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Terras indígenas no Brasil: um direito constitucional
1. Terras Indígenas no Brasil: um direito constitucional
Por Vanessa Caldeira
O princípio do direito indígena ao seu território, embora
sistematicamente desrespeitado, está na lei desde pelo menos a Carta Régia
de 30 de julho de 1609. No entanto, de acordo com a antropóloga Manuela
Carneiro da Cunha, esse direito foi histórica e recorrentemente burlado e a
principal forma encontrada para tal desrespeito foi a negação da identidade
indígena desses povos (Carneiro da Cunha,1995: 134).
No entanto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um avanço
significativo no que diz respeito aos direitos indígenas. Foi apenas através
desse marco jurídico que o Estado brasileiro passou a reconhecer aos povos
indígenas o direito de serem quem são.
De acordo com o artigo 231 do Capítulo VIII da referida Constituição, o
Estado brasileiro reconhece aos povos indígenas sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), a Constituição de
1988 consagrou o princípio de que os povos indígenas são os primeiros
habitantes desse território, sendo então o seu direito à terra, um direito
primário, anterior a qualquer outro.
Estima-se que no século XVI existiam no Brasil entre 2 e 4 milhões de
indígenas pertencentes a mais de 1.000 diferentes povos. Nesse contexto,
estima-se também que a densidade demográfica da várzea amazônica na
época era comparável à da península ibérica: 14,6 habitantes por km2
na
primeira (de acordo com Denevan, 1976:230), contra 17 habitantes por km2
em Espanha e Portugal (Braudel, 1972:42).
Atualmente, de acordo com o último censo do IBGE, realizado no ano
de 2010, aproximadamente 890 mil pessoas se autodeclaram indígenas,
perfazendo aproximadamente 0,4% da população total do país, pertencentes
a 305 etnias, falantes de 274 línguas.
2. De acordo com o painel de monitoramento do Instituto Socioambiental
(ISA) – De olho nas Terras Indígenas – atualmente no Brasil existem 696
terras indígenas demarcadas e 126 terras em processo de identificação.
A definição de terras indígenas ou de terras tradicionalmente
ocupadas por povos indígenas apresenta-se no primeiro parágrafo do já
citado artigo 231 da Constituição Federal e consiste em 4 critérios: a) aquelas
por eles habitadas em caráter permanente; b) aquelas utilizadas para suas
atividades produtivas; c) aquelas imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais e ao seu bem-estar; d) e aquelas necessárias à sua reprodução
física e cultural, de acordo com seus usos, costumes e tradições.
Para a identificação então de uma terra indígena no Brasil faz-se
necessário a conjugação desses quatro critérios constitucionais.
O processo de identificação e delimitação das terras indígenas é
regido pelo Decreto 1775 de 1996, expedido pelo Ministério da Justiça. Tal
decreto estabelece 7 fases para esse processo e que o ISA resume da
seguinte forma:
a) Estudos de Identificação, regido por Grupo Técnico (GT) nomeado pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão vinculado ao Ministério da Justiça.
Tais estudos possuem prazo determinado para serem concluídos. O grupo
técnico deve ser coordenado por um(a) antropólogo(a), contar a colaboração
de profissional da área ambiental e sobretudo, garantir a participação do povo
indígena.
b) Aprovação da Funai do relatório de identificação: após concluído e entregue,
o Relatório de Identificação e Delimitação de Terra Indígena (RCID) deve ser
aprovado pelo presidente da Funai, que, no prazo de 15 dias, deve publicar
seu resumo no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do estado em que a
referida terra foi identificada. Tal resumo deve ser ainda fixado na(s)
prefeitura(s) onde incide o território.
c) Contestações: após publicação do resumo do RCID, no prazo de 90 dias,
todo interessado, inclusive estados e municípios, poderá manifestar-se junto
à Funai contrário a tal relatório. Deve apresentar as razões, acompanhadas
de provas pertinentes no intuito de pleitear indenizações ou demonstrar vícios
existentes no relatório. Isso posto, a Funai terá o prazo de 60 dias para
elaborar pareceres e encaminhar o procedimento ao Ministro da Justiça.
3. d) Declaração dos limites da Terra Indígena: após receber o procedimento, o
Ministro da Justiça terá o prazo de 30 dias para avaliar e emitir um parecer,
que pode ser: i) publicar os limites da terra indígena em acordo com o RCID;
ii) solicitar diligências para complementações de informações no RCID; ou iii)
desaprovar o RCID, publicando decisão fundamentada.
e) Demarcação Física: declarados os limites da terra indígena (TI), a Funai
promove sua demarcação física (fixação de marcos nos limites da TI), e o
INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), em caráter
prioritário, realizará o assentamento de eventuais ocupantes não indígenas.
f) Homologação: o procedimento deve, por fim, ser submetido ao(à) Presidente
da República para homologação por decreto (confirmação, aprovação por ato
oficial).
g) Registro: a terra indígena demarcada e homologada, como um bem da
União, um bem público e não uma propriedade privada, deve ser, no prazo
de até 30 dias após a homologação, registrada no cartório de imóveis da
comarca correspondente, bem como na Secretaria de Patrimônio da União
(SPU).
Essas sete fases demonstram o quão complexo, rigoroso e extenso se
configuram os processos de demarcação de terras indígenas no país no
âmbito do poder executivo.
Pensar que demarcar uma terra indígena constitui tarefa simples ou
fácil, é um grande equívoco. Se pensarmos que somado ao trâmite executivo
há a histórica disputa fundiária dos tradicionais setores agrários de nosso
país, podemos minimamente dimensionar o quão moroso, sofrido e violento
ainda se constituem tais processos. Cada demanda indígena por
regularização de seu território tramita por anos, muitas vezes, por décadas no
executivo, e muitas vezes também no judiciário, até ser finalizado. Nesse
longo percurso, conflitos fundiários, ameaças e assassinatos de lideranças
são cometido.
A negação histórica ainda presente do direito dos povos indígenas aos
seus territórios tradicionais revela a permanência de uma postura colonialista
de dominação e expropriação territorial, que inauguramos ainda no século
XVI, quando europeus invadiram as Américas. Resta nos questionarmos até
quando manteremos tal postura.