1. Visualidade na Amazônia: a questão da fotografia
ÂNGELA MAGALHÃES E NADJA PEREGRINO
E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo, é impossível descrever. Fez
crepúsculo em toda a abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que
lado o sol deitava, um céu todinho em rosa e ouro, depois lilás e azul, depois negro e
encarnado se definido com furor. Manaus a estibordo. As águas negras por baixo.
Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do
prazer foi tanta que não me permitiu mais gozar, fiquei com os olhos cheios de
lágrimas.
Mário de Andrade, Amazonas, 2 de julho, 1927.
No extenso território brasileiro, a Amazônia, pela sua natureza geográfica, é a mais
internacional das nossas regiões. São aproximadamente cinco milhões de quilômetros
quadrados de uma imensa floresta que se espalha em solo brasileiro abrangendo, além
das três Guianas, mais cinco países sul-americanos: Bolívia, Peru, Equador, Colômbia e
Venezuela. Na sua complexa rede de vida, a floresta amazônica guarda uma imensa
riqueza, uma quantidade incalculável de espécies de aves e de outros animais, além, é
claro, de sua incomparável massa verde. Segundo o poeta amazonense Tiago de Melo,
"a nossa floresta tem ao redor de um milhão de diferentes espécies de seres vivos. Da
surucuju de quinze metros à minhoquinha que serve de isca para puxar um pacu; do
jacaré temível ao calango brincalhão; da samaumeira de sessenta metros de altura ao
capim peremembeca rasteirinho; da vitória-régia de metro e meio de diâmetro ao
protozoário invisível; do gavião de olhar adunco e garras poderosas ao leve louva-a-
deus brincando na luz da manhã. Tem 2.500 variedades de peixes; tem mais de duas mil
espécies de árvores e mais de cinqüenta mil variedades de plantas. É biologicamente a
região mais diversificada do planeta".
Assim, do modo em que são colocadas, as afirmações de
Tiago de Melo justificam em parte o interesse mundial
pela preservação da floresta, particularmente a do Brasil,
que representa ainda a maior área contínua de selva
tropical do mundo. Naturalmente, as alusões feitas ao
tema não devem ser tomadas como uma intenção nossa de
fazer um tratado sobre região de tamanha complexidade, e
sim de pôr em evidência certas visões emblemáticas em
que transparecem o exotismo, a mitificação e o velho
mundo da representação.
No enfoque da mídia internacional pode-se notar, por
exemplo, que os graves problemas gerados pela ocupação na região - o desmatamento, o
extrativismo das riquezas minerais, o extermínio e o aculturamento das nações
indígenas - são abordados inúmeras vezes dentro de uma visão sensacionalista, em que a
informação passa a ser, antes de tudo, operada dentro de uma estratégia de espetáculo.
Por outro ângulo, compreende-se também que o processo de mitificação da Amazônia,
presente desde as primeiras viagens dos exploradores estrangeiros, ainda persiste hoje,
pois, diferentemente dos povos europeus e norte-americanos, o Brasil conseguiu, às
portas do século XXI, resguardar um imenso patrimônio natural.
Rio Purus, o mais largo e
caudaloso tributário do
Amazonas.
2. É importante observar que a Amazônia, como tema, é um vasto lugar de passagem para
o campo de reflexão artística. Na área da fotografia, o estabelecimento de um tema
como o aqui proposto e sua relação com a arte são particularmente complicados, uma
vez que o discurso realista enfatiza a capacidade mimética da linguagem fotográfica,
obscurecendo e empobrecendo a experiência estética. Quando reduzida a uma tal
caricatura a fotografia se vê fechada numa idéia de que a aparência exprime a essência,
de que a força maior de sua linguagem está na natureza das coisas.
Por outro lado, é inegável que uma busca consciente e exacerbada da linguagem e do
caráter de interpretação afirma, necessariamente, o primado de uma transcendência que
não leva em conta a analogia suportada pela imagem. Inverte-se a hierarquia de valores
que, em muitos casos, havia privilegiado a realidade, para ressaltar uma maneira de ver
que tem o inconveniente de extirpar ou negar o poder de referência e reconhecimento da
fotografia, quando ligada a uma proposta estética mais tradicional. O problema maior é
que a afirmação da fotografia como linguagem, muitas vezes, impede que se possa levar
em consideração a capacidade de analogia que ela suporta.
Fragmento. In: Revista Extra Câmara, Nº.2, Rio de Janeiro, Ministério da
Cultura/Funarte, março, 1995, pp. 31-33.
Ângela Magalhães é pesquisadora de fotografia e coordena a área de Fotografia da
Funarte. Nadja Peregrino é pesquisadora de fotografia e coordena o Setor de
Fotografia do Centro de Artes da Universidade Federal Fluminense.