro de bonecos na Europa
1. As Tradições Profanas de Teatro de Bonecos na Europa: A Commedia dell'Arte e as sementes de Pulcinella. Resumo: Este texto apresenta um panorama geral sobre a constituição do teatro de bonecos popular na Europa e de como as companhias da Commedia dell’Arte exerceram um forte efeito de unificação no desenvolvimento do teatro de bonecos naquele continente. Nele, são ainda discutidas as relações entre estas formas populares e o Mamulengo brasileiro.
No século XVII, companhias de Commedia dell’Arte viajaram por quase toda Europa ocidental. Como se sabe, a influência destes artistas ambulantes no teatro europeu foi de grande impacto, e os bonequeiros italianos exerceram um forte efeito de unificação no desenvolvimento do teatro de bonecos em muitos países da Europa. Muitos atores da Commedia dell’Arte eram também bonequeiros, ou tinham começado suas carreiras como tal.1 Muitas das primeiras companhias dell’Arte que perambulavam pela Europa, além de suas peças, apresentavam espetáculos com bonecos, às vezes no mesmo show com atores. Os bonecos eram usados como forma de chamar a atenção da audiência e podiam também ser apresentados nos intervalos entre os atos das peças. Entretanto, havia muitas companhias italianas de teatro de bonecos que consistia de somente um bonequeiro, que viajava de país a país apresentando-se apenas com bonecos. Alguns deles estabeleceram-se em um país estrangeiro, outros, prosseguiram a vida viajando. Apresentação de Pulcinella em Roma no século XVIII in BRAGALIA, 1953, p.408
1 Ryan Howard, ‘Puppets and the Commedia dell’Arte in the Sixteenth, Seventeenth, and Eighteenth Centuries,’ The Puppet Year Book 1 (1995): 18.
2. A superioridade técnica dos bonequeiros italianos e o uso dos personagens populares da Commedia dell’Arte nos seus espetáculos contribuíram para o crescimento geral do interesse do público no teatro de bonecos. Os resultados de tal influência foram a ascendência internacional do personagem/boneco Pulcinella e a polarização das técnicas da marionete e de bonecos de luva.
Há uma discussão extensiva entre artistas e pesquisadores se Pulcinella apareceu primeiramente como um personagem-tipo da Comédia italiana ou como personagem/boneco. Embora se aceite mais que Pulcinella tenha feito seu debut como uma máscara da Commedia dell’Arte em aproximadamente 16002
Pesquisadores indicam que a Commedia dell’Arte seja provavelmente originária das farsas Atelanas. Os argumentos em favor desta tese vão desde a identidade comum dos gêneros cômicos à surpreendente semelhança de muitas das características do antigo teatro da província romana de Oscan (hoje conhecida como Campanha) com a Commedia dell’arte: os persoangens-tipo; a improvisação; a atualidade dos lazzi, não há nenhuma dúvida que foi como boneco que ele exerceu maior influência no teatro europeu.
3 que fundem elementos locais com os das comédias gregas; o uso da piveta4 comum aos bufões grego-romanos; o uso da meia mascara negra (ou o uso da fuligem para a pintura do rosto); os títulos das farsas; a típica mistura de prosa, canto e dança; a atuação de mulheres nas personagens femininas; etc. Em relação a Pulcinella, parece que este seria originário principalmente de Maccus, um dos personagens-tipo das Atelanas5
2 Contrariamente, Speaight diz que, embora nao se possa afirmar, Pulcinella parece ter aparecido primeiramente no “castello” (empanada medieval para teatro de bonecos). (Speaight, The History, 39). 3 Lazzi do italiano, Lazzo (gracejo, piada)- Pequena ação comica bem codificada usada na Commedia dell'arte. Equivalente às gags dos palhaços. 4 Pequena palheta usada embaixo da lingua para distorcer a voz dos atores. 5 Bragaglia, Anton G., Pulcinella, 3-4 , geralmente representado como jovem e trapalhão.
3. Máscara de Maccus in BRAGALIA, 1953, p.03
Pulcinella nasceu e cresceu da (e na) pobreza napolitana, sendo representado com uma camisa branca frouxa, amarrada com um cinto de barbante sobre suas calças. Este era o traje diário do camponês italiano do século XVI. No século seguinte, sua figura tornou-se estandardizada, passando também a usar um chapéu branco pontiagudo e flexível, e uma máscara com um grande nariz. Pulcinella viajou com os outros personagens da Commedia dell’Arte através dos Alpes. Na metade do século XVII estabeleceu-se na França como Polichinelle (Polichinelo). Na França havia uma longa tradição popular de tolos corcundas que influenciaram a nova fisionomia de Pulcinella. Além da corcunda, Polichinelle aparece com um chapéu mais elaborado e um traje bem mais elegante, resultado da influência francesa: "o rude camponês italiano transformou- se em algo mais fantástico e gaélico".6
6 Ibid., 43. Este personagem francês tendo retornado a Itália influenciou o Pulcinella nativo. Em Veneza, particularmente, ele tornou-se corcunda com um chapéu alto, redondo e rígido.
4. Pulcinella italiano e Polichinelle francês in In SPEAIGHT, 1990, p.20
Pulcinella na versão boneco de luva com sua típica roupa branca e máscara negra. Coleção Bruno Leone, foto Izabela Brochado.
A mesma mistura dos elementos estrangeiros e regionais, parte do processo dinâmico de recreação e transformação da máscara da Commedia dell’Arte, pode ser observada no desenvolvimento do personagem-boneco, particularmente na versão de boneco de luva. O Pulcinella italiano foi reconhecido por pesquisadores e por artistas, como o “pai” da maioria do teatro de bonecos europeu, uma vez que em muitos lugares por onde ele apresentou-se no seu pequeno palco, foi adotado e naturalizado pela tradição popular local. Bragaglia mostra a extensão da influência de Pulcinella sobre o teatro de bonecos europeu:
5. Do Pulcinella napolitano originou-se o Polichinelle francês, o espanhol Don Cristobal Pulchinela e o Punch inglês, uma abreviatura de Pulchinello, além dos personagens simplórios, similares a Pulcinella, como o alemão Hanswurst (João Sausicha, o glutao), o australiano Kasper, o holandês Pickelhäring, o russo Petruskha e mesmo, o turco
Karagöz.7
A primeira onda da influência dos bonequeiros italianos ocorreu no inicio do século XVII, quando viajaram pela maioria dos paises da Europa ocidental, apresentando-se na Alemanha, França, Inglaterra, Áustria, Bélgica, Espanha
8 e também Portugal.9 Entretanto, estes artistas ambulantes já tinham estado na França por volta de 1550, e na Inglaterra em 1573. No inicio do século XIX acontece uma nova ebulição do teatro de rua e uma segunda onda de bonequeiros italianos alcança a Rússia 10 e também a América do Sul e do Norte.11 Petruskha (no centro) e outros personagens do teatro de bonecos russo in Kelly, 1999,p.67
7 Ibid., 481. 8 Ibid., 398- 421. 9 Cardoso, Teatro Dom Roberto, 02-3. 10 Kelly, Petrushka , 108-139. 11 Paraná, São Paulo and Recife (Brazil); Buenos Aires (Argentina); Santiago (Chile). (Bragaglia, Pulcinella, 479-8).
6. É difícil estabelecer que tipo de bonecos os artistas usavam , se de cordas – marionete - ou de luva. As referências aos bonecos nos séculos XVII e XVIII são vagas e é impossível estabelecer ao certo qual dos dois tipos era o mais utilizado. O que se pode dizer ao certo é que estes artistas ambulantes viajaram intensamente, influenciando o teatro de bonecos em quase toda a Europa. A aceitação de Pulcinella pelas audiências estrangeiras e a sua derivação em tantos outros protagonistas do teatro de bonecos são resultado de seu temperamento variável, que permitiu a sua adaptação ao gosto local. Como observado por Bragaglia, "o napolitano [Pulcinella] ajustou-se aos países estrangeiros melhor do que o judeu”. Em conseqüência a esta adaptabilidade, Pulcinella aparece sob diferentes facetas: como um personagem luxurioso, tal como o turco Karagöz; cruel e amoral, tal como o Sr. Punch (Sr. Perfurador) e como um aristocrata avarento, tal qual o espanhol Don Cristobal de Polichinela. O título “Don” sugerindo a sua nobreza, um avanço social inesperado para um descendente de um Pulcinella camponês.
Outro aspecto da adaptabilidade de Pulcinella e da sua extensa influência pode ser compreendido a partir da forma como os bonequeiros ambulantes enfrentavam o público de língua estrangeira. Era prática comum entre estes artistas se ter um "intérprete" na frente do palco, uma espécie de mediador entre bonecos e audiência que falava a língua local. Ao longo do tempo, este personagem sendo incorporado em algumas das tradições de teatro de bonecos derivados de Pulcinella. Em Petrushka, a tradição russa, um músico localizado na frente da barraca, além de acompanhar musicalmente o espetáculo, faz também de intermediário. O mesmo personagem aparece nas tradições de teatro de bonecos do nordeste brasileiro. No Mamulengo pernambucano é conhecido como Mateus, enquanto que no João Redondo do Rio Grande do Norte e no Babau da Paraíba aparece como Arriquilim, uma clara referência a Arlequim, outra mascara da Commedia dell’Arte.
7. Ao lado da barraca com Petruskha e o Doutor,, o tocador de um tipo de realejo, in Kelly, 1999, p.66
Os novos tipos de teatro de bonecos influenciados pelo herói italiano são uma fusão de suas características e de antigos personagens cômicos regionais. O inglês Punch é compreendido por alguns pesquisadores como sendo o resultado da mistura de Pulcinella com os clowns primitivos das peças populares, tais como dos mummers' plays medievais. Petruska seria a fusão do personagem italiano com os menestréis e velhos palhaços da Rússia. Nós podemos pensar em Benedito e Simão, os protagonistas do Mamulengo brasileiro como o resultado da mistura dos tipos locais, tais como o Mateus e o Benedito do Bumba-meu-Boi / Cavalo-Marinho com personagens do teatro de bonecos que aportou no Brasil, com os colonizadores e depois, com os imigrantes europeus.
Não obstante, as similaridades entre vários personagens/ bonecos europeus da família de Pulcinella não podem ser consideradas unicamente como o resultado da influencia do antepassado italiano. As características comuns podem também ser vistas como o resultado de determinadas tendências inerentes ao teatro popular; ao teatro de bonecos de luva e a continuação de uma tradição européia comum que vai desde o século XIV, e que todos os heróis do teatro de bonecos, incluindo Pulcinella, foram herdeiros: a propensão destes personagens em inverter hierarquias; o uso constante do jogo verbal utilizando-se das expressões da cultura local; a representação grotesca dos seus personagens e as constantes referências ao sexo, comida e morte. Estas características, entre outras, refletem a relação do teatro de bonecos com a cultura carnavalesca medieval, da qual nos informou Bakthin. No entanto, pelas claras
8. conexões entre os diversos protagonistas do teatro de bonecos europeu - suas eternas lutas contra estruturas de poder (terrenas e metafísicas); suas insaciedades estomacais; suas constantes referencias escatológicas - parece evidente que o velho Pulcinella tenha espalhado suas sementes em muitos países. Uma interessante analogia a esta faceta de Pulcinella pode ser encontrada em uma das cenas presentes no repertorio atual do bonequeiro italiano Bruno Leonne. Nela, Pulcinella, como uma galinha, bota muitos ovos de onde saem muitos “Pulcinellinhas”, assim também se deu no teatro de bonecos. 12 Bonequeiro ambulante carregando sua barraca portátil e o cesto cheio de bonecos. In SPEAIGHT, 1990, p. 187. Bibliografia BAKHTIN, Michael. Rabelais and His World. Indiana: University Press, 1984.
BOGATYREV, Petr. “Il Teatro delle Marionette e dei Burattini e il Teatro Popolare
12 Pulcinella é considerado como uma figura originária da mistura de humano com um galináceo (Pasqualino, “Marionette and glove puppet”, 227).
9. Russo,” in Mario Di Salvo (ed.), Ill Teatro della Marionette. Brescia: Grafo, 1980, 9- 76.
BORBA FILHO, Hermilo. Espetáculos Populares do Nordeste. 2nd ed. São Paulo:
São Paulo Editora, 1966.
______. Fisionomia e Espírito do Mamulengo. Rio de Janeiro: INACEM, 1987.
BRAGALIA, Anton G. Pulcinella. Firenze: Sansoni Editore, 1953.
BRISTOL, Michael. Carnival and Theatre. London: Routledge, 1985.
HOWARD, Ryan. “Puppets and the Commedia dell’Arte in the Sixteenth,
Seventeenth, and Eighteenth Centuries.” The Puppetry Yearbook, Vol. I, (1995), 7-34.
LEONE, Bruno. La Guaratella: Burattini e Burattinai a Napoli. Bologna: Libraria Universitaria Editrice, 1986.
MASCARA, Andrea. Il Segreto di Pucinella. Roma: Luciano Landi Editore, 1961.
KELLY, Catriona. Petrushka, the Russian Carnival Puppet Theatre. Cambridge:
University Press, 1990.
SCAFOLIO, D. and SATRIANI, M. L. Pulcinella: Il Mito e la Storia. Milano:
Leonardo, 1992.
SPEAIGHT, George. The History of English Puppet Theatre. London: Robert Hale,1990.