2. 1. CONTEXTO HISTÓRICO E
CULTURAL
► Na segunda metade do século XIX, a Revolução Francesa já
estava consolidada e a burguesia fortalecida enquanto
classe social vitoriosa. Se no período de contestação ela se
sentiu bem no ideário romântico, agora abandonará
gradativamente os mitos revolucionários, idealistas,
contestadores, em função de sua nova condição de classe
dominante. Seus mitos serão a ciência e a razão, idéias do
Estado governante, o Estado burguês, amparado na ordem,
na produção industrial, na balança comercial positiva, enfim,
na própria gestão da vida coletiva. O Romantismo, portanto,
vai saindo da moda, cedendo lugar a uma concepção
científica e materialista. A ciência assume importância cada
vez maior, sendo vista na época como o único instrumento
seguro para explicar a realidade e também gerar riquezas. O
espírito científico era considerado como critério supremo na
concepção e análise da realidade. Desse modo, será a
ciência que determinará as novas maneiras de pensar e
viver.
3. ► Em 1859, Darwin publica A Origem das Espécies. Nessa obra, a
evolução das espécies é considerada como o resultado do
mecanismo de seleção natural. A idéia básica de tal mecanismo é a
de que o meio ambiente condiciona todos os seres, deixando
sobreviver os mais adaptados. A natureza de todos os seres, o
homem inclusive, seria determinada por circunstâncias externas. O
meio ambiente passa a ter enorme importância pois condiciona
matéria e espírito. Essa concepção biológica de vida, chamada
darwinismo, seria responsável por grandes mudanças no campo
científico, repercutindo na economia, na filosofia e na política.
► O positivismo, corrente filosófica criada por Augusto Comte e
baseada no método das ciências naturais, traduziu essa visão de
mundo, pois se concentrava nos fatos, rejeitando qualquer
explicação metafísica para a atuação do homem no mundo, além de
propagar a idéia de que apenas o progresso material já seria
suficiente para neutralizar os desequilíbrios sociais.
4. ►Baseado nas idéias de Comte, Taine expõe a
teoria determinista da obra de arte,
reduzindo a seu campo de interpretação à
compreensão do meio, da raça e do
momento histórico em que foi produzida.
►A Psicologia também apresenta mudanças,
subordinando os fenômenos psíquicos aos
fisiológicos, estes sim considerados de
grande importância, por serem observáveis
e analisáveis.
5. ► No plano econômico, surge o socialismo
científico de Marx e Engels, a partir da
publicação, em 1848, do Manifesto
Comunista, que define o materialismo histórico
e a luta de classes.
► As idéias filosóficas de Schopenhauer, pensador
alemão, que, sem negar a Ciência, considera de
modo bastante pessimista que o homem,
submetido a determinismos morais, é por
natureza fadado à dor e ao sofrimento, de modo
que o mundo constitui um imenso palco de
mentirosas ilusões e que a pouca alegria
conseguida resulta de um esforço doloroso que
logo a destrói.
6. ► A ciência suplanta o idealismo do período romântico,
formulando uma concepção predominantemente
materialista da vida.
► No Brasil, na segunda metade do século XIX, houve
dois movimentos de idéias que sacudiram o país e
tiveram grande efeito, tanto na vida mental quanto na
social: a divulgação dessas novas correntes européias
de pensamento e o Abolicionismo. A extinção do
tráfico negreiro, em 1850, acelera a decadência da
economia cafeeira; o deslocamento do eixo de
prestígio para o Sul e os anseios das classes médias
urbanas compunham um quadro novo para a nação,
propício ao fermento de idéias liberais, abolicionistas e
republicanas. Desse modo, durante esse período,
assistimos à transição de uma sociedade tipicamente
agrária, latifundiária, escravocrata e aristocrática para
uma sociedade burguesa e urbana.
7. ► Esse quadro histórico-cultural, predominante sobretudo entre
1870 e 1890, favoreceu o surgimento de teses revolucionárias
adotadas pela inteligência nacional, cada vez mais permeável
ao pensamento europeu que na época se girava em torno da
filosofia positivista e do evolucionismo. Dois foram os grandes
centros irradiadores dessas idéias: as escolas, fundadas em
1827, de São Paulo e Olinda, sendo esta transferida para
Recife em 1854. A Escola de Recife, da qual Adolfo Caminha
fazia parte, foi um vigoroso centro de agitação intelectual.
► Todo esse quadro cultural, aqui apenas esboçado, serviu de
base para as doutrinas realista e naturalista e, portanto, para
as obras que foram escritas com o intuito de experimentá-las
e realizá-las em arte.
8. 2. O NATURALISMO
► O Realismo-Naturalismo, estilos predominantes nesse
período da segunda metade do século XIX, participaram
do mesmo espírito de precisão, objetividade científica,
da exatidão na descrição, de apelo à minúcia, de culto
ao fato, de rigor e economia na linguagem, de amor à
forma. O artista desse momento histórico procura nivelar
sua atitude à do cientista; daí decorre a objetividade que
o escritor procura manter durante toda sua narrativa,
não idealizando a realidade, mas limitando-se a registrá-
la, o que nem sempre consegue. Por isso o artista não
emite julgamentos a respeito dos fatos e personagens.
Essa pretensa neutralidade não chega ao ponto de
ocultar o fato de que o autor carrega sempre nos tons
sombrios o destino de suas criaturas.
9. ► O Naturalismo, na verdade, acentua as qualidades do
Realismo, acrescentando uma concepção da vida
compreendida como intercurso de forças mecânicas sobre
os indivíduos, resultando os atos, o caráter, o destino
destes da atuação da hereditariedade e do ambiente.
► Assim, há uma tendência, por parte do autor naturalista,
em perscrutar o anormal, o excepcional, beirando o caso
patológico. Dessa atitude decorre a tendência do
naturalista para enfatizar atitudes instintivas das
personagens: o homem é visto como um animal
condicionado por forças que determinam o seu
comportamento. Por isso, as personagens dos romances
naturalistas têm um comportamento que resulta da
liberação dos instintos, sob determinadas condições do
meio ambiente. A hereditariedade física e psicológica das
personagens conduz sua ação. A vida interior é reduzida a
quase nada, uma vez que o escritor tenta utilizar métodos
científicos de observação e análise.
10. São características do Naturalismo:
► Privilégio da visão científica;
► O naturalista não seleciona o que vai falar;
► A causa dos problemas são fatores naturais (meio – raça – momento);
► Enfoca a classe miserável;
► Possui a intenção de analisar;
► Visão científica, patológica e critica;
► Narrativa lenta e minuciosa;
► narrador é um intérprete de casos patológicos;
► Tem a função de denunciar a degradação humana;
► Analisar a patologia social;
► Gira em torno da relação instintiva homem – mulher;
► Linguagem vulgar, grotesca e repugnante, com valorização de expressões
sensoriais;
► Personagens anti-heróis, indivíduo cujo comportamento é dominado por
forças incontroláveis;
► Espaço e tempo, contemporâneos do autor;
► Ponto de vista impessoal e objetivo;
► Crítica ao Romantismo.
11. ► Quanto à temática, observa-se nos naturalistas
uma tendência para retratar temas de patologia
sexual ou social, exatamente como estudaremos
no romance Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha.
13. UMA HISTÓRIA PASSIONAL
► Romance singular nos quadros estéticos da época e
mesmo da literatura brasileira, esse livro de Adolfo
Caminha, Bom-Crioulo, realça pela originalidade da
situação dramática: dois marinheiros - Amaro,
apelidado o Bom-Crioulo, um “latagão de negro,
muito alto e corpulento, figura... com um formidável
Sistema de músculos” e Aleixo “um belo marinheiro de
olhos azuis” - brutalizados e solitários pela vida a
bordo de um navio, afeiçoam-se e entretêm relações
homossexuais. Ao desembarcarem na cidade do Rio
de Janeiro, vão viver em um cômodo alugado por uma
portuguesa, ex-prostituta, D. Carolina. Mas o idílio
amoroso entre Amaro e Aleixo é interrompido pelo
dever de voltar ao mar.
14.
15. Tempo e espaço: o mar e a Rua
da Misericórdia
► O romance se passa em dois espaços: no mar, a bordo de uma
corveta, e na Rua da Misericórdia, localizada nos subúrbios do Rio
de Janeiro, nos fins do século XIX. Os dois lugares são descritos
em seus aspectos mais degradantes e negativos, ressaltando a
miséria daqueles que aí vivem. A preferência pelos seres das
camadas mais baixas da sociedade reside na possibilidade de se
analisar o que há de mais instintivo e bestial nessas personagens,
cujas vidas, sem perspectivas, limitam-se a atos mecânicos como
comer, dormir e procriar.
► A abertura do romance se faz com uma detalhada descrição da
corveta, local inicial da ação: “A velha e gloriosa corveta — que
pena! — já nem sequer lembrava o mesmo navio d’outrora,
sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como uma galera
de lenda, branca e leve no mar alto; grimpando serena o corcovo
das ondas!...”
16. ► “Estava outra, multo outra com o seu casco negro,
com as suas velas encardidas de mofo, sem
aquele esplêndido aspecto guerreiro que
entusiasmava a gente nos bons tempos de
patescaria” Vista ao longe, na infinita extensão
azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um
barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha
carcaça flutuante, desde a brancura límpida e
triunfal das velas té à primitiva pintura do bojo. “
► “No entanto, ela ai vinha — esquife agourento —
singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua
marcha vagarosa; ela ai vinha, não já como uma
enorme garça branca flechando a líquida planície,
mas lenta, pesada, como se fora um grande
morcego apocalíptico de asas abertas sobre o
mar... “
17. ► O ambiente de bordo é marcado pelo trabalho duro e por uma
vida sem privacidade, o que possibilita a eclosão das mais
diversas perversões:
► “O convés, tanto na coberta como na tolda, apresentava o
aspecto de um acampamento nômade. A marinhagem,
entorpecida pelo trabalho, caíra numa sonolência profunda,
espalhada por ali ao relento, numa desordem geral de ciganos
que não escolhem terreno para repousar. Pouco lhe
importavam o chão úmido, as correntes de ar, as
constipações, o beribéri. Embaixo era maior o
atravancamento. /.../ No intervalo das peças, na meia
escuridão dos recôncavos moviam-se corpos seminus,
indistintos. Respirava-se um odor nauseabundo de cárcere,
um cheiro acre de suor humano diluído em urina e alcatrão.
Negros, de boca aberta, roncavam profundamente,
contorcendo-se na inconsciência do sono. Viam-se dorsos nus
abraçando o convés, aspectos indecorosos que a luz
evidenciava cruelmente. “
18. ► Num segundo momento, a história se desloca para a terra, mais
precisamente para um quarto na Rua da Misericórdia, onde
Amaro e Aleixo, após terem se conhecido no navio, vivem o
ápice e o declínio de seu relacionamento:
► “O quarto era independente, com janela para os fundos da casa,
espécie de sótão roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico.
Nele morrera de febre amarela um portuguesinho recém-
chegado. Mas Bom-Crioulo, conquanto receasse as febres de
mau-caráter, não se importou com isso, tratando de esquecer o
caso e instalando-se definitivamente. Todo o dinheiro era para a
compra de móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras,
enfeites, cousas sem valor, muita vez trazidas de bordo.., pouco
a pouco o pequeno “cômodo” foi adquirindo uma feição nova de
bazar hebreu, enchendo-se de bugigangas, amontoando-se de
caixas vazias, búzios, grosseiros e outros acessórios
ornamentais. O leito era uma cama de vento” já muito usada,
sobre a qual o Bom-Crioulo tinha o zelo de estender, pela
manhã, quando se levantava, um grosso cobertor encarnado
“para ocultar as nódoas”.
19. ► Ao retratar o espaço urbano, Adolfo Caminha fala
a respeito de um tipo de moradia muito comum no
Rio de Janeiro durante o final do século XIX: as
habitações coletivas. Os habitantes dessas
moradias eram brancos, mulatos e mestiços,
sempre pessoas exploradas. Ao redor dessas
habitações, há a presença de negociantes
portugueses em ascensão, como o açougueiro que
sustenta D. Carolina, e que se aproveitam, de
algum modo, da miséria dessas pessoas.
20. Amaro: fortaleza física x
fraqueza moral
► Amaro é extremamente forte fisicamente. Sua força provém do
trabalho escravo e depois do trabalho na Armada, em que se
engajara após ter fugido da fazenda. Os castigos físicos que lhe
foram impingidos, tanto pelo feitor quanto a bordo, tornaram-lhe
resistente e lhe deram a energia de um animal brioso. A força
do negro é realçada pelo narrador, numa das cenas iniciais do
romance, por meio da descrição de uma cena em que Amaro
está sendo punido com a chibata:
► “— Uma! cantou a mesma voz. — Duas!.., três!...
► Bom-Crioulo tinha despido a camisa de algodão, e, nu da cintura
para cima, numa riquíssima exibição de músculos, os selos
muito salientes, as espáduas negras reluzentes, um sulco
profundo e liso d’alto a baixo no dorso, nem sequer gemia,
como se estivesse a receber o mais leve dos castigos.”
21. ► “Por sua vez Agostinho estremeceu, mas
estremeceu de gozo ao ver, afinal, triunfar a rijeza
do seu pulso. Marinheiros e oficiais, num silêncio
concentrado, alongavam o olhar, cheios de
interesse, a cada golpe. “
► “— Cento e cinqüenta!”
► “Só então houve quem visse um ponto vermelho,
uma gota rubra deslizar no espinhaço negro do
marinheiro e logo este ponto vermelho se
transformar numa fita de sangue.”
22. Aleixo: fraqueza e
feminilidade
► “Aleixo surge desde o princípio como o oposto de
Amaro: branco, fisicamente fraco e pueril,
subjugado pelas circunstâncias e por quem lhe é
mais forte— será assim com Amaro e com
Carolina:”
► “Aleixo só fazia responder timidamente: - sim
senhor - com um arzinho ingênuo de menino
obediente, os olhos muito claros, de um azul garço
pontilhado, e os lábios grossos extremamente
vermelhos.”
23. ► Assumindo o relacionamento com o negro, Aleixo
ostenta uma postura feminina que se manifesta
em todas as suas atitudes, sempre cedendo,
mesmo a contragosto, aos desejos de Amaro:
► “Estava satisfeita a vontade de Bom-Crioulo. Aleixo
surgia-lhe agora em plena e exuberante nudez,
muito alvo, as formas roliças ressaltando na meia
sombra voluptuosa do aposento. (...) Nunca vira
formas de homem tão bem torneadas, braços
assim, quadris rijos e carnudos como aqueles...
Faltavam-lhe seios para que Aleixo fosse uma
verdadeira mulher!... “
24. Carolina: ex-prostituta e
mulher de negócios
► D. Carolina era uma portuguesa que alugava quartos na
Rua da Misericórdia somente a pessoas de “certa ordem”,
gente que não se fizesse de muito honrada e de muito
boa, isso mesmo rapazes de confiança, bons inquilinos,
patrícios, amigos velhos... Não fazia questão de cor e
tampouco se importava com a classe ou profissão do
sujeito, Marinheiro, soldado, embarcadiço, caixeiro de
venda, tudo era a mesmíssima cousa: o tratamento que lhe
fosse possível dar a um inquilino, dava-o do mesmo modo
aos outros.
► D. Carolina revela-se, desde o inicio, uma mulher de
negócios, cuja mercadoria era seu próprio corpo. Teve seus
revezes e conseguiu se reerguer, observando como poderia
lucrar com os outros, já que também lucravam com ela. No
entanto, vive só.
25. Homossexualismo como tema:
um inusitado triângulo amoroso
► A originalidade de Bom-Crioulo se manifesta no triângulo
amoroso sobre o qual se sustenta. Tradicionalmente, um
triângulo amoroso é composto por dois homens em luta por
uma mulher, ou duas mulheres que disputam o mesmo
homem. Em Bom-Crioulo, Amaro e Aleixo são marinheiros e,
acima de tudo, como tal se comportam, favorecendo a
anulação das diferenças étnicas, que se dá não pela ascensão
do negro fugido, mas pelo rebaixamento de ambos à condição
de prisioneiros do mesmo sistema e do “vício”. Por fim, o
terceiro do triângulo é uma mulher que atua como homem,
pois conquista Aleixo em vez de ser conquistada. O triângulo
altera substancialmente a função dos participantes, mas
respeitando as leis de verossimilhança. Ou seja, o insólito
reside na novidade do triângulo e não em sua falta de
veracidade: mais uma vez, Adolfo Caminha colhe ao vivo, de
sua experiência como oficial da marinha, o material do
romance.
26. ► O tema do romance, o homossexualismo, manifesto na
construção do triângulo amoroso, é tratado com crueza e
sem nenhum indício de preconceito pelo escritor
naturalista, que vê no vício um objeto de estudo que deve
ser esclarecido e compreendido:
► “Nunca se apercebera de semelhante anomalia, nunca em
sua vida tivera a lembrança de perscrutar suas tendências
em matéria de sexualidade. As mulheres o desarmavam
para os combates do amor, é certo, mas também não
concebia, por forma alguma, esse comércio grosseiro entre
indivíduos do mesmo sexo; entretanto, quem diria! O fato
passava-se agora consigo próprio, sem premeditação,
inesperadamente. E o mais interessante é que “aquilo”
ameaçava ir longe para mal de seus pecados... Não havia
jeito senão ter paciência, uma vez que a natureza”
impunha-lhe esse castigo. “
27. ►O homossexualismo, encarado no romance
como vício ou perversão, é tratado,
portanto, através de um olhar naturalista e,
conseqüentemente, limitado: não há o
enfoque mais subjetivo dos sentimentos
despertados; não há autonomia do caráter:
as personagens estão acorrentadas às leis
deterministas (não há drama de consciência
ou mesmo drama moral). Há uma resposta
mecânica, instintiva aos fatos o que não
esmaece sua força e valor literário.