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4 | documentário
arte, educação e cultura | 5
Diretoria Executiva:		
Carlos Pará | Laura Santana
Projeto Gráfico:
José Viana
Direção de Arte:
José Viana | Ygor Pará
Direção de Fotografia:
José Viana
Comunicação e Marketing:
Daniel Rocha | José Vianna |
Pesquisa:
Carlos Pará | Moacir Pereira | Diego Bragança
João Aires.
Editor Responsável:
Carlos Pará
Conselho Poético:
Benedito Nunes, Elza Lima, Aldrin Figueredo,
Geraldo Mártires Coelho, Gunter Presler, José
Roberto Pereira, José Varella, Luis Arnaldo,
Célia Maracajá, Jussara Derenji, Moacir
Pereira, Chico Carneiro, Albery Albuquerque,
Rosa Acevedo, Hilton Silva, Isabela do Lago,
Karlo Romulo, Fernando D’Pádua, Edson
Farias, Vicente Cecim, Marinilce Coelho,
Almandrade, Ná Figueredo, Rosa Arraes,
Moema Alves.
Distribuição:
A Revista PZZ é uma publicação bimestral
Editora Resistência Ltda
CNPJ: 10.243.776/0001-96
ISSN 2176-8528
Assinatura, números atrasados e Publicidade:
(91) 3083-3793 / 9616-4992
e-mail: revistapzz@gmail.com
www.revistapzz.com.br
Av. Duque de Caxias, 160 Loja 14 | Marco |
66.093-400
Belém - Pará - Amazônia - Brasil
A
Edição Especial da Revista PZZ nº 11
através dos pesquisadores João Aires e
Diego Bragança e do historiador José
Varella, apresentam o homem, padre jesuíta,
arqueólogo, fotógrafo, museólogo e “ítalo-
marajoara” Giovanni Gallo. O seu trabalho, além
da evangelização e de organização social foi de
resgatar a história e ancestralidade marajoara
e amazônica. Criador do Museu do Marajó,
construiu junto com a Comunidade de Santa Cruz e
Cachoeira do Arari (Marajó-Pará) uma das maiores
referências arqueológicas do Brasil.
A PZZ nº 11 apresenta o Ensaio Fotográfico de
Elza Lima com poesias de Otávio Nascimento
Júnior (Soure, Ilha do Marajó) uma viagem em
direção as belezas do Marajó desbravando rio e
sertão; Caminhando em um chão que não tem
fundo; Flutuando em um céu que não tem nuvem e
não tem ar; Nadando em um mar que não tem água
e não deságua revelando um mundo, incerto e sem
fundo, profundo, misterioso e belo...
AEdiçãoEspecialtrazoartigodaarqueólogaDenise
Shaan que aborda a vida dos antigos habitantes do
Marajó. Observando as representações na cerâmica
marajoara podemos aprender muita coisa sobre as
antigas crenças, rituais religiosos, cerimônias e
festas que faziam parte da vida nos tesos de um dos
povos mais evoluídos culturalmente que existiram
na face da Terra.
E o Inventário Nacional de Referências Culturais
do Marajó – INRC-Marajó, realizado pela
Superintendência do Iphan no Pará, constitui
uma das pesquisas mais completas em termos de
levantamento cultural realizado nessa região da
Amazônia Brasileira. A pesquisa abrangeu as três
microrregiões que compõe a Mesorregião Marajó
com seus 16 municípios. O quadro geral nos dá
cerca de 750 bens catalogados, 700 contatos além
de um grande acervo fotográfico com belas imagens
do cotidiano marajoara.
Boa Leitura
Carlos Pará - Editor da Revista PZZ
Giovanni Gallo
Ensaio Fotográfico
por Elza Lima
Cultura Marajoara
Origens e significados
por Denise Pahl Schaan
OMarajó
EnsaioFotográfico
porElzaLima
Artista
doMarajó
26
59
06
72
pág.
pág.
pág.
pág.
fotografias por Elza Lima e poesias de OtávioNascimento
O MarajóO Marajó
fotoPoesia
10 | documentário
A VIAGEM
Olhando de uma proa
vi o destemido prático
conduzir bem a embarcação
seguindo em direção a leste
onde brilhava o sol
cortando as ondas
em retas, curvas e parábolas
Vi as belezas do marajó
desbravei rio e mar
até que me assustei...
eram gotas d’água
no rosto dormente
que me acordara derepente
quando o cabo do leme quebrou
Embalado nas ondas
pra lá e pra cá
era o movimento singular
o único que pudera fazer
até que o cabo fosse emendado
tudo então foi controlado
e a bela viagem continuou.
arte, educação e cultura | 11
12 | poética
DESERTOZINHO
arte, educação e cultura | 13
Neste momento
estou só no mundo
caminhando em um chão
que não tem fundo
Flutuando em um céu
que não tem nuvem
e não tem ar
Nadando em um mar
que não tem água
e não deságua.
Aonde vai esse mundo?
incerto e sem fundo
será a canção da orquestra
do oceano profundo
Já não entendo mais nada
só sei que viajo
nado no céu
e flutuo no mar
ando nas nuvens
sem sair do lugar
14 | documentário
arte, educação e cultura | 15
16 | documentário
AOS CAMPOS DO MARAJÓ
arte, educação e cultura | 17
Às vezes seu moço até me surpreendo
com as coisas que talvez nunca vi
com o vaqueiro no campo correndo
e até mesmo o queijo de jabuti
Belos mui belos pássaros vivendo
verde mui verde nós temos aqui
vejo ainda o potro pequeno comendo
do quicuio às margens do Lago Arari
Levanta poeira menino levanta
galopa depressa galopa e canta
que ouço longe o som de teu curimbó
Deixa no prato traíra e tambaqui
carimbó e açaí é em Cachoeira do Arari
desbrava os campos do meu Marajó.
18 | documentário
MINHAS RAÍZES
Sou filho daquele caboclo nato
mistura de vaqueiro e pescador
uma manada de palavras eu laço
e com um anzol sou bom escultor
Às margens do rio meu braço te caço
sumo nas alvas rimas do criador
sustento do povo e afogado mato
valente menino que bela tua cor
Masco tabaco e respiro da boa arte
boto pra correr já fiz minha parte
ando ligeiro e ninguém vai me ver
Parido bem fui no teu pensamento
ferido um pouco mas eu sempre agüento
não sou lenda e nem mito estou em você.
arte, educação e cultura | 19
arte, educação e cultura | 21
Elza LimaFormada em história pela
Universidade Federal do Pará, Belém (1979), começou
afotografarprofissionalmenteem1985,atuandonaáreada
fotografia documental. Participou do projeto Fotoativa
de documentação do núcleo histórico da cidade de Belém
(1985). Trabalhou na Fundação Cultural do Pará Tancredo
Neves,ondecriouumacervofotográficodasmanifestações
culturais da Amazônia e, em convênio com a Fundação
Nacional do Índio, realizou a documentação fotográfica
das tribos indígenas da Amazônia Legal. Recebeu o
Prêmio José Medeiros, do Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro (1991); bolsa do Kunstmuseum des Kantons
Thurgau, Suíça (1995), onde residiu por seis meses; o
Prêmio Marc Ferrez, da Funarte (1996); e a Bolsa Vitae
de Artes/Fotografia (2000). Integra o Conselho Curador
da Galeria de Arte da Universidade da Amazônia, Belém,
desde a sua criação em 1993.
22 | documentário
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arte, educação e cultura | 23
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24 | documentário
documentário
Fonte: Jornal Diário do Pará - Caderno D - de 25 de novembro de 1987.
DIEGO BRAGANÇA DE MOURA é Graduando em
Bacharelado/Licenciatura em História, na Universidade
Federal do Pará (UFPA). Bolsista PIBIC/FAPESPA pelo
Museu Paraense Emilio Goeldi na área de arqueologia.
JOÃO AIRES DA FONSECA é pesquisador mestre em
arqueologia,bolsitadoprogramadeCapacitação Institucional
do Museu Paraense Emílio Goeldi (PCI-MPEG).
arte, educação e cultura | 25
Giovanni Gallo e O Museu do
Marajó: A PRESERVAÇÃO DE UMA HISTÓRIA INVISÍVEL
N
ascido em 27 de abril de 1927 , em pleno VII ano
da Era Fascista de Benito Mussolini, Gallo como
costumavadizer,seconsideraumfilhodofascismo,
mas não por concordar com as ideais desse projeto político de
governo. Mas sim, pelo fato de aos seis anos de idade, sua
mãe o ter matricula na Primeira Série do Primário no colégio
Pagella, e assim, como era costume na época, transformando
de forma involuntária o Balilla Giovanni Gallo portador da
carteira do partido fascista de Nº 1.539.899, mais um membro
seguidor da ideologia facista do Duce Benito Mussolini.
De infância difícil e condição de vida muito precária, Gallo
e sua família sofriam com a escassez de alimentos, devido à
guerra em que a Itália estava desenvolvendo sobre o comando
de Mussolini, onde os gêneros alimentícios como, batata e
trigo, estavam reservados a manutenção do exército e, é claro,
aos mais ricos. Restando assim, apenas carne da cabeça do
boi, que era mais barata, e uma espécie de pão com manteiga
sem sal, a alimentação básica da maioria das famílias pobres
da Itália do começo do século XX.
 Por Diego Bragança e João Aires. Imagens cedidas pelo Acervo d'O Museu do Marajó
26 | documentário
Essa vida fez com que ainda muito cedo, o pequeno Giovanni
assumisse grandes responsabilidades na família, sendo
responsável pela casa e por seus irmãos mais novos na
ausência dos pais. Preparava seus irmãos e levava-os para
o jardim de infância, tarefa que exigia extrema habilidade
e preparo físico, para controlar seus irmãos no caminho da
escola, além disso, fazia as compras e preparar o almoço de
sua família. Atividades a primeira vista simples, mas que
estavam sendo desenvolvidas por uma criança com menos de
10 anos de idade, que já mostrava maturidade exigida pela
guerra sofrida.
Assim o pequeno Galinho tinha que se desdobrar entre as
afazeres da vida de um “pai” de família com os cuidados com
seus irmãos mais novos, as obrigações da escola, além de
superar as dificuldades que a guerra provocava, com a pouca
disponibilidade de alimentos, fato que se agravava ainda mais,
devido à situação financeira precária da família. Mas mesmo
com todos esses obstáculos em seu caminho, esse pequeno
italiano de origem podre, conseguiu superar as dificuldades
de uma infância entre guerras, e as consequências que um
conflito como sofrido por ele acaba trazendo. Sofrimentos
como a morte de seu pai em 1943, em um bombardeio militar
Américo. Mas outras dificuldades ainda se apresentariam,
que ele assim como as já mencionadas, superaria.
A VIDA RELIGIOSA
Aos onze anos de idade entra no Piccolo Seminário di
Giaveno, depois que um vigário da sua igreja perguntar se
ele queria entrar para a vida religiosa se tornando padre.
A resposta positiva foi imediata de forma espontânea, sem
Gallosobaeducaçãofascista
arte, educação e cultura | 27
pressão de familiares ou da sociedade. Afinal ele não possuía
muitas opções de escolha a seguir, a não ser a escola e a igreja.
Mas só no último ano do ginásio aos 16 anos, que o jovem
italiano, ingressa na Companhia de Jesus. O reitor do ginásio
um fã dos jesuítas, entregou sobre sigilo, um livro encapado
com o seguinte título: “Si vis perfectus esse: Se você quiser ser
perfeito’... entre na Companhia de Jesus.” A fama dos padres
jesuítas como os mais inteligentes do mundo era bastante
conhecida, o que despertou o entusiasmo do adolescente
Giovanni em se tornar um aclesiástico classe A. Então,
preparou-se muito para a admissão, o que resultou com a 2ª
colocaçãogeral,eassimopassaporteparaaCompanhiadeJesus
e o Liceu clássico em Cueno (Itália) em 8 de setembro de 1943.
Já no noviciado, recebe uma educação muito rigorosa repleta de
proibições e regras, fato muito condenado e contestado, apenas
em sua consciência, por Gallo. Pois, o silêncio fazia parte da vida no seminário,
muito pouco se falava, era uma lei a ser seguida. Nessa educação severa, até um
simplesbanhoerarealizadodeformavigiada.“Diotivede!Deusestáteolhando!”
ApesardeGiovanniGalloconsiderarasua“formaçãoalémderidículaeabsurda,
[que] beirava ou talvez mergulhava na morbidez.” A obediência sempre se fez
presente em sua vida religiosa. Ele nunca desobedecia ou questionava as regras,
leiseordensdaeducaçãonaCompanhiadeJesusedoLiceu.Sempreseguiatodos
os ensinamentos e colocava-os em praticava de acordo como lhe foi ensinado.
28 | documentário
OS ESTUDOS ALÉM DO SEMINÁRIO
NaVillaSanPaolonaperiferiadeTurim(Milão,Itália),cursou
dois anos de Filosofia na Faculdade de Filosofia em Gallarate.
Onde como diversão e para ocupar o seu tempo, desenvolvia
atividades como cuidar da horta e das vacas, atividade que
segundo ele, em sua autobiografia realizava sozinho. Cursou
também devido a sua escolha profissional a Faculdade de
Teologia em Chieri (Turim, Itália), conquistando com o fim
de seus estudos em teologia a ordenação sacerdotal.
A facilidade para aprender novas línguas, lhe propiciou a
fama de grande linguista, levando o seu superior o Provincial
Padre Emilio, a destiná-lo aos estudos em uma Faculdade
de línguas - Cá Foscari de Veneza ou o Istituto Orientale
de Nápoles. Mas ele ainda teria uma surpresa, feliz por seu
destino decidido, esperava pelo dia da viagem para estudar
uma nova língua, quando recebe um envelope lacrado das
mãos do provincial que havia, anteriormente, destinado-o aos
estudos das línguas. Abriu o envelope pensando se tratar do
nome do seu destino para alguma faculdade de línguas, mas
teve uma surpresa, é destinado para uma escola na cidade
de Lecce. Nessa cidade o colégio de Argento, recebia filhos
de ricos latifundiários, onde Padre Gallo ensinaria religião.
O destino inesperado, mudando todos os seus planos, não
mudou sua obediência característica, ele não exigiu nenhuma
explicação e seguiu o seu rumo imprevisto e não esperado.
Mas depois da Teologia, antes de entrar de vez nas atividades
paroquiais, os padres jesuítas passavam por uma última
provação, ou melhor, um estágio, que no caso dele foi seguir
para Gandia em Valência, Espanha. Aqui pode colocar
seu espanhol em prática, em meio a vários missionários
provenientes de inúmeras nacionalidades.
Ainda na Espanha pesquisou sobre o curso de sociologia que
desejava cursar, deixando a escolha do seu destino nas mãos
do padre Costa, que o matriculou no Institut Catholique em
Paris. Mas uma vez entusiasmado com seu destino, não se
importou com a substituição do padre Provincial, pois seu
destino já estava certo. Mas, novamente, o seu destino não
seguiria os rumos desejados. “Em lugar de Paris, o senhor
vai à ilha de Sardenha!”, palavras ditas, pelo novo Provincial
Padre Giovanni Colli. Modificando mais uma vez os planos
desse missionário frustrado.
Gallo no Seminário, Turim, Itália.
arte, educação e cultura | 29
Em Sardenha sua primeira experiência de trabalho aos 32 anos, a sua
rotina era bastante repleta de compromissos. Entre confissões, missas,
pregações, visitas aos doentes, o agora padre Giovanni Gallo, parava
apenas na hora do almoço. Após uma soneca, voltava novamente para a
sua rotina, seguindo para outras comunidades. Na Sardenha adquiriu uma
grande experiência devido ao seu dia-a-dia intenso, com o desenvolvimento
das suas atividades pastorais e os serviços sociais que acabava acumulando.
Da Sardenha foi transferido para a Suíça (1962), com a missão de “salvar”,
os irmãos italianos emigrados, da ameaça que segundo a igreja católica, era
representada por dois “inimigos mortais”: os protestantes e os comunistas
que cresciam cada vez mais na região. Já na Basiléia, na Suíça, em atividade,
foi responsável pela fundação da Missão dos Emigrados Italianos no
Biserck, sendo membro do Conselho Nacional dos Missionários na Suíça.
Criou também um jardim de infância, para atender os filhos de italianos que
trabalhavam boa parte do dia e não tinha com quem deixar os seus filhos.
Buscando oferecer uma assistência a esses italianos que em busca de melhores
condições de vida, migravam para a Suíça em busca de trabalho.
Após, 5 anos de atividade na Suíça ajudando seus patriotas e muitos suíços
também. O Padre Giovanni Gallo recebeu do presidente da Itália o Título di
Cavaliere della Stella della Solidarietá Italiana (1967), titulo conquistado pela
luta em favor dos italianos na Suíça. Luta essa que teria ido além de um
simples conforto e apoio religioso, na Suíça acabou desenvolvendo
obras que facilitavam a vida de muitos italianos e suíços também,
deixando a esses, um bom suporte social e econômico.
Padre Gallo sentiu então que sua missão em terras suíças
já havia sido comprida, apesar de saber que havia
muito a ser feito, propiciou uma infra-estrutura
social e econômica para muitos italianos e
suíços. Partindo assim, para uma nova
missão em terras desconhecidas.
Basiléia, Suiça
30 | documentário
BRASIL: O DESTINO FINAL
Após oito anos de trabalhos na Suíça, e da recusa de tornasse
um superior geral da Escandinávia, que significava ser o
responsável das missões italianas na Suécia, Noruega e
Dinamarca, por não gostar da ideia de trabalhar com muita
burocracia e diplomacia, decisão talvez tomada devido as
ações que presenciou de alguns de seus superiores, que se
desvirtuaram em contato com o poder e o dinheiro que o
cargo de um Provincial possuía. Fatores que fizeram o Padre
Giovanni Gallo, se oferecer para atuar na América Latina, em
qualquer país de língua espanhola, pois, falava muito bem o
castelhano, e assim teria facilidade na comunicação. Mas lhe
foi destinado o Brasil, não uma escolha pessoal, como ele
mesmo dizia, mas uma escolha proveniente de sua carreira e
aceita devido sua obediência jesuítica.
Embarcou no navio cargueiro Henrique Lage, seguindo em
direção a seu novo destino, deixando para traz, segundo ele,
a posição de padre classe A, e as conquistas merecidas com
o trabalho desenvolvido na Suíça, para se aventurar em uma
terra totalmente desconhecida, o Brasil.
Desembarcou em 1970 em Salvador, Bahia, que assim como
todo o Brasil, estava sobre uma Ditadura Militar, fato que
contribuiuparaastrêsprisõesdorecémchegado.Entusiasmado
com as paisagens do país, em viagens desenvolvidas para
conhecer as obras religiosas desenvolvidas pela igreja, tira
inúmeras fotos de tudo que lhe despertava o interesse, mas
acaba sendo confundido com um espião do comunismo,
sofrendo com isso revistas e interrogatórios intermináveis
nas cadeias, cada vez que a sua figura estranha projetava a
sua câmera para um cenário, o que lhe dava características
em tempos de ditadura, um ar de espião estrangeiro.
O interessante é que essa sua paixão pela fotografia, acabou
lhe rendendo mais tarde inúmeros prêmios fotográficos
como: O 2º prêmio no Concurso Fotográfico da SECTET e
Y.Yamada: Retrato Pará (1980); o 4º Prêmio no Concurso
Fotográfico da Universidade do Pará, “Preserve a Memória
da sua cidade” (1981); e o 5º Prêmio de Menção Honrosa, do
Concurso Nacional de Fotografia, “Aleitamento Materno” de
Porto Alegre (1982). Além de exposições como a ocorrida
no Teatro da Paz como o título “O Meu Marajó”, em 1982.
Exposições essa que mostrou o resultado de seu trabalho,
após anos registrando as mais diversas situações encontradas
na ilha de Marajó.
BairrodaFloresta,Maranhão.porGiovanniGallo
arte, educação e cultura | 31
Gallo participando da cultura maranhense - Bumba meu Boi
32 | documentário
Viajando por todo o Brasil para conhecer as obras da Companhia e posteriormente escolher seu destino de atuação. Tem
proposto pelo Padre Tarcísio, o Maranhão em conversa:
“ - Gallo, eu tenho um lugar muito bom, feito na medida para você trabalhar. Porém não o mando lá, porque tenho medo.”
[Pe. Tarcísio] - Que lugar é esse? Perguntei curioso. [Pe. Gallo] – É o Marajó. Você faria muito bem, mas o bispo de lá, já me
queimou muitos padres. Tenho medo: se você for lá, ele o queima. Acho melhor você ir ao Maranhão, vai ser vigário no bairro
da Floresta em São Luís.” [Pe. Tarcísio]
Então, Giovanni Gallo seguiu para o Maranhão, para atuar como vigário no bairro da Floresta em São Luís. Ao chegar ao
bairro, mais especificamente, na Rua Tomé de Souza, deparou-se com um lugar sem iluminação, de fornecimento de água
precária, com esgoto a céu aberto. Não podendo deixar seu rebanho para ficar na mordomia, recusa a oferta de ficar na igreja
de Nossa Senhora dos Remédios, no bairro nobre da
cidade. Decide morar em uma casinha na própria Rua
Tomé de Souza, para ficar mais perto do seu povo
e da igreja de Santo Expedito, onde atuaria como
vigário.
Em contado direto com a comunidade, além de
atuar nas obras religiosas, também acabava sendo
uma espécie de amenizador de brigas chegando a
intervir por várias vezes em inúmeras delas. Atuava
também como motorista, transportando feridos,
doentes e mulheres grávidas no momento de ter os
seus filhos para o hospital. Como sempre, Padre
Gallo ultrapassava as suas obrigações religiosas, e
introduzidonascomunidadesondeatuava,desenvolvia
funções fora do seu programa de religioso.
Em uma igreja onde as portas serviam como trave para as crianças
jogarem futebol, e as paredes como tabela de preso para o corte
de cabelo. Decidiu muda essa realidade, iniciando a reforma
da mesma, contando com a ajuda da população, que limparam,
pintaram e fizeram melhorias na igreja, a tempo de a inauguração
se realizar perto da grande festa do padroeiro do bairro.
Embalado pelas obras de limpeza da igreja, transformaram
barracões e salões em capelas e centros comunitários, onde
além de servirem de locais para cerimônias religiosas,
seriam oferecidos cursos profissionalizantes, para a
população desse bairro, atuando em obras assistencialistas
com o objetivo de mudar a realidade social da comunidade.
Sem dúvida essa foi uma das atuações mais importantes no
estilo do Pe. Giovanni Gallo de ação integrada. Mas após
um ano e meio de forte atuação, o que contribuiu para que
quase o religioso virasse nome de rua, a igreja através do
Provincial Padre Botturi, mais uma vez determina
a sua transferência, dessa vez para o Marajó.
IgrtejadoSantoExpedito,BairrodaFloresta,Maranhão
Nessa terra que segundo Giovanni Gallo era “o paraíso
para os fotógrafos e o inferno para o material
fotográfico”, ele desembarca em fevereiro de 1973, na Vila de Jenipapo no município
de Santa Cruz do Arari. A Vila de Jenipapo era um antigo acampamento, que servia
de base para os pescadores em época de pesca. Nesse local teve uma visão chocante,
para alguém acostumado com as atividades na Suíça, e que até mesmo para o vivido no
Maranhão, era uma realidade adversa.
Estava em uma cidade perdida no interior da ilha, sobre as águas, formada por palafitas,
sem saneamento básico, muito menos fornecimento de água potável ou energia elétrica,
sem telefone e de alimentação precária. Com o choque inicial ele sabia que teria muito
trabalho a fazer neste local esquecido por todas as autoridades governamentais, mas
com sua experiência decidiu seguir em frente. Alias essa tinha sido sua escolha, pois
poderia ter aceitados os frutos dos seus trabalhos na Suíça. Mas tinha certeza que sua
atuação aqui mudaria muitos aspectos na sociedade local.
MARAJÓ, DO PARAÍSO AO INFERNO
Vila de Jenipapo, Ilha do Marajó
"A vila de Jenipapo nasceu num lugar errado, num buraco. Nasceu para ser um
acampamento de pesca, uma base provisória durante o verão quando a terra está
estorricada [...] durante grande parte do ano, todas as casas ficam isoladas pelas
águas: não por acaso Jenipapo é um grande conglomerado de palafitas, que eu
carinhosamente chamava de pequena Venezia." [Giovanni Gallo, O homem que implodiu]
"A minha chegada a Jenipapo, uma vila de palafitas perdida no interior do Marajó,
foi bastante chocante [...] me encontranva no fim do mundo, sem água, sem luz,
sem telefone, com uma comida precária, com a previsão de um trabalho difícil.
Confortava-me o fato de ter escolhido uma missão que, apesar de difícil, sem
dúvida, guardaria para mim muitas satisfações como padre e como homem."
[Giovanni Gallo, O homem que implodiu]
Vista aérea da vila de Jenipapo, Ilha do Marajó
Pescadores de Jenipapo por Giovanni Gallo
COOPERATIVA DE PESCA
Ao chegar na vila de Jenipapo em fevereiro de 1973, padre Giovanni Gallo recebeu da Prelazia de Ponta de Pedras, na figura
do Bispo Dom Ângelo Maria Rivato, a missão de criar no município de Santa Cruz do Arari e Jenipapo, uma cooperativa de
pesca. Algo que já estava sendo posto em prática no município de Ponta de Pedras.
De posse dessa tarefa, o padre recém chegado se deparou com alguns problemas. Primeiro não sabia como funcionava uma
cooperativa, pois nunca havia atuado em uma. Segundo, não entendia nada sobre pesca e os pescadores só tinham a ideia que
com uma cooperativa chegaria muito dinheiro para eles. Aqui estava a problemática, a ignorância tanto de um lado como do
outro sobre o tema cooperativa.
Pesca do mato por Giovanni Gallo
“Desde o começo fiquei à espreita, para captar todas as mensagens, mesmo as mais
insignificantes, uma palavra de gíria, uma história antiga, um jeito de ser, sobretudo
aquelas coisas que não valem a pena contar.” Giovanni Gallo
arte, educação e cultura | 39
Para que os pescadores pudessem aperfeiçoar a sua profissão,
conseguiu que em Vigia aprendessem técnicas de como pescar
no mar. Pois, os pescadores do Marajó, realizavam em sua
maioria uma pesca artesanal, conhecida como pesca no mato.
Onde nos rios da região, principalmente, quando as águas
estão baixas, os peixes ficam mais fácil de serem capturados.
E devido a essa falta de experiência, tinham medo de realizar
a pesca no mar. Mas perceberam que essa atividade era muito
mais fácil e lucrativa para eles.
Mas essas experiências não contribuíram muito para a
construção de uma cooperativa. Como padre Giovanni
Gallo mesmo falou: “A cooperativa nem nasceu, abortou.”
Seu objetivo era que essa organização, possibilitasse
através de políticas de conscientização e aperfeiçoamento
dos profissionais da pesca, o sustento e subsistência dessas
famílias durante o ano todo. Buscando acabar com as
explorações das geleiras, que pagavam muito pouco pelo
trabalho dos pescadores da vila de Jenipapo e Santa Cruz do
Arari.
Mas padre Gallo não mediu esforços para conhecer mais sobre o assunto. Partiu com alguns pescadores, para passar alguns dias
nos rios da região praticando a pesca do mato. Nessa experiência anotou tudo o que observava, buscando assim, compreender
um pouco mais sobre a temática.
Mas a falta de recursos financeiros e a deficiência no
conhecimentosobreotematornoumuitodifícilaconcretização
da missão recebida por padre Giovanni Gallo.
Com o dinheiro que recebeu da Prelazia de Ponta de Pedras,
para iniciar o projeto cooperativa de pesca, decidiu em
conversa com a então prefeita de Santa Cruz do Arari, Gessy
Pamplona, atender uma necessidade emergencial da cidade.
Ficou então acordado por investir o dinheiro na construção
de um posto médico em falta no município. Assim o dinheiro
seria aplicado em algo que também traria muitos benefícios
para a comunidade.
O Projeto Cooperativa de Pesca ficou para traz, mas o objetivo
de garantir uma fonte de renda para a comunidade e, assim
desenvolver a região, sempre estiveram nos planos do padre.
Levando-o a desenvolver ações como o Projeto Piranha e,
posteriormente, o seu maior projeto, O Museu do Marajó.
PescadoresemVigia
“Deixando para lá toda forma de inútil modéstia, posso dizer que conheço este recanto
do Marajó como poucos. Não fiz a minha aprendizagem engolindo monografias
eruditas, mas através de uma caminhada na água, na lama, na ferroada.”
Giovanni Gallo
42 | documentário
O PROJETO PIRANHA
Padre Gallo foi muito mais além, e para desenvolver uma
atividade capaz de adquirir recursos a serem aplicados
em obras de melhorias na própria comunidade, criou
o Projeto Piranha. “O que não falta no Arari são as
malfadas piranhas que, enfeitadas de lendas e contos
horripilantes, podem ser um ótimo produto de exportação,
quando devidamente embalsamadas.” Assim improvisou
um laboratórios e produziu mais de 12.000 exemplares de
piranhas embalsamadas, que foram vendidas em toda a
Europa. Com o dinheiro das vendas, realizaram inúmeras
obras em Santa Cruz do Arari e Jenipapo. Um trapiche
comunitário, para as variações de maré e de estação.
A construção de um cemitério seco, para os tempos de
enchente. A pista de pouso para aviões, de 800 metros,
devidamente cercada. A construção de 350 metros de
estivas com esteios de acapu e frechais de maçaranduba,
e de um centro comunitário onde eram oferecidos cursos
de artesanato para a comunidade, além de servir de escola
e jardim de infância.
Vale ressaltar que a Projeto Piranha não foi uma agressão
a natureza. Mas sim, uma valorização do produto da
pesca, pois, as piranhas que antes eram desprezadas
e consideradas como dejetos pelas indústrias que
exploravam os pescadores do Jenipapo, acabavam sendo
utilizadas como alimentação para porcos. E com o projeto
piranha, o que antes era descartado, se transformou em
bibelôs na Europa, multiplicando o lucro do projeto por
mil.
SecagemdaspiranhasembalsamadasporGiovanniGallo
“
Aqui no Arari as piranhas são os moradores mais
numerosos, só cedendo o passo às lombrigas, com a
concorrência das pragas. No fichário da Faculdade
de Zoologia, a piranha tem um nome meio esquisito:
Serrasalmus rhombeus: serrasalmus, porque as
escamas ventrais formam uma rerrilha com as pontas
voltadas para trás; rhombeus, já que tem a forma de um
rombo [...] Os índios, que a conheciam intimamente,
a batizaram “Pirâi”, isto é, “corta-pele” [...] Goeldi
a considerava um animal de rapina, o mais perigoso
da América Equatorial e, até mesmo, dos peixes,
dizia também que se Dante a tivesse conhecido, ter-
lhe-ia dado um lugar de honra no inferno, entre os
instrumentos de suplício. Queria descobrir se era
necessário limpá-las das entranhas ou simplesmente
fazer tratamento com formol [...] Uma noite, na minha
palafita perdida na lagoa de Jenipapo, tirei a camisa e
me concentrei para criar a minha obra de arte: só eu
e Deus. Com calma e todo cuidado estava injetando
o líquido na bichinha, que eu mesmo tinha pescado
da janela de casa, quando senti uma certa resistência,
porque a agulha era muito fina. Carreguei a mão, na
marra. Foi nesse momento que aconteceu o desastre.
Nem sei o que foi: quiçá, a seringa estourou ou a agulha
escapuliu. Só lembro que o meu rosto, de repente,
pegou fogo, estava lavado de formol! O que é pior,
naquela experiência estava usando uma solução muito
concentrada. De repente fiquei cego, com a cabeça
que parecia explodir. Tive vontade de pedir socorro,
mas compreendi que não adiantaria nada. Isolado
como estava, não podia ser ajudado por ninguém [...]
Só uma idéia, bem clara na minha cabeça: água, devo
chegar à água! [...] Devagarinho, cheguei ao banheiro
e mergulhei a cabeça no tambor cheio de água.
[GALLO, 1996, p. 171-2]
arte, educação e cultura | 45
Aplicação de formol por Giovanni Gallo
46 | documentário
Jenipapo no período das cheias por Giovanni Gallo
EstaçãodaslamasporGiovanniGallo
Oproblema da falta de infra-estrutura na vila de
Jenipapo, principalmente na época das cheias,
sempre se apresentou como um obstáculo a ser
enfrentado pelos moradores da região.
Problemas de locomoção dos moradores, que no verão
tinham que se equilibrar sobre as terruadas ou tentar
desviar da lama. E no inverno correrem o risco de se
aventurar nas águas repletas de piranhas, além de as
crianças estarem sob o perigo de afogamento. Onde a
única forma de transporte existente seriam as canoas,
conhecidas como casco pelos moradores.
Buscando solucionar esses problemas, padre Gallo
com o dinheiro arrecadado com o projeto piranha
construiu 350 metros de pontes, interligando as casas
da vila, garantindo assim, mais mobilidade e segurança
para a população.
arte, educação e cultura | 47
Estivas na Vila de Jenipapo por Giovanni Gallo • Acervo d'O Museu do Marajó
48 | documentário
Igreja de Nossa Senhora de Nazaré de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo
arte, educação e cultura | 49
Estivas sobre a lama por Giovanni Gallo
Osucesso do Pe. Giovanni Gallo com os
resultados do Projeto Piranha lhe garantiu
a simpatia da população, mas acabou atraindo
também alguns inimigos, que não entendiam
como o padre conseguiu tamanho sucesso sem
os investimentos da igreja ou de terceiros na
viabilização de seus projetos.
O fato de o religioso ter conquistado
prestigio e a simpatia da população,
pelas suas atividades em benefícios
da mesma, tenha talvez contribuído
para que se enxergasse nesse homem,
um possível adversário político, fato
que fez com que algumas pessoas,
atrapalhassem os seus projetos com
histórias difamatórias com o objetivo
de diminuir o seu prestigio perante a
comunidade.
Mas mesmo com as dificuldades encontradas,
ele tinha mais um projeto a realizar na cidade, com
o objetivo de desenvolver a comunidade no aspecto
econômico, social e cultural.
50 | documentário
MARAJÓ, FONTE INESGOTÁVEL DE INFORMAÇÕES
Se pudermos dizer quando de fato O Museu surgiu em Santa Cruz do
Arari, sem dúvida foi a partir de um presente incomum. Seu Vadico, um
amigo e colaborador, entregou um embrulho, sem falar nada colocou
em cima da mesa. Pe. Gallo curioso perguntou do que se tratava.
- Aqui estão uns negócios que não prestam, como o senhor gosta.
[Seu Vadico]
Tratava-se de cacos (artefatos arqueológicos) de cerâmica marajoara,
os mesmos que os “búfalos pisam e os homens chutavam faz mais de
mil anos.” A partir desse presente que Pe. Giovanni Gallo decidiu
coletar objetos e, sobretudo, informações sobre esse mundo misterioso
e encantador que é o Marajó. Em outras palavras, nasce a partir deste
momento, a ideia de se criar um museu com o objetivo de preservar,
valorizar e divulgar a cultura da ilha de Marajó e, principalmente do
povo marajoara.
Desenvolveu assim, inúmeras pesquisas sobre os mais variados temas
culturais presentes na ilha de Marajó. Entre essas pesquisas realizadas,
a desenvolvida sobre a arqueologia da ilha de Marajó, coletando
artefato da cerâmica marajoara. Resultou em 1990, após vinte anos de
trabalho sobre o assunto, na publicação do livro Motivos Ornamentais
da Cerâmica Marajoara Modelos para o Artesanato de Hoje. Livro
produzido com o objetivo de ajuda no trabalho da bordadeira, do
serigrafista, do pintor, do carpinteiro. Um trabalho com a missão
de servir como suporte para auxiliar os artesões em seus trabalhos,
facilitando a reprodução dos motivos artísticos da fase marajoaras, e
assim dinamizar a economia desses homens e mulheres.
Mas suas pesquisas não se limitaram a arqueologia da ilha, as suas
experiências sofridas, seja nos campos do Marajó, entre os vaqueiros
e os moradores das cidades, ou nos rios da região realizando a pesca
no mato, contribuíram para que o padre adquirisse um conhecimento
muito significativo sobre os aspectos culturais e sociais da região.
Esse fato contribuiu para que ele construísse vários artigos, que foram
vinculados nos jornais O Liberal e O Estado do Pará, de forma semanal.
Aos domingos tratava de temas variados, como cultura, esporte,
lazer, política, economia e sobre o social observado nas cidades do
Marajó. Após anos escrevendo para esses jornais, seu amigo particular
Dalcídio Jurandir, o maior escritor paraense, incentivou-o: “Tire uma
coleção de reportagens e faça um livro que será o retrato da terra e
da gente de Jenipapo. Lendo-o, fico com as minhas raízes marajoaras
estremecendo.” E foi o que ele fez, reuniu os seus melhores artigos
e publicou o livro, Marajó a ditadura da água (1980), que teve duas
edições esgotadas, com 9.000 exemplares, apenas dentro de Belém.
Este livro segundo Hildegardo Nunes:
“...retrata com fidelidade a
vida na região do Marajó,
principalmente na Vila do
Jenipapo. Apesar de sua
formação religiosa, Giovanni
Gallo consegue tratar de forma
fiel assuntos não muito fáceis
para um religioso, como,
por exemplo, a macumba. É
fantástico o que ele consegue
passar nesse livro.”
[Jornal O Liberal de 13/01/1996]
arte, educação e cultura | 51
Cerimônia da Umbanda por Giovanni Gallo
CulturapopularnaViladeJenipapoporGiovanniGallo
Santa Cruz do Arari
O INÍCIO DO PROJETO: SURGE UM MUSEU NO MARAJÓ
Em primeiro lugar, devemos tentar responder a pergunta que perseguiu Pe. Giovanni Gallo por toda sua vida, a partir do
momento que colocou o projeto museu em prática, para que possamos entender o objetivo de sua viabilização.
Por que um museu no Marajó? Em um local sem infra-estrutura, com um acesso por terra precário e fluvial também, de
comunicação por telefone deficiente e um abastecimento de água mais ainda. Um fornecimento de energia elétrica muito
precário, por poucas horas por dia e com muitos blecautes. E para completar as dificuldades, para a instalação desse projeto,
faltavam hotéis e outras estruturas complementares a qualquer projeto turístico.
Mas mesmo com todas essas dificuldades apresentadas, Pe. Giovanni Gallo recusou ao longo dos anos propostas tentadoras de
mudança d’O Museu do Marajó, para outras cidades que apresentavam uma rede de infra-estrutura mais desenvolvida como:
Soure, Ponta de Pedras e a própria capital Belém do Pará.
Toda essa recusa da mudança da sede d’O Museu do Marajó, para um local mais estruturado, está ainda nos dias de hoje
baseada na filosofia que domina os princípios do museu, de “preocupação fundamental com o homem, não somente como
objeto de pesquisa, mas também como meta e objetivo.”
Em entrevista certa vez em um programa de TV, foi feita uma pergunta ao padre giovanni: “No Museu, o seu interesse maior
será a pesca ou a pecuária?” Pergunta que para Padre Gallo, pode ter sido feita de forma ingênua ou maliciosa. Mas a resposta
já estava na ponta da língua:
“O homem, o homem que pode ser pescador, vaqueiro, fazendeiro ou marreteiro, o homem que carrega consigo uma
cultura em fase de extinção, o homem que inconscientemente está destruindo o seu habitat, o homem humilde que terá que
enfrentar um futuro apavorante se não forem tomadas providências a fim de adaptar aos novos tempos as estruturas sócio-
econômicas.”(Entrevistas de Padre Giovanni Gallo na TV Cultura)
Gebrista(mistodepescadorecaçador)porGiovanniGallo
54 | documentário
BezerrodeduascabeçasporGiovanniGallo
PARTINDO DESSES PRINCÍPIOS O Museu do Marajó assumiu a empolgante tarefa de
ser o ponto de partida de todo um complexo de iniciativas, para um programa integral
de desenvolvimento, especialmente de um desenvolvimento que utilizaria valores
culturais como, histórias e estórias, lendas, costumes, crenças e tradições da terra, e
através desses elementos culturais, promoverem o desenvolvimento da região. Sendo
definido assim, como um misto de museu comunitário, gabinete de curiosidade e
ecomuseu, que possui uma relação de afinidade com a população e o território onde
está desenvolvendo suas atividades, comportando-se como elemento de preservação e
divulgação dessas micro-culturas, ou seja, dessas culturas mais específicas.
Sendo assim, no Museu do Marajó a população local se vê representada em
todo o seu acervo, como um espelho dessas comunidades, onde procuram
informações sobre o território, as populações e as culturas que as antecederam
e as permanências observadas através das gerações. Assim, a população
busca construir uma identidade local, baseada na apropriação dessas culturas,
que no caso refere-se a cultura marajoara, formulando sua construção, com
a valorização das histórias ou do território de origem, que podemos chamar
de culturas imaginadas. Inventando assim uma tradição, que adota a cultura
marajoara, já extinta, como elemento que justifica suas origens, como homens
e mulheres marajoaras.
Interior do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo
56 | documentário
“No nosso museu, o homem marajoara é doador e
receptor. Ele é a maior fonte de informação e no mesmo
tempo o maior beneficiado. Nesta perspectiva, o nosso
museu tem um ciclo completo: nasce da comunidade,
cresce com a comunidade e volta à comunidade. Agora
é fácil entender porque o museu aceitou o desafio de
escolher um lugar carente das infra-estruturas essenciais.
Porque assumiu o compromisso de promover estas infra-
estruturas, provocando o desenvolvimento do homem
através da cultura.” [Giovanni Gallo]
A resposta para esta questão está no centro de todo seu acervo, o homem
marajoara. Para Pe. Gallo:
Desta forma, O Museu do Marajó nasce de modo informal em Santa Cruz
do Arari em 1973. No inicio estava atrelado a Associação Civil Obras
Sociais da Prelazia de Ponta de Pedras, como uma das atividades sociais
da igreja católica, funcionando assim, nas instalações do salão paroquial.
No seu início, o museu caracterizava-se por expor peças arqueológicas,
artefatos típicos do cotidiano do caboclo marajoara, documentos
históricos, mas, a maior parte do seu acervo era de animais embalsamados
como: o boto, jacaré, insetos e o famoso bezerro de duas cabeças, uma
das maiores atrações d’O Museu do Marajó. Característica essa que no
início, poderíamos enquadrar o museu em Santa Cruz do Arari, como uma
instituição nos moldes dos grandes gabinetes de curiosidade da Europa
antiga, por primar, em expor objetos considerados exóticos aos turistas.
Após anos de pesquisa para a formação de um museu em Santa Cruz
do Arari, em 16 de dezembro de 1981, foi fundada a Associação com o
nome de “O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari”. Agora independente
e autônoma da igreja, adquirindo mais liberdade de atuação em suas
atividades sociais.
Fachada do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari
58 | documentário
Interior do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo
lado do posto médico, outrora construído por iniciativa do Pe
Giovanni Gallo, o museu teve que se transferir para outra cidade
Com a vitória de seus adversários políticos, ficou inviável
a permanência de Pe. Gallo e d’O Museu em Santa Cruz.
Culminando assim, em 14 de julho de 1983, na Assembleia geral
dos sócios, com a mudança da razão social do museu, que deixava
de se chamar “Nosso Museu de Santa Cruz do Arari”, para agora
assumir a denominação de “O Museu do Marajó”, denominação
essa mais abrangente e que se justificava pelo
crescimento das atividades da associação, que
abrange não mais apenas o município de
Santa Cruz do Arari, mas a região do
Marajó. Além de transferir a sede do
museu para o município de Cachoeira
do Arari, local de mais fácil acesso
onde o prefeito se comprometeu
em facilitar a instalação do
museu no município.
Mas a construção de um museu em Santa Cruz do
Arari acabou atraindo alguns problemas políticos.
Pois, este projeto e os benefícios que traria para a
comunidade garantiam certos prestígios ao padre
Giovanni Gallo, o que provocava a inveja e o ódio de
adversários, mesmo que involuntários, que iniciaram
uma perseguição política contra o padre. Definindo
“o museu como uma iniciativa que, com seus bichos
fedorentos, só estragava a cidade.”[GALLO, p.219]
O Museu ainda conquistou a doação por parte
da prefeitura de um terreno na travessa
Benjamin Gaioso, para a instalação do
“Nosso Museu”, que estava antes nas
dependências do salão paroquial da
igreja de São Pedro. Mas em 1983, por
problemas políticos, que defendiam
expulsar “...aquele museu que só
agasalha bichos fedorentos, poluindo
a atmosfera da cidade e tirando o ar da
Unidade de Saúde.” Pois, O Museu ficava ao
Cachoeira do Arari
Gallo conta em seu livro O homem que implodiu "Precisava de uma morada. Pedi
hospedagem na casa paroquial: me foi negada. Passei umas semanas na casa do prefeito,
dr. Edir, mas era evidente que esta solução só podia ser provisória. Um ditado italiano
diz L'ospite é come il pesce, dopo un poco puzza: O hóspede é como o peixe, depois de
certo tempo fede. Não queria ficar incomodando".
O prefeito alugou para mim e os meus troços um velho casarão à espera de demolição:
era o bastante para sobreviver, com poucas mordomias. Pelejei um bocado para chegar ao
banheiro ocupado pelas cabas; só um descuido e podia varar através do assoalho podre."
"O mais trágico: o prédio oferecido não estava disponível, como a
gente pensava. Não era da Prefeitura, continuava sendo propriedade
da antiga Oleíca, fábrica falida, mas não morta. Gastei quase dois
anos para desembrulhar a situação" (Giovanni Gallo)
O Museu do Marajó
Em Cachoeira do Arari O Museu do Marajó com o dinheiro arrecadado graças à venda da antiga sede em Santa Cruz do Arari,
comprada pelo Governo do Estado, na administração do Gov. Jáder Barbalho. Resgatou a divida que a antiga fábrica de óleo
vegetal OLEICA S/A, falida e abandonada à vinte anos, possuía perante o BASA. Ao mesmo tempo indenizou a OLEICA na
pessoa do seu Diretor, o Sr. Antônio Pessoa.
ComunidadeajudandonareformadafábricaOLEICASAporGiovanniGallo
62 | documentário
A fábrica estava em péssimas condições, mas com o apoio e ajuda
da população cachoeirense, que recebeu o Museu de braços abertos,
as obras de restauração do prédio logo se iniciaram. Outro grande
apoio veio da prefeitura de Cachoeira do Arari, na figura do Prefeito
Dr. Edir de Souza Neves, que foi quem convidou Pe. Gallo, para
transferir o museu para seu município. Como o próprio prefeito nos
diz: “O Museu do Marajó está sendo instalado na cidade Cachoeira
do Arari, porque fomos nós a convidar pessoalmente Pe. Giovanni
Gallo. Foi mesmo uma decisão acertada".
O Museu do Marajó chega a Cachoeira do Arari em 1983,
mas só em 8 de dezembro de 1984, abre as portas ao
público, enquanto os serviços de restauração e instalação
continuam sendo feitos. Nessa altura, O Museu possuía
apenas 25% da sua capacidade expositiva, e segundo
Giovanni Gallo, nunca alcançaria os 100%, pelo simples
motivo de tratar da cultura marajoara. Devido essa cultura
e região, estarem sempre em transformação e possuir
grandes proporções territoriais, sendo impossível expor
toda a diversidade cultural apresentada na ilha de Marajó
por seu povo.
Comunidade cachoeirense nas reformas da fábrica OLEICA SA • Acervo d'O Museu do Marajó
arte, educação e cultura | 63
Montagem d'O Museu do Marajó • Acervo d'O Museu do Marajó
Construçãodoscomputadorescapirias•Acervod'OMuseudoMarajó
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EntradaparaaexposiçãopermanenteporGiovanniGallo
arte, educação e cultura | 65
A inauguração oficial de fato só
ocorre em 12 de dezembro de 1987,
data especial para o município de
Cachoeira do Arari, pela realização
nesse dia do Círio de Nossa Senhora da
Conceição, a padroeira do município.
A festa da inauguração contou com a banda de música da polícia militar e de cavaleiros com bandeiras em um desfile pelas
cidades, que festejava a inauguração desse museu. Além da população que se fez presente, e de autoridades locais, estaduais
e federais. Os parceiros que contribuíram para a viabilização do projeto d’O Museu do Marajó se fizeram presentes como, a
Cooperativa de Indústria Pecuária do Pará (SOCIPE), na pessoa do senhor presidente José Maria Lobato, o representante do
governo, deputado Carlos Kayath, do Ministério da Cultura, do Conselho Nacional de Museus entre outros.
Em Cachoeira do Arari O Museu aumentou seu acervo, não se limitando apenas a animais embalsamados e cacos arqueológicos.
Seu acervo agora mostra lendas, histórias, objetos, imagens e textos que possuem todos, uma coisa em comum, o homem, o
caboclo marajoara e tudo o que se refere a ele. Com isso, O Museu do Marajó conquistou fama e admiração por todo o país e
fora dele. Seus visitantes, nacionais e estrangeiros, levavam as suas impressões sobre o museu para outros locais, aumentando
assim, o prestigio da instituição.
66 | documentário
CartadoescritorJorgeAmadoaGiovanniGallo.
Recebeu também inúmeras declarações de apoio
ao projeto desenvolvido, como, de Dom Alberto
Gaudêncio Ramos da Arquidiocese de Belém;
da prefeitura de Cachoeira do Arari na figura do
senhor prefeito Dr. Edir de Souza Neves; Ildo
Barbosa Teixeira da Divisão de Museologia do
Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG); e da
Associação Rural da Pecuária do Pará e de seu
presidente Fernando Acataussú.
O Museu do Marajó vira notícia em todos os
jornais da região, O Liberal, A Província
do Pará, O Estado do Pará, e até fora
do país. Sendo matéria de revistas e de
trabalhos de monografias, dissertações e
teses, de muitos cientistas e admiradores
desse projeto cultural.
Computadorcaipiraparaveretocar
Acervo interativo para ver e tocar
68 | documentário
Em Cachoeira do Arari, O Museu do Marajó continua com dificuldades
financeiras e muito ainda a ser feito. Mas é inegável, que nesta cidade
adquiriu fama e reconhecimentos, chegando a ser disputado por cidades
como Soure e Salvaterra, que veem neste Museu um grande meio de
atrair turistas e investimento para suas cidades. Mas, o objetivo de atrair
para Cachoeira do Arari os investimentos e com eles as infra-estruturas
necessárias, faz O Museu permanecer nesta cidade, por vontade de seu
fundador. Pois, desenvolver socioeconomicamente através da cultura essa
região sempre foi a missão d’O Museu do Marajó e de seu criador. Por isso,
A cidade de Cachoeira do Arari, localizada no meio da ilha do Marajó, e
de grande potencial para o desenvolvimento, se fez como local ideal para o
desenvolvimento socioeconômico através da cultura.
Computador caipira "Glossário do Vaqueiro" • Acervo d'O Museu do Marajó
arte, educação e cultura | 69
Alunos aprendem brincando • Acervo d'O Museu do Marajó
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O FIM DE UMA TRAJETÓRIA: MORRE UM MARAJOARA NA ALMA
Após 30 anos a frente de um projeto de valorização e preservação da cultura marajoara,
padre Giovanni Gallo encerrou suas atividades sociais em prol da comunidade da ilha de
Marajó e, também deixou de reger, como um maestro que dita o ritmo da música, o seu
sonoro e empolgante projeto, O Museu do Marajó.
No dia 7 de março de 2003, no Hospital Porto Dias em Belém, aos 76 anos padre Gallo
como era conhecido, ao meio-dia deu seu último suspiro. Internado desde 26 de dezembro
de 2002, por causa de uma úlcera perfurada, padre Gallo teve que passar por duas
cirurgias em um pequeno espaço de tempo. Tendo seu quadro de saúde agravado por uma
septicemia (infecção generalizada).
Padre Gallo a um tempo já apresentava uma saúde bastante fragilizada, com dificuldades
para dormir, ficando dias acordados, convivia com dores diárias provocadas pela artrose,
que muitas vezes impossibilitava seu deslocamento, prendendo-o a cadeira de rodas.
Dores essas que só eram aliviadas com injeções, também diárias de Voltaren, muitas vezes
por dia.
Em seus últimos dias de vida padre Gallo estava em coma induzido, mas em seus poucos
momentos de lucidez, a preocupação que sempre demonstrava, era com o destino d’O
Museu do Marajó. ele sabia que a tarefa de manter seu projeto vivo não era fácil, e mesmo
com a saúde bastante debilitada, não conseguia parar de pensar como seria o futuro d’O
Museu.
arte, educação e cultura | 71
Com sua morte seu corpo foi levado para
Cachoeira do Arari, onde foi levado na capela
de São Pedro, construída outrora por ele com
o apoio da comunidade cachoeirense. Sendo
enterrado com vestes de padre como era seu
desejo, pois em sua concepção, mesmo afastado
das atividades religiosas, nunca havia deixado de
ser um padre jesuíta.
O enterro em uma área continua ao Museu, entre
o prédio da exposição permanente e sua antiga
residência, no bosque. Seu tumulo que lembra
um teso marajoara, está adornado com cerâmicas
marajoaras, uma homenagem a quem sempre
lutou pela preservação dessa cultura extinta.
Agora ele faz parte do acervo d’O Museu do
Marajó, como mais uma peça a ser contemplada
pelo público que o visita.
Como diz uma faixa colocada na entrada
d’O Museu após sua morte: Gallo Vive!!! É
impossível falar d’O Museu do Marajó sem fazer
referência a figura singular de padre Giovanni
Gallo. As histórias de ambos se confundem,
algo que muitas vezes personifica O Museu do
Marajó, atrelando-o a imagem de Gallo, como se
fossem uma coisa só. Na verdade, agora são, pois
Gallo literalmente faz parte d’O Museu, do início
ao fim.
O Museu do Marajó mesmo com dificuldades
financeiras e sem o seu idealizador a frente,
continua lutando para manter vivo o sonho de
Gallo de desenvolver socioeconomicamente
a região do Marajó através da cultura. Com a
missão de atrair as infra-estruturas necessárias
para a cidade de Cachoeira do Arari e, com elas
melhorar as condições de vida da comunidade.
A missão não é fácil, Giovanni Gallo sabia
muito bem disso. Mas O Museu do Marajó, aos
trancos e barrancos, segue levando esse sonho,
considerado por muitos utópico a frente. Sonho
esse que aos poucos conquistou a admiração e
o respeito de pessoas e instituições por todo o
mundo.
Visite O Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo
Fotografias de Diego Bragança e João Aires
74 | documentário
Um meu irmão me perguntou:
Pergunta legítima, que pode ser também formulada assim, numa forma mais geral: o que é este tal de Museu do Marajó, que
condicionou a minha vida e, ao mesmo tempo, encanta os turistas que chegam de longe, depois de ter conhecido museus
famosos no país e no exterior, ao ponto de deixar depoimentos apaixonados. Só uma pequena amostragem tirada do livro das
assinaturas, para demonstrar que não estou sonhando.
Para explicar ou justificar este entusiasmo vou dar um apanhado geral
sobre as características e a técnica utilizadas na sua apresentação.
A ideia básica é apresentar não o objeto e sim o homem que está atrás
do objeto: daqui se explica a declaração de que o homem é a nossa peça
mais importante. Em outras palavras, o nosso Museu começa onde os
outros terminam. Uma afirmação bastante hermética que, porém, será
de uma evidência cristalina, com poucas linhas de explicação.
A técnica de comunicação parte
da ideia de que o brasileiro tem
os olhos na ponta dos dedos:
sempre deve mexer nas coisas
que observa. Em lugar de coibi-
lo, achei mais interessante
incentivá-lo a seguir este estilo
nacional. Em miúdos, o Museu é um grande brinquedo. Quanto mais o visitante mexe com os painéis, mais novidades ele
descobre e isto através de recursos que nós, numa forma não pretensiosa e sim brincalhona, definimos como computadores de
marca caipira. Com o recurso de barbantes, tabuinhas, placas móveis, tudo é inspirado nalgum artefato de estilo popular que,
quando manipulado, desvenda os seus segredos, exatamente como computador de verdade.
"Será que vale a pena sacrificar uma vida sobre o altar do Museu?"
arte, educação e cultura | 75
Só uns exemplos:
Entrando no Museu, encontra-se o auditório, com umas carteiras escolares e o mínimo de equipamento
de som e áudio, para fazer uma prele-ção aos visitantes. Num canto estão duas caixinhas, com o
convite "O Museu começa por aqui!" e duas perguntas intrigantes: "Quantos anos tem a peça mais
antiga do Museu?" Surpresa, incerteza e respostas absurdas. Levantando uma tampa, encontra-se a
escala geológica da terra, mais em baixo uma peça da era mesozóica, período jurássico: um fóssil, o
tataravò da nossa traíra com a certidão de nascimento que espanta, 190 milhões de anos! Bem ao lado,
outra pergunta intrigante: "Qual é a peça mais nova?"
Embaixo, está um espelho com a escrita: "É você!",
porque cada um descobre o seu Museu, seguindo os
seus interesses, dirigido pela sua própria formação
específica, que o estimula à procura, oferecendo a
oportunidade de dar seus palpites e sua contribuição.
Quem quiser saber como colaborar, um painel móvel dá
as dicas. As reações do público são um show!
A primeira seção é reservada à arqueologia, peças dos
índios marajoaras, que os entendidos definiriam como
peças artísticas, porque não foi possível registrar onde
e como foram encontradas. A maioria são doações de
caboclos, que as recolheram nos tesos. Com certeza,
porém, são autênticas: basta analisar a estrutura intrínseca.
Aqui chega a oportunidade de explicar por que a peça
mais importante do nosso Museu é o homem e não o
objeto exposto: este não é nada mais que o elo entre o
visitante e a realidade marajoara. As famosas igaçabas
são lindas, mas é mais interessante descobrir quem eram
os índios que as fabricaram, sobretudo por quê.
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Aruã que pertenciam a outra família linguística. A língua
geral, o nheengatu, explica o mistério: só vendo!
Outro computador, formado por um cubo com tampas móveis,
dá as informações sobre o problema dos índios: quantos eram
e quantos são; por que agora são uma dor de cabeça; por que
as guerras de extermínio; porque a gripe os mata? "O índio é
gente?" explica a justificativa que os devotos colonizadores
encontraram para massacrálos, sem remorsos de consciência:
se na língua deles não tem F, L e R, quer dizer, se eles não têm
fé, nem lei e nem rei, então são bichos: dá
para baixar o pau! Você sabia?
O caboclo está convencido de que
os índios cortavam os mortos, pelo fato de que encontra os
ossos num vaso pequeno que está dentro de outro maior,
a igaçaba ou urna funerária. Um cartaz explica que esta
era a sepultura secundária: os índios (como também agora
em muitas tribos) os enterravam no chão, para exumá-los
mais tarde numa cerimônia ritual, acondicionando-os na
igaçaba depois de tê-los pintado com urucum, junto com
uns apetrechos característicos da pessoa, que podia ser uma
boneca (criança), tanga (mulher) ou machado (homem).
Em qualquer museu deste mundo, o urubu será apresentado
por um exemplar vivo ou empalhado, identificado pelo nome
científico e popular. E tudo acaba aí. Para nós é só o começo,
Nada melhor que começar pela língua. Então o visitante
curioso, no painel "Você fala tupi?", levanta as tabuinhas,
que são identificadas por uma série de palavras indígenas.
Embaixo está a etimologia reveladora: o igarapé é o riacho ou
caminho da senhora da água (a canoa), iguaçu é água grande
(a cachoeira), Ipanema (pedindo desculpa aos cariocas)
é a água que é panema, quer dizer, que não presta, dá azar
ao pescador, porque não tem peixe. Uma autêntica delícia
intelectual, uma descoberta gostosa. Só mais um exemplo,
lacitatá, um nome de mulher: Ia
é fruta, Ci é mãe, quer dizer, a
lua que faz germinar as plantas,
Tatá é foguinho: o foguinho da lua é a estrela!
Um croqui, pintado na parede, mostra a área de expansão dos
diversos povos, junto com o diagrama que indica a escala do
tempo. Os nomes não revelam muita coisa, então rodando
a manivela de outro computador descobre-se quem eram
os Ananatuba, os Mangueira, os Formiga, os Marajoara,
os Aruã, onde e como moravam, quais as atividades que
praticavam: são as conclusões dos especialistas nesta área.
Bem ao lado, com o mesmo truque, é revelado o mistério da
língua deles, a formação dos neologismos (fotografia: a pele
que foi tirada), e como se explica o fato que encontramos no
Marajó tantas palavras tupi, se os últimos moradores eram
Uma autêntica delícia intelectual,
uma descoberta gostosa.
o raio é uma pedra que cai do céu
enterra-se 7 metros e aos poucos sobe a superfícice
o bicho é uma desculpa para descobrir a cultura local. Um
painel com a silhueta de um prédio, no caso um tribunal,
com a indispensável balança feita com duas tampinhas de
Coca-Cola, apresenta a ficha do réu, na ciência e na tradição
cabocla; outras apresentam a acusação (não presta porque dá
azar, espalha doença... ), a defesa (o azar não passa de uma
abusão popular, o ácido gástrico destrói as toxinas), e por fim
a sentença (deixamos ele em paz!).
Ao lado, um grande
painel com muitas
tabuinhas e o convite
a descobrir qual é a relação entre a figura e o bicho. Mulher
barriguda? Quando ela está de parto, o urubu já sabe se vai
nascer homem ou mulher. Fica alegre? Será homem, que
é caçador e sempre arruma bóia para ele. Está triste se vai
nascer mulher, porque esta só lhe oferece casca de batata e de
banana. Espingarda? Quando uma arma atira no urubu, fica
panema, não presta mais. Porque, quando um urubu acha uma
carniça, não pode saboreá-la em paz porque logo se ajunta
um montão de pretendentes? Durante muitos anos perguntei
aos caboclos, sem sucesso. A resposta veio de um livro suíço.
Mas não revelo o segredo, senão ninguém vem mais aqui
para descobri-lo.
A casa do jacaré valoriza a cultura cabocla. E bicho
valente, mas fraco na cabeça, cheio de complexos,
como de inferioridade, com onça e urubu,
e sobretudo com o medo paradoxal dos
olhos fechados, a arma mais poderosa do
caboclo para capturá-lo. Como a gente
vê, o objeto é o ponto de partida para
desvendar o mistério da cultura local.
O caboclo criou a sua cosmologia, que acredita no
involucionísmo (o macaco já foi gente), a geração
espontânea (a mosca nasce do lixo, os peixes
morrem estorricados nos poções secos para depois
nascer do limo, a caturra é gerada pelo caroço de
tucumã), o transformismo (o boto vira gente, o
jandiá vira sapo e a caba é filha da aranha), o raio
é uma pedra que cai do céu, enterra-se sete metros
(número mágico) e aos poucos sobe à superfície,
para depois voltar ao céu. Nada de novo: os antigos
italianos chamavam Pietra di fulmine os achados
arqueológicos etruscos, seguindo as informações
recebidas dos latinos.
Esta pesquisa nos oferece, evidentemente, a possibilidade de
fazer comparações com outras culturas. Criança empelicada
é aquela que nasceu junto com as companheiras (a placenta),
por isso será homem de sorte. Então compreendi o sentido
da expressão italiana Nato con Ia camicia, (nasceu com a
camisa), que indica não o homem afortunado que nasceu
com a roupa no corpo, como eu acreditava, e sim porque ele
veio ao mundo com a Camicia delia
Madonna (a placenta): só que, no
folclore italiano, é o indivíduo
com o dom de ser curandeiro.
Os alemães concordam com os caboclos, quando falam de
Glúckshaube, o gorro da sorte!
O caboclo sente-se cercado de inimigos naturais (barata, cobra,
can-diru, piolho e bicho-do-pé...). Um novo computador, do
tipo levanta-e-vê, nos revela como é que ele se defende com
recursos naturais não poluentes. A jibóia é a melhor defesa
contra os ratos, só deixá-la no teto da casa: ela, que é lerda,
espicha a língua e o rato vem direto para a boca dela!
Mais perigosos são os
inimigos não-naturais,
o olho grande,
a inveja, a
78 | documentário
espinhela caída, a matinta
pereira... O mal de lua
aparece quando a criança
faz o coco verde: foi descuido
da mãe, que deixou a criança
ou os cueiros dela expostos ao
luar. O médico não pode curar, é
doença de pajé: precisa mostrar o
bumbum do doente à lua, fazendo a
reza apropriada: "Lua luar, leva teu mal,
deixa meu filho criar!"
O pajé naturalmente merece papel de destaque: uma série
de computadores nos ensina como funciona um "trabalho",
quais são os atores, os convidados, o mestre-guia, qual é a
técnica do fogo, do doente carregado nas costas, dos vidros
quebrados sobre os quais o pajé atuado dança, o diagnóstico,
as causas e os remédios de cada doença não-natural. É o
resultado da pesquisa de um especialista, R. H. Maués, com a
colaboração da minha experiência pessoal.
As lendas amazônicas evidenciam como o Museu prevê
várias categorias de visitantes: o apressado que se contenta
em ler o nome e uma figura estilizada (vitória-régia), o mais
curioso que levanta a tampa e contempla a representação
plástica e, por fim, o pesquisador que lê a história.
Um supercomputador com 128 fichas faz a comparação
Homem x Bicho. Os bichos são pais amorosos? O pirarucu
é pai exemplar e carrega os filhotes na boca, em caso de
perigo. A barata dágua não tanto: a mãe bota os ovos e os
pai os devora. No desespero a mãe gruda os ovos na costa
do marido, que fica sacudindo, para
fazer um lanche! Quem voa melhor, o
homem ou o bicho? Será que o homem
inventa ou somente está copiando
dos bichos? Os segredos do radar
e do sonar que descobrimos com
o morce¬go e as mensagens da
mariposa, a orientação pelo sol e as
estrelas, os estragos da droga no reino
das formigas, a vaca sapatão e o inseto travesti que engana
o namorado na procura da noiva...
Tudo o que é vida do Marajó tem um lugar no nosso Museu:
as embarcações, a fazenda, o vaqueiro à moda antiga e o
vaqueiro de hoje, que mudou para o pior trocando a baeta pela
napa e o chapéu de carnaúba pelo capacete de plástico, a pesca
(com a maquete para explicar como é realizada no mato), o
boto, o peixe-boi. As histórias etiológicas nos revelam como
o caboclo explica certos fenómenos estranhos: o japiim que
convive com as cabas, a solha que tem a boca torta, o jabuti
com a carapaça emendada. Só um exemplo: por que o filho
do bem-te-vi tem uma ura na cabeça? Castigo: dedurou Nossa
Senhora aos soldados de Herodes.
Outro computador bem buchudo conta tudo, ou quase, sobre
as cobras: será verdade que a cobra, quando vai beber água,
esconde o veneno debaixo da pedra? Que gosta de leite de
mulher e tem o vício de puxar a criança que mama, colocando
na boquinha dela a ponta do rabo, para que não chore?.,.
A história dos escravos ganha a nossa atenção com
documentos autênticos, como a carta de alforria com a qual
João Manoel da Cunha Mello recebe, na presença do tabelião de Soure, em 7 de junho de 1847, a quantia de duzentos e
cinquenta mil réis em moeda corrente do país e doa a liberdade à cafusa Francisca Maria de Nazaré com "a condição, porém,
dela não poder se retirar da minha companhia em quanto eu for vivo".
A história que poucos conhecem, a história do sofrimento negro e da vergonha branca, nos desvendam o que geralmente não
aparece nos livros de História: o remédio certo para curar a sífilis dos donos de engenho era uma negrinha virgem, os horrores
dos tumbeiros, dos capitães de mato, o banzo, a saudade de Luanda, os tubarões famintos que resolviam as epidemias de
conjuntivite purulenta.
Passando ao presente, aí está uma denúncia inteligente para gente inteligente, apresentada por tabuinhas penduradas numa
grade de taboca: o racismo bem brasileiro revelado pela gíria de hoje. Gíria refinada "Eu não gosto de duas coisas: do racismo e
dos pretos", e popular: "Qual a diferença entre preto e câncer? o câncer evolui, o preto nunca!", mais muitas outras expressões
engraçadas e sutis mas sempre perversas. "Quando
nasce um preto, a mãe o joga para cima: se engatar,
é macaco; se avoar é urubu, se cair, é merda!" Só para
chegar à conclusão: o racismo é anticonstítucional, tem
que acabar!
Não dá para contar mais, senão quem chegar até aqui
já sabe tudo, mas, com certeza, também se dará conta
de que esta descrição não consegue dar a ideia do que
está guardado nos 900 m da Exposição Permanente. O
bezerro de duas cabeças, o homem que a piranha comeu
são pontos de referência para todos os caboclos.
Vou ainda citar a "Pescaria da Saúde", inspirada naquela
brincadeira de arraial, quando o moleque puxa o fio para
ganharoprémioouadecepção.Nabeiradocomputadorestá
a relação das doenças. Puxando a cordinha, sobe o remédio
(esta é pesquisa, não prontuário!). Fastio? Amarrar no
pescoço da criança um colar feito com dentes de piranhas.
São as simpatias por analogia ou transferência, a medicina
empírica, mágica e religiosa, com todas as variedades de
pírótica, excretoterapia (jasmim de cachorro, remédio
infalível contra o sarampo) mais as outras opções
alternativas: não é só o pajé que procura caminhos
diferentes da farmacopeia oficial.
Depois encontramos o painel "Marajó de ontem
e de hoje" com uma série de objetos que é preciso
identificar e acoplar: qual era a pasta de dentes da avó? (o
pó de carvão), a bacia? (o croata da palmeira), o espanador?
(a espiga de milho), o famoso capitão? Para os mais curiosos
está à disposição a explicação completa.
"... mas, com certeza, também se dará conta de que esta descrição não consegue
dar a ideia do que está guardado nos 900m da Exposição Permanente."
80 | documentário
Antes de sair, uma sabatina para
avaliar o proveito realizado na visita,
a pergunta com a resposta oculta: tinga quer dizer
pequeno, mergulhador ou branco? O que é a caiçara
para o índio, o marajoara e o paulista? Piracuí é um
bicho, uma planta ou uma comida?
Na área externa encontra-se o arboreto, com centenas
de plantas amazônicas sobre as quais estamos
fazendo a pesquisa, a casa do caboclo coberta de
palha, a casa da farinha, as estivas típicas do Marajó,
mais outras peças características da terra.
Como qualquer Museu moderno que se respeite, o
Museu do Marajó dá ênfase à atividade comunitária.
Temos a casa do artesanato, com o trabalho
das bordadeiras que reproduzem os motivos
arqueológicos: eram oitenta e duas que assim
ganhavam o peixe de cada dia. Atividade agora
encalhada por falta de capital de giro, porque a artesã
recebenahora,masoprodutoécomercializado
devagarinho. A escola-oficina, a Fazendola
Ecológica, construída com a ajuda dos
fazendeiros, quer dizer, uma maloca
sobre a qual estou curtindo o projeto
de transformá-la numa escola
alternativa, com arte, teatro e
folclore: por enquanto se reduz a
atividades embrionárias, sempre
pela falta de recursos.
Outro sonho é o arquivo cultural
para coletar nas comunidades as lembranças do passado, as estórias, as lendas, as parlendas, as toadas. Enquanto eu estou
esperando a maré boa, os velhinhos que são os últimos depositários desta cultura vão para o céu. Mas o meu sonho nasceu vinte
anos atrás! Só para ter uma ideia da nossa miséria, ainda não consegui montar as estantes da biblioteca.
queria que o Museu provocasse este
desenvolvimento. Eu sempre quis ser
um santo, pena que pifei.
Se o Museu está num beco sem
saída, por falta de comunicação que
permita o acesso dos visitantes, por
que não perenizar o acesso à baía,
com a estrada para Soure e Salvaterra,
abrindo assim o caminho do progresso
a todas as populações da bacia do Arari? O
Museu do Marajó não nasceu para ser pólo de
desenvolvimento?
O Museu do Marajó, sob o ponto de vista
históríco-geográfico, nasceu no lugar certo,
bem no centro da ilha, onde se cruzaram
todas as nações de índios, o lugar mais rico
de tesos arqueológicos, que os americanos
identificaram como mounds.
Sob o ponto de vista logístico, a escolha foi a
mais errada possível:
um museu precisa de estruturas que nós não
temos. Foi, porém, uma decisão proposital: eu sempre
recusei as muitas ofertas de lugares mais privilegiados, porque
A quem me
perguntou se vale a pena
sacrificar uma vida sobre o altar
do Museu respondo que sim: é
uma forma de salvar uma cultura
e ao mesmo tempo, através
da cultura, promover o
progresso.
arte, educação e cultura | 81
Os nossos recursos são raros, imprevisíveis e sempre insuficientes, o sonhado patrocinador ainda
não apareceu. Será que sou um idealista ou simplesmente um visionário com a obsessão de uma
façanha irrealizável? Neste momento me sinto como aquela mulher sertaneja, com o filhínho no
colo que está morrendo por definhamento e, no desespero, diz ao gringo: "Você quer meu filho? Eu
lhe dou! Só quero que ele viva!"
Estamos transformando a nossa Associação em Fundação, com mai¬or possibilidade de recursos
oficiais e estrangeiros. Dá para sonhar de olhos abertos, enquanto estamos curtindo a grande
esperança de encontrar algum patrocinador que tope com o nosso programa: venha e confira se o
Museu do Marajó é, como eu acredito, um instrumento com potencíalidades extra¬ordinárias para
promover a cultura e, com a cultura, o desenvolvimento total do homem marajoara.
A porta está aberta: temos registro no Cadastro Nacional de pessoas jurídicas, de natureza cultural,
do Ministério da Cultura, sob o n. 15.000222/84-11, podendo receber patrocínio e doação.
Por José Varella Pereira. Imagens cedidas pelo Acervo d'O Museu do Marajó
Giovanni Gallo, DA II GUERRA
MUNDIAL A UMA GUERRILHA NO FIM DO MUNDO
poética
arte, educação e cultura | 83
monge-soldado juramentado como todo e qualquer jesuíta.
O qual, enfim, perde a violência de uma tragédia grega na
Amazônia depauperada e devastada para se converter em luta
continuada para sobrevivência do Museu do Marajó, onde
criatura e criador se confundem.
Na ilha do Marajó, desde 1973, inventou o museu: estranha
criatura de um lugar no fim do mundo que acabou sendo alter
ego de seu criador e sobrevida no naufrágio de sua existência
no terceiro mundo. Todavia, para a espoliada gente marajoara
a inesperada obra de Santa Cruz do Arari transformou-se,
verdadeiramente, em alavanca social para empoderamento
popular da Cultura Marajoara. Até então de uso privado da
oligarquia regional e objeto de pesquisa acadêmica da elite
do País e exterior, sem retorno à população dos municípios
de IDH miserável.
O célebre museu do homem marajoara que fora causa daquela
tragédia, também se converteu em epifania do marajoara que
veio de longe. No marco final de uma vivência excepcional, o
drama de Giovanni Gallo se avizinha de um rito antropofágico
sublimado pela; a ilha canibalesca que o herói tentou salvar
termina por devorar seu salvador. Há uma aura eucarística na
tragédia. Gallo abandona todos os truques, como diz, para dar
a volta por cima no último capítulo. “Nem tudo está perdido”.
Ele compreende que morre o homem e fica a fama. O museu
da discórdia é, de fato, a sobrevivência do criador através
da criatura. Desde ali o “ex-padre” aculturado à moda dos
caboclos não diria nunca mais a magoada expressão: “quando
eu era gente”... Ele não se considerava mais o ressentido
“homem que virou bosta” ou “homem-bosta”. E sentencia
como um novo homem ressuscitado pela chuva dos campos
de Cachoeira.
Giovanni Gallo nasceu em Turim (Itália), no dia 27 de
abril de 1927 e faleceu em Belém do Pará, em 7 de março
de 2003. Gallo estava com onze anos de idade, em sua terra
natal, quando o vigário da paróquia lhe perguntou se queria
ser padre e o menino respondeu que sim. Até aí sua vida
infantil se resumia à família, escola e igreja. A Itália estava
sob o fascismo de Benito Mussolini e a Europa entregue à
fúria insana da II Guerra Mundial. O seminarista não parecia
interessado na política do país e a derrota italiana junto
com a Alemanha nazista não faz parte de suas principais
recordações.
Com 6 anos de idade o aluno Giovanni Gallo para ser
matriculado na escola primária fora inscrito no partido
fascista por sua mãe. O ano de seu nascimento era o Ano VII
da Era Fascista... Entretanto, tomou a decisão de ser padre,
por vontade própria, aos 29 anos de idade. Como seminarista
percorreu cidades como Paris, Estocolmo e outras.
Esta opção radical o levou a Sardenha a fim de trabalhar com
a população rural. Vem daí seu conhecimento do abigeato
como costume social; que não o escandalizou no Marajó
levando-o a tomar a defesa de pescadores do Jenipapo sempre
acusados, em geral, como ladrões de gado por fazendeiros e
explorados de suas carências sociais por notórios “patrões”.
Depois ele foi trabalhar com imigrantes na Suiça, antes de
vir a ser missionário no Maranhão e Pará (Marajó). Ao cabo
da vida, já na velhice, doente e tendo passado por cirurgias
em Brasília; resumiu tudo na explosiva autobiografia “O
homem que implodiu”, escrita em Cachoeira do Arari sob
peso do drama que o consumia. Crônica de um suicídio
anunciado: suprema confissão de fracasso para um padre
que aspirava a ser santificado, ainda mais se esse padre é
84 | poética
Apesar das enormes diferenças de tempo e caso, há diversos
pontos de contato entre o padre dos pescadores e vaqueiros do
Arari e o padre grande dos índios, Antônio Vieira: este último
adotou por princípio salvar-se salvando os outros. Giovanni
Gallo, por um percurso incerto, terminou por se salvar
salvando a memória de um povo desmemoriado através de
um museu engendrado nas piores condições de sobrevivência.
O herói devorado pelo curso da história, lutando para nascer
de novo; provoca a renascença de uma cultura “morta” e
despedaçada no altar da Civilização.
Chamá-losimplesmentede“ex-padre”éatirá-loàvalacomum
dos arrependidos e dispensados dos votos de sacerdote. Ele
foi um peão grudado à sela do touro. Combatente tenaz, um
condutor de contramão no sentido de que foi preciso desligá-
lo da diocese e suspender seu ofício na Sociedade de Jesus,
respectivamente, mas o João teimoso não jogou a toalha.
Nem quando esteve à beira do suicídio. Teve que ser excluído
"Ainda vale a pena viver, olhar para o futuro, quase como antigamente.
Pena que o padre morreu!" (O homem que implodiu, página 293)
sob argumento de claudicar no engajamento perime cadáver
(sobre a disciplina absoluta), pode ser. No que lhe parecia
erro de comando este soldado de Cristo parece sem defesa
na sua irremediável insubmissão. Já pensou a anarquia se
cada recruta discutisse com seu general a melhor tática de
batalha? O problema, neste caso, é que o soldado sentia-se
mais qualificado do que o comandante.
Insubmisso ao aparelho missionário talvez, mas nunca será
correto o considerar renegado da causa ad majorem gloria Dei
(sobre o juramento do miliciano de Cristo): por tal princípio,
ele advogava com incrível insistência o erro da autoridade
diocesana. Aqui fica difícil deslindar se o padre defendia os
cabocos, ou se ao contrário eram estes o escudo do rebelado
para não aceitar a rendição. Pelo que, no mesmo cenário
amazônico, Gallo lembra a desigual luta que o jesuíta Antônio
Vieira travou há três séculos e meio em favor dos índios e
sofreu condenação do Santo Ofício por heresia judaizante.
arte, educação e cultura | 85
Gallo poderia também, no limite, recordar o evolucionista Teillard de Chardin, que por amor à disciplina formal sem trair a
Ciência aceitou silenciar em vida, mas sem remorso arquitetou liberar seu pensamento após a morte, pregando uma peça à
censura. Giovanni Gallo não podia aceitar a retirada do campo de batalha sem dano à causa humanitária (a correspondência
de Maria de Belém Menezes e Dalcídio Jurandir demonstram bem isto, do mesmo modo com as cooperativas do bispo Angelo
Rivatto eram saudadas com entusiasmo): a ilha do Marajó foi palco e mortalha do padre. Ele fez uma aposta sabendo que seria
esmagado, comido e digerido pelo sistema até “implodir”.
"Até que enfim quis ver de perto, experimentar a vida dos meus irmãos, quis ser gente
da gente na prática e não somente na teoria, e me empurrei lá, aonde não todos vão."
86 | poética
Sua autobiografia é a crônica de um suicídio que se converte
em metáfora do contrário à vitória de Pirro de seus inimigos.
Pois o derrotado – à exemplo do povo que ele escolheu para
recuperar a memória – sabia, antecipadamente, que no fim da
história seria considerado um grande homem. Como de fato
acaba sendo, na medida que os marajoaras se empoderam do
tempo e do espaço natal e o Museu do Marajó passa a ser
conhecido no País e no mundo ainda que, no final, volte ao
barro de que foi feito. O que Giovanni Gallo não contava
era ser santificado pelo povo como um padre Cicero dos
ribeirinhos, nem que um viajante estranho viesse de longe
sentenciar diante de quem o ouvia no museu que o padre
dos marajoaras foi em vidas pregressas, naturalmente, um
“grande cacique marajoara”. Si non è vero è bene trovatto...
Vico explica a transformação de gente em lenda. E Gramsci
ensina a não tourear contra a cultura de um povo. No Marajó,
o catolicismo popular antes de ser religião é cultura mestiça
com crenças e ritos nativos e africanos. Isto que faz da
literatura do comunista agnóstico Dalcídio Jurandir uma mina
inesgotável.
O “homem do Pacoval” tributário do museu do Gallo
Marajó é universidade aberta, celeiro de diletantes que abrem
os olhos de eruditos fossilizados pelo cânone. Raymundo
Morais foi um destes autodidatas, autor de “O homem
do Pacoval”, que fez de seu navio singrando águas do
Amazonas, entre Belém e Manaus, escola de altos cursos de
cultura regional. Dalcídio transportou na bagagem a bordo do
“Ita do Norte” a “criaturada grande” para o auto exílio no Rio
de Janeiro. Já o marajoara que veio da Itália se naturalizou
brasileiro nas águas sagradas do lago Arari debaixo de chuvas
do dilúvio amazônico, entre piranhas e caruanas de peixes
encantados... Pouca gente ilustrada percebe que, “sem querer
querendo”, o jesuíta insubmisso criou, em forma de Museu
para “ver com a ponta dos dedos”, a concretude de uma
metáfora da marginalidade neocolonial face à centralidade
da gloriosa Civilização. O museu do Gallo fala desta gente
remanescente de índios, descendente de escravos e deportados.
Gente sem eira nem beira, herdeira de um tesouro perdido,
produtora incansável de cultura regional cuja resiliência está
Fui caçar, lancear, lanternar. A pé, no casco, montado. Fiquei semanas fora de casa,
prisioneiro de um barquinha, de um congá na beira do rio.
na cara e o centro de convergência deste mundo é ou deveria ser “o nosso Museu do
Marajó”. Cujo cerne e princípio, necessariamente, é tempo arqueológico, malgré
a sociologia do romance de Dalcídio e a etnografia prática de Giovanni Gallo.
Em Marajó, sem a antiguidade da Cultura Marajoara por emblema não tem futuro
nenhum projeto social, cultural ou ambiental separadamente. No começo do drama,
sem saber direito onde pisava; o padre dos pobres pescadores do Arari acertou em
cheio no barro dos começos deste vasto mundo das águas grandes!
Daltônico, confundia as cores básicas do arco-íris. Açodado por temperamento, ele
mal agasalhou a bagagem num canto e já entrou de cabeça na velha peleja entre
fazendeiros e pescadores. Briga feia começada, em 1680, com o primeiro curral
de gado de Cabo Verde importado no rio Arari e levantado face ao perigo dos
“índios bravios, desertores e escravos fugidos” que existiam nos centros da ilha.
Gallo entrou na paróquia de pé esquerdo como cego em meio ao tiroteio... Assim,
fragmentos de cerâmica marajoara – famosos “cacos de índio” remanescentes
de sítios arqueológicos – deram origem ao incrível museu e aos oportuníssimos
“Motivos Ornamentais” que são, muito provavelmente, sobras do saque de tesos
recolhidas com vagar e risco por descendentes de índios geralmente acusados de
ser “ladrões de gado”...
Não por acaso a vila Jenipapo, onde até poucos anos fazendeiro não pisava sem
risco de morte por vingança de acumuladas violências sofridas pela comunidade,
fica fronteira – no tempo e no espaço – ao teso do emblemático Pacoval, que já
deveria ter sido declarado monumento ancestral. Para quem não sabe, pacova é
espécie de banana antigamente cultivada pelos índios da região. Pacoval, portanto,
é bananal indígena. O teso do Pacoval em apreço é o primeiro sítio arquelógico
que se tem notícia na ilha do Marajó, descoberto na metade do século VIII pelo
autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joanes” (provavelmente, o fundador
da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino
Frade; guia de viagem do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira). A colonização
sufocou e estraçalhou a cultura indígena, mas por acaso “cacos de índios” deram
remendo à memória perdida... A astúcia do padre (como seus predecessores das
Missões) foi em saber escutar a voz do povo e, socraticamente, aprender com os
ignorantes. Nesta difícil arte ele foi mestre, sem a menor dúvida.
Origens e significados
da Cultura
Marajoara
 por Denise Pahl Schaan
Era lá pelo ano de 500 depois de Cristo. A Amazônia era habitada por centenas de nações indígenas,
formando comunidades que falavam um sem número de línguas diferentes. Em diversas áreas
ecologicamente distintas, essas populações exploravam recursos silvestres e desenvolviam uma
agricultura de pequena escala, para a sobrevivência de suas pequenas comunidades. Apesar desta
vida aparentemente simples, estas populações mantinham constante contato, pois realizavam
trocas e buscavam abastecer-se de produtos não disponíveis localmente. Provavelmente algumas
pessoas dedicavam-se a uma espécie de comércio, viajando e conectando comunidades distantes
em uma rede de trocas que envolvia também intercâmbio de ideias, crenças religiosas e estórias.
Foi nesse momento de grande regionalização de idéias, de aumento populacional, de crescente
conhecimento sobre o meio ambiente e as melhores formas de explorá-lo, que uma grande
transformação ocorreu no modo de vida de muitas das populações amazônicas. E essa transformação
ocorreu primeiro na Ilha de Marajó.
arte, educação e cultura | 93
Por que Marajó?
Porque em Marajó combinaram-se condições e oportunidade. Para que se entenda como tudo aconteceu é necessário
conhecer um pouco sobre o regime de chuvas em Marajó e, especialmente, como o clima afeta a pesca em algumas áreas,
principalmente nos pequenos igarapés e cabeceiras dos rios.
No Marajó chove mais do que o normal para a floresta tropical. As chuvas caem intensamente em um período que vai de
janeiro a maio, que é chamado localmente de inverno. Uma vez que a Ilha fica ao nível do mar, tem elevações discretas e
um solo muito argiloso, a terra não tem como absorver toda aquela água, provocando enchentes. As águas sobem muito, e o
campo torna-se um grande lago raso. E justamente neste período do inverno que vai até maio que acontece a piracema, ou
a subida dos peixes até as cabeceiras dos rios para se reproduzirem. Os peixes, então, espalham-se pelos campos alagados.
Quando as chuvas param e as águas começam a abaixar, é hora de voltar e descer os rios. No entanto, como as águas
baixam rápido, diversos lagos e pequenos cursos d'água que estavam conectados durante o inverno de repente são separados,
cortando vias de escape para milhares de animais aquáticos que ficam presos em áreas mais profundas.
Os antigos habitantes de Marajó conheciam bem aquele fenômeno. Pensa-se que eles frequentemente realizavam expedições
de pesca para as áreas em que podiam coletar facilmente uma grande quantidade de alimento. É provável que tenham
arte, educação e cultura | 95
também construído pequenas barragens, formando currais
onde podiam manter os peixes vivos por um indeterminado
período de tempo. Mas logo se deram conta de que podiam
fazer ainda melhor.
Nunca saberemos quem teve a ideia primeiro ou como
as coisas realmente aconteceram. O que sabemos é que
as cabeceiras dos rios passaram a ser colonizadas por
populações que começaram a manejar os recursos aquáticos
conscientemente. Fizeram isso por meio de grandes
escavações próximas aos leitos dos rios, nas cabeceiras, para
onde desviavam os peixes no final do inverno com a ajuda
de barragens. Desta forma, mantinham um suprimento de
alimento e água também durante o verão, quando tudo ficava
muito seco. Todo esse manejo possibilitou o agregamento de
populações maiores, que agora tinham uma fonte confiável
de proteína e podiam também dedicar-se a outras tarefas que
não as necessariamente ligadas à sobrevivência.
Mas o que fariam com a terra que tiravam das escavações?
Resolveram que seria interessante construir plataformas
altas de terra próximas aos viveiros de peixes, em cima das
quais colocariam suas casas e nas quais enterrariam seus
mortos. Foi assim que surgiram os cemitérios indígenas, tão
peculiares à região.
Os aterros (ou tesos, como são chamados localmente) se
tornaram símbolo de prosperidade e abundância, e logo
estabeleceu-se um certo direito de uso sobre esses locais. E
provável que os primeiros a chegar ao lugar tenham reclamado
seus direitos logo que os conflitos surgiram, e que os chefes
de famílias mais importantes tenham passado a ser também
chefes de comunidade. Em vários lugares na Ilha de Marajó
estabeleceram-se então poderosos cacicados, ou grupos de
aldeias que estavam subordinados a um mesmo cacique. Esta
unidade política e religiosa permitia-lhes assegurar também
por meio de guerras, se necessário, seus direitos sobre a terra e
sobre a água, assim como sobre todos os recursos naturais que
estas envolviam. Havia-se aberto um importante capítulo do
desenvolvimento cultural dos povos amazônicos. A partir daí,
sociedades regionais e complexas começaram a desenvolver-
se também em outras partes da Amazónia, iniciando um
florescimento cultural como não se havia visto antes.
Do Alto dos seus Tesos
Os cacicados eram governados por famílias nobres, que
passavam o poder de urna geração para a outra. Por causa da
grande importância de imagens femininas na arte Marajoara,
pensa-se que a sucessão se dava pela linha materna. Neste
sentido, mesmo que o chefe em determinado momento fosse
um homem, ele teria recebido o direito à sucessão no poder
por parte da família de sua mãe, não de seu pai. Quando uma
pessoa da família dos chefes morria, fosse ela mulher, homem
ou criança, seu corpo era colocado dentro de um grande vaso
de cerâmica juntamente com seus objetos pessoais. Algumas
mulheres eram enterradas com tangas de cerâmica. Algumas
pessoas ainda com colares e machados feitos de pedras raras na
região, obtidas através de trocas com sociedades distantes.
As urnas funerárias eram adornadas com desenhos pintados
ou inscritos na argila, ou ainda com relevos extremamente
elaborados,tudonascoresbranco,vermelhoepreto.Muitasdessas
urnas funerárias foram desenhadas como se fossem um corpo
feminino, com olhos e boca na parte superior, e o bojo redondo
sendo o corpo, onde braços eram desenhados acompanhando
a curvatura do vasilhame, com mãos que seguram um círculo
vermelho: o ventre. Em algumas urnas pintadas pode-se ver uma
pequena figura humana que está em posição de quem está para
dar à luz. É como se a urna representasse renascimento, volta às
origens, ou a passagem para uma outra vida.
Observando as representações na cerâmica podemos aprender
muitacoisasobreasantigascrenças,rituaisreligiosos,cerimónias
e festas que faziam parte da vida nos tesos. O fato de que as urnas
eram enterradas (mas às vezes mantidas dentro das casas) no
mesmo lugar onde moravam, nos indica que havia uma relação
estreita entre a vida e a morte, entre os vivos e seus antepassados.
Manter os antepassados por perto era uma maneira de assegurar
continuidade na sucessão e garantir o poder. Com cacicados
espalhados pela ilha, havia muita competição e conflitos, por
isso a necessidade de mostrar poder e prestígio. Do alto de seus
tesos, o Marajoara sentia-se em controle do seu território e das
riquezas que a terra e as águas lhe proporcionavam.
A Mãe de Todos os Peixes
"O índio mergulhou no rio e achou a
escama de uma cobra. Ele estava vivendo
nas cabeceiras de um pequeno igarapé,
e resolveu guardar a escama junto com
suas coisas, sem dar muita importância.
Então muitas cobras, de diferentes tipos,
apareceram, cobras que ele nunca tinha
visto. O pajé lhe disse que as cobras vieram
atrás de alguma coisa que ele tinha, que
pertencia a uma cobra, e que ele tinha que
se livrar daquilo. O homem então jogou a
escama no rio, mas a água estava muito
rasa, na vazante. A noite o igarapé encheu
e muitas cobras vieram, seguidas pelos
peixes. O lugar onde ele tinha atirado a
escama virou uma lagoa tão cheia de peixes
que se tornou o melhor lugar para pescar".
Os Marajoaras tinham uma profunda
crença, temor e respeito pelas forças da
natureza. As chuvas e a seca lhes podiam
trazer fartura ou miséria. Eles acreditavam
que as forças da natureza, personalizadas
na forma de animais e seres sobrenaturais,
deviam ser respeitadas e veneradas. Dos
animais mitológicos, o mais importante era
uma grande cobra ancestral, que em alguns
mitos amazônicos é considerada a mãe de
todos os peixes ou a cobra-canoa que trouxe
os primeiros humanos para habitar a terra.
Seja qual for o mito em que os Marajoaras
acreditavam, sabe-se que a cobra tinha uma
importância fundamental nas suas vidas,
provavelmente por causa de sua ligação
com a procriação dos peixes e a origem
da vida. Em diversas urnas funerárias
femininas, há braços representados por
cobras, cujas cabeças apontam para o
ventre. Os desenhos no corpo desses répteis
são triângulos, losangos e linhas sinuosas,
que encontramos também em quase todos
os objetos de cerâmica Marajoara.
Muitas das vasilhas de cerâmica, como
pratos e tigelas, eram usados para servir
comida em festas e rituais. Era preciso
agradecer aos espíritos dos antepassados
a boa sorte com a pesca e reprodução
de peixes, tartarugas e outros animais
aquáticos para alimentação. Não só a cobra,
mas outros animais como lagartos, jacarés,
tartarugas, morcegos, urubus-rei, corujas,
macacos e escorpiões, eram representados
na cerâmica. A intenção não era a de
simplesmente retratar seres da natureza,
mas principalmente relembrar estórias
importantes, que falavam sobre crenças e
proibições, sobre a origem da vida e sobre
a ordem que regulava o delicado equilíbrio
entre os seres da natureza.
Os Motivos Ornamentais da Cêramica Marajoara
Os Marajoaras produziam cerâmica simples, para cozinhar e preparar alimentos, e também uma cerâmica mais
decorada e elaborada para servir alimentos e bebidas em festas. Além disso, produziam toda uma variedade de objetos
rituais tais como banquinhos para os pajés e chefes, estatuetas usadas em rituais de cura, pingentes, tortuais de fuso,
ornamentos para lábios e orelhas, assim como frascos e uma espécie de concha com um canudo para ingestão de drogas
alucinógenas.
Os objetos produzidos para festas e rituais eram cuidadosamente decorados com desenhos geométricos, linhas sinuosas,
círculos e espirais combinados de maneira harmoniosa, impressionando pela simplicidade e força comunicativa.
Uma das características dessas representações é a simplificação de formas naturais de animais e humanos através do
emprego de figuras geométricas, utilizando uma simetria que na maior parte dos casos é apenas aparente. As figuras
são frequentemente dualistas ou híbridas, representando mais de um animal ao mesmo tempo, dependendo de como se
interpreta o desenho. A inspiração em seres humanos ou animais é livre, combinando partes do corpo (olhos, bocas,
patas, rabos) e desrespeitando proporções, posições de membros e características anatômicas. A arte Marajoara era
sem dúvida uma arte religiosa e sagrada, no sentido em que buscava transmitir ideias transcendentes ou cosmológicas,
realizando a ponte entre o mundo dos vivos e o sobrenatural.
Com a utilização de um número limitado de símbolos gráficos, combinados com figuras modeladas de humanos e
animais, o povo Marajoara criou uma verdadeira forma de comunicação de suas idéias e crenças, que através da cerâmica
tornaram-se visíveis e permanentes. OsMarajoaras influenciaram e foram também influenciados culturalmente por
outras sociedades amazônicas. Por isso são tantas as semelhanças entre as cerâmicas arqueológicas da região.
As mudanças econômicas, sociais e políticas que operaram-se na Ilha de Marajó também influenciaram outras
sociedades ao longo do rio Amazonas. Em torno do ano 1.000 depois de Cristo, diversos cacicados estavam estabelecidos
na Amazônia, controlando áreas ecológicas importantes, congregando populações densas e produzindo uma cultura
material rica e elaborada. Guerras e alianças eram frequentes, e trocas de produtos e intercâmbios culturais ligavam as
terras baixas amazônicas a outras sociedades do noroeste da América do Sul, América Central e Caribe.
O Começo do Fim
Durante sua trajetória, as sociedades Marajoara passaram por
fases de crescimento e expansão e, por volta de 1100 depois
de Cristo, já dominavam toda a área dos campos da Ilha, com
aldeias também ao longo dos rios na floresta próxima. Depois
deste período, no entanto, começa o declínio, por motivos
ainda não totalmente conhecidos. É possível que o aumento
populacional tenha levado à exaustão de recursos, quando as
áreas mais produtivas já estavam ocupadas, gerando então
conflitos mais frequentes. Alguns tesos são abandonados nesta
época, talvez por causa de guerras.
Mas foi o período em torno de 1300 depois de Cristo que parece
ter marcado o começo do fim para os cacicados. Há indicações
de que mudanças climáticas importantes tenham acontecido
neste momento, o que pode ter afetado a produtividade dos
viveiros de peixes e outros recursos usados, tais como açaí,
amido de palmeira, mandioca e frutos silvestres. Como muito
do poder dos líderes estava relacionado à sua habilidade de
controlar recursos naturais por causa de seu contato com os
deuses e antepassados, uma crise de abastecimento pode ter
levado à perda da confiança das populações nos seus pajés e
chefes. Além disso, falta de recursos causa fome, doenças e
obriga as pessoas a migrarem. Uma outra hipótese é a de que
índios Aruak que chegam à costa Norte de Marajó por volta de
1300 depois de Cristo, vindos do Amapá, tenham entrado em
guerra com os Marajoara.
Apesar de os cacicados terem perdido poder e controle,
a cultura Marajoara não desapareceu totalmente. As
populações que restaram dos cacicados Marajoara
ainda viviam na Ilha quando os Portugueses aqui
chegaram. Apesar das transformações ocorridas,
que se refletem também em seus costumes, a
cerâmica Marajoara ainda era produzida, mesmo em
comunidades localizadas longe dos tesos, e vários dos
rituais ainda eram realizados.
Os enterramentos em grandes urnas parecem ter sido
abandonados, assim como as grandes festas, mas a
cultura permaneceu entre as populações sobreviventes.
DuranteosséculosXVIIeXVIII,noentanto,asguerras
com os portugueses, a missionização e a colonização
levaram ao desaparecimento ou deslocamento das
populações indígenas de Marajó.
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Revistapzz

  • 1.
  • 5. arte, educação e cultura | 5
  • 6. Diretoria Executiva: Carlos Pará | Laura Santana Projeto Gráfico: José Viana Direção de Arte: José Viana | Ygor Pará Direção de Fotografia: José Viana Comunicação e Marketing: Daniel Rocha | José Vianna | Pesquisa: Carlos Pará | Moacir Pereira | Diego Bragança João Aires. Editor Responsável: Carlos Pará Conselho Poético: Benedito Nunes, Elza Lima, Aldrin Figueredo, Geraldo Mártires Coelho, Gunter Presler, José Roberto Pereira, José Varella, Luis Arnaldo, Célia Maracajá, Jussara Derenji, Moacir Pereira, Chico Carneiro, Albery Albuquerque, Rosa Acevedo, Hilton Silva, Isabela do Lago, Karlo Romulo, Fernando D’Pádua, Edson Farias, Vicente Cecim, Marinilce Coelho, Almandrade, Ná Figueredo, Rosa Arraes, Moema Alves. Distribuição: A Revista PZZ é uma publicação bimestral Editora Resistência Ltda CNPJ: 10.243.776/0001-96 ISSN 2176-8528 Assinatura, números atrasados e Publicidade: (91) 3083-3793 / 9616-4992 e-mail: revistapzz@gmail.com www.revistapzz.com.br Av. Duque de Caxias, 160 Loja 14 | Marco | 66.093-400 Belém - Pará - Amazônia - Brasil A Edição Especial da Revista PZZ nº 11 através dos pesquisadores João Aires e Diego Bragança e do historiador José Varella, apresentam o homem, padre jesuíta, arqueólogo, fotógrafo, museólogo e “ítalo- marajoara” Giovanni Gallo. O seu trabalho, além da evangelização e de organização social foi de resgatar a história e ancestralidade marajoara e amazônica. Criador do Museu do Marajó, construiu junto com a Comunidade de Santa Cruz e Cachoeira do Arari (Marajó-Pará) uma das maiores referências arqueológicas do Brasil. A PZZ nº 11 apresenta o Ensaio Fotográfico de Elza Lima com poesias de Otávio Nascimento Júnior (Soure, Ilha do Marajó) uma viagem em direção as belezas do Marajó desbravando rio e sertão; Caminhando em um chão que não tem fundo; Flutuando em um céu que não tem nuvem e não tem ar; Nadando em um mar que não tem água e não deságua revelando um mundo, incerto e sem fundo, profundo, misterioso e belo... AEdiçãoEspecialtrazoartigodaarqueólogaDenise Shaan que aborda a vida dos antigos habitantes do Marajó. Observando as representações na cerâmica marajoara podemos aprender muita coisa sobre as antigas crenças, rituais religiosos, cerimônias e festas que faziam parte da vida nos tesos de um dos povos mais evoluídos culturalmente que existiram na face da Terra. E o Inventário Nacional de Referências Culturais do Marajó – INRC-Marajó, realizado pela Superintendência do Iphan no Pará, constitui uma das pesquisas mais completas em termos de levantamento cultural realizado nessa região da Amazônia Brasileira. A pesquisa abrangeu as três microrregiões que compõe a Mesorregião Marajó com seus 16 municípios. O quadro geral nos dá cerca de 750 bens catalogados, 700 contatos além de um grande acervo fotográfico com belas imagens do cotidiano marajoara. Boa Leitura Carlos Pará - Editor da Revista PZZ
  • 7. Giovanni Gallo Ensaio Fotográfico por Elza Lima Cultura Marajoara Origens e significados por Denise Pahl Schaan OMarajó EnsaioFotográfico porElzaLima Artista doMarajó 26 59 06 72 pág. pág. pág. pág.
  • 8. fotografias por Elza Lima e poesias de OtávioNascimento O MarajóO Marajó fotoPoesia
  • 9.
  • 10. 10 | documentário A VIAGEM Olhando de uma proa vi o destemido prático conduzir bem a embarcação seguindo em direção a leste onde brilhava o sol cortando as ondas em retas, curvas e parábolas Vi as belezas do marajó desbravei rio e mar até que me assustei... eram gotas d’água no rosto dormente que me acordara derepente quando o cabo do leme quebrou Embalado nas ondas pra lá e pra cá era o movimento singular o único que pudera fazer até que o cabo fosse emendado tudo então foi controlado e a bela viagem continuou.
  • 11. arte, educação e cultura | 11
  • 13. arte, educação e cultura | 13 Neste momento estou só no mundo caminhando em um chão que não tem fundo Flutuando em um céu que não tem nuvem e não tem ar Nadando em um mar que não tem água e não deságua. Aonde vai esse mundo? incerto e sem fundo será a canção da orquestra do oceano profundo Já não entendo mais nada só sei que viajo nado no céu e flutuo no mar ando nas nuvens sem sair do lugar
  • 15. arte, educação e cultura | 15
  • 16. 16 | documentário AOS CAMPOS DO MARAJÓ
  • 17. arte, educação e cultura | 17 Às vezes seu moço até me surpreendo com as coisas que talvez nunca vi com o vaqueiro no campo correndo e até mesmo o queijo de jabuti Belos mui belos pássaros vivendo verde mui verde nós temos aqui vejo ainda o potro pequeno comendo do quicuio às margens do Lago Arari Levanta poeira menino levanta galopa depressa galopa e canta que ouço longe o som de teu curimbó Deixa no prato traíra e tambaqui carimbó e açaí é em Cachoeira do Arari desbrava os campos do meu Marajó.
  • 18. 18 | documentário MINHAS RAÍZES Sou filho daquele caboclo nato mistura de vaqueiro e pescador uma manada de palavras eu laço e com um anzol sou bom escultor Às margens do rio meu braço te caço sumo nas alvas rimas do criador sustento do povo e afogado mato valente menino que bela tua cor Masco tabaco e respiro da boa arte boto pra correr já fiz minha parte ando ligeiro e ninguém vai me ver Parido bem fui no teu pensamento ferido um pouco mas eu sempre agüento não sou lenda e nem mito estou em você.
  • 19. arte, educação e cultura | 19
  • 20.
  • 21. arte, educação e cultura | 21 Elza LimaFormada em história pela Universidade Federal do Pará, Belém (1979), começou afotografarprofissionalmenteem1985,atuandonaáreada fotografia documental. Participou do projeto Fotoativa de documentação do núcleo histórico da cidade de Belém (1985). Trabalhou na Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves,ondecriouumacervofotográficodasmanifestações culturais da Amazônia e, em convênio com a Fundação Nacional do Índio, realizou a documentação fotográfica das tribos indígenas da Amazônia Legal. Recebeu o Prêmio José Medeiros, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1991); bolsa do Kunstmuseum des Kantons Thurgau, Suíça (1995), onde residiu por seis meses; o Prêmio Marc Ferrez, da Funarte (1996); e a Bolsa Vitae de Artes/Fotografia (2000). Integra o Conselho Curador da Galeria de Arte da Universidade da Amazônia, Belém, desde a sua criação em 1993.
  • 22. 22 | documentário Anúncio . primeira página
  • 23. arte, educação e cultura | 23 Anúncio . segunda página
  • 24. 24 | documentário documentário Fonte: Jornal Diário do Pará - Caderno D - de 25 de novembro de 1987.
  • 25. DIEGO BRAGANÇA DE MOURA é Graduando em Bacharelado/Licenciatura em História, na Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista PIBIC/FAPESPA pelo Museu Paraense Emilio Goeldi na área de arqueologia. JOÃO AIRES DA FONSECA é pesquisador mestre em arqueologia,bolsitadoprogramadeCapacitação Institucional do Museu Paraense Emílio Goeldi (PCI-MPEG). arte, educação e cultura | 25 Giovanni Gallo e O Museu do Marajó: A PRESERVAÇÃO DE UMA HISTÓRIA INVISÍVEL N ascido em 27 de abril de 1927 , em pleno VII ano da Era Fascista de Benito Mussolini, Gallo como costumavadizer,seconsideraumfilhodofascismo, mas não por concordar com as ideais desse projeto político de governo. Mas sim, pelo fato de aos seis anos de idade, sua mãe o ter matricula na Primeira Série do Primário no colégio Pagella, e assim, como era costume na época, transformando de forma involuntária o Balilla Giovanni Gallo portador da carteira do partido fascista de Nº 1.539.899, mais um membro seguidor da ideologia facista do Duce Benito Mussolini. De infância difícil e condição de vida muito precária, Gallo e sua família sofriam com a escassez de alimentos, devido à guerra em que a Itália estava desenvolvendo sobre o comando de Mussolini, onde os gêneros alimentícios como, batata e trigo, estavam reservados a manutenção do exército e, é claro, aos mais ricos. Restando assim, apenas carne da cabeça do boi, que era mais barata, e uma espécie de pão com manteiga sem sal, a alimentação básica da maioria das famílias pobres da Itália do começo do século XX. Por Diego Bragança e João Aires. Imagens cedidas pelo Acervo d'O Museu do Marajó
  • 26. 26 | documentário Essa vida fez com que ainda muito cedo, o pequeno Giovanni assumisse grandes responsabilidades na família, sendo responsável pela casa e por seus irmãos mais novos na ausência dos pais. Preparava seus irmãos e levava-os para o jardim de infância, tarefa que exigia extrema habilidade e preparo físico, para controlar seus irmãos no caminho da escola, além disso, fazia as compras e preparar o almoço de sua família. Atividades a primeira vista simples, mas que estavam sendo desenvolvidas por uma criança com menos de 10 anos de idade, que já mostrava maturidade exigida pela guerra sofrida. Assim o pequeno Galinho tinha que se desdobrar entre as afazeres da vida de um “pai” de família com os cuidados com seus irmãos mais novos, as obrigações da escola, além de superar as dificuldades que a guerra provocava, com a pouca disponibilidade de alimentos, fato que se agravava ainda mais, devido à situação financeira precária da família. Mas mesmo com todos esses obstáculos em seu caminho, esse pequeno italiano de origem podre, conseguiu superar as dificuldades de uma infância entre guerras, e as consequências que um conflito como sofrido por ele acaba trazendo. Sofrimentos como a morte de seu pai em 1943, em um bombardeio militar Américo. Mas outras dificuldades ainda se apresentariam, que ele assim como as já mencionadas, superaria. A VIDA RELIGIOSA Aos onze anos de idade entra no Piccolo Seminário di Giaveno, depois que um vigário da sua igreja perguntar se ele queria entrar para a vida religiosa se tornando padre. A resposta positiva foi imediata de forma espontânea, sem Gallosobaeducaçãofascista
  • 27. arte, educação e cultura | 27 pressão de familiares ou da sociedade. Afinal ele não possuía muitas opções de escolha a seguir, a não ser a escola e a igreja. Mas só no último ano do ginásio aos 16 anos, que o jovem italiano, ingressa na Companhia de Jesus. O reitor do ginásio um fã dos jesuítas, entregou sobre sigilo, um livro encapado com o seguinte título: “Si vis perfectus esse: Se você quiser ser perfeito’... entre na Companhia de Jesus.” A fama dos padres jesuítas como os mais inteligentes do mundo era bastante conhecida, o que despertou o entusiasmo do adolescente Giovanni em se tornar um aclesiástico classe A. Então, preparou-se muito para a admissão, o que resultou com a 2ª colocaçãogeral,eassimopassaporteparaaCompanhiadeJesus e o Liceu clássico em Cueno (Itália) em 8 de setembro de 1943. Já no noviciado, recebe uma educação muito rigorosa repleta de proibições e regras, fato muito condenado e contestado, apenas em sua consciência, por Gallo. Pois, o silêncio fazia parte da vida no seminário, muito pouco se falava, era uma lei a ser seguida. Nessa educação severa, até um simplesbanhoerarealizadodeformavigiada.“Diotivede!Deusestáteolhando!” ApesardeGiovanniGalloconsiderarasua“formaçãoalémderidículaeabsurda, [que] beirava ou talvez mergulhava na morbidez.” A obediência sempre se fez presente em sua vida religiosa. Ele nunca desobedecia ou questionava as regras, leiseordensdaeducaçãonaCompanhiadeJesusedoLiceu.Sempreseguiatodos os ensinamentos e colocava-os em praticava de acordo como lhe foi ensinado.
  • 28. 28 | documentário OS ESTUDOS ALÉM DO SEMINÁRIO NaVillaSanPaolonaperiferiadeTurim(Milão,Itália),cursou dois anos de Filosofia na Faculdade de Filosofia em Gallarate. Onde como diversão e para ocupar o seu tempo, desenvolvia atividades como cuidar da horta e das vacas, atividade que segundo ele, em sua autobiografia realizava sozinho. Cursou também devido a sua escolha profissional a Faculdade de Teologia em Chieri (Turim, Itália), conquistando com o fim de seus estudos em teologia a ordenação sacerdotal. A facilidade para aprender novas línguas, lhe propiciou a fama de grande linguista, levando o seu superior o Provincial Padre Emilio, a destiná-lo aos estudos em uma Faculdade de línguas - Cá Foscari de Veneza ou o Istituto Orientale de Nápoles. Mas ele ainda teria uma surpresa, feliz por seu destino decidido, esperava pelo dia da viagem para estudar uma nova língua, quando recebe um envelope lacrado das mãos do provincial que havia, anteriormente, destinado-o aos estudos das línguas. Abriu o envelope pensando se tratar do nome do seu destino para alguma faculdade de línguas, mas teve uma surpresa, é destinado para uma escola na cidade de Lecce. Nessa cidade o colégio de Argento, recebia filhos de ricos latifundiários, onde Padre Gallo ensinaria religião. O destino inesperado, mudando todos os seus planos, não mudou sua obediência característica, ele não exigiu nenhuma explicação e seguiu o seu rumo imprevisto e não esperado. Mas depois da Teologia, antes de entrar de vez nas atividades paroquiais, os padres jesuítas passavam por uma última provação, ou melhor, um estágio, que no caso dele foi seguir para Gandia em Valência, Espanha. Aqui pode colocar seu espanhol em prática, em meio a vários missionários provenientes de inúmeras nacionalidades. Ainda na Espanha pesquisou sobre o curso de sociologia que desejava cursar, deixando a escolha do seu destino nas mãos do padre Costa, que o matriculou no Institut Catholique em Paris. Mas uma vez entusiasmado com seu destino, não se importou com a substituição do padre Provincial, pois seu destino já estava certo. Mas, novamente, o seu destino não seguiria os rumos desejados. “Em lugar de Paris, o senhor vai à ilha de Sardenha!”, palavras ditas, pelo novo Provincial Padre Giovanni Colli. Modificando mais uma vez os planos desse missionário frustrado. Gallo no Seminário, Turim, Itália.
  • 29. arte, educação e cultura | 29 Em Sardenha sua primeira experiência de trabalho aos 32 anos, a sua rotina era bastante repleta de compromissos. Entre confissões, missas, pregações, visitas aos doentes, o agora padre Giovanni Gallo, parava apenas na hora do almoço. Após uma soneca, voltava novamente para a sua rotina, seguindo para outras comunidades. Na Sardenha adquiriu uma grande experiência devido ao seu dia-a-dia intenso, com o desenvolvimento das suas atividades pastorais e os serviços sociais que acabava acumulando. Da Sardenha foi transferido para a Suíça (1962), com a missão de “salvar”, os irmãos italianos emigrados, da ameaça que segundo a igreja católica, era representada por dois “inimigos mortais”: os protestantes e os comunistas que cresciam cada vez mais na região. Já na Basiléia, na Suíça, em atividade, foi responsável pela fundação da Missão dos Emigrados Italianos no Biserck, sendo membro do Conselho Nacional dos Missionários na Suíça. Criou também um jardim de infância, para atender os filhos de italianos que trabalhavam boa parte do dia e não tinha com quem deixar os seus filhos. Buscando oferecer uma assistência a esses italianos que em busca de melhores condições de vida, migravam para a Suíça em busca de trabalho. Após, 5 anos de atividade na Suíça ajudando seus patriotas e muitos suíços também. O Padre Giovanni Gallo recebeu do presidente da Itália o Título di Cavaliere della Stella della Solidarietá Italiana (1967), titulo conquistado pela luta em favor dos italianos na Suíça. Luta essa que teria ido além de um simples conforto e apoio religioso, na Suíça acabou desenvolvendo obras que facilitavam a vida de muitos italianos e suíços também, deixando a esses, um bom suporte social e econômico. Padre Gallo sentiu então que sua missão em terras suíças já havia sido comprida, apesar de saber que havia muito a ser feito, propiciou uma infra-estrutura social e econômica para muitos italianos e suíços. Partindo assim, para uma nova missão em terras desconhecidas. Basiléia, Suiça
  • 30. 30 | documentário BRASIL: O DESTINO FINAL Após oito anos de trabalhos na Suíça, e da recusa de tornasse um superior geral da Escandinávia, que significava ser o responsável das missões italianas na Suécia, Noruega e Dinamarca, por não gostar da ideia de trabalhar com muita burocracia e diplomacia, decisão talvez tomada devido as ações que presenciou de alguns de seus superiores, que se desvirtuaram em contato com o poder e o dinheiro que o cargo de um Provincial possuía. Fatores que fizeram o Padre Giovanni Gallo, se oferecer para atuar na América Latina, em qualquer país de língua espanhola, pois, falava muito bem o castelhano, e assim teria facilidade na comunicação. Mas lhe foi destinado o Brasil, não uma escolha pessoal, como ele mesmo dizia, mas uma escolha proveniente de sua carreira e aceita devido sua obediência jesuítica. Embarcou no navio cargueiro Henrique Lage, seguindo em direção a seu novo destino, deixando para traz, segundo ele, a posição de padre classe A, e as conquistas merecidas com o trabalho desenvolvido na Suíça, para se aventurar em uma terra totalmente desconhecida, o Brasil. Desembarcou em 1970 em Salvador, Bahia, que assim como todo o Brasil, estava sobre uma Ditadura Militar, fato que contribuiuparaastrêsprisõesdorecémchegado.Entusiasmado com as paisagens do país, em viagens desenvolvidas para conhecer as obras religiosas desenvolvidas pela igreja, tira inúmeras fotos de tudo que lhe despertava o interesse, mas acaba sendo confundido com um espião do comunismo, sofrendo com isso revistas e interrogatórios intermináveis nas cadeias, cada vez que a sua figura estranha projetava a sua câmera para um cenário, o que lhe dava características em tempos de ditadura, um ar de espião estrangeiro. O interessante é que essa sua paixão pela fotografia, acabou lhe rendendo mais tarde inúmeros prêmios fotográficos como: O 2º prêmio no Concurso Fotográfico da SECTET e Y.Yamada: Retrato Pará (1980); o 4º Prêmio no Concurso Fotográfico da Universidade do Pará, “Preserve a Memória da sua cidade” (1981); e o 5º Prêmio de Menção Honrosa, do Concurso Nacional de Fotografia, “Aleitamento Materno” de Porto Alegre (1982). Além de exposições como a ocorrida no Teatro da Paz como o título “O Meu Marajó”, em 1982. Exposições essa que mostrou o resultado de seu trabalho, após anos registrando as mais diversas situações encontradas na ilha de Marajó. BairrodaFloresta,Maranhão.porGiovanniGallo
  • 31. arte, educação e cultura | 31 Gallo participando da cultura maranhense - Bumba meu Boi
  • 32. 32 | documentário Viajando por todo o Brasil para conhecer as obras da Companhia e posteriormente escolher seu destino de atuação. Tem proposto pelo Padre Tarcísio, o Maranhão em conversa: “ - Gallo, eu tenho um lugar muito bom, feito na medida para você trabalhar. Porém não o mando lá, porque tenho medo.” [Pe. Tarcísio] - Que lugar é esse? Perguntei curioso. [Pe. Gallo] – É o Marajó. Você faria muito bem, mas o bispo de lá, já me queimou muitos padres. Tenho medo: se você for lá, ele o queima. Acho melhor você ir ao Maranhão, vai ser vigário no bairro da Floresta em São Luís.” [Pe. Tarcísio] Então, Giovanni Gallo seguiu para o Maranhão, para atuar como vigário no bairro da Floresta em São Luís. Ao chegar ao bairro, mais especificamente, na Rua Tomé de Souza, deparou-se com um lugar sem iluminação, de fornecimento de água precária, com esgoto a céu aberto. Não podendo deixar seu rebanho para ficar na mordomia, recusa a oferta de ficar na igreja de Nossa Senhora dos Remédios, no bairro nobre da cidade. Decide morar em uma casinha na própria Rua Tomé de Souza, para ficar mais perto do seu povo e da igreja de Santo Expedito, onde atuaria como vigário. Em contado direto com a comunidade, além de atuar nas obras religiosas, também acabava sendo uma espécie de amenizador de brigas chegando a intervir por várias vezes em inúmeras delas. Atuava também como motorista, transportando feridos, doentes e mulheres grávidas no momento de ter os seus filhos para o hospital. Como sempre, Padre Gallo ultrapassava as suas obrigações religiosas, e introduzidonascomunidadesondeatuava,desenvolvia funções fora do seu programa de religioso.
  • 33. Em uma igreja onde as portas serviam como trave para as crianças jogarem futebol, e as paredes como tabela de preso para o corte de cabelo. Decidiu muda essa realidade, iniciando a reforma da mesma, contando com a ajuda da população, que limparam, pintaram e fizeram melhorias na igreja, a tempo de a inauguração se realizar perto da grande festa do padroeiro do bairro. Embalado pelas obras de limpeza da igreja, transformaram barracões e salões em capelas e centros comunitários, onde além de servirem de locais para cerimônias religiosas, seriam oferecidos cursos profissionalizantes, para a população desse bairro, atuando em obras assistencialistas com o objetivo de mudar a realidade social da comunidade. Sem dúvida essa foi uma das atuações mais importantes no estilo do Pe. Giovanni Gallo de ação integrada. Mas após um ano e meio de forte atuação, o que contribuiu para que quase o religioso virasse nome de rua, a igreja através do Provincial Padre Botturi, mais uma vez determina a sua transferência, dessa vez para o Marajó. IgrtejadoSantoExpedito,BairrodaFloresta,Maranhão
  • 34. Nessa terra que segundo Giovanni Gallo era “o paraíso para os fotógrafos e o inferno para o material fotográfico”, ele desembarca em fevereiro de 1973, na Vila de Jenipapo no município de Santa Cruz do Arari. A Vila de Jenipapo era um antigo acampamento, que servia de base para os pescadores em época de pesca. Nesse local teve uma visão chocante, para alguém acostumado com as atividades na Suíça, e que até mesmo para o vivido no Maranhão, era uma realidade adversa. Estava em uma cidade perdida no interior da ilha, sobre as águas, formada por palafitas, sem saneamento básico, muito menos fornecimento de água potável ou energia elétrica, sem telefone e de alimentação precária. Com o choque inicial ele sabia que teria muito trabalho a fazer neste local esquecido por todas as autoridades governamentais, mas com sua experiência decidiu seguir em frente. Alias essa tinha sido sua escolha, pois poderia ter aceitados os frutos dos seus trabalhos na Suíça. Mas tinha certeza que sua atuação aqui mudaria muitos aspectos na sociedade local. MARAJÓ, DO PARAÍSO AO INFERNO Vila de Jenipapo, Ilha do Marajó
  • 35. "A vila de Jenipapo nasceu num lugar errado, num buraco. Nasceu para ser um acampamento de pesca, uma base provisória durante o verão quando a terra está estorricada [...] durante grande parte do ano, todas as casas ficam isoladas pelas águas: não por acaso Jenipapo é um grande conglomerado de palafitas, que eu carinhosamente chamava de pequena Venezia." [Giovanni Gallo, O homem que implodiu] "A minha chegada a Jenipapo, uma vila de palafitas perdida no interior do Marajó, foi bastante chocante [...] me encontranva no fim do mundo, sem água, sem luz, sem telefone, com uma comida precária, com a previsão de um trabalho difícil. Confortava-me o fato de ter escolhido uma missão que, apesar de difícil, sem dúvida, guardaria para mim muitas satisfações como padre e como homem." [Giovanni Gallo, O homem que implodiu] Vista aérea da vila de Jenipapo, Ilha do Marajó
  • 36. Pescadores de Jenipapo por Giovanni Gallo
  • 37. COOPERATIVA DE PESCA Ao chegar na vila de Jenipapo em fevereiro de 1973, padre Giovanni Gallo recebeu da Prelazia de Ponta de Pedras, na figura do Bispo Dom Ângelo Maria Rivato, a missão de criar no município de Santa Cruz do Arari e Jenipapo, uma cooperativa de pesca. Algo que já estava sendo posto em prática no município de Ponta de Pedras. De posse dessa tarefa, o padre recém chegado se deparou com alguns problemas. Primeiro não sabia como funcionava uma cooperativa, pois nunca havia atuado em uma. Segundo, não entendia nada sobre pesca e os pescadores só tinham a ideia que com uma cooperativa chegaria muito dinheiro para eles. Aqui estava a problemática, a ignorância tanto de um lado como do outro sobre o tema cooperativa. Pesca do mato por Giovanni Gallo
  • 38. “Desde o começo fiquei à espreita, para captar todas as mensagens, mesmo as mais insignificantes, uma palavra de gíria, uma história antiga, um jeito de ser, sobretudo aquelas coisas que não valem a pena contar.” Giovanni Gallo
  • 39. arte, educação e cultura | 39 Para que os pescadores pudessem aperfeiçoar a sua profissão, conseguiu que em Vigia aprendessem técnicas de como pescar no mar. Pois, os pescadores do Marajó, realizavam em sua maioria uma pesca artesanal, conhecida como pesca no mato. Onde nos rios da região, principalmente, quando as águas estão baixas, os peixes ficam mais fácil de serem capturados. E devido a essa falta de experiência, tinham medo de realizar a pesca no mar. Mas perceberam que essa atividade era muito mais fácil e lucrativa para eles. Mas essas experiências não contribuíram muito para a construção de uma cooperativa. Como padre Giovanni Gallo mesmo falou: “A cooperativa nem nasceu, abortou.” Seu objetivo era que essa organização, possibilitasse através de políticas de conscientização e aperfeiçoamento dos profissionais da pesca, o sustento e subsistência dessas famílias durante o ano todo. Buscando acabar com as explorações das geleiras, que pagavam muito pouco pelo trabalho dos pescadores da vila de Jenipapo e Santa Cruz do Arari. Mas padre Gallo não mediu esforços para conhecer mais sobre o assunto. Partiu com alguns pescadores, para passar alguns dias nos rios da região praticando a pesca do mato. Nessa experiência anotou tudo o que observava, buscando assim, compreender um pouco mais sobre a temática. Mas a falta de recursos financeiros e a deficiência no conhecimentosobreotematornoumuitodifícilaconcretização da missão recebida por padre Giovanni Gallo. Com o dinheiro que recebeu da Prelazia de Ponta de Pedras, para iniciar o projeto cooperativa de pesca, decidiu em conversa com a então prefeita de Santa Cruz do Arari, Gessy Pamplona, atender uma necessidade emergencial da cidade. Ficou então acordado por investir o dinheiro na construção de um posto médico em falta no município. Assim o dinheiro seria aplicado em algo que também traria muitos benefícios para a comunidade. O Projeto Cooperativa de Pesca ficou para traz, mas o objetivo de garantir uma fonte de renda para a comunidade e, assim desenvolver a região, sempre estiveram nos planos do padre. Levando-o a desenvolver ações como o Projeto Piranha e, posteriormente, o seu maior projeto, O Museu do Marajó. PescadoresemVigia
  • 40.
  • 41. “Deixando para lá toda forma de inútil modéstia, posso dizer que conheço este recanto do Marajó como poucos. Não fiz a minha aprendizagem engolindo monografias eruditas, mas através de uma caminhada na água, na lama, na ferroada.” Giovanni Gallo
  • 42. 42 | documentário O PROJETO PIRANHA Padre Gallo foi muito mais além, e para desenvolver uma atividade capaz de adquirir recursos a serem aplicados em obras de melhorias na própria comunidade, criou o Projeto Piranha. “O que não falta no Arari são as malfadas piranhas que, enfeitadas de lendas e contos horripilantes, podem ser um ótimo produto de exportação, quando devidamente embalsamadas.” Assim improvisou um laboratórios e produziu mais de 12.000 exemplares de piranhas embalsamadas, que foram vendidas em toda a Europa. Com o dinheiro das vendas, realizaram inúmeras obras em Santa Cruz do Arari e Jenipapo. Um trapiche comunitário, para as variações de maré e de estação. A construção de um cemitério seco, para os tempos de enchente. A pista de pouso para aviões, de 800 metros, devidamente cercada. A construção de 350 metros de estivas com esteios de acapu e frechais de maçaranduba, e de um centro comunitário onde eram oferecidos cursos de artesanato para a comunidade, além de servir de escola e jardim de infância. Vale ressaltar que a Projeto Piranha não foi uma agressão a natureza. Mas sim, uma valorização do produto da pesca, pois, as piranhas que antes eram desprezadas e consideradas como dejetos pelas indústrias que exploravam os pescadores do Jenipapo, acabavam sendo utilizadas como alimentação para porcos. E com o projeto piranha, o que antes era descartado, se transformou em bibelôs na Europa, multiplicando o lucro do projeto por mil. SecagemdaspiranhasembalsamadasporGiovanniGallo
  • 43. “ Aqui no Arari as piranhas são os moradores mais numerosos, só cedendo o passo às lombrigas, com a concorrência das pragas. No fichário da Faculdade de Zoologia, a piranha tem um nome meio esquisito: Serrasalmus rhombeus: serrasalmus, porque as escamas ventrais formam uma rerrilha com as pontas voltadas para trás; rhombeus, já que tem a forma de um rombo [...] Os índios, que a conheciam intimamente, a batizaram “Pirâi”, isto é, “corta-pele” [...] Goeldi a considerava um animal de rapina, o mais perigoso da América Equatorial e, até mesmo, dos peixes, dizia também que se Dante a tivesse conhecido, ter- lhe-ia dado um lugar de honra no inferno, entre os instrumentos de suplício. Queria descobrir se era necessário limpá-las das entranhas ou simplesmente fazer tratamento com formol [...] Uma noite, na minha palafita perdida na lagoa de Jenipapo, tirei a camisa e me concentrei para criar a minha obra de arte: só eu e Deus. Com calma e todo cuidado estava injetando o líquido na bichinha, que eu mesmo tinha pescado da janela de casa, quando senti uma certa resistência, porque a agulha era muito fina. Carreguei a mão, na marra. Foi nesse momento que aconteceu o desastre. Nem sei o que foi: quiçá, a seringa estourou ou a agulha escapuliu. Só lembro que o meu rosto, de repente, pegou fogo, estava lavado de formol! O que é pior, naquela experiência estava usando uma solução muito concentrada. De repente fiquei cego, com a cabeça que parecia explodir. Tive vontade de pedir socorro, mas compreendi que não adiantaria nada. Isolado como estava, não podia ser ajudado por ninguém [...] Só uma idéia, bem clara na minha cabeça: água, devo chegar à água! [...] Devagarinho, cheguei ao banheiro e mergulhei a cabeça no tambor cheio de água. [GALLO, 1996, p. 171-2]
  • 44.
  • 45. arte, educação e cultura | 45 Aplicação de formol por Giovanni Gallo
  • 46. 46 | documentário Jenipapo no período das cheias por Giovanni Gallo EstaçãodaslamasporGiovanniGallo Oproblema da falta de infra-estrutura na vila de Jenipapo, principalmente na época das cheias, sempre se apresentou como um obstáculo a ser enfrentado pelos moradores da região. Problemas de locomoção dos moradores, que no verão tinham que se equilibrar sobre as terruadas ou tentar desviar da lama. E no inverno correrem o risco de se aventurar nas águas repletas de piranhas, além de as crianças estarem sob o perigo de afogamento. Onde a única forma de transporte existente seriam as canoas, conhecidas como casco pelos moradores. Buscando solucionar esses problemas, padre Gallo com o dinheiro arrecadado com o projeto piranha construiu 350 metros de pontes, interligando as casas da vila, garantindo assim, mais mobilidade e segurança para a população.
  • 47. arte, educação e cultura | 47 Estivas na Vila de Jenipapo por Giovanni Gallo • Acervo d'O Museu do Marajó
  • 48. 48 | documentário Igreja de Nossa Senhora de Nazaré de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo
  • 49. arte, educação e cultura | 49 Estivas sobre a lama por Giovanni Gallo Osucesso do Pe. Giovanni Gallo com os resultados do Projeto Piranha lhe garantiu a simpatia da população, mas acabou atraindo também alguns inimigos, que não entendiam como o padre conseguiu tamanho sucesso sem os investimentos da igreja ou de terceiros na viabilização de seus projetos. O fato de o religioso ter conquistado prestigio e a simpatia da população, pelas suas atividades em benefícios da mesma, tenha talvez contribuído para que se enxergasse nesse homem, um possível adversário político, fato que fez com que algumas pessoas, atrapalhassem os seus projetos com histórias difamatórias com o objetivo de diminuir o seu prestigio perante a comunidade. Mas mesmo com as dificuldades encontradas, ele tinha mais um projeto a realizar na cidade, com o objetivo de desenvolver a comunidade no aspecto econômico, social e cultural.
  • 50. 50 | documentário MARAJÓ, FONTE INESGOTÁVEL DE INFORMAÇÕES Se pudermos dizer quando de fato O Museu surgiu em Santa Cruz do Arari, sem dúvida foi a partir de um presente incomum. Seu Vadico, um amigo e colaborador, entregou um embrulho, sem falar nada colocou em cima da mesa. Pe. Gallo curioso perguntou do que se tratava. - Aqui estão uns negócios que não prestam, como o senhor gosta. [Seu Vadico] Tratava-se de cacos (artefatos arqueológicos) de cerâmica marajoara, os mesmos que os “búfalos pisam e os homens chutavam faz mais de mil anos.” A partir desse presente que Pe. Giovanni Gallo decidiu coletar objetos e, sobretudo, informações sobre esse mundo misterioso e encantador que é o Marajó. Em outras palavras, nasce a partir deste momento, a ideia de se criar um museu com o objetivo de preservar, valorizar e divulgar a cultura da ilha de Marajó e, principalmente do povo marajoara. Desenvolveu assim, inúmeras pesquisas sobre os mais variados temas culturais presentes na ilha de Marajó. Entre essas pesquisas realizadas, a desenvolvida sobre a arqueologia da ilha de Marajó, coletando artefato da cerâmica marajoara. Resultou em 1990, após vinte anos de trabalho sobre o assunto, na publicação do livro Motivos Ornamentais da Cerâmica Marajoara Modelos para o Artesanato de Hoje. Livro produzido com o objetivo de ajuda no trabalho da bordadeira, do serigrafista, do pintor, do carpinteiro. Um trabalho com a missão de servir como suporte para auxiliar os artesões em seus trabalhos, facilitando a reprodução dos motivos artísticos da fase marajoaras, e assim dinamizar a economia desses homens e mulheres. Mas suas pesquisas não se limitaram a arqueologia da ilha, as suas experiências sofridas, seja nos campos do Marajó, entre os vaqueiros e os moradores das cidades, ou nos rios da região realizando a pesca no mato, contribuíram para que o padre adquirisse um conhecimento muito significativo sobre os aspectos culturais e sociais da região. Esse fato contribuiu para que ele construísse vários artigos, que foram vinculados nos jornais O Liberal e O Estado do Pará, de forma semanal. Aos domingos tratava de temas variados, como cultura, esporte, lazer, política, economia e sobre o social observado nas cidades do Marajó. Após anos escrevendo para esses jornais, seu amigo particular Dalcídio Jurandir, o maior escritor paraense, incentivou-o: “Tire uma coleção de reportagens e faça um livro que será o retrato da terra e da gente de Jenipapo. Lendo-o, fico com as minhas raízes marajoaras estremecendo.” E foi o que ele fez, reuniu os seus melhores artigos e publicou o livro, Marajó a ditadura da água (1980), que teve duas edições esgotadas, com 9.000 exemplares, apenas dentro de Belém. Este livro segundo Hildegardo Nunes: “...retrata com fidelidade a vida na região do Marajó, principalmente na Vila do Jenipapo. Apesar de sua formação religiosa, Giovanni Gallo consegue tratar de forma fiel assuntos não muito fáceis para um religioso, como, por exemplo, a macumba. É fantástico o que ele consegue passar nesse livro.” [Jornal O Liberal de 13/01/1996]
  • 51. arte, educação e cultura | 51 Cerimônia da Umbanda por Giovanni Gallo CulturapopularnaViladeJenipapoporGiovanniGallo
  • 52. Santa Cruz do Arari O INÍCIO DO PROJETO: SURGE UM MUSEU NO MARAJÓ Em primeiro lugar, devemos tentar responder a pergunta que perseguiu Pe. Giovanni Gallo por toda sua vida, a partir do momento que colocou o projeto museu em prática, para que possamos entender o objetivo de sua viabilização. Por que um museu no Marajó? Em um local sem infra-estrutura, com um acesso por terra precário e fluvial também, de comunicação por telefone deficiente e um abastecimento de água mais ainda. Um fornecimento de energia elétrica muito precário, por poucas horas por dia e com muitos blecautes. E para completar as dificuldades, para a instalação desse projeto, faltavam hotéis e outras estruturas complementares a qualquer projeto turístico. Mas mesmo com todas essas dificuldades apresentadas, Pe. Giovanni Gallo recusou ao longo dos anos propostas tentadoras de mudança d’O Museu do Marajó, para outras cidades que apresentavam uma rede de infra-estrutura mais desenvolvida como: Soure, Ponta de Pedras e a própria capital Belém do Pará. Toda essa recusa da mudança da sede d’O Museu do Marajó, para um local mais estruturado, está ainda nos dias de hoje baseada na filosofia que domina os princípios do museu, de “preocupação fundamental com o homem, não somente como objeto de pesquisa, mas também como meta e objetivo.” Em entrevista certa vez em um programa de TV, foi feita uma pergunta ao padre giovanni: “No Museu, o seu interesse maior será a pesca ou a pecuária?” Pergunta que para Padre Gallo, pode ter sido feita de forma ingênua ou maliciosa. Mas a resposta já estava na ponta da língua: “O homem, o homem que pode ser pescador, vaqueiro, fazendeiro ou marreteiro, o homem que carrega consigo uma cultura em fase de extinção, o homem que inconscientemente está destruindo o seu habitat, o homem humilde que terá que enfrentar um futuro apavorante se não forem tomadas providências a fim de adaptar aos novos tempos as estruturas sócio- econômicas.”(Entrevistas de Padre Giovanni Gallo na TV Cultura)
  • 54. 54 | documentário BezerrodeduascabeçasporGiovanniGallo PARTINDO DESSES PRINCÍPIOS O Museu do Marajó assumiu a empolgante tarefa de ser o ponto de partida de todo um complexo de iniciativas, para um programa integral de desenvolvimento, especialmente de um desenvolvimento que utilizaria valores culturais como, histórias e estórias, lendas, costumes, crenças e tradições da terra, e através desses elementos culturais, promoverem o desenvolvimento da região. Sendo definido assim, como um misto de museu comunitário, gabinete de curiosidade e ecomuseu, que possui uma relação de afinidade com a população e o território onde está desenvolvendo suas atividades, comportando-se como elemento de preservação e divulgação dessas micro-culturas, ou seja, dessas culturas mais específicas. Sendo assim, no Museu do Marajó a população local se vê representada em todo o seu acervo, como um espelho dessas comunidades, onde procuram informações sobre o território, as populações e as culturas que as antecederam e as permanências observadas através das gerações. Assim, a população busca construir uma identidade local, baseada na apropriação dessas culturas, que no caso refere-se a cultura marajoara, formulando sua construção, com a valorização das histórias ou do território de origem, que podemos chamar de culturas imaginadas. Inventando assim uma tradição, que adota a cultura marajoara, já extinta, como elemento que justifica suas origens, como homens e mulheres marajoaras.
  • 55. Interior do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo
  • 56. 56 | documentário “No nosso museu, o homem marajoara é doador e receptor. Ele é a maior fonte de informação e no mesmo tempo o maior beneficiado. Nesta perspectiva, o nosso museu tem um ciclo completo: nasce da comunidade, cresce com a comunidade e volta à comunidade. Agora é fácil entender porque o museu aceitou o desafio de escolher um lugar carente das infra-estruturas essenciais. Porque assumiu o compromisso de promover estas infra- estruturas, provocando o desenvolvimento do homem através da cultura.” [Giovanni Gallo] A resposta para esta questão está no centro de todo seu acervo, o homem marajoara. Para Pe. Gallo: Desta forma, O Museu do Marajó nasce de modo informal em Santa Cruz do Arari em 1973. No inicio estava atrelado a Associação Civil Obras Sociais da Prelazia de Ponta de Pedras, como uma das atividades sociais da igreja católica, funcionando assim, nas instalações do salão paroquial. No seu início, o museu caracterizava-se por expor peças arqueológicas, artefatos típicos do cotidiano do caboclo marajoara, documentos históricos, mas, a maior parte do seu acervo era de animais embalsamados como: o boto, jacaré, insetos e o famoso bezerro de duas cabeças, uma das maiores atrações d’O Museu do Marajó. Característica essa que no início, poderíamos enquadrar o museu em Santa Cruz do Arari, como uma instituição nos moldes dos grandes gabinetes de curiosidade da Europa antiga, por primar, em expor objetos considerados exóticos aos turistas. Após anos de pesquisa para a formação de um museu em Santa Cruz do Arari, em 16 de dezembro de 1981, foi fundada a Associação com o nome de “O Nosso Museu de Santa Cruz do Arari”. Agora independente e autônoma da igreja, adquirindo mais liberdade de atuação em suas atividades sociais.
  • 57. Fachada do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari
  • 58. 58 | documentário Interior do Nosso Museu de Santa Cruz do Arari por Giovanni Gallo lado do posto médico, outrora construído por iniciativa do Pe Giovanni Gallo, o museu teve que se transferir para outra cidade Com a vitória de seus adversários políticos, ficou inviável a permanência de Pe. Gallo e d’O Museu em Santa Cruz. Culminando assim, em 14 de julho de 1983, na Assembleia geral dos sócios, com a mudança da razão social do museu, que deixava de se chamar “Nosso Museu de Santa Cruz do Arari”, para agora assumir a denominação de “O Museu do Marajó”, denominação essa mais abrangente e que se justificava pelo crescimento das atividades da associação, que abrange não mais apenas o município de Santa Cruz do Arari, mas a região do Marajó. Além de transferir a sede do museu para o município de Cachoeira do Arari, local de mais fácil acesso onde o prefeito se comprometeu em facilitar a instalação do museu no município. Mas a construção de um museu em Santa Cruz do Arari acabou atraindo alguns problemas políticos. Pois, este projeto e os benefícios que traria para a comunidade garantiam certos prestígios ao padre Giovanni Gallo, o que provocava a inveja e o ódio de adversários, mesmo que involuntários, que iniciaram uma perseguição política contra o padre. Definindo “o museu como uma iniciativa que, com seus bichos fedorentos, só estragava a cidade.”[GALLO, p.219] O Museu ainda conquistou a doação por parte da prefeitura de um terreno na travessa Benjamin Gaioso, para a instalação do “Nosso Museu”, que estava antes nas dependências do salão paroquial da igreja de São Pedro. Mas em 1983, por problemas políticos, que defendiam expulsar “...aquele museu que só agasalha bichos fedorentos, poluindo a atmosfera da cidade e tirando o ar da Unidade de Saúde.” Pois, O Museu ficava ao
  • 59.
  • 60. Cachoeira do Arari Gallo conta em seu livro O homem que implodiu "Precisava de uma morada. Pedi hospedagem na casa paroquial: me foi negada. Passei umas semanas na casa do prefeito, dr. Edir, mas era evidente que esta solução só podia ser provisória. Um ditado italiano diz L'ospite é come il pesce, dopo un poco puzza: O hóspede é como o peixe, depois de certo tempo fede. Não queria ficar incomodando". O prefeito alugou para mim e os meus troços um velho casarão à espera de demolição: era o bastante para sobreviver, com poucas mordomias. Pelejei um bocado para chegar ao banheiro ocupado pelas cabas; só um descuido e podia varar através do assoalho podre." "O mais trágico: o prédio oferecido não estava disponível, como a gente pensava. Não era da Prefeitura, continuava sendo propriedade da antiga Oleíca, fábrica falida, mas não morta. Gastei quase dois anos para desembrulhar a situação" (Giovanni Gallo)
  • 61. O Museu do Marajó Em Cachoeira do Arari O Museu do Marajó com o dinheiro arrecadado graças à venda da antiga sede em Santa Cruz do Arari, comprada pelo Governo do Estado, na administração do Gov. Jáder Barbalho. Resgatou a divida que a antiga fábrica de óleo vegetal OLEICA S/A, falida e abandonada à vinte anos, possuía perante o BASA. Ao mesmo tempo indenizou a OLEICA na pessoa do seu Diretor, o Sr. Antônio Pessoa. ComunidadeajudandonareformadafábricaOLEICASAporGiovanniGallo
  • 62. 62 | documentário A fábrica estava em péssimas condições, mas com o apoio e ajuda da população cachoeirense, que recebeu o Museu de braços abertos, as obras de restauração do prédio logo se iniciaram. Outro grande apoio veio da prefeitura de Cachoeira do Arari, na figura do Prefeito Dr. Edir de Souza Neves, que foi quem convidou Pe. Gallo, para transferir o museu para seu município. Como o próprio prefeito nos diz: “O Museu do Marajó está sendo instalado na cidade Cachoeira do Arari, porque fomos nós a convidar pessoalmente Pe. Giovanni Gallo. Foi mesmo uma decisão acertada". O Museu do Marajó chega a Cachoeira do Arari em 1983, mas só em 8 de dezembro de 1984, abre as portas ao público, enquanto os serviços de restauração e instalação continuam sendo feitos. Nessa altura, O Museu possuía apenas 25% da sua capacidade expositiva, e segundo Giovanni Gallo, nunca alcançaria os 100%, pelo simples motivo de tratar da cultura marajoara. Devido essa cultura e região, estarem sempre em transformação e possuir grandes proporções territoriais, sendo impossível expor toda a diversidade cultural apresentada na ilha de Marajó por seu povo. Comunidade cachoeirense nas reformas da fábrica OLEICA SA • Acervo d'O Museu do Marajó
  • 63. arte, educação e cultura | 63 Montagem d'O Museu do Marajó • Acervo d'O Museu do Marajó Construçãodoscomputadorescapirias•Acervod'OMuseudoMarajó
  • 65. arte, educação e cultura | 65 A inauguração oficial de fato só ocorre em 12 de dezembro de 1987, data especial para o município de Cachoeira do Arari, pela realização nesse dia do Círio de Nossa Senhora da Conceição, a padroeira do município. A festa da inauguração contou com a banda de música da polícia militar e de cavaleiros com bandeiras em um desfile pelas cidades, que festejava a inauguração desse museu. Além da população que se fez presente, e de autoridades locais, estaduais e federais. Os parceiros que contribuíram para a viabilização do projeto d’O Museu do Marajó se fizeram presentes como, a Cooperativa de Indústria Pecuária do Pará (SOCIPE), na pessoa do senhor presidente José Maria Lobato, o representante do governo, deputado Carlos Kayath, do Ministério da Cultura, do Conselho Nacional de Museus entre outros. Em Cachoeira do Arari O Museu aumentou seu acervo, não se limitando apenas a animais embalsamados e cacos arqueológicos. Seu acervo agora mostra lendas, histórias, objetos, imagens e textos que possuem todos, uma coisa em comum, o homem, o caboclo marajoara e tudo o que se refere a ele. Com isso, O Museu do Marajó conquistou fama e admiração por todo o país e fora dele. Seus visitantes, nacionais e estrangeiros, levavam as suas impressões sobre o museu para outros locais, aumentando assim, o prestigio da instituição.
  • 67. Recebeu também inúmeras declarações de apoio ao projeto desenvolvido, como, de Dom Alberto Gaudêncio Ramos da Arquidiocese de Belém; da prefeitura de Cachoeira do Arari na figura do senhor prefeito Dr. Edir de Souza Neves; Ildo Barbosa Teixeira da Divisão de Museologia do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG); e da Associação Rural da Pecuária do Pará e de seu presidente Fernando Acataussú. O Museu do Marajó vira notícia em todos os jornais da região, O Liberal, A Província do Pará, O Estado do Pará, e até fora do país. Sendo matéria de revistas e de trabalhos de monografias, dissertações e teses, de muitos cientistas e admiradores desse projeto cultural. Computadorcaipiraparaveretocar Acervo interativo para ver e tocar
  • 68. 68 | documentário Em Cachoeira do Arari, O Museu do Marajó continua com dificuldades financeiras e muito ainda a ser feito. Mas é inegável, que nesta cidade adquiriu fama e reconhecimentos, chegando a ser disputado por cidades como Soure e Salvaterra, que veem neste Museu um grande meio de atrair turistas e investimento para suas cidades. Mas, o objetivo de atrair para Cachoeira do Arari os investimentos e com eles as infra-estruturas necessárias, faz O Museu permanecer nesta cidade, por vontade de seu fundador. Pois, desenvolver socioeconomicamente através da cultura essa região sempre foi a missão d’O Museu do Marajó e de seu criador. Por isso, A cidade de Cachoeira do Arari, localizada no meio da ilha do Marajó, e de grande potencial para o desenvolvimento, se fez como local ideal para o desenvolvimento socioeconômico através da cultura. Computador caipira "Glossário do Vaqueiro" • Acervo d'O Museu do Marajó
  • 69. arte, educação e cultura | 69 Alunos aprendem brincando • Acervo d'O Museu do Marajó
  • 70. 70 | documentário O FIM DE UMA TRAJETÓRIA: MORRE UM MARAJOARA NA ALMA Após 30 anos a frente de um projeto de valorização e preservação da cultura marajoara, padre Giovanni Gallo encerrou suas atividades sociais em prol da comunidade da ilha de Marajó e, também deixou de reger, como um maestro que dita o ritmo da música, o seu sonoro e empolgante projeto, O Museu do Marajó. No dia 7 de março de 2003, no Hospital Porto Dias em Belém, aos 76 anos padre Gallo como era conhecido, ao meio-dia deu seu último suspiro. Internado desde 26 de dezembro de 2002, por causa de uma úlcera perfurada, padre Gallo teve que passar por duas cirurgias em um pequeno espaço de tempo. Tendo seu quadro de saúde agravado por uma septicemia (infecção generalizada). Padre Gallo a um tempo já apresentava uma saúde bastante fragilizada, com dificuldades para dormir, ficando dias acordados, convivia com dores diárias provocadas pela artrose, que muitas vezes impossibilitava seu deslocamento, prendendo-o a cadeira de rodas. Dores essas que só eram aliviadas com injeções, também diárias de Voltaren, muitas vezes por dia. Em seus últimos dias de vida padre Gallo estava em coma induzido, mas em seus poucos momentos de lucidez, a preocupação que sempre demonstrava, era com o destino d’O Museu do Marajó. ele sabia que a tarefa de manter seu projeto vivo não era fácil, e mesmo com a saúde bastante debilitada, não conseguia parar de pensar como seria o futuro d’O Museu.
  • 71. arte, educação e cultura | 71 Com sua morte seu corpo foi levado para Cachoeira do Arari, onde foi levado na capela de São Pedro, construída outrora por ele com o apoio da comunidade cachoeirense. Sendo enterrado com vestes de padre como era seu desejo, pois em sua concepção, mesmo afastado das atividades religiosas, nunca havia deixado de ser um padre jesuíta. O enterro em uma área continua ao Museu, entre o prédio da exposição permanente e sua antiga residência, no bosque. Seu tumulo que lembra um teso marajoara, está adornado com cerâmicas marajoaras, uma homenagem a quem sempre lutou pela preservação dessa cultura extinta. Agora ele faz parte do acervo d’O Museu do Marajó, como mais uma peça a ser contemplada pelo público que o visita. Como diz uma faixa colocada na entrada d’O Museu após sua morte: Gallo Vive!!! É impossível falar d’O Museu do Marajó sem fazer referência a figura singular de padre Giovanni Gallo. As histórias de ambos se confundem, algo que muitas vezes personifica O Museu do Marajó, atrelando-o a imagem de Gallo, como se fossem uma coisa só. Na verdade, agora são, pois Gallo literalmente faz parte d’O Museu, do início ao fim. O Museu do Marajó mesmo com dificuldades financeiras e sem o seu idealizador a frente, continua lutando para manter vivo o sonho de Gallo de desenvolver socioeconomicamente a região do Marajó através da cultura. Com a missão de atrair as infra-estruturas necessárias para a cidade de Cachoeira do Arari e, com elas melhorar as condições de vida da comunidade. A missão não é fácil, Giovanni Gallo sabia muito bem disso. Mas O Museu do Marajó, aos trancos e barrancos, segue levando esse sonho, considerado por muitos utópico a frente. Sonho esse que aos poucos conquistou a admiração e o respeito de pessoas e instituições por todo o mundo.
  • 72. Visite O Museu do Marajó Padre Giovanni Gallo Fotografias de Diego Bragança e João Aires
  • 73.
  • 74. 74 | documentário Um meu irmão me perguntou: Pergunta legítima, que pode ser também formulada assim, numa forma mais geral: o que é este tal de Museu do Marajó, que condicionou a minha vida e, ao mesmo tempo, encanta os turistas que chegam de longe, depois de ter conhecido museus famosos no país e no exterior, ao ponto de deixar depoimentos apaixonados. Só uma pequena amostragem tirada do livro das assinaturas, para demonstrar que não estou sonhando. Para explicar ou justificar este entusiasmo vou dar um apanhado geral sobre as características e a técnica utilizadas na sua apresentação. A ideia básica é apresentar não o objeto e sim o homem que está atrás do objeto: daqui se explica a declaração de que o homem é a nossa peça mais importante. Em outras palavras, o nosso Museu começa onde os outros terminam. Uma afirmação bastante hermética que, porém, será de uma evidência cristalina, com poucas linhas de explicação. A técnica de comunicação parte da ideia de que o brasileiro tem os olhos na ponta dos dedos: sempre deve mexer nas coisas que observa. Em lugar de coibi- lo, achei mais interessante incentivá-lo a seguir este estilo nacional. Em miúdos, o Museu é um grande brinquedo. Quanto mais o visitante mexe com os painéis, mais novidades ele descobre e isto através de recursos que nós, numa forma não pretensiosa e sim brincalhona, definimos como computadores de marca caipira. Com o recurso de barbantes, tabuinhas, placas móveis, tudo é inspirado nalgum artefato de estilo popular que, quando manipulado, desvenda os seus segredos, exatamente como computador de verdade. "Será que vale a pena sacrificar uma vida sobre o altar do Museu?"
  • 75. arte, educação e cultura | 75 Só uns exemplos: Entrando no Museu, encontra-se o auditório, com umas carteiras escolares e o mínimo de equipamento de som e áudio, para fazer uma prele-ção aos visitantes. Num canto estão duas caixinhas, com o convite "O Museu começa por aqui!" e duas perguntas intrigantes: "Quantos anos tem a peça mais antiga do Museu?" Surpresa, incerteza e respostas absurdas. Levantando uma tampa, encontra-se a escala geológica da terra, mais em baixo uma peça da era mesozóica, período jurássico: um fóssil, o tataravò da nossa traíra com a certidão de nascimento que espanta, 190 milhões de anos! Bem ao lado, outra pergunta intrigante: "Qual é a peça mais nova?" Embaixo, está um espelho com a escrita: "É você!", porque cada um descobre o seu Museu, seguindo os seus interesses, dirigido pela sua própria formação específica, que o estimula à procura, oferecendo a oportunidade de dar seus palpites e sua contribuição. Quem quiser saber como colaborar, um painel móvel dá as dicas. As reações do público são um show! A primeira seção é reservada à arqueologia, peças dos índios marajoaras, que os entendidos definiriam como peças artísticas, porque não foi possível registrar onde e como foram encontradas. A maioria são doações de caboclos, que as recolheram nos tesos. Com certeza, porém, são autênticas: basta analisar a estrutura intrínseca. Aqui chega a oportunidade de explicar por que a peça mais importante do nosso Museu é o homem e não o objeto exposto: este não é nada mais que o elo entre o visitante e a realidade marajoara. As famosas igaçabas são lindas, mas é mais interessante descobrir quem eram os índios que as fabricaram, sobretudo por quê.
  • 76. 76 | documentário Aruã que pertenciam a outra família linguística. A língua geral, o nheengatu, explica o mistério: só vendo! Outro computador, formado por um cubo com tampas móveis, dá as informações sobre o problema dos índios: quantos eram e quantos são; por que agora são uma dor de cabeça; por que as guerras de extermínio; porque a gripe os mata? "O índio é gente?" explica a justificativa que os devotos colonizadores encontraram para massacrálos, sem remorsos de consciência: se na língua deles não tem F, L e R, quer dizer, se eles não têm fé, nem lei e nem rei, então são bichos: dá para baixar o pau! Você sabia? O caboclo está convencido de que os índios cortavam os mortos, pelo fato de que encontra os ossos num vaso pequeno que está dentro de outro maior, a igaçaba ou urna funerária. Um cartaz explica que esta era a sepultura secundária: os índios (como também agora em muitas tribos) os enterravam no chão, para exumá-los mais tarde numa cerimônia ritual, acondicionando-os na igaçaba depois de tê-los pintado com urucum, junto com uns apetrechos característicos da pessoa, que podia ser uma boneca (criança), tanga (mulher) ou machado (homem). Em qualquer museu deste mundo, o urubu será apresentado por um exemplar vivo ou empalhado, identificado pelo nome científico e popular. E tudo acaba aí. Para nós é só o começo, Nada melhor que começar pela língua. Então o visitante curioso, no painel "Você fala tupi?", levanta as tabuinhas, que são identificadas por uma série de palavras indígenas. Embaixo está a etimologia reveladora: o igarapé é o riacho ou caminho da senhora da água (a canoa), iguaçu é água grande (a cachoeira), Ipanema (pedindo desculpa aos cariocas) é a água que é panema, quer dizer, que não presta, dá azar ao pescador, porque não tem peixe. Uma autêntica delícia intelectual, uma descoberta gostosa. Só mais um exemplo, lacitatá, um nome de mulher: Ia é fruta, Ci é mãe, quer dizer, a lua que faz germinar as plantas, Tatá é foguinho: o foguinho da lua é a estrela! Um croqui, pintado na parede, mostra a área de expansão dos diversos povos, junto com o diagrama que indica a escala do tempo. Os nomes não revelam muita coisa, então rodando a manivela de outro computador descobre-se quem eram os Ananatuba, os Mangueira, os Formiga, os Marajoara, os Aruã, onde e como moravam, quais as atividades que praticavam: são as conclusões dos especialistas nesta área. Bem ao lado, com o mesmo truque, é revelado o mistério da língua deles, a formação dos neologismos (fotografia: a pele que foi tirada), e como se explica o fato que encontramos no Marajó tantas palavras tupi, se os últimos moradores eram Uma autêntica delícia intelectual, uma descoberta gostosa.
  • 77. o raio é uma pedra que cai do céu enterra-se 7 metros e aos poucos sobe a superfícice o bicho é uma desculpa para descobrir a cultura local. Um painel com a silhueta de um prédio, no caso um tribunal, com a indispensável balança feita com duas tampinhas de Coca-Cola, apresenta a ficha do réu, na ciência e na tradição cabocla; outras apresentam a acusação (não presta porque dá azar, espalha doença... ), a defesa (o azar não passa de uma abusão popular, o ácido gástrico destrói as toxinas), e por fim a sentença (deixamos ele em paz!). Ao lado, um grande painel com muitas tabuinhas e o convite a descobrir qual é a relação entre a figura e o bicho. Mulher barriguda? Quando ela está de parto, o urubu já sabe se vai nascer homem ou mulher. Fica alegre? Será homem, que é caçador e sempre arruma bóia para ele. Está triste se vai nascer mulher, porque esta só lhe oferece casca de batata e de banana. Espingarda? Quando uma arma atira no urubu, fica panema, não presta mais. Porque, quando um urubu acha uma carniça, não pode saboreá-la em paz porque logo se ajunta um montão de pretendentes? Durante muitos anos perguntei aos caboclos, sem sucesso. A resposta veio de um livro suíço. Mas não revelo o segredo, senão ninguém vem mais aqui para descobri-lo. A casa do jacaré valoriza a cultura cabocla. E bicho valente, mas fraco na cabeça, cheio de complexos, como de inferioridade, com onça e urubu, e sobretudo com o medo paradoxal dos olhos fechados, a arma mais poderosa do caboclo para capturá-lo. Como a gente vê, o objeto é o ponto de partida para desvendar o mistério da cultura local. O caboclo criou a sua cosmologia, que acredita no involucionísmo (o macaco já foi gente), a geração espontânea (a mosca nasce do lixo, os peixes morrem estorricados nos poções secos para depois nascer do limo, a caturra é gerada pelo caroço de tucumã), o transformismo (o boto vira gente, o jandiá vira sapo e a caba é filha da aranha), o raio é uma pedra que cai do céu, enterra-se sete metros (número mágico) e aos poucos sobe à superfície, para depois voltar ao céu. Nada de novo: os antigos italianos chamavam Pietra di fulmine os achados arqueológicos etruscos, seguindo as informações recebidas dos latinos. Esta pesquisa nos oferece, evidentemente, a possibilidade de fazer comparações com outras culturas. Criança empelicada é aquela que nasceu junto com as companheiras (a placenta), por isso será homem de sorte. Então compreendi o sentido da expressão italiana Nato con Ia camicia, (nasceu com a camisa), que indica não o homem afortunado que nasceu com a roupa no corpo, como eu acreditava, e sim porque ele veio ao mundo com a Camicia delia Madonna (a placenta): só que, no folclore italiano, é o indivíduo com o dom de ser curandeiro. Os alemães concordam com os caboclos, quando falam de Glúckshaube, o gorro da sorte! O caboclo sente-se cercado de inimigos naturais (barata, cobra, can-diru, piolho e bicho-do-pé...). Um novo computador, do tipo levanta-e-vê, nos revela como é que ele se defende com recursos naturais não poluentes. A jibóia é a melhor defesa contra os ratos, só deixá-la no teto da casa: ela, que é lerda, espicha a língua e o rato vem direto para a boca dela! Mais perigosos são os inimigos não-naturais, o olho grande, a inveja, a
  • 78. 78 | documentário espinhela caída, a matinta pereira... O mal de lua aparece quando a criança faz o coco verde: foi descuido da mãe, que deixou a criança ou os cueiros dela expostos ao luar. O médico não pode curar, é doença de pajé: precisa mostrar o bumbum do doente à lua, fazendo a reza apropriada: "Lua luar, leva teu mal, deixa meu filho criar!" O pajé naturalmente merece papel de destaque: uma série de computadores nos ensina como funciona um "trabalho", quais são os atores, os convidados, o mestre-guia, qual é a técnica do fogo, do doente carregado nas costas, dos vidros quebrados sobre os quais o pajé atuado dança, o diagnóstico, as causas e os remédios de cada doença não-natural. É o resultado da pesquisa de um especialista, R. H. Maués, com a colaboração da minha experiência pessoal. As lendas amazônicas evidenciam como o Museu prevê várias categorias de visitantes: o apressado que se contenta em ler o nome e uma figura estilizada (vitória-régia), o mais curioso que levanta a tampa e contempla a representação plástica e, por fim, o pesquisador que lê a história. Um supercomputador com 128 fichas faz a comparação Homem x Bicho. Os bichos são pais amorosos? O pirarucu é pai exemplar e carrega os filhotes na boca, em caso de perigo. A barata dágua não tanto: a mãe bota os ovos e os pai os devora. No desespero a mãe gruda os ovos na costa do marido, que fica sacudindo, para fazer um lanche! Quem voa melhor, o homem ou o bicho? Será que o homem inventa ou somente está copiando dos bichos? Os segredos do radar e do sonar que descobrimos com o morce¬go e as mensagens da mariposa, a orientação pelo sol e as estrelas, os estragos da droga no reino das formigas, a vaca sapatão e o inseto travesti que engana o namorado na procura da noiva... Tudo o que é vida do Marajó tem um lugar no nosso Museu: as embarcações, a fazenda, o vaqueiro à moda antiga e o vaqueiro de hoje, que mudou para o pior trocando a baeta pela napa e o chapéu de carnaúba pelo capacete de plástico, a pesca (com a maquete para explicar como é realizada no mato), o boto, o peixe-boi. As histórias etiológicas nos revelam como o caboclo explica certos fenómenos estranhos: o japiim que convive com as cabas, a solha que tem a boca torta, o jabuti com a carapaça emendada. Só um exemplo: por que o filho do bem-te-vi tem uma ura na cabeça? Castigo: dedurou Nossa Senhora aos soldados de Herodes. Outro computador bem buchudo conta tudo, ou quase, sobre as cobras: será verdade que a cobra, quando vai beber água, esconde o veneno debaixo da pedra? Que gosta de leite de mulher e tem o vício de puxar a criança que mama, colocando na boquinha dela a ponta do rabo, para que não chore?.,. A história dos escravos ganha a nossa atenção com documentos autênticos, como a carta de alforria com a qual
  • 79. João Manoel da Cunha Mello recebe, na presença do tabelião de Soure, em 7 de junho de 1847, a quantia de duzentos e cinquenta mil réis em moeda corrente do país e doa a liberdade à cafusa Francisca Maria de Nazaré com "a condição, porém, dela não poder se retirar da minha companhia em quanto eu for vivo". A história que poucos conhecem, a história do sofrimento negro e da vergonha branca, nos desvendam o que geralmente não aparece nos livros de História: o remédio certo para curar a sífilis dos donos de engenho era uma negrinha virgem, os horrores dos tumbeiros, dos capitães de mato, o banzo, a saudade de Luanda, os tubarões famintos que resolviam as epidemias de conjuntivite purulenta. Passando ao presente, aí está uma denúncia inteligente para gente inteligente, apresentada por tabuinhas penduradas numa grade de taboca: o racismo bem brasileiro revelado pela gíria de hoje. Gíria refinada "Eu não gosto de duas coisas: do racismo e dos pretos", e popular: "Qual a diferença entre preto e câncer? o câncer evolui, o preto nunca!", mais muitas outras expressões engraçadas e sutis mas sempre perversas. "Quando nasce um preto, a mãe o joga para cima: se engatar, é macaco; se avoar é urubu, se cair, é merda!" Só para chegar à conclusão: o racismo é anticonstítucional, tem que acabar! Não dá para contar mais, senão quem chegar até aqui já sabe tudo, mas, com certeza, também se dará conta de que esta descrição não consegue dar a ideia do que está guardado nos 900 m da Exposição Permanente. O bezerro de duas cabeças, o homem que a piranha comeu são pontos de referência para todos os caboclos. Vou ainda citar a "Pescaria da Saúde", inspirada naquela brincadeira de arraial, quando o moleque puxa o fio para ganharoprémioouadecepção.Nabeiradocomputadorestá a relação das doenças. Puxando a cordinha, sobe o remédio (esta é pesquisa, não prontuário!). Fastio? Amarrar no pescoço da criança um colar feito com dentes de piranhas. São as simpatias por analogia ou transferência, a medicina empírica, mágica e religiosa, com todas as variedades de pírótica, excretoterapia (jasmim de cachorro, remédio infalível contra o sarampo) mais as outras opções alternativas: não é só o pajé que procura caminhos diferentes da farmacopeia oficial. Depois encontramos o painel "Marajó de ontem e de hoje" com uma série de objetos que é preciso identificar e acoplar: qual era a pasta de dentes da avó? (o pó de carvão), a bacia? (o croata da palmeira), o espanador? (a espiga de milho), o famoso capitão? Para os mais curiosos está à disposição a explicação completa. "... mas, com certeza, também se dará conta de que esta descrição não consegue dar a ideia do que está guardado nos 900m da Exposição Permanente."
  • 80. 80 | documentário Antes de sair, uma sabatina para avaliar o proveito realizado na visita, a pergunta com a resposta oculta: tinga quer dizer pequeno, mergulhador ou branco? O que é a caiçara para o índio, o marajoara e o paulista? Piracuí é um bicho, uma planta ou uma comida? Na área externa encontra-se o arboreto, com centenas de plantas amazônicas sobre as quais estamos fazendo a pesquisa, a casa do caboclo coberta de palha, a casa da farinha, as estivas típicas do Marajó, mais outras peças características da terra. Como qualquer Museu moderno que se respeite, o Museu do Marajó dá ênfase à atividade comunitária. Temos a casa do artesanato, com o trabalho das bordadeiras que reproduzem os motivos arqueológicos: eram oitenta e duas que assim ganhavam o peixe de cada dia. Atividade agora encalhada por falta de capital de giro, porque a artesã recebenahora,masoprodutoécomercializado devagarinho. A escola-oficina, a Fazendola Ecológica, construída com a ajuda dos fazendeiros, quer dizer, uma maloca sobre a qual estou curtindo o projeto de transformá-la numa escola alternativa, com arte, teatro e folclore: por enquanto se reduz a atividades embrionárias, sempre pela falta de recursos. Outro sonho é o arquivo cultural para coletar nas comunidades as lembranças do passado, as estórias, as lendas, as parlendas, as toadas. Enquanto eu estou esperando a maré boa, os velhinhos que são os últimos depositários desta cultura vão para o céu. Mas o meu sonho nasceu vinte anos atrás! Só para ter uma ideia da nossa miséria, ainda não consegui montar as estantes da biblioteca. queria que o Museu provocasse este desenvolvimento. Eu sempre quis ser um santo, pena que pifei. Se o Museu está num beco sem saída, por falta de comunicação que permita o acesso dos visitantes, por que não perenizar o acesso à baía, com a estrada para Soure e Salvaterra, abrindo assim o caminho do progresso a todas as populações da bacia do Arari? O Museu do Marajó não nasceu para ser pólo de desenvolvimento? O Museu do Marajó, sob o ponto de vista históríco-geográfico, nasceu no lugar certo, bem no centro da ilha, onde se cruzaram todas as nações de índios, o lugar mais rico de tesos arqueológicos, que os americanos identificaram como mounds. Sob o ponto de vista logístico, a escolha foi a mais errada possível: um museu precisa de estruturas que nós não temos. Foi, porém, uma decisão proposital: eu sempre recusei as muitas ofertas de lugares mais privilegiados, porque A quem me perguntou se vale a pena sacrificar uma vida sobre o altar do Museu respondo que sim: é uma forma de salvar uma cultura e ao mesmo tempo, através da cultura, promover o progresso.
  • 81. arte, educação e cultura | 81 Os nossos recursos são raros, imprevisíveis e sempre insuficientes, o sonhado patrocinador ainda não apareceu. Será que sou um idealista ou simplesmente um visionário com a obsessão de uma façanha irrealizável? Neste momento me sinto como aquela mulher sertaneja, com o filhínho no colo que está morrendo por definhamento e, no desespero, diz ao gringo: "Você quer meu filho? Eu lhe dou! Só quero que ele viva!" Estamos transformando a nossa Associação em Fundação, com mai¬or possibilidade de recursos oficiais e estrangeiros. Dá para sonhar de olhos abertos, enquanto estamos curtindo a grande esperança de encontrar algum patrocinador que tope com o nosso programa: venha e confira se o Museu do Marajó é, como eu acredito, um instrumento com potencíalidades extra¬ordinárias para promover a cultura e, com a cultura, o desenvolvimento total do homem marajoara. A porta está aberta: temos registro no Cadastro Nacional de pessoas jurídicas, de natureza cultural, do Ministério da Cultura, sob o n. 15.000222/84-11, podendo receber patrocínio e doação.
  • 82. Por José Varella Pereira. Imagens cedidas pelo Acervo d'O Museu do Marajó Giovanni Gallo, DA II GUERRA MUNDIAL A UMA GUERRILHA NO FIM DO MUNDO poética
  • 83. arte, educação e cultura | 83 monge-soldado juramentado como todo e qualquer jesuíta. O qual, enfim, perde a violência de uma tragédia grega na Amazônia depauperada e devastada para se converter em luta continuada para sobrevivência do Museu do Marajó, onde criatura e criador se confundem. Na ilha do Marajó, desde 1973, inventou o museu: estranha criatura de um lugar no fim do mundo que acabou sendo alter ego de seu criador e sobrevida no naufrágio de sua existência no terceiro mundo. Todavia, para a espoliada gente marajoara a inesperada obra de Santa Cruz do Arari transformou-se, verdadeiramente, em alavanca social para empoderamento popular da Cultura Marajoara. Até então de uso privado da oligarquia regional e objeto de pesquisa acadêmica da elite do País e exterior, sem retorno à população dos municípios de IDH miserável. O célebre museu do homem marajoara que fora causa daquela tragédia, também se converteu em epifania do marajoara que veio de longe. No marco final de uma vivência excepcional, o drama de Giovanni Gallo se avizinha de um rito antropofágico sublimado pela; a ilha canibalesca que o herói tentou salvar termina por devorar seu salvador. Há uma aura eucarística na tragédia. Gallo abandona todos os truques, como diz, para dar a volta por cima no último capítulo. “Nem tudo está perdido”. Ele compreende que morre o homem e fica a fama. O museu da discórdia é, de fato, a sobrevivência do criador através da criatura. Desde ali o “ex-padre” aculturado à moda dos caboclos não diria nunca mais a magoada expressão: “quando eu era gente”... Ele não se considerava mais o ressentido “homem que virou bosta” ou “homem-bosta”. E sentencia como um novo homem ressuscitado pela chuva dos campos de Cachoeira. Giovanni Gallo nasceu em Turim (Itália), no dia 27 de abril de 1927 e faleceu em Belém do Pará, em 7 de março de 2003. Gallo estava com onze anos de idade, em sua terra natal, quando o vigário da paróquia lhe perguntou se queria ser padre e o menino respondeu que sim. Até aí sua vida infantil se resumia à família, escola e igreja. A Itália estava sob o fascismo de Benito Mussolini e a Europa entregue à fúria insana da II Guerra Mundial. O seminarista não parecia interessado na política do país e a derrota italiana junto com a Alemanha nazista não faz parte de suas principais recordações. Com 6 anos de idade o aluno Giovanni Gallo para ser matriculado na escola primária fora inscrito no partido fascista por sua mãe. O ano de seu nascimento era o Ano VII da Era Fascista... Entretanto, tomou a decisão de ser padre, por vontade própria, aos 29 anos de idade. Como seminarista percorreu cidades como Paris, Estocolmo e outras. Esta opção radical o levou a Sardenha a fim de trabalhar com a população rural. Vem daí seu conhecimento do abigeato como costume social; que não o escandalizou no Marajó levando-o a tomar a defesa de pescadores do Jenipapo sempre acusados, em geral, como ladrões de gado por fazendeiros e explorados de suas carências sociais por notórios “patrões”. Depois ele foi trabalhar com imigrantes na Suiça, antes de vir a ser missionário no Maranhão e Pará (Marajó). Ao cabo da vida, já na velhice, doente e tendo passado por cirurgias em Brasília; resumiu tudo na explosiva autobiografia “O homem que implodiu”, escrita em Cachoeira do Arari sob peso do drama que o consumia. Crônica de um suicídio anunciado: suprema confissão de fracasso para um padre que aspirava a ser santificado, ainda mais se esse padre é
  • 84. 84 | poética Apesar das enormes diferenças de tempo e caso, há diversos pontos de contato entre o padre dos pescadores e vaqueiros do Arari e o padre grande dos índios, Antônio Vieira: este último adotou por princípio salvar-se salvando os outros. Giovanni Gallo, por um percurso incerto, terminou por se salvar salvando a memória de um povo desmemoriado através de um museu engendrado nas piores condições de sobrevivência. O herói devorado pelo curso da história, lutando para nascer de novo; provoca a renascença de uma cultura “morta” e despedaçada no altar da Civilização. Chamá-losimplesmentede“ex-padre”éatirá-loàvalacomum dos arrependidos e dispensados dos votos de sacerdote. Ele foi um peão grudado à sela do touro. Combatente tenaz, um condutor de contramão no sentido de que foi preciso desligá- lo da diocese e suspender seu ofício na Sociedade de Jesus, respectivamente, mas o João teimoso não jogou a toalha. Nem quando esteve à beira do suicídio. Teve que ser excluído "Ainda vale a pena viver, olhar para o futuro, quase como antigamente. Pena que o padre morreu!" (O homem que implodiu, página 293) sob argumento de claudicar no engajamento perime cadáver (sobre a disciplina absoluta), pode ser. No que lhe parecia erro de comando este soldado de Cristo parece sem defesa na sua irremediável insubmissão. Já pensou a anarquia se cada recruta discutisse com seu general a melhor tática de batalha? O problema, neste caso, é que o soldado sentia-se mais qualificado do que o comandante. Insubmisso ao aparelho missionário talvez, mas nunca será correto o considerar renegado da causa ad majorem gloria Dei (sobre o juramento do miliciano de Cristo): por tal princípio, ele advogava com incrível insistência o erro da autoridade diocesana. Aqui fica difícil deslindar se o padre defendia os cabocos, ou se ao contrário eram estes o escudo do rebelado para não aceitar a rendição. Pelo que, no mesmo cenário amazônico, Gallo lembra a desigual luta que o jesuíta Antônio Vieira travou há três séculos e meio em favor dos índios e sofreu condenação do Santo Ofício por heresia judaizante.
  • 85. arte, educação e cultura | 85 Gallo poderia também, no limite, recordar o evolucionista Teillard de Chardin, que por amor à disciplina formal sem trair a Ciência aceitou silenciar em vida, mas sem remorso arquitetou liberar seu pensamento após a morte, pregando uma peça à censura. Giovanni Gallo não podia aceitar a retirada do campo de batalha sem dano à causa humanitária (a correspondência de Maria de Belém Menezes e Dalcídio Jurandir demonstram bem isto, do mesmo modo com as cooperativas do bispo Angelo Rivatto eram saudadas com entusiasmo): a ilha do Marajó foi palco e mortalha do padre. Ele fez uma aposta sabendo que seria esmagado, comido e digerido pelo sistema até “implodir”. "Até que enfim quis ver de perto, experimentar a vida dos meus irmãos, quis ser gente da gente na prática e não somente na teoria, e me empurrei lá, aonde não todos vão."
  • 86. 86 | poética Sua autobiografia é a crônica de um suicídio que se converte em metáfora do contrário à vitória de Pirro de seus inimigos. Pois o derrotado – à exemplo do povo que ele escolheu para recuperar a memória – sabia, antecipadamente, que no fim da história seria considerado um grande homem. Como de fato acaba sendo, na medida que os marajoaras se empoderam do tempo e do espaço natal e o Museu do Marajó passa a ser conhecido no País e no mundo ainda que, no final, volte ao barro de que foi feito. O que Giovanni Gallo não contava era ser santificado pelo povo como um padre Cicero dos ribeirinhos, nem que um viajante estranho viesse de longe sentenciar diante de quem o ouvia no museu que o padre dos marajoaras foi em vidas pregressas, naturalmente, um “grande cacique marajoara”. Si non è vero è bene trovatto... Vico explica a transformação de gente em lenda. E Gramsci ensina a não tourear contra a cultura de um povo. No Marajó, o catolicismo popular antes de ser religião é cultura mestiça com crenças e ritos nativos e africanos. Isto que faz da literatura do comunista agnóstico Dalcídio Jurandir uma mina inesgotável. O “homem do Pacoval” tributário do museu do Gallo Marajó é universidade aberta, celeiro de diletantes que abrem os olhos de eruditos fossilizados pelo cânone. Raymundo Morais foi um destes autodidatas, autor de “O homem do Pacoval”, que fez de seu navio singrando águas do Amazonas, entre Belém e Manaus, escola de altos cursos de cultura regional. Dalcídio transportou na bagagem a bordo do “Ita do Norte” a “criaturada grande” para o auto exílio no Rio de Janeiro. Já o marajoara que veio da Itália se naturalizou brasileiro nas águas sagradas do lago Arari debaixo de chuvas do dilúvio amazônico, entre piranhas e caruanas de peixes encantados... Pouca gente ilustrada percebe que, “sem querer querendo”, o jesuíta insubmisso criou, em forma de Museu para “ver com a ponta dos dedos”, a concretude de uma metáfora da marginalidade neocolonial face à centralidade da gloriosa Civilização. O museu do Gallo fala desta gente remanescente de índios, descendente de escravos e deportados. Gente sem eira nem beira, herdeira de um tesouro perdido, produtora incansável de cultura regional cuja resiliência está Fui caçar, lancear, lanternar. A pé, no casco, montado. Fiquei semanas fora de casa, prisioneiro de um barquinha, de um congá na beira do rio.
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  • 88. na cara e o centro de convergência deste mundo é ou deveria ser “o nosso Museu do Marajó”. Cujo cerne e princípio, necessariamente, é tempo arqueológico, malgré a sociologia do romance de Dalcídio e a etnografia prática de Giovanni Gallo. Em Marajó, sem a antiguidade da Cultura Marajoara por emblema não tem futuro nenhum projeto social, cultural ou ambiental separadamente. No começo do drama, sem saber direito onde pisava; o padre dos pobres pescadores do Arari acertou em cheio no barro dos começos deste vasto mundo das águas grandes! Daltônico, confundia as cores básicas do arco-íris. Açodado por temperamento, ele mal agasalhou a bagagem num canto e já entrou de cabeça na velha peleja entre fazendeiros e pescadores. Briga feia começada, em 1680, com o primeiro curral de gado de Cabo Verde importado no rio Arari e levantado face ao perigo dos “índios bravios, desertores e escravos fugidos” que existiam nos centros da ilha. Gallo entrou na paróquia de pé esquerdo como cego em meio ao tiroteio... Assim, fragmentos de cerâmica marajoara – famosos “cacos de índio” remanescentes de sítios arqueológicos – deram origem ao incrível museu e aos oportuníssimos “Motivos Ornamentais” que são, muito provavelmente, sobras do saque de tesos recolhidas com vagar e risco por descendentes de índios geralmente acusados de ser “ladrões de gado”... Não por acaso a vila Jenipapo, onde até poucos anos fazendeiro não pisava sem risco de morte por vingança de acumuladas violências sofridas pela comunidade, fica fronteira – no tempo e no espaço – ao teso do emblemático Pacoval, que já deveria ter sido declarado monumento ancestral. Para quem não sabe, pacova é espécie de banana antigamente cultivada pelos índios da região. Pacoval, portanto, é bananal indígena. O teso do Pacoval em apreço é o primeiro sítio arquelógico que se tem notícia na ilha do Marajó, descoberto na metade do século VIII pelo autor anônimo da “Notícia da Ilha Grande de Joanes” (provavelmente, o fundador da freguesia de N.S. da Conceição da Cachoeira do rio Arari (1747), Florentino Frade; guia de viagem do naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira). A colonização sufocou e estraçalhou a cultura indígena, mas por acaso “cacos de índios” deram remendo à memória perdida... A astúcia do padre (como seus predecessores das Missões) foi em saber escutar a voz do povo e, socraticamente, aprender com os ignorantes. Nesta difícil arte ele foi mestre, sem a menor dúvida.
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  • 93. Origens e significados da Cultura Marajoara por Denise Pahl Schaan Era lá pelo ano de 500 depois de Cristo. A Amazônia era habitada por centenas de nações indígenas, formando comunidades que falavam um sem número de línguas diferentes. Em diversas áreas ecologicamente distintas, essas populações exploravam recursos silvestres e desenvolviam uma agricultura de pequena escala, para a sobrevivência de suas pequenas comunidades. Apesar desta vida aparentemente simples, estas populações mantinham constante contato, pois realizavam trocas e buscavam abastecer-se de produtos não disponíveis localmente. Provavelmente algumas pessoas dedicavam-se a uma espécie de comércio, viajando e conectando comunidades distantes em uma rede de trocas que envolvia também intercâmbio de ideias, crenças religiosas e estórias. Foi nesse momento de grande regionalização de idéias, de aumento populacional, de crescente conhecimento sobre o meio ambiente e as melhores formas de explorá-lo, que uma grande transformação ocorreu no modo de vida de muitas das populações amazônicas. E essa transformação ocorreu primeiro na Ilha de Marajó. arte, educação e cultura | 93
  • 94. Por que Marajó? Porque em Marajó combinaram-se condições e oportunidade. Para que se entenda como tudo aconteceu é necessário conhecer um pouco sobre o regime de chuvas em Marajó e, especialmente, como o clima afeta a pesca em algumas áreas, principalmente nos pequenos igarapés e cabeceiras dos rios. No Marajó chove mais do que o normal para a floresta tropical. As chuvas caem intensamente em um período que vai de janeiro a maio, que é chamado localmente de inverno. Uma vez que a Ilha fica ao nível do mar, tem elevações discretas e um solo muito argiloso, a terra não tem como absorver toda aquela água, provocando enchentes. As águas sobem muito, e o
  • 95. campo torna-se um grande lago raso. E justamente neste período do inverno que vai até maio que acontece a piracema, ou a subida dos peixes até as cabeceiras dos rios para se reproduzirem. Os peixes, então, espalham-se pelos campos alagados. Quando as chuvas param e as águas começam a abaixar, é hora de voltar e descer os rios. No entanto, como as águas baixam rápido, diversos lagos e pequenos cursos d'água que estavam conectados durante o inverno de repente são separados, cortando vias de escape para milhares de animais aquáticos que ficam presos em áreas mais profundas. Os antigos habitantes de Marajó conheciam bem aquele fenômeno. Pensa-se que eles frequentemente realizavam expedições de pesca para as áreas em que podiam coletar facilmente uma grande quantidade de alimento. É provável que tenham arte, educação e cultura | 95
  • 96. também construído pequenas barragens, formando currais onde podiam manter os peixes vivos por um indeterminado período de tempo. Mas logo se deram conta de que podiam fazer ainda melhor. Nunca saberemos quem teve a ideia primeiro ou como as coisas realmente aconteceram. O que sabemos é que as cabeceiras dos rios passaram a ser colonizadas por populações que começaram a manejar os recursos aquáticos conscientemente. Fizeram isso por meio de grandes escavações próximas aos leitos dos rios, nas cabeceiras, para onde desviavam os peixes no final do inverno com a ajuda de barragens. Desta forma, mantinham um suprimento de alimento e água também durante o verão, quando tudo ficava muito seco. Todo esse manejo possibilitou o agregamento de populações maiores, que agora tinham uma fonte confiável de proteína e podiam também dedicar-se a outras tarefas que não as necessariamente ligadas à sobrevivência. Mas o que fariam com a terra que tiravam das escavações? Resolveram que seria interessante construir plataformas altas de terra próximas aos viveiros de peixes, em cima das quais colocariam suas casas e nas quais enterrariam seus mortos. Foi assim que surgiram os cemitérios indígenas, tão peculiares à região. Os aterros (ou tesos, como são chamados localmente) se tornaram símbolo de prosperidade e abundância, e logo estabeleceu-se um certo direito de uso sobre esses locais. E provável que os primeiros a chegar ao lugar tenham reclamado seus direitos logo que os conflitos surgiram, e que os chefes de famílias mais importantes tenham passado a ser também chefes de comunidade. Em vários lugares na Ilha de Marajó estabeleceram-se então poderosos cacicados, ou grupos de aldeias que estavam subordinados a um mesmo cacique. Esta unidade política e religiosa permitia-lhes assegurar também por meio de guerras, se necessário, seus direitos sobre a terra e sobre a água, assim como sobre todos os recursos naturais que estas envolviam. Havia-se aberto um importante capítulo do desenvolvimento cultural dos povos amazônicos. A partir daí, sociedades regionais e complexas começaram a desenvolver- se também em outras partes da Amazónia, iniciando um florescimento cultural como não se havia visto antes. Do Alto dos seus Tesos Os cacicados eram governados por famílias nobres, que passavam o poder de urna geração para a outra. Por causa da grande importância de imagens femininas na arte Marajoara, pensa-se que a sucessão se dava pela linha materna. Neste sentido, mesmo que o chefe em determinado momento fosse um homem, ele teria recebido o direito à sucessão no poder por parte da família de sua mãe, não de seu pai. Quando uma pessoa da família dos chefes morria, fosse ela mulher, homem ou criança, seu corpo era colocado dentro de um grande vaso de cerâmica juntamente com seus objetos pessoais. Algumas mulheres eram enterradas com tangas de cerâmica. Algumas
  • 97. pessoas ainda com colares e machados feitos de pedras raras na região, obtidas através de trocas com sociedades distantes. As urnas funerárias eram adornadas com desenhos pintados ou inscritos na argila, ou ainda com relevos extremamente elaborados,tudonascoresbranco,vermelhoepreto.Muitasdessas urnas funerárias foram desenhadas como se fossem um corpo feminino, com olhos e boca na parte superior, e o bojo redondo sendo o corpo, onde braços eram desenhados acompanhando a curvatura do vasilhame, com mãos que seguram um círculo vermelho: o ventre. Em algumas urnas pintadas pode-se ver uma pequena figura humana que está em posição de quem está para dar à luz. É como se a urna representasse renascimento, volta às origens, ou a passagem para uma outra vida. Observando as representações na cerâmica podemos aprender muitacoisasobreasantigascrenças,rituaisreligiosos,cerimónias e festas que faziam parte da vida nos tesos. O fato de que as urnas eram enterradas (mas às vezes mantidas dentro das casas) no mesmo lugar onde moravam, nos indica que havia uma relação estreita entre a vida e a morte, entre os vivos e seus antepassados. Manter os antepassados por perto era uma maneira de assegurar continuidade na sucessão e garantir o poder. Com cacicados espalhados pela ilha, havia muita competição e conflitos, por isso a necessidade de mostrar poder e prestígio. Do alto de seus tesos, o Marajoara sentia-se em controle do seu território e das riquezas que a terra e as águas lhe proporcionavam.
  • 98. A Mãe de Todos os Peixes "O índio mergulhou no rio e achou a escama de uma cobra. Ele estava vivendo nas cabeceiras de um pequeno igarapé, e resolveu guardar a escama junto com suas coisas, sem dar muita importância. Então muitas cobras, de diferentes tipos, apareceram, cobras que ele nunca tinha visto. O pajé lhe disse que as cobras vieram atrás de alguma coisa que ele tinha, que pertencia a uma cobra, e que ele tinha que se livrar daquilo. O homem então jogou a escama no rio, mas a água estava muito rasa, na vazante. A noite o igarapé encheu e muitas cobras vieram, seguidas pelos peixes. O lugar onde ele tinha atirado a escama virou uma lagoa tão cheia de peixes que se tornou o melhor lugar para pescar". Os Marajoaras tinham uma profunda crença, temor e respeito pelas forças da natureza. As chuvas e a seca lhes podiam trazer fartura ou miséria. Eles acreditavam que as forças da natureza, personalizadas na forma de animais e seres sobrenaturais, deviam ser respeitadas e veneradas. Dos animais mitológicos, o mais importante era uma grande cobra ancestral, que em alguns mitos amazônicos é considerada a mãe de todos os peixes ou a cobra-canoa que trouxe os primeiros humanos para habitar a terra. Seja qual for o mito em que os Marajoaras acreditavam, sabe-se que a cobra tinha uma importância fundamental nas suas vidas, provavelmente por causa de sua ligação com a procriação dos peixes e a origem da vida. Em diversas urnas funerárias femininas, há braços representados por cobras, cujas cabeças apontam para o ventre. Os desenhos no corpo desses répteis são triângulos, losangos e linhas sinuosas, que encontramos também em quase todos os objetos de cerâmica Marajoara. Muitas das vasilhas de cerâmica, como pratos e tigelas, eram usados para servir comida em festas e rituais. Era preciso agradecer aos espíritos dos antepassados a boa sorte com a pesca e reprodução de peixes, tartarugas e outros animais aquáticos para alimentação. Não só a cobra, mas outros animais como lagartos, jacarés, tartarugas, morcegos, urubus-rei, corujas, macacos e escorpiões, eram representados na cerâmica. A intenção não era a de simplesmente retratar seres da natureza, mas principalmente relembrar estórias importantes, que falavam sobre crenças e proibições, sobre a origem da vida e sobre a ordem que regulava o delicado equilíbrio entre os seres da natureza.
  • 99.
  • 100. Os Motivos Ornamentais da Cêramica Marajoara Os Marajoaras produziam cerâmica simples, para cozinhar e preparar alimentos, e também uma cerâmica mais decorada e elaborada para servir alimentos e bebidas em festas. Além disso, produziam toda uma variedade de objetos rituais tais como banquinhos para os pajés e chefes, estatuetas usadas em rituais de cura, pingentes, tortuais de fuso, ornamentos para lábios e orelhas, assim como frascos e uma espécie de concha com um canudo para ingestão de drogas alucinógenas. Os objetos produzidos para festas e rituais eram cuidadosamente decorados com desenhos geométricos, linhas sinuosas, círculos e espirais combinados de maneira harmoniosa, impressionando pela simplicidade e força comunicativa. Uma das características dessas representações é a simplificação de formas naturais de animais e humanos através do emprego de figuras geométricas, utilizando uma simetria que na maior parte dos casos é apenas aparente. As figuras são frequentemente dualistas ou híbridas, representando mais de um animal ao mesmo tempo, dependendo de como se interpreta o desenho. A inspiração em seres humanos ou animais é livre, combinando partes do corpo (olhos, bocas,
  • 101. patas, rabos) e desrespeitando proporções, posições de membros e características anatômicas. A arte Marajoara era sem dúvida uma arte religiosa e sagrada, no sentido em que buscava transmitir ideias transcendentes ou cosmológicas, realizando a ponte entre o mundo dos vivos e o sobrenatural. Com a utilização de um número limitado de símbolos gráficos, combinados com figuras modeladas de humanos e animais, o povo Marajoara criou uma verdadeira forma de comunicação de suas idéias e crenças, que através da cerâmica tornaram-se visíveis e permanentes. OsMarajoaras influenciaram e foram também influenciados culturalmente por outras sociedades amazônicas. Por isso são tantas as semelhanças entre as cerâmicas arqueológicas da região. As mudanças econômicas, sociais e políticas que operaram-se na Ilha de Marajó também influenciaram outras sociedades ao longo do rio Amazonas. Em torno do ano 1.000 depois de Cristo, diversos cacicados estavam estabelecidos na Amazônia, controlando áreas ecológicas importantes, congregando populações densas e produzindo uma cultura material rica e elaborada. Guerras e alianças eram frequentes, e trocas de produtos e intercâmbios culturais ligavam as terras baixas amazônicas a outras sociedades do noroeste da América do Sul, América Central e Caribe.
  • 102. O Começo do Fim Durante sua trajetória, as sociedades Marajoara passaram por fases de crescimento e expansão e, por volta de 1100 depois de Cristo, já dominavam toda a área dos campos da Ilha, com aldeias também ao longo dos rios na floresta próxima. Depois deste período, no entanto, começa o declínio, por motivos ainda não totalmente conhecidos. É possível que o aumento populacional tenha levado à exaustão de recursos, quando as áreas mais produtivas já estavam ocupadas, gerando então conflitos mais frequentes. Alguns tesos são abandonados nesta época, talvez por causa de guerras. Mas foi o período em torno de 1300 depois de Cristo que parece ter marcado o começo do fim para os cacicados. Há indicações de que mudanças climáticas importantes tenham acontecido neste momento, o que pode ter afetado a produtividade dos viveiros de peixes e outros recursos usados, tais como açaí, amido de palmeira, mandioca e frutos silvestres. Como muito do poder dos líderes estava relacionado à sua habilidade de controlar recursos naturais por causa de seu contato com os deuses e antepassados, uma crise de abastecimento pode ter levado à perda da confiança das populações nos seus pajés e chefes. Além disso, falta de recursos causa fome, doenças e obriga as pessoas a migrarem. Uma outra hipótese é a de que índios Aruak que chegam à costa Norte de Marajó por volta de 1300 depois de Cristo, vindos do Amapá, tenham entrado em guerra com os Marajoara.
  • 103. Apesar de os cacicados terem perdido poder e controle, a cultura Marajoara não desapareceu totalmente. As populações que restaram dos cacicados Marajoara ainda viviam na Ilha quando os Portugueses aqui chegaram. Apesar das transformações ocorridas, que se refletem também em seus costumes, a cerâmica Marajoara ainda era produzida, mesmo em comunidades localizadas longe dos tesos, e vários dos rituais ainda eram realizados. Os enterramentos em grandes urnas parecem ter sido abandonados, assim como as grandes festas, mas a cultura permaneceu entre as populações sobreviventes. DuranteosséculosXVIIeXVIII,noentanto,asguerras com os portugueses, a missionização e a colonização levaram ao desaparecimento ou deslocamento das populações indígenas de Marajó.