1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ADRIANA TULIO BAGGIO
O ESPETÁCULO SEMIÓTICO DA PUBLICIDADE QUE NÃO DIZ SEU NOME:
ASPECTOS DA TEMÁTICA HOMOSSEXUAL NA PUBLICIDADE BRASILEIRA.
JOÃO PESSOA
2003
2. ADRIANA TULIO BAGGIO
O ESPETÁCULO SEMIÓTICO DA PUBLICIDADE QUE NÃO DIZ SEU NOME:
ASPECTOS DA TEMÁTICA HOMOSSEXUAL NA PUBLICIDADE BRASILEIRA.
Dissertação de Mestrado realizada por
Adriana Tulio Baggio e apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras,
área de concentração Lingüística e
Língua Portuguesa, do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal da Paraíba –
UFPB.
Orientadora: Professora Dra. Maria de
Fátima Barbosa de M. Batista.
JOÃO PESSOA
2003
3. TERMO DE APROVAÇÃO
Adriana Tulio Baggio
O espetáculo semiótico da publicidade que não diz seu nome:
aspectos da temática homossexual na publicidade brasileira.
Dissertação aprovada como requisito para
obtenção do título de mestre em Letras,
área de concentração Lingüística e Língua
Portuguesa, do Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes da Universidade
Federal da Paraíba – UFPB.
Aprovação: João Pessoa, _____ de ________________________ de ________.
__________________________________
Professora Orientadora
Profª. Dra. Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista - UFPB
_____________________________________
Prof. Dr. Cidmar Teodoro Pais - USP
______________________________________
Profª Dra. Ivone Lucena – UFPB
______________________________________
Profª. Dra. Maria Aparecida Barbosa – USP (suplente)
4. Dedico este trabalho a meus pais, por todo o apoio, estímulo e incentivo que
deram a mim e a meu irmão para que pudéssemos chegar onde estamos hoje.
A Idalina e Dionor, que não estão mais aqui, mas que ficariam felizes por essa
conquista.
5. AGRADECIMENTOS
A realização desta dissertação de mestrado contou com a ajuda de muitos.
Gostaria de agradecer especialmente à Professora Fátima Batista, pela
generosidade, competência e disponibilidade com que orientou esse trabalho.
À minha mãe, pelo auxílio na revisão.
A Otacílio Vaz, pelo companheirismo, amor e paciência durante os altos e
baixos de humor que redigir uma dissertação provoca.
A Ferrugem, pela companhia afetuosa e incondicional.
Ao professor Marcos Nicolau, pelo auxílio no início do processo que agora se
encerra.
A todas as pessoas – familiares, amigos, colegas, alunos e professores – com
quem compartilhei experiências e que, de uma forma ou de outra, contribuíram para
a realização deste trabalho.
A Deus.
6. Somewhere, over the rainbow, way up high,
There's a land that I heard of once in a lullaby.
Somewhere, over the rainbow, skies are blue,
And the dreams that you dare to dream really do come true.
Over the rainbow, cantada por Judy Garland em O mágico de Oz. (1939)
7. RESUMO
Este trabalho aborda aspectos da temática homossexual, especificamente a
homossexualidade masculina, presente na publicidade brasileira. A análise dos
anúncios publicitários foi feita com base na semiótica da significação proposta por
Hjelmslev, Greimas e Courtés e desenvolvida pelos sociossemioticistas brasileiros,
entre eles Cidmar Teodoro Pais. Foram analisados seis anúncios veiculados em
revistas dirigidas e não-dirigidas ao público homossexual. Complementando a
semiótica, foram apresentados embasamentos teóricas sobre o discurso publicitário
e sobre a homossexualidade. O estudo dos níveis fundamental, narrativo e
discursivo, possibilitou observar as figuras que caracterizam a temática homossexual
e os aspectos relacionados à presença desta temática nos anúncios. Ao fim deste
trabalho, foi possível identificar os elementos que figurativizam a homossexualidade
e identificar o público-alvo de cada anúncio como homossexual masculino ou não.
Constatou-se que a temática homossexual não está obrigatoriamente relacionada
com o público-alvo gay. Percebeu-se, também, a ideologia presente no discurso,
que apresenta uma imagem do homossexual ainda não completamente dissociada
de preconceitos.
Palavras-chave: sociossemiótica, publicidade, homossexualidade.
8. RÉSUMÉ
Ce travail traite d'aspects de la tématique homossexulle, spécifiquement la
homossexualité masculine, present dans la publicité brésilienne. L'analyse des
annonces publicitaires a été faite à partir de la sémiotique da la signification qui a été
proposée par Hjelmslev, Greimas et Courtés et developpé par les
sociossemioticistes brésiliens, entre eux Cidmar Teorodo Pais. On a été analysés six
annonces qui s'ont faits imprimés dans les magazines spécifiques et non-spécifiques
du public homossexuel. En complement à la théorie sémiotique, on a été présentés
des théories de la publicité et de la homossexualité. L'étude des niveaux
fundamental, narrative et discursive a permet regarder des figures qui caractérisent
la tématique homossexuel et ces aspects dans les annonces. Au bout de ce travail,
on a été possible identifier des éléments figuratifs de la homossexualité et identifier
le public de chaque annonce comme homossexuel masculin ou non-homossexuel.
On a été possible de constater qui la tématique homossexuelle n'est pas obligement
liée avec le public gay. On a perçu, aussi, l'idéologie présent dans le discours, qui
montre une image du homossexuel ainsi non complement séparé des préjugés.
Mots-clés: sociossemiotique, publicité, homossexuallité.
9. SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................10
2 A SEMIÓTICA....................................................................................................17
2.1 Origens do estudo do signo: da Antigüidade Clássica a Peirce. .........18
2.2 A teoria de Saussure e suas dicotomias. ...............................................21
2.3 Hjelmslev: o ponto de partida para o pós-estruturalismo .....................24
2.4 A semiótica da significação .....................................................................27
2.5 Tipologia dos sistemas semióticos.........................................................32
2.6 Percurso gerativo da significação...........................................................33
2.6.1 Nível fundamental ou profundo ............................................................34
2.6.2 Nível narrativo......................................................................................37
2.6.3 Nível discursivo....................................................................................44
3 O DISCURSO PUBLICITÁRIO ..........................................................................57
3.1 Publicidade e Indústria Cultural ..............................................................59
3.2 A publicidade na sociedade do espetáculo ............................................61
3.3 O paradoxo entre a massificação e a segmentação ..............................63
3.4 Recursos de atratividade no discurso publicitário ................................66
3.5 O comportamento do consumidor ..........................................................68
4 A HOMOSSEXUALIDADE ................................................................................72
4.1 Do crime à aceitação ................................................................................77
4.2 O homossexual na mídia: um reflexo da sociedade ..............................86
4.3 O universo homossexual: elementos, símbolos e figuras. ...................92
4.4 O consumidor gay: um atraente mercado em crescimento ................105
10. 4.5 A publicidade dirigida ao público homossexual ..................................107
4.6 A temática gay na publicidade...............................................................111
5 CORPUS..........................................................................................................115
5.1 Descrição dos anúncios.........................................................................116
5.1.1 Anúncios veiculados em revistas dirigidas ao público homossexual .116
5.1.2 Anúncios veiculados em revistas não dirigidas..................................118
6 ANÁLISE DOS ANÚNCIOS.............................................................................120
6.1 Anúncio 1 (ANEXO A) - preservativo Prosex........................................120
6.2 Anúncio 2 (ANEXO B) – companhia aérea South African Airways.....136
6.3 Anúncio 3 (ANEXO C) - agência de turismo Papyon ...........................147
6.4 Anúncio 4 (ANEXO D) – telefone celular Motorola...............................152
6.5 Anúncio 5 (ANEXO E) - loja de presentes Imaginarium.......................159
6.6 Anúncio 6 (ANEXO F) - Central de Outdoor..........................................164
7 POR UMA CARACTERIZAÇÃO DA TEMÁTICA GAY NA PUBLICIDADE....169
8 CONCLUSÃO ..................................................................................................179
9 BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................184
11. 1 INTRODUÇÃO
O discurso publicitário, através de suas especificidades, constitui dos
produtos mais representativos de determinada cultura. Por ter como objetivo
primordial a venda do produto, serviço ou idéia anunciada, todos os recursos nele
utilizados convergem para a realização desse propósito. Como esse processo
acontece pela identificação entre o público e mensagem do anúncio, é fundamental
que o discurso publicitário espelhe a sociedade que o produz e para a qual se dirige.
Por todos os aspectos mencionados, o discurso publicitário é um espetáculo
formado por figuras verbais, imagéticas e gestuais, onde o sincretismo semiótico é o
recurso da atratividade.
O objetivo da espetacularização é tornar o discurso atrativo, para que possa
fazer-crer, fazer-querer/dever e fazer-fazer, ou seja, seduzir, persuadir e manipular.
Os valores presentes no nível narrativo e os temas e figuras do nível discursivo, não
são utilizados aleatoriamente. As escolhas feitas nesses níveis refletem o perfil do
enunciatário e visão de mundo, ambos a partir do ponto de vista do enunciador. No
discurso publicitário, o enunciador é sempre o anunciante, uma instância social
legítima. O discurso do anunciante, então, autorizado pela sociedade, representa o
ponto de vista dessa sociedade.
O discurso publicitário, enquanto técnica para vender, tem sua função no
contexto de uma atividade mais abrangente, o marketing que, por sua vez, procura
estabelecer uma relação entre a empresa e o público-alvo onde ambos obtenham o
resultado esperado. O cliente ganha a solução para suas necessidades, através do
12. consumo, e a empresa obtém o lucro que permite o seu funcionamento no modo de
produção capitalista.
A sobrevivência das empresas neste sistema já foi mais fácil. No princípio da
Revolução Industrial, havia uma relação entre oferta e demanda extremamente
vantajosa para as empresas, que hoje foi invertida. Alguns mercados já estão
saturados, ou próximos da saturação. Mesmo no Brasil, considerado um mercado
com grande potencial de consumo, as marcas começam a buscar formas de ampliar
o seu público-alvo. Esse é apenas um dos fatores que influenciam o recente
direcionamento dos esforços mercadológicos e de comunicação para públicos até
então marginalizados.
Um segundo fator que contribui para essa nova visão mercadológica é uma
maior elasticidade nas relações sociais. Vários tabus estão sendo quebrados,
inclusive aqueles que se referem a um dos principais valores da nossa sociedade: a
sexualidade. Instâncias até pouco tempo inquestionáveis, como a constituição da
família, o casamento e a geração de filhos estão sendo revistas frente às novas
descobertas científicas e aos novos papéis sociais de homens e mulheres. O
preconceito vem sendo criticado em todas as suas formas, permitindo que cada um
viva sua vida de acordo com suas opções religiosas, políticas e sexuais.
A luta contra o preconceito vem amparada por uma maior preocupação com
os direitos humanos, direitos civis e direitos do consumidor, que representam o
terceiro fator nesta lista. A ocorrência destes três movimentos permite que diversos
grupos caracterizados como minorias passem a assumir abertamente sua condição
e exijam maior respeito e atenção por parte da sociedade civil, do poder público e
também do mercado. Um desses grupos é o de homossexuais.
13. O mercado, principalmente, tem motivos concretos para não desprezar o
homossexual enquanto consumidor. Em geral, os homossexuais têm um ótimo
potencial de compra: não têm filhos nem família, preocupam-se com a imagem e têm
necessidade de ampliar seus conhecimentos. Todas essas características fazem do
público gay um grupo consumidor que as marcas querem conquistar. Como os
homossexuais masculinos têm uma visibilidade social maior, os esforços
publicitários mais explícitos são dirigidos a eles.
O caminho para a conquista do consumidor homossexual passa pela
publicidade. No entanto, os homossexuais são um público distinto, com desejos e
necessidades específicas que, só nos últimos tempos, vêm sendo reconhecidos e
estudados. É preciso usar linguagens e estratégias que abordem os valores e signos
do universo gay. De forma empírica, é possível perceber a abordagem desse
universo em alguns anúncios publicitários contemporâneos, tanto os que divulgam
produtos e serviços específicos desse público, quanto os que divulgam produtos e
serviços de consumo geral. Apesar da sutileza empregada na maioria das vezes, a
identificação da temática homossexual é perceptível porque os elementos desse
universo fazem parte de um recorte cultural, de um saber popular que não é
documentado nem registrado, mas que permeia as conversas, as piadas, os
programas humorísticos produzidos na nossa cultura. Parafraseando a expressão "o
amor que não diz seu nome", cunhada pelo escritor inglês Oscar Wilde para se
referir à homossexualidade, a publicidade analisada por este trabalho é a
publicidade que não diz seu nome, ou seja, é o discurso publicitário que apresenta a
temática homossexual, mas não de forma explícita.
O objetivo deste trabalho é analisar os recursos lingüísticos, gestuais e
imagéticos que a publicidade utiliza para representar a temática homossexual,
14. levando em conta as especificidades do comportamento do homossexual masculino
enquanto segmento de público consumidor. Pretende-se, também, analisar os
aspectos da presença da temática homossexual masculina na publicidade, avaliando
se os anúncios que apresentam essa temática são realmente dirigidos ao público
gay e identificar os valores e a ideologia presentes nesses discursos.
Em primeiro lugar, parte-se da hipótese de que, para falar com o público
homossexual de maneira efetiva, isto é, gerando uma ação que leve à compra, a
publicidade utiliza recursos diferenciados. Esses diferenciais estariam presentes na
linguagem utilizada pelo discurso publicitário. Através da análise dos valores, temas
e figuras presentes no discurso, é possível identificar se determinado anúncio
destina-se ao público homossexual masculino ou não. Como, apesar de todos os
avanços, ainda não é possível falar de maneira clara e aberta sobre o universo
homossexual na publicidade, a linguagem utilizada é mais sutil. Ao mesmo tempo
em que não choca, essa linguagem cumpre o seu papel ao estabelecer uma
comunicação com o público gay. Por último, devido às rápidas mudanças nos
paradigmas sociais, o fato de um anúncio apresentar uma temática homossexual
não garante que o público-alvo seja esse.
O corpus deste trabalho constitui-se de anúncios veiculados em revistas
dirigidas ao público homossexual masculino e revistas não-dirigidas. A amostragem
examinada, escolhida aleatoriamente, compreende seis anúncios que apresentam
temática homossexual. São peças publicitárias que divulgam produtos ou serviços
das seguintes empresas: Prosex (anúncio 1), South African Airways (anúncio 2),
Papyon (anúncio 3), Motorola (anúncio 4), Imaginarium (anúncio 5) e Central de
Outdoor (anúncio 6). Os anúncios foram publicados, respectivamente, nas revistas G
Magazine, ano 5, número 59, agosto de 2002, editada pela Fractal Edições;
15. Homens, ano 5, número 46, junho de 2001, editada pela SG Press; G Magazine
novamente; Oi, ano 1, número 1, outubro/novembro de 2002, editada pela Selulloid
AG Comunicação; TPM, ano 2, número 21, maio de 2003, editada pela Trip Editora;
Meio&Mensagem, ano XXIV, número 1005, abril de 2002, editada pela M&M Editora.
As duas primeiras, onde foram veiculados três anúncios, são aquelas dirigidas ao
público homossexual.
O corpus do trabalho foi analisado através da semiótica da significação
proposta por Hjelmslev e desenvolvida por Greimas e Courtés e complementada
pelos estudos dos sociossemioticistas brasileiros, entre eles Cidmar Teodoro Pais.
Como metodologia para a análise, os textos dos anúncios foram divididos nas três
estruturas do discurso - nível fundamental, nível narrativo e nível discursivo – a fim
de identificar os valores presentes na narrativa, os temas e figuras que os revestem
e a ideologia contida no discurso.
A sociossemiótica foi a teoria adotada porque difere das outras correntes
semióticas ao considerar os discursos não-literários, permitindo assim a identificação
dos traços socioculturais, das ideologias, dos sistemas de valores das comunidades,
onde o discurso é produzido através da situação de comunicação entre um
enunciador e um enunciatário, cujo produto é um texto.
Como teoria complementar, foram estudados textos que abordam o discurso
publicitário e seu papel enquanto discurso produzido socialmente, possibilitando
perceber suas motivações e especificidades de produção e enunciação. Também
foram levantados conceitos sobre a temática homossexual, especialmente a
homossexualidade masculina, permitindo o entendimento do comportamento, estilo
de vida e características do homossexual enquanto consumidor. O trabalho conta
ainda com informações obtidas através de depoimentos de profissionais ligados à
16. atividade publicitária e aos movimentos organizados de defesa dos direitos dos
homossexuais.
Analisar o discurso publicitário sem levar em conta o contexto que o produz
não permite apreender todos aspectos envolvidos na sua construção. É por isso que
a análise sociossemiótica torna-se adequada à proposta aqui desenvolvida, porque
considera o processo de enunciação. Na enunciação, estão presentes não somente
o enunciado isolado, mas também o enunciador, o enunciatário e as condições em
que essa enunciação se dá. Todos esses fatores importam na análise de um
discurso, mas quando esse discurso é o publicitário, a presença deles é ainda mais
significativa. O discurso publicitário representa muito mais do que uma ferramenta de
marketing das empresas. É um produto social e, por isso mesmo, reflete em suas
entrelinhas a visão socialmente aceita e legítima sobre determinado assunto. Ao
abordar a publicidade dirigida ao público homossexual masculino, esse trabalho
apresenta não apenas os valores, temas e figuras que fazem parte da temática gay,
mas também a visão da nossa sociedade em relação à homossexualidade. Os
resultados das análises aqui realizadas podem ajudar os profissionais da área
publicitária a identificar a melhor maneira de falar com o público homossexual. Mais
do que isso, no entanto, esse trabalho pode auxiliar a provocar uma reflexão sobre
as atitudes da sociedade em relação à homossexualidade. Pode, também, lançar
uma luz sobre o tema da homossexualidade, esclarecendo quem ainda tem opiniões
pré-concebidas. Como a ignorância quase sempre está na origem do preconceito,
talvez o conhecimento seja um dos caminhos para se chegar ao respeito.
Após esta introdução, o trabalho apresenta mais oito capítulos: teoria
semiótica, teoria da publicidade e teoria da homossexualidade; descrição do corpus;
análise dos anúncios; caracterização da temática homossexual na publicidade;
18. 2 A SEMIÓTICA
Até chegar ao conceito moderno de ciência da significação, que serve de
base para a realização deste trabalho, o estudo da semiótica passou por diversas
fases. Suas origens estão no estudo do signo na Antigüidade Clássica, como a
estrutura triádica proposta por Platão e a relação de implicação estudada por
Aristóteles. Mais tarde, o signo torna-se objeto dos estudos de teólogos como Santo
Agostinho, que observava sua relação arbitrária com as coisas do mundo que
designava e o incluía nos estudos teológicos. O Renascimento traz à tona a visão
antropocêntrica do mundo e o estudo do signo retoma as concepções da
Antigüidade Clássica, deixando de lado o conceito metonímico em relação ao que
designava e assumindo um caráter representativo do objeto no mundo real. Mais
recentemente, Charles Sanders Peirce e Ferdinand de Saussure sistematizam o
estudo do signo que levaria às concepções modernas da semiótica.
Enquanto Peirce concebe o signo triádico, de acordo com o modelo platônico,
Saussure retoma a linha dos gramáticos de Port-Royal, que o viam como
interdependente de ligação com o mundo natural, sendo construído somente como
um conceito e uma idéia mental de representação. É com base na teoria
saussureana que Louis Hjelmeslev desenvolve o seu modelo que, por sua vez,
servirá de fundamento para a teoria semiótica de Greimas, Courtés e Rastier: sua
concepção permitirá a análise não somente do signo isolado, mas do conjunto de
signos que formam um texto e de suas condições de produção. O texto, por sua vez,
enquanto manifestação do discurso, adota a visão peirciana (já encontrada nos
estudos antigos, como o de Santo Agostinho), deixando de ser apenas verbal e
19. estendendo sua noção a outros sistemas semióticos, não-verbais ou sincréticos.
Assim, a semiótica passa a ser entendida como uma ciência que estuda não um
sistema de signos, mas um sistema de significação.
Para melhor expor o caminho percorrido pela semiótica até chegar às
formulações que são consideradas neste trabalho, será exposto em seguida um
detalhamento de cada fase do estudo do signo, com ênfase nas concepções de
Saussure, Hjelmslev e dos teóricos da Escola de Paris.
2.1 Origens do estudo do signo: da Antigüidade Clássica a Peirce.
O termo semiótica tem origem no vocábulo grego semêion, que pode ser
traduzido como signo, sema ou sinal. A diversidade de possíveis significados para
esse termo talvez seja a origem da confusão que se faz entre a semiótica e outras
ciências afins, como a semântica e a semiologia. Ao longo da evolução do estudo da
semiótica, foi possível separar as áreas de competência de cada uma dessas
ciências e, ao mesmo tempo, perceber suas relações de intersecção.
A semiótica teve como base o estudo do signo na Antigüidade Clássica.
Platão observou vários aspectos da teoria dos signos, como a significação e a
estrutura triádica do signo, composta pelo nome (ónoma, nómos), a idéia (eîdos,
logos, dianóema) e o referente (prágma, ousía), a coisa a qual o signo se refere.
Aristóteles, por sua vez, definiu o signo como uma relação de implicação e
considerou-o uma premissa que leva a uma conclusão. Para Aristóteles, a estrutura
do signo também é triádica, composta por symbolon, o signo lingüístico, pathéma, o
20. signo convencional das afecções da alma e prágmata, as afecções enquanto
retratos das coisas (NÖTH, 1998, p. 27-29).
Mais tarde, enquanto os estóicos retomam a tríade platônica, alterando
apenas o nome de cada uma das faces do signo, os epicuristas simplificam a
estrutura original, propondo o signo diádico, composto pelo significante (semainon) e
pelo referente (tygchamon) (BATISTA, 2001), antecipando em muitos séculos as
concepções divergentes que tiveram Peirce e Saussure em relação à estrutura do
signo.
No fim da Antigüidade e durante a Idade Média, prevalece a noção de signo
proposta por Santo Agostinho, que considerava a existência dos signos verbais,
chamados convencionais e dos não-verbais, denominados de naturais. Por estar de
acordo com a perspectiva teocêntrica da Idade Média, essa concepção serviu aos
propósitos da igreja. Se, nessa época, Deus é concebido como centro e origem do
universo, tudo que aqui existe tem relação com Ele. Assim, a palavra, enquanto
signo, passa a fazer parte do que denomina, estabelecendo uma relação
metonímica. Ainda segundo Batista (2001, p. 135), "provém dessa concepção
medievalista o receio, ainda hoje apresentado por certas pessoas, de não
pronunciarem o nome de determinadas doenças graves, como o câncer, por
acreditarem que, se o fizerem, atrairão a doença para si".
Antes do Renascimento, o estudo do signo realiza-se no âmbito da Teologia e
da Filosofia. Influenciados pelo pensamento Aristotélico, os escolásticos concebem a
ciência dos signos, ao lado de outras duas disciplinas: a filosofia natural e a filosofia
moral. Data dessa época o estudo Tractatus de signis, de São Tomás de Aquino. É
a partir desta obra que vai se esboçar a visão de Peirce, que entende o signo como
um instrumento de comunicação e cognição.
21. Com a chegada do Renascimento e a conseqüente mudança de visão
teocêntrica para a antropocêntrica, o signo abandona sua relação metonímica com o
objeto e passa a ser seu representante. Mais tarde, no século XVII, o racionalismo
preconiza uma visão menos empírica. Os gramáticos de Port Royal retomam o
modelo do signo diádico, mas excluem a relação do referente com o mundo natural.
Significado e significante passam a ser modelos mentais, onde o primeiro é uma
idéia mental e o segundo é a representação mental do som. Essas idéias são
precursoras do modelo que viria a ser proposto por Saussure no início do século XX.
Também em fins do século XIX e início do século XX surgem os estudos de
Peirce, considerado por alguns o fundador da semiótica. O estudioso retoma o
modelo triádico do signo, proposto por Platão na Antigüidade. Para Peirce, "signo,
ou 'representame', é toda coisa que substitui outra, representando-a para alguém,
sob certos aspectos e em certa medida" (PIGNATARI, 1991, p. 24). Estes aspectos
e medidas, na estrutura sígnica, são representados pelo interpretante, ou seja, o
papel do signo na mente de quem o interpreta, o que leva a uma dinâmica do
processo. Os outros dois vértices são formados pelo representamen, que é o
aspecto perceptível e o objeto, que é o referente no mundo real. Visualmente, a
estrutura sígnica de Peirce pode ser representada da seguinte maneira:
interpretante
representamen objeto
22. 2.2 A teoria de Saussure e suas dicotomias.
Contemporâneo de Peirce, mas sem ter conhecido sua obra, o suíço
Ferdinand de Saussure também concebe um modelo para o signo, só que diádico.
Para Saussure, o signo seria composto de um significante e um significado, como se
fossem as duas faces de uma moeda.
Le signe linguistique unit non une chose et um nom, mais um concept et
une image acoustique. Cette dernière n'est pas le son matériel, chose
purement physique, mais l'empreinte psychique de ce son, la représentation
que nous en donne le témoignage de nos sens; elle est sensorielle, et s'il
nous arrive de l'appeler "materielle", c'est seulement dans ce sens et par
opposition à l'autre terme de l'association, le concept, généralement plus
1
abstrait (SAUSSURE, 1986, p. 98).
Visualmente, a estrutura do signo proposta por Saussure pode ser
representada como se segue:
significado
significante
A relação entre significante e significado é arbitrária. Para exemplificar esta
arbitrariedade, Saussure (1986, p. 100) mostra que a idéia de soeur (irmã, em
francês) não está ligada por relação alguma interior à seqüência de sons s-ö-r que
lhe serve de significante; poderia ser representada da mesma forma por qualquer
outra seqüência.
A proposta de Saussure recebeu críticas por não considerar os objetos no
mundo real e, ao mesmo tempo, por ficar subentendida a referência a eles em sua
1
O signo lingüístico une não uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta
última não é o som material, coisa puramente física, mas a impressão psíquica deste som, a
representação que nos dá testemunho dos nossos sentidos; ela é sensorial e se a denominamos
"material" é unicamente nesse sentido e por oposição a outro termo da associação, o conceito,
geralmente mais abstrato (tradução nossa).
23. teoria. Para exemplificar a estrutura sígnica, Saussure utilizou a palavra arbor
(árvore) como significante e o desenho de uma árvore como significado que, na
verdade, é uma referência ao mundo real. Outra referência ao mundo real ocorre
quando Saussure, ao defender a arbitrariedade do signo, coloca como exemplo as
palavras boeuf e ochs (boi, respectivamente em francês e alemão). Cada uma tem
um significante, ou seja, imagem acústica, diferente – b-ö-f para o francês e o-k-s
para o alemão (SAUSSURE, 1986, p. 100). O significado, teoricamente, é o mesmo,
se formos considerar o objeto no mundo real. Mas, para Saussure, a relação entre
significante e significado só pode ocorrer dentro de um mesmo sistema lingüístico, e
cada língua representa um único sistema lingüístico.
O teórico suíço foi o primeiro a considerar a língua como um sistema, uma
estrutura, originando o estruturalismo lingüístico. Saussure via a língua como um
sistema ou código e como um fenômeno social. Denominou o sistema lingüístico de
língua (langue) e o seu uso em atos sociais orais e de textos, de fala (parole). Essa é
a primeira das chamadas dicotomias saussureanas. A outra dicotomia refere-se ao
processo de evolução da língua. Para Saussure, a língua é um sistema estático,
imutável ou mutável somente em longo prazo. Para isolar estes fenômenos de
mutabilidade, são colocados, porém isoladamente, os conceitos de diacronia e
sincronia. Diacronia considera a evolução da língua na história e sincronia, sua
evolução em determinado recorte de tempo. Como os lingüistas anteriores viam
apenas uma evolução histórica da língua, o conceito de sincronia representou um
novo paradigma no estudo da lingüística.
Outra dicotomia de Saussure refere-se às relações que ocorrem dentro do
sistema, que podem ser sintagmáticas e paradigmáticas. As relações sintagmáticas
têm um caráter linear, como a ordem das palavras e sua sintaxe dentro da frase, por
24. exemplo. Estas relações são praticamente imutáveis, caracterizadas pelo aspecto
sucessivo e são próprias do ato da fala. Já as relações paradigmáticas atuam no
processo mental e permitem a simultaneidade, a escolha de alternativas. Estas
alternativas formam um paradigma, um grupo de palavras que podem substituir
umas às outras em sua posição dentro de uma frase. O lingüista russo Roman
Jakobson chamou as relações sintagmáticas e paradigmáticas reciprocamente de
combinação e seleção. Para Jakobson (1975, p. 39-40), todo signo lingüístico
implica estes dois modos de arranjo: combinação, já que todo o signo é composto
por signos constituintes e pode aparecer em combinação com outros signos, o que
dá ao signo ora um papel de contexto, ora um papel de elemento do contexto; e
seleção, que é o processo onde um signo pode ser substituído por outro, mantendo
a equivalência em um aspecto, mas diferenciando-se em outro. Assim, combinação
e seleção compõem as duas faces de uma mesma operação.
O ponto da teoria saussureana que mais tarde vai servir de base para a
semiótica de Greimas, compreende as relações de diferença e oposição dentro do
sistema semiológico. Assim, segundo sua teoria de valor,
Os elementos de um sistema semiótico só existem pelas suas diferenças
com outros signos [...] se o valor de um signo é determinado por aquilo que
o rodeia e pelos signos com os quais está em oposição, isto significa que o
valor do signo não vem daquilo que o signo é em si mesmo, mas do outro,
ou seja, daquilo que o signo não é (NÖTH, 1999, p.40-41).
Foi Saussure quem propôs que a ciência de estudo do signo tivesse o nome
de semiologia, retomando a nomenclatura dada por Schulteus em 1659 para sua
doutrina dos signos (BATISTA, 2001, p. 139). Para Saussure, o campo de estudo da
semiologia seria o funcionamento do signo na vida social. A Lingüística faria parte
dessa ciência, que estaria subordinada aos domínios da Psicologia social, parte da
Psicologia geral (NÖTH, 1999, p.18).
25. No entanto, a mesma ciência que os lingüistas da linha saussureana
chamavam de semiologia, tinha o nome de semiótica para os ingleses e alemães.
Para chegar a um acordo terminológico, estabeleceu-se em 1969, por iniciativa de
Jackobson, que a semiótica designaria "um termo geral do território de investigações
nas tradições da semiologia e da semiótica em geral" (NÖTH, 1998, p. 24).
2.3 Hjelmslev: o ponto de partida para o pós-estruturalismo
No interior da discussão terminológica, uma outra distinção foi proposta pelo
lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev e depois adotada por Julien Algirdas Greimas:
a de que semiótica refere-se a um sistema de signos com estruturas hierárquicas
similares à linguagem, mesmo que sejam compostas de signos não-verbais ou
sincréticos, ou seja, refere-se à significação, enquanto que semiologia abarcaria
somente o estudo do signo.
A semiótica, enquanto ciência da significação, tem origem na teoria
desenvolvida por Hjelmslev que, por sua vez, interpreta a teoria dos signos de
Saussure. Ao contrário deste, que concebeu o signo como formado por expressão
(significante) e conteúdo (significado) tomados isoladamente, o teórico dinamarquês
não imagina uma relação que não seja de função semiótica entre expressão e
conteúdo, ou uma relação de função entre a função semiótica e os funtivos
expressão e conteúdo. Para Hjelmslev (1975, p. 40), a definição de função situa-se a
meio caminho entre a lógica e a matemática e o sentido etimológico do termo.
Aproxima-se mais das primeiras por considerar a relação de dependência entre
26. grandezas (classes) ou entre uma grandeza e seus componentes, sendo chamados
de funtivos os termos entre os quais existe uma função. Considera-se também, mas
com menos importância, o sentido etimológico do termo, visto que uma grandeza
tem uma maneira de funcionar, representa um papel, dentro de uma cadeia. Dessa
maneira,
A função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade: expressão e
conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Uma
expressão só é expressão porque é a expressão de um conteúdo, e um
conteúdo só é conteúdo porque é conteúdo de uma expressão
(HJELMSLEV, 1975, p. 54)
Ainda por caminhos diferentes aos trilhados por Saussure, o dinamarquês
percebe um comportamento homogêneo entre expressão e conteúdo em relação à
função semiótica. Tanto um quanto outro, possuem uma forma e uma substância,
conforme o esquema visual abaixo:
conteúdo substância
SIGNO ƒ forma
expressão forma
substância
Portanto, para Hjelmslev, o signo é, ao mesmo tempo,
[...] signo de uma substância de conteúdo e de uma substância de
expressão. É neste sentido que se pode dizer que o signo é signo de
alguma coisa. [...] O signo é uma grandeza de duas faces, uma cabeça de
Janus com perspectiva para os dois lados, com efeito nas duas direções:
'para o exterior', na direção da substância de expressão, 'para o interior', na
direção da substância de conteúdo (1975, p. 62).
Hjelmslev vê o sentido não apenas como privilégio do conteúdo, mas também
da expressão. Assim, sentido é a "substância de uma forma qualquer" (Id., 1975, p.
57), sendo que, no plano do conteúdo, refere-se a um conceito, a uma idéia, que
independe da estrutura lingüística que o manifesta. No plano da expressão,
estabelece a diferença entre as línguas. Portanto, a mesma idéia em línguas
27. diferentes terá o mesmo sentido de conteúdo, mas diferentes sentidos de expressão.
Falar com sotaque é falar uma língua com o sentido de expressão de outra.
Ainda enriquecendo os preceitos colocados por Saussure, Hjelmslev (1975, p.
51-52) considera a língua não somente como um sistema de signos, conforme
proposto pelo genebrino, mas como um sistema de figuras que servem para formar
signos. A linguagem, enquanto sistema de signos, deve ser capaz de produzir novos
signos, novas palavras e novas raízes e também deve ser fácil de manejar, prática
de aprender e de ser utilizada. Dada a existência de uma quantidade ilimitada de
signos, essa capacidade só será possível se todos os signos puderem ser formados
com a ajuda de não-signos, cujo número é reduzido e, portanto, fáceis de serem
aprendidos e manipulados. Estes não-signos que entram como partes de signos em
um sistema de signos serão chamados de figuras. Desta forma, as línguas
representam mais do que sistemas de signos. Por sua estrutura interna, elas podem
ser consideradas como sistemas de figuras que podem servir para formar signos.
Em seus estudos, realizados durante a Segunda Guerra Mundial, Hjelmslev
revê e colabora com a teoria saussureana nos aspectos da relação entre conteúdo e
expressão, da língua enquanto sistema de figuras e não de signos e quando abre
caminho para uma visão pancrônica da língua, ao considerar a possibilidade de
produção de novos signos. Funcionando como uma ponte entre os estudos
semióticos propostos por Saussure no fim do século XIX e início do século XX e os
teóricos da Escola Semiótica de Paris, surgida no início da década de 1970, o
dinamarquês preparou o caminho para Greimas, Courtés, Rastier e seus discípulos
(entre eles o brasileiro Cidmar Teodoro Pais) proporem a ampliação do campo da
semiótica aos sistemas não-lingüísticos, a noção da pancronia latu sensu e o estudo
28. dos níveis de discursos semióticos. O estruturalismo lingüístico é ultrapassado,
dando início ao pós-estruturalismo (BATISTA, 2001, p. 144).
2.4 A semiótica da significação
A partir da proposta de Hjelmslev do estudo do plano do conteúdo separado
do plano da expressão, foi possível desenvolver o estudo do sentido. No entanto,
este estudo, ainda realizado no âmbito da semântica, não permitia uma análise que
fosse além dos limites da frase. Por ser insuficiente, este modelo de estudo precisou
ser ampliado para o conteúdo do texto. Assim, o sentido da frase é estudado
enquanto parte do sentido de um texto. Sendo o texto um enunciado, produto da
enunciação de um enunciador para um enunciatário, as teorias para estudá-lo
dividiram-se entre aquelas que analisam a relação entre o enunciado e a enunciação
e as que preferem focar a relação entre enunciador e enunciatário. No entanto, uma
análise do sentido de um texto só é possível quando se consideram estas duas
instâncias, já que a significação, além de apresentar uma relação de dependência
entre conteúdo e expressão, é formada e manifestada durante o discurso e só se
completa no percurso por inteiro, ou seja, da mente do enunciador até a mente do
enunciatário. A significação, então, compreende o processo de produção,
acumulação e transformação da função semiótica, ou seja, a semiose (Id., 2001, p.
146).
Pais considera a sociossemiótica para o estudo da significação dos textos
produzidos socialmente, como uma conversa, um aceno em um corredor e não
29. apenas os textos produzidos e manifestados em condições formais, como a
literatura. Ele releva o processo de produção dos signos em discursos sociais não
literários. Enquanto produto do pós-estruturalismo, a sociossemiótica vê de maneira
diferente as relações entre sistema e estrutura.
Il s'agite donc d'une conception dynamique, ou dialectique, si l'on préfère,
aussi bien du système que de la structure. Quant au système, il est conçu
comme ouvert et intégrant um processus de production. C'est l'instance qui
autorise les discours et qui est sous-jacente à ceux-ci. Le système se
soutien alors dans um équilibre dynamique, c'est-à-dire, dans une tension
dialectique entre deux forces contraires, celle de la conservation et celle de
la mutation. Il ne peut donc fonctionner d'une façon satisfaisante que dans
la mesure où il change, en s'articulant avec les mutations sociale et
2
culturelle. (PAIS, 1980, p. 71-72)
A tensão dialética a que se refere Pais está na ordem do sistema, dos modos
de produção e funcionamento do discurso. Ao mesmo tempo em que as novas
necessidades de comunicação de uma comunidade sociolingüística são supridas por
uma reformulação dos sistemas semióticos, através da inclusão de novos termos ou
da modificação destes, a possibilidade dessa comunicação deve-se ao caráter de
conservação desses sistemas, o suficiente para que haja compreensão entre o
enunciador e o enunciatário.
Uma outra tensão dialética está presente dentro do discurso e refere-se à
dicotomia consenso/especificidade. Enquanto a especificidade permite que o
enunciador relate suas experiências pessoais, transmitindo uma informação e
alimentando o sistema, o consenso torna possível ao enunciatário compreender o
que o enunciador quer dizer, mesmo se tratando de algo que não foi vivido por ele.
Estas duas tensões dialéticas tornam o sistema dinâmico e o discurso produtivo,
dando origem a uma nova dicotomia, a do sistema/discurso, onde "le système
2
Trata-se de uma concepção dinâmica, ou dialética, se for preferível, tanto do sistema como da
estrutura. Quanto ao sistema, é tido como aberto e integrante de um processo de produção. É a
instância que autoriza os discursos e que é subjacente a eles. O sistema, então, se sustenta em um
equilíbrio dinâmico, ou seja, em uma tensão dialética entre duas forças contrárias, a da conservação
e a da mutação. Ele não pode funcionar de uma maneira satisfatória a não ser na medida em que ele
muda, articulando-se com as mudanças sociais e culturais (tradução nossa).
30. fonctionne, en changeant, pour satisfaire aux besoins de spécificité des discours, et il
ne change que pendant qu'il fonctionne3" (PAIS, 1980, p. 72). Dessa maneira,
podemos perceber a concepção pancrônica do sistema lato sensu.
Conforme Barbosa (1996, p. 52), o sistema semiótico permite aos membros
de uma comunidade sócio-lingüístico-cultural integrar em um sistema todos os dados
de suas experiências, caracterizando o grupo e definindo sua cultura, sua ideologia.
Por estar em permanente mudança, a sociedade e a cultura do grupo reelaboram
seus valores, suas estruturas, suas regras, suas percepções da vida social e da
natureza, criam novos objetos, materiais ou não, num processo incessante de
reconstrução de sua visão de mundo. Os instrumentos desse processo são os
sistemas verbais, não-verbais e sincréticos do macro-sistema semiótico dessa
cultura. Esse processo, mesmo que modificado de uma época para outra, resultando
em uma visão peculiar de cada grupo em determinado espaço de tempo, não rompe
com o complexo sócio-lingüístico-cultural de épocas anteriores. Pelo contrário, são
esses sistemas que garantem a continuidade no tempo do sistema de cada época,
permitindo ao grupo reconhecer-se sempre como o mesmo. O sistema, ao mesmo
tempo em que realiza estas mudanças, confirma e reitera os processos de
estruturação da significação e da informação entre os indivíduos do grupo.
Como a semiótica da significação procura descrever e explicar o que o texto
diz e como ele faz para dizer o que diz" (BARROS, 1999, p.7, grifo da autora), a
concepção de texto pode ser a de objeto de significação e objeto de comunicação. A
análise dentro da primeira idéia comporta o estudo dos mecanismos internos de
funcionamento do texto e de sua produção de sentido; a análise a partir da segunda
linha mostra que o sentido do texto depende de suas condições de produção, ou
3
O sistema funciona mudando, para satisfazer as necessidades de especificidades dos discursos, e
ele só muda durante seu funcionamento (tradução nossa).
31. seja, do seu aspecto ideológico e cultural, do contexto histórico-social no qual está
inserido. Uma análise semiótica do texto deve contemplar estas duas análises,
tratando, assim, "de examinar os procedimentos da organização textual e, ao
mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto"
(BARROS, 1999, p. 8).
Como a significação depende de processos não apenas intratextuais, mas
também intertextuais, o discurso tem participação no processo de mudança da
língua enquanto código, que também muda quando o código sofre mudanças. A
significação de um texto só pode ser analisada se forem considerados os meios no
qual ele é produzido e interpretado. Depende da cultura, da língua, das formações
ideológicas, do contexto histórico e social no qual este texto está inserido.
O sentido de uma palavra, de uma imagem, de um som, de um gesto, só será
percebido se considerarmos o interdiscurso e o repertório do enunciatário, a partir do
qual fará suas interpretações a respeito do discurso. Se todo o discurso é
manipulatório, tem por necessidade primordial de ser compreendido segundo as
intenções no enunciador. O discurso publicitário, enquanto produto da Indústria
Cultural, à qual serve e da qual extrai a matéria-prima para seu funcionamento,
trabalha com sentidos estabelecidos ou reconhecidos pelo público, mas de uma
forma reelaborada e idealizada.
Os temas e figuras do discurso da publicidade são o reflexo de outros
discursos presentes na cultura que abriga a relação empresa-consumidor. É o
processo de escolha de figuras, feitas pelo enunciador, e os temas que representam,
que permitem ao enunciatário – o público-alvo do que está sendo anunciado –
identificar-se com a mensagem e sentir-se atraído por ela, a ponto de ser levado à
ação.
32. Esta ação é a resposta do enunciatário ao discurso do enunciador, resposta
esperada e desejada. É uma resposta determinada de modo ativo pelo enunciador,
presumida, que por sua vez vai influir na construção do enunciado. Essa construção
considera o grau de informação do enunciatário, suas opiniões e convicções,
preconceitos, simpatias e antipatias; além disso, nesse processo o enunciador
procura precaver-se de objeções previstas. É que "o enunciado está voltado não só
para seu objeto, mas também para o discurso do outro acerca desse objeto"
(BAKHTIN, 1992, p. 320-321). Assim, o anúncio publicitário, enquanto enunciado, é
um acontecimento que não pode ser esgotado nem pela língua e nem pelo sentido,
conforme coloca Foucault:
Acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado de um
lado a um gesto de escritura ou à articulação de uma palavra, mas que, por
um outro lado, se abre a si mesmo uma existência remanescente no campo
de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de
qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo
acontecimento, mas que está aberto à repetição, à transformação, à
reativação; finalmente, porque está ligado não apenas a situações que o
provocam, e a conseqüências que incita, mas, ao mesmo tempo, se
segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o
precedem e o seguem (1972, p. 40).
As características da construção do discurso publicitário dirigido ao público
homossexual podem exemplificar o processo de formação discursiva no que se
refere à comunicação com este público, considerando o momento histórico de maior
liberalidade, mas não de total aceitação pela sociedade.
No caso em que se pudesse descrever, entre um certo número de
enunciados, semelhante sistema de dispersão, no caso em que entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
poderia definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações), dir-se-á, por convenção, que se trata de
uma formação discursiva [...] (Id., 1972, p.51).
33. 2.5 Tipologia dos sistemas semióticos
Pais fez importantes contribuições para o estudo da semiótica. O texto, objeto
de estudo desta teoria, não deve ser considerado apenas como texto lingüístico,
manifestado oralmente ou por escrito. A semiótica ocupa-se do texto nas suas mais
variadas condições de materialização. Assim, pode-se considerar como texto um
romance, um poema, um tratado científico; um quadro, uma escultura, uma forma
arquitetônica; um espetáculo de dança, um gesto entre amigos, um discurso político,
uma conversa de bar; uma novela, um anúncio publicitário.
Com base nessa concepção, Pais (1992) propôs um estudo da tipologia dos
sistemas semióticos, como ponto de partida para a determinação de uma semiótica
da cultura. Esta seria correspondente a uma macrossemiótica, ou seja, o conjunto de
diversas semióticas-objeto que constroem uma visão de mundo, uma ideologia. Os
sistemas semióticos nos quais essas semióticas-objeto estariam incluídas são o
verbal, o não-verbal e o complexo ou sincrético. O primeiro compreende os sistemas
lingüísticos, tais como as línguas naturais e pode apresentar discursos figurativos
(literários) e não-figurativos (sociais e não-literários), como a publicidade. O sistema
semiótico não-verbal compreende sistemas unidimensionais, como o canto vocal
(sic); bidimensionais, como a pintura, o desenho, a fotografia; e tridimensionais,
como a escultura, a arquitetura e a gestualidade. Já o sistema chamado de
complexo ou sincrético compreende uma combinação entre sistemas verbais e não-
verbais, como a história em quadrinhos, o teatro, o cinema, a publicidade. Para Pais
(1992, p. 58), "o conjunto dos sistemas semióticos em operação numa mesma
comunidade sócio-lingüístico-cultural constitui, assim, a sua macrossemiótica".
34. 2.6 Percurso gerativo da significação
A semiótica da significação concebe um percurso gerativo para a construção
da significação de um texto, reforçando o conceito de que texto é o discurso
manifestado. Discurso cuja noção, segundo Pais (1996, p. 137), ultrapassa os limites
do texto como coisa enunciada e desenvolve-se num contexto sócio-cultural, que o
envolve e que se desloca no eixo do tempo da História.
O percurso gerativo da significação vai do abstrato ao concreto e pode ser
dividido em três etapas, independentes para efeitos de estudo, mas cuja relação é
condição sine qua non para a formação da significação: a estrutura fundamental ou
profunda, a estrutura intermediária ou narrativa e a estrutura discursiva. Conforme
Courtés, a distinção entre as estruturas superficiais e profundas é fruto de um ponto
de vista gerativo, no qual as estruturas mais complexas se formam a partir das mais
simples:
La sémiotique nous propose, en effet, um parcours génératif, où la
signification prend comme point de départ une instance ab quo, définie par
une forme syntaxique et sémantique élémentaire; puis, par um jeu de
complexifications et d'enrichissements varies, accède au niveau supérieur
des structures de surface et, au-delá, rejoint le plan de la manifestation,
l'instance ad quem visée. Cette procédure dite de conversion permet de
passer d'un niveau de représentation à un autre syntaxiquement et/ou
4
sémantiquement plus riche (1991, p. 137, grifo do autor).
4
A semiótica nos propõe, em efeito, um percurso gerativo onde a significação toma como ponto de
partida uma instância ab quo, definida por uma forma sintática e semântica elementar; depois, por um
jogo de complexificações e de enriquecimentos variados, acede ao nível superior das estruturas de
superfície e, além disso, reintegra o plano da manifestação, a instância ad quem visada. Este
procedimento dito de conversão permite passar de um nível de representação a um outro
sintaticamente e/ou semanticamente mais rico (tradução nossa).
35. 2.6.1 Nível fundamental ou profundo
O nível fundamental ou profundo apresenta a primeira etapa da significação,
que acontece através do estabelecimento de uma relação de oposição entre dois
termos que, por sua vez, representam duas idéias contrárias, mas de uma mesma
categoria semântica.
[...] à ce plan, sont em jeu des articulations peu nombreuses, plus simples,
en tout cas plus globalisantes que celles que l'on observe au niveau des
structures narratives de surface. C'est pourquoi, à ce plan reconnue comme
5
profond, l'on a pu parler de structure élémentaire de la signification
(COURTÉS, 1991, p. 136)
Essa relação é fruto da redução da rede de relações presentes nos níveis
narrativos e discursivos, ou seja, sem a especificidade presente em cada um destes
níveis. Por essa razão, para efeito de análise, a estrutura ou nível fundamental é a
última a ser considerada.
Em termos operacionais, a oposição mínima do nível fundamental é
representada através do quadrado semiótico, elaborado por Greimas com base nas
representações também utilizadas pela Escola de Praga e pelo antropólogo Lévi-
Strauss (Id., 1991, p. 152). Para exemplificar este processo, pode-se considerar uma
das mais recorrentes promessas feitas pelos produtos dietéticos: o emagrecimento.
Os anúncios publicitários dessa categoria de produto trabalham com a promessa da
/magreza/. Neste tipo de discurso, mesmo sem proceder à análise das estruturas
narrativas e discursivas, pode-se perceber que uma das oposições binárias é a que
5
Neste plano estão em jogo as articulações pouco numerosas, mais simples, em todo caso mais
globalizantes que aquelas que se observa ao nível das estruturas narrativas de superfície. É por
conta disso que, nesse plano conhecido como profundo, foi possível falar de estrutura elementar de
significação (tradução nossa).
36. se refere ao paradigma /forma física/, cujos elementos opostos são /gordo/ x
/magro/. Com base neste exemplo, a representação do quadrado semiótico seria:
gordo magro
não-magro não-gordo
As linhas tracejadas horizontais representam uma relação entre contrários; as
linhas contínuas diagonais mostram uma relação de contraditoriedade e as linhas
contínuas verticais representam uma relação de complementaridade. De acordo com
Courtés (1991, p. 153), “deux termes sont déclarés contraires si la négation de l´un
implique l´affirmation de l´autre, et réciproquement”6. Esta relação de implicação é a
complementaridade entre os termos. Assim, /gordo/ é complementar de /não-magro/,
e /magro/ é complementar de /não-gordo/. Ser /gordo/ implica ser /não-magro/,
enquanto que ser /magro/ implica ser /não-gordo/.
Contrariedade, contraditoriedade e complementaridade não são as únicas
relações presentes no conteúdo fundamental do texto. Pode-se observar também a
presença de relações orientadas, que se mostram como condição da narratividade.
No nosso exemplo, temos uma relação orientada que vai do /gordo/ ao /magro/,
passando pelo /não-gordo/. Fiorin considera essa orientação das relações como um
processo que caracteriza a sintaxe do nível fundamental, enquanto que a oposição
binária compreenderia a semântica deste nível.
A sintaxe do nível fundamental abrange duas operações: a negação e a
asserção. Na sucessividade de um texto, ocorrem essas duas operações, o
que significa que, dada uma categoria tal que a versus b, podem aparecer
as seguintes relações: a) afirmação de a, negação de a, afirmação de b; b)
afirmação de b, negação de b, afirmação de a (2000, p. 20).
6
Dois termos são declarados contrários quando a negação de um implica a afirmação do outro, e
vice-versa (tradução nossa).
37. No exemplo aqui utilizado, tem-se a afirmação da /gordura/, já que o anúncio
publicitário dietético dirige-se a quem tenha necessidade deste tipo de produto,
depois a negação da /gordura/, quando o anúncio propõe que a solução para o
problema é o consumo do produto dietético, e afirmação da /magreza/, quando o
leitor se convence da eficácia do produto e imagina-se magro através do seu
consumo.
Pode-se perceber a ideologia a partir da axiologização das categorias
semânticas presentes no nível fundamental, através da determinação de euforia ou
disforia atribuída a cada termo. “A categoria tímica estabelece a relação de
conformidade ou de desconformidade do ser vivo com os conteúdos representados”
(BARROS, 1999, p. 79). No exemplo considerado, temos /magro/ como eufórico e
/gordo/ como disfórico. Se fôssemos analisar outro texto, como as pinturas
renascentistas, que retratam mulheres rechonchudas (o ideal de beleza da época),
teríamos uma modificação na axiologização, onde /gordo/ seria eufórico e /magro/
disfórico. Ainda segundo Barros (1999, p. 79), “os textos serão, por conseguinte,
euforizantes ou disforizantes, segundo caminhem para o pólo conforme ou
desconforme da categoria semântica fundamental”. O texto do tipo de anúncio
tomado como exemplo é, então, euforizante, já que o percurso está orientado para o
estado /magro/, ou seja, para a euforia.
Existe ainda uma possibilidade de ampliação do quadrado semiótico para a
representação de meta-termos, dando origem a um octógono semiótico, conforme a
representação abaixo:
38. FORMA FÍSICA
gordo magro
ESTADO IDEAL DE BELEZA
INDESEJÁVEL
não-magro não-gordo
TERMO NEUTRO
Assim, a conjunção de /gordo/ com /não-magro/ dá origem ao meta-termo
/estado indesejável/ de acordo com o padrão estético da nossa sociedade; a
conjunção de /magro/ com /não-gordo/ é o /ideal de beleza/, ou seja, o que o
consumidor de produtos dietéticos almeja; a conjunção entre os contrários /gordo/ e
/magro/ representa a categoria semântica /forma física/. Já a conjunção /não-magro/
com /não-gordo/ dá origem ao termo neutro, cuja denominação, conforme explica
Courtés (1991, p. 159), vem do latim ne-uter: nem um, nem outro.
2.6.2 Nível narrativo
A estrutura narrativa apresenta uma sintaxe e uma semântica narrativas.
Barros faz uma associação entre a sintaxe narrativa e um espetáculo. Para a
professora,
a sintaxe narrativa deve ser pensada como um espetáculo que simula o
fazer do homem que transforma o mundo. Para entender a organização
narrativa de um texto é preciso, portanto, descrever o espetáculo,
determinar seus participantes e o papel que representam na historiazinha
simulada (1999, p. 16).
39. Este nível caracteriza-se pela busca de um Objeto de valor por um Sujeito.
Dessa forma, a narrativa pode ser aplicada não somente aos textos narrados, mas a
todos os enunciados onde exista um Sujeito que procure um Objeto de valor. Nessa
busca pelo Objeto de valor o Sujeito é instigado por um Destinador, que é o
idealizador da narrativa, ajudado por um Adjuvante ou prejudicado por um
Oponente. Estes "papéis" da narrativa são chamados de actanciais. Quanto mais
diferenciados e em maior quantidade mais o texto será carregado em ideologia, aqui
considerada como o sistema de valores do indivíduo (BATISTA, 2001, p. 150).
Destinador ------------------ Objeto de valor ------------------------- destinatário
Adjuvante-------------------- Sujeito ------------------------- Oponente
(COURTÉS, 1979, p. 80)
A narrativa apresenta um enunciado elementar que se caracteriza pela
relação de transitividade entre o Sujeito e seu Objeto de valor. Essa relação é que
permite a existência destes dois papéis, já que o Sujeito é sujeito de um Objeto de
valor e vice-versa, caracterizando uma relação sujeito-predicado.
Existem duas funções transitivas existentes entre Sujeito e Objeto de valor.
Uma delas é a de junção. Um Sujeito pode estar conjunto (ter ou manter) ou disjunto
(não ter ou não manter) do seu Objeto de valor, caracterizando um enunciado de
estado. Vale ressaltar, aqui, que a disjunção do Sujeito do seu Objeto de valor não
implica uma ausência de relação entre eles, o que caracterizaria uma inexistência
semiótica destes dois elementos. A disjunção, enquanto não-conjunção, é uma
relação virtual do Sujeito com seu Objeto de valor, que pode ser modificada através
de um fazer transformador.
40. A segunda função transitiva é este fazer transformador, operado por um
sujeito que modifica o estado em que se encontra o Sujeito semiótico em relação ao
seu Objeto de valor. Nesse caso, temos um enunciado de transformação. São estes
processos que, para Courtés, servem como base para a definição de narrativa como:
[...] transformation située entre deux états successifs/réversifs et différents
est fondée sur une opposition toute proche de celle qui a été notre point de
départ (permanence/changement), à savoir statisme vs dynamisme. D´un
côté, donc, les états dont nous venons de parler, de l´autre le faire qui
7
assure la transformation d´un état 1 en un état 2, ou inversement (1991, p.
72-73).
Uma narrativa é composta por um ou vários programas narrativos, que são os
sintagmas elementares da sintaxe narrativa. São definidos como “um enunciado de
fazer que rege um enunciado de estado” (BARROS, 1999, p. 20). Estes programas
podem ser de diversos tipos, dependendo das transformações que operam. Quanto
à função, podem ser de privação - quando o Sujeito passa de um estado conjunto a
outro disjunto do seu Objeto de valor -, ou de aquisição - quando o estado inicial é a
disjunção, passando a ser conjunção.
Quanto às relações entre os sujeitos do ser e do fazer, podem ser transitivas,
quando o sujeito do fazer e o sujeito de estado são assumidos por atores diferentes
na manifestação, ou reflexivas, quando ambos são assumidos pelo mesmo ator. O
quadro abaixo, elaborado por Barros (1999, p. 23), esquematiza estas relações:
Natureza da função Relação narrativa/discurso Denominação
Aquisição Transitiva Doação
Aquisição Reflexiva Apropriação
Privação Transitiva Espoliação
Privação Reflexiva Renúncia
7
[...] transformação situada entre dois estados sucessivos/reversivos e diferentes, é baseada sobre
uma oposição muito próxima daquela foi nosso ponto de partida (permanência/mudança), a saber:
estatismo vs dinamismo. De um lado, então, os estados dos quais iremos falar, e de outro, o fazer
que assegura a transformação de um estado 1 em um estado 2, ou o inverso (tradução nossa).
41. Os programas narrativos podem ser de base ou de uso. Os programas de
base relacionam-se com o objetivo final do Sujeito. Os programas de uso são os
meios necessários para a obtenção do objetivo final. Assim, os programas de base
correspondem à performance, enquanto que os programas de uso correspondem à
competência. Para a realização da performance será necessária uma competência.
"Tout PN de performance met em jeu des valeurs dites descriptives [...], tandis que le
PN de compétence joue sur des valeurs modales”8 (COURTÉS, 1991, p. 83).
Por mais que, a princípio, o discurso publicitário não pareça comportar uma
narrativa, na verdade ele propõe uma transformação, que no dizer de Nicole
Everaert-Desmedt, pode ser operada pelo produto anunciado.
A utilização do produto permite um regresso à ordem, um restabelecimento
do equilíbrio inicial que o publicitário teve o cuidado de mostrar perturbado
ou, pelo menos, seriamente ameaçado. Verifica-se também que os
enunciados publicitários traçam percursos narrativos, põem em jogo as
modalidades querer-saber-poder, atribuem papéis actanciais ao produto e
aos seus concorrentes, à firma, ao receptor, ao público, etc. (1984, p. 145,
grifo do autor).
Retomando o exemplo de anúncio publicitário de produto dietético, pode-se
dizer que o consumidor é o Sujeito que tem como Objeto de valor a /magreza/. Por
pressuposição, o público-alvo deste tipo de produto está em disjunção com seu
Objeto de valor. Para modificar este estado, será necessário um fazer transformador,
para que o Sujeito passe a estar conjunto com a /magreza/. O programa de base
corresponde a esse processo. No entanto, para que esta performance aconteça,
será necessário uma competência, representada pelo programa de uso "consumo do
produto dietético".
A sucessão de programas narrativos forma um percurso narrativo, que pode
ser de três naturezas distintas: percurso narrativo do Sujeito, do Destinador-
8
Todo programa narrativo de performance coloca em jogo os valores ditos descritivos [...], assim
como o programa narrativo de competência joga com os valores modais (tradução nossa).
42. manipulador e do Destinador-julgador. No primeiro, o Sujeito adquire a competência
necessária para a realização da performance, cumprindo vários papéis actanciais no
decorrer do progresso narrativo; no segundo, a visão da competência e da
performance parte não de quem recebe os valores modais e pratica a ação, mas de
quem doa ou destina esses valores ao Sujeito e o faz-fazer. Assim, enquanto o
Sujeito transforma estados, faz-ser (no nosso exemplo, o Sujeito deixa o estado
/gordo/ e passa ao estado /magro/), o Destinador-manipulador age sobre o Sujeito.
Ele faz-crer, um fazer de sedução (faz o consumidor acreditar que a compra do
produto vai modificar seu estado /gordo/) e faz-fazer, um fazer de manipulação (faz o
consumidor comprar o produto). No entanto, para haver manipulação é preciso que
o Sujeito aceite-a; para isso, é necessário que o Sujeito creia nos valores do
Destinador. É importante frisar que manipulação, no sentido aqui utilizado, não tem
nenhuma conotação psico-sociológica ou moral, conforme reforçou Courtés (1991, p.
100), designando unicamente uma relação de fazer-fazer.
É fácil perceber a função entre crença e aceitação através do exemplo aqui
utilizado. O anúncio publicitário de produtos dietéticos só funciona porque o
anunciante, que neste caso é o Destinador-manipulador, apela para a exigência
social do padrão estético /magro/. Se o Sujeito consumidor não aceitar esse Valor, o
anúncio não surtirá efeito. Esse tipo de reflexão deve ser levado em conta quando
se busca "culpar" a publicidade por algumas das mazelas do mundo. A publicidade
alimenta-se de um conjunto de valores disponíveis na cultura de cada comunidade,
mas não é responsável pela criação deles. Alimenta-se deles, alimenta-os, mas não
pode ser responsabilizada pela sua existência.
Os tipos de manipulação podem ser organizados segundo a competência do
manipulador e segundo a alteração modal realizada na competência do Sujeito
43. manipulado. A provocação e a intimidação fundamentam-se sobre valores negativos.
Na primeira, o Destinador leva o Sujeito a provar que as concepções negativas que
têm sobre ele (saber) não são verdadeiras. Na segunda, o Destinador ameaça
(poder) o Sujeito caso ele não faça o que foi pedido. Seja para escapar da
difamação ou da ameaça, o Sujeito deve-fazer. A sedução e a tentação agem sobre
valores positivos. Enquanto que na sedução o Destinador manipula através de uma
concepção positiva da imagem do Sujeito (saber), na tentação ele oferece algo em
troca (poder) caso o Sujeito realize a ação desejada. Em ambos os casos, o Sujeito
age em nome de um querer-fazer (BARROS, 1999, p. 33). No caso do anúncio
dietético, as formas de manipulação mais utilizadas são a intimidação (se você não
usar o produto x, vai engordar/não vai emagrecer) e a tentação (se você usar o
produto x, vai emagrecer). Interessante notar que, em ambos os casos, o
manipulador apela para o poder.
O último percurso, o do Destinador-julgador, é responsável pela sanção do
Sujeito, que pode ser de ordem cognitiva (interpretação) ou de ordem pragmática
(retribuição). Na sanção cognitiva, o Destinador-julgador verifica se a performance
do Sujeito está de acordo com os valores do contrato inicial estabelecido com o
Sujeito e com o sistema de valores que representa.
Essa operação cognitiva de leitura, ou melhor, de reconhecimento do
sujeito, consiste na interpretação veridictória dos estados resultantes do
fazer do sujeito. Os estados são, dessa forma, definidos como verdadeiros
(que parecem e são) ou falsos (que não parecem e não são) ou mentirosos
(que parecem e não são) ou secretos (que não parecem, mas são), e o
destinador neles acredita ou deles duvida (Id., 1999, p. 33).
Já na sanção pragmática, verifica-se se o Sujeito realizou os compromissos
assumidos no contrato. Em caso positivo, há uma recompensa; em caso negativo, o
Sujeito sofre a punição. O consumidor que aceitar o contrato do Destinador-
manipulador e comprar o produto terá como recompensa a boa forma física, ou pelo
44. menos a ilusão de estar trabalhando para consegui-la. O consumidor que não
cumprir o contrato permanecerá gordo, ou terá a sensação de não ter agido da
maneira correta para emagrecer.
Ao contrário da semântica fundamental, onde os valores são virtuais, sem
serem assumidos por um sujeito, na semântica narrativa os valores são reais e
aparecem ligados a um sujeito. A busca do Objeto de valor pelo Sujeito estabelece
uma relação de regência entre eles. O Sujeito quer ou deve algo: querer/poder-ser,
querer/poder-fazer, dever/poder-ser, dever/poder-fazer. Essa relação entre
predicados, conforme explica Courtés, é a modalização.
[...] pode-se estabelecer uma linha de demarcação entre o querer, por um
lado, e o saber e o poder, por outro. O querer, com efeito, instaura o sujeito
como tal, enquanto o saber e o poder estão diretamente ordenados ao
fazer: em outros termos, a modalidade do querer, por caracterizar o eixo
sujeito-objeto, incidiria mais sobre a relação de estado (conjuntiva,
disjuntiva ou de suspensão), enquanto o saber e o poder se inscreveriam
ao nível do fazer transformador (que assegura a passagem de uma relação
de estado para um outro diferente). (1979, p. 97).
Querer, dever, poder e saber são objetos modais, cuja aquisição é necessária
para a realização da performance. As modalizações podem ser do /ser/ ou do /fazer/.
As primeiras são responsáveis pelas modalizações dos enunciados de estado, e
atribuem existência modal ao sujeito de estado (BARROS, 1999, p. 42). Assim, a
relação entre o Sujeito consumidor e o valor magreza é desejável e possível, já que
o consumidor quer e pode ser magro, desde que cumpra o contrato proposto pelo
Destinador anunciante.
Já as modalizações do fazer são responsáveis pela competência do Sujeito
para realizar a transformação do seu estado. Como foi visto anteriormente, os
objetos modais são dados pelo Destinador ao Sujeito para que haja a passagem de
um estado a outro, para que o Sujeito fique conjunto com seu Objeto de valor. No
45. caso do anúncio publicitário, o Destinador sociedade instaura um dever-fazer e o
Destinador anunciante instaura um poder-fazer (ser magro) no Sujeito consumidor.
Esse valor buscado pelo Sujeito é um Objeto de valor, com o qual se entra em
conjunção ou disjunção na performance principal (FIORIN, 2000, p. 28). Em resumo,
no anúncio do produto dietético tem-se um Objeto de valor /magreza/ buscado por
um Sujeito /consumidor/, destinado por um Destinador /anunciante/. O Sujeito é
instaurado de um /querer/ por ele mesmo, de um /dever/ pela sociedade, de um
/poder-saber/ pelo anunciante (que informa as propriedades dietéticas do produto) e
de um /poder-fazer/, também pelo anunciante. De acordo com Madeira (1996, p. 63-
64), o discurso publicitário, em geral, tem como processo básico de realização as
instâncias informativas, onde a modalização ocorre através do /poder-fazer-saber/, e
formativas, com a modalização /poder-fazer-querer/. Informação e formação
permanecem, então, indissociáveis no processo. No entanto, com base nos
exemplos utilizados nesse trabalho, pode-se ampliar a modalização comum na
publicidade a um /poder-fazer-fazer/, que é a instância máxima da manipulação.
2.6.3 Nível discursivo
Quando a narrativa chega até a superfície, ao nível de manifestação, temos a
passagem para as estruturas discursivas, o nível mais superficial do percurso
gerativo da significação. Segundo Barros (1999, p. 53), “as estruturas discursivas
são as mais específicas, mas também mais complexas e ‘enriquecidas’
semanticamente, que as estruturas narrativas e fundamentais".
46. É no nível discursivo que o enunciador transmite seus sistemas de valores
para o enunciatário através das informações que passa, com o objetivo de
convencê-lo, persuadi-lo. As estruturas narrativas convertem-se em discursivas
quando podemos perceber a presença do sujeito da enunciação no enunciado. É ele
quem escolhe os temas e figuras que revestem os valores abstratos da narrativa,
que define os atores para os papéis actanciais, que determina as relações entre
pessoa, tempo e espaço e a enunciação. Na discursivização, podemos perceber os
processos utilizados pelo enunciador para a manipulação do enunciatário.
A sintaxe discursiva aborda a relação entre a enunciação e o enunciado. A
enunciação é o processo de produção do discurso, pressuposta pela existência do
enunciado. A existência de um enunciado traz à tona a presença de um enunciador,
que realiza um fazer persuasivo e de um enunciatário, que realiza um fazer
interpretativo. A relação entre essas instâncias dá margem ao estudo da embreagem
e da debreagem, que são vistas de forma diferente por Fiorin e Pais.
Para Fiorin (2000, p. 41), na debreagem projeta-se no enunciado tanto a
pessoa (eu/tu), o tempo (agora) e o espaço (aqui) da enunciação, quanto a pessoa
(ele), o tempo (então) e o espaço (lá) do enunciado. No primeiro caso (projeção do
eu-aqui-agora), ocorre uma debreagem enunciativa; no segundo caso (projeção do
ele-então-lá), ocorre uma debreagem enunciva.
As debreagens enunciativa e enunciva estão relacionadas com os processos
de aproximação e distanciamento do discurso em relação à enunciação. Como todo
discurso procura persuadir o enunciatário de que seu conteúdo é verdadeiro, estes
mecanismos têm a finalidade de criar a ilusão de verdade. Quanto mais distante
estiver o discurso da enunciação, maior a sensação de objetividade.
Existem, como bem se sabe, recursos que permitem ‘fingir’ essa
objetividade, que permitem fabricar a ilusão de distanciamento, pois a
enunciação, de todo modo, está lá, filtrando por seus valores e fins tudo o
47. que é dito no discurso. O principal procedimento é o de produzir o discurso
na terceira pessoa, no tempo do ‘então’ e no espaço do ‘lá’ (BARROS,
1999, p. 55, grifo da autora).
Ao contrário da debreagem enunciva, a debreagem enunciativa em primeira
pessoa produz o efeito de subjetividade, aproximando a enunciação do enunciado. A
debreagem enunciva é muito freqüente no discurso da imprensa, que deve manter-
se imparcial em relação aos fatos narrados. A debreagem enunciativa, por sua vez,
está mais presente na literatura, na poesia. No discurso publicitário, no entanto,
observamos a presença de ambos os procedimentos com o mesmo fim persuasivo.
Os anúncios publicitários falam de forma objetiva, aconselhando, mostrando as
qualidades de um produto, como se não tivesse nenhuma relação com ele. É a
busca do efeito de neutralidade em relação ao que se diz, falso pela presença de um
conflito de interesses. Mas a busca da persuasão também pode ser feita através do
uso do discurso subjetivo, quando a publicidade coloca o próprio anunciante para
falar sobre o que está sendo anunciado.
Outro processo utilizado para a criação de um efeito de realidade é a cessão
da palavra a um interlocutor em discurso direto. Chama-se debreagem interna, e
acontece na publicidade quando o anúncio usa o testemunho de uma pessoa real,
conhecida do público. O fator persuasivo vem da referência ao real, já que a pessoa
existe mesmo, e por ser famosa, é considerada formadora de opinião. Já a
embreagem, é “o mecanismo em que ocorre uma suspensão das oposições de
pessoa, de tempo ou de espaço” (FIORIN, 2000, p. 52).
Seguindo a visão de Pais sobre os procedimentos de embreagem e
debreagem, Batista (2001, p. 152) coloca que estas duas operações também têm o
objetivo de criar a ilusão de verdade, mas diferente de Fiorin, o procedimento da
embreagem enunciativa considera a proximidade do Sujeito, lugar e tempo,
48. enquanto que a debreagem enunciativa define-se pelo distanciamento do Sujeito e
corresponde a um não-eu, não-aqui e não agora.
O processo de persuasão do discurso passa pela relação das estratégias
argumentativas, utilizadas pelo enunciador para fazer com que o enunciatário creia.
A linguagem, portanto, é a estratégia argumentativa do discurso, da qual o
enunciador se utiliza para atingir seu objetivo e a partir da qual o enunciatário
realizará a interpretação. Segundo Fiorin (2000, p. 53), todo discurso é persuasivo,
portanto, argumentativo, daí a impossibilidade de separar os discursos em
argumentativos ou não argumentativos.
A persuasão acontece a partir de um contrato estabelecido entre o enunciador
e o enunciatário. O enunciador pode trabalhar com a verdade ou com a falsidade,
com o dito e o não-dito. Cabe ao enunciatário interpretar e crer ou não crer, e
perceber o que realmente está sendo dito ou a presença do que não foi dito. Este
processo, por mais intrincado que pareça, é o que desperta a atenção do
enunciatário para o discurso, através do estranhamento provocado pela utilização
não-tradicional da língua, seja no seu aspecto lógico, semântico, sintático,
morfológico ou fonológico. Na prática, no discurso publicitário temos a utilização das
figuras de retórica, como a antítese e a ironia, a metáfora, a metonímia, o eufemismo
e a hipérbole, a elipse, a paronomásia, a rima, a aliteração, entre outras. Muitas
dessas figuras podem ser percebidas no plano da manifestação do discurso, que
será comentado adiante. No entanto, podemos adiantar como exemplo, no caso da
publicidade de produtos dietéticos, alguns procedimentos: a expressão "fique em
forma" pressupõe o não-dito que a pessoa não tem uma boa forma, e vai precisar do
produto que está sendo anunciado. Os termos "gordurinhas" e "cheinha", por sua
vez, são um eufemismo para gordura, gorda, obesa. A imagem de uma fita métrica e
49. de um vestido justo são metáforas para um corpo magro, segundo o padrão de
beleza que baseia o contrato estabelecido entre enunciador e enunciatário nesse
tipo de discurso. Portanto, segundo Barros,
o exame das relações entre efeitos e mecanismos é uma das etapas da
construção dos sentidos do texto, de seus fins e de suas 'verdades'. Dá-se
já um grande passo em direção ao contexto sócio-histórico e à formação
ideológica em que o texto se insere (1999, p. 62).
A estrutura discursiva recobre a estrutura narrativa no nível da superfície.
Essa passagem é perceptível pela correspondência dos papéis actanciais por
atoriais e pela tematização e figurativização que revestem os esquemas narrativos
abstratos. Temos, então, a semântica discursiva.
Por mais que haja uma sobreposição entre as duas estruturas, com relações
de subordinação, nem sempre os papéis actanciais de uma vão corresponder
exatamente aos papéis atoriais da outra. Conforme Greimas,
9
A relação entre ator e atuante , longe de ser uma simples relação de
inclusão de uma ocorrência numa classe, era dupla:
A1 A1 A2 A3
a1 a2 a3 a1
porque se um atuante (A1) podia ser manifestado no discurso por vários
atores (a1, a2, a3), o inverso era igualmente possível; um só ator (a1) podia
ser o sincretismo de vários atuantes (A1, A2, A3) (1977, p. 179).
Retomando o anúncio de produto dietético para exemplificar este processo,
têm-se dois atores para um mesmo papel actancial de Destinador. A sociedade, cujo
padrão de beleza difundido é o da magreza, é Destinador de um /dever-ser magro/ e
o ator consumidor que lê o anúncio é Destinador de um /querer-ser magro/. Neste
último caso, vemos também que um mesmo ator, o consumidor, assume dois papéis
actanciais: o de Destinador de seu próprio querer, e o de Sujeito em busca de um
9
Atuante corresponde a actante.
50. Objeto de valor (magreza). Adotando a representação gráfica proposta por Greimas,
seriam estas as relações:
DESTINADOR consumidor
sociedade consumidor DESTINADOR SUJEITO
A semântica discursiva tem ainda como componentes a tematização e a
figurativização. A tematização compreende os valores abstratos do texto, que estão
expressos em palavras e sintagmas com elementos comuns de significação,
podendo ser agrupados. A redução destes grupos a elementos mínimos permite a
identificação das idéias em oposição que constituem o nível fundamental do
discurso. Já a figurativização reveste o esquema narrativo de elementos concretos,
especificando e particularizando o discurso. Neste processo, o autor escolhe as
figuras que vai utilizar para caracterizar atores, tempo, espaço e valores.
Nous qualifions, en effet, de figuratif tout signifié, tout contenu d'une langue
naturelle et, plus largement, de tout système de représentation (visuel, par
exemple), qui a un correspondent au plan du signifiant (ou de l'expression)
du monde naturel, de la réalité perceptible. [...] Par opposition ao figuratif, le
thématique est à concevoir comme n'ayant aucune attaché avec l'univers du
monde naturel: il s'agit ici de contenus, de signifiés des systèmes de
représentation, qui n'ont pas de correspondant dans le référent. Si le
figuratif se définit par la perception, le tématique, lui, se caractérise par son
10
aspect proprement conceptuel (COURTÉS, 1991, p. 163).
Conforme alerta Fiorin (2000, p. 65), a oposição entre abstrato/concreto não
representa uma polarização, mas um processo contínuo no qual, de maneira
gradual, do mais abstrato chega-se ao mais concreto.
10
Nós qualificamos, com efeito, de figurativo todo significado, todo conteúdo de uma língua natural e,
de forma mais abrangente, todo sistema de representação (visual, por exemplo), que tem um
correspondente no plano do significante (ou de expressão) do mundo natural, da realidade
perceptível. [...] Por oposição ao figurativo, o temático é concebido como não tendo nenhuma ligação
com o universo do mundo natural: trata-se aqui de conteúdos, de significados de sistemas de
representação, que não têm correspondentes junto ao referente. Se o figurativo se define pela
percepção, o temático se caracteriza pelo seu aspecto propriamente conceitual (tradução nossa).
51. De acordo com a predominância de temas ou figuras em um discurso, ele
pode ser classificado como temático ou figurativo. Os discursos temáticos são
interpretativos, pois através das classificações e categorizações procuram explicar a
realidade; já os figurativos são descritivos, procuram construir uma realidade através
da utilização de elementos concretos como, por exemplo, a menção à idade das
pessoas nas reportagens jornalísticas. Normalmente, esta informação não é
relevante no contexto, mas remete ao mundo real, reforçando a "imparcialidade" do
conteúdo e, por conseguinte, do veículo de comunicação.
Na publicidade estão presentes os temas que refletem os valores abstratos do
percurso narrativo. No percurso do anúncio hipotético usado como exemplo, o tema
/boa forma/ ou /magreza/ é um valor a ser conquistado pelo Sujeito. O percurso
narrativo que vai do estado /gordo/ para /magro/ poderia ser tematizado pela
realização de exercícios físicos. No entanto, como o anúncio é de um produto
dietético, a promessa é de que o consumidor só precisa dele para emagrecer.
Assim, o percurso descrito é tematizado na forma do consumo deste tipo de produto.
As figuras que poderiam ser utilizadas para se chegar a esse tema são, conforme já
descrito anteriormente, a fita métrica, a imagem de uma mulher magra, um vestido
justo, uma pena, cores claras, as palavras "leve", "magra", "boa forma", "diet", "light"
e até termos mais amplos, apropriados pela publicidade para dar credibilidade à sua
promessa, como "vida saudável" (buscar a boa forma pode ser futilidade, mas
buscar uma vida saudável é relevante).
Assim como na relação entre atores e actantes, onde um ator pode ser a
representação de vários actantes, e um papel actancial pode ser assumido por
vários atores, um elemento figurativo pode servir a vários temas, da mesma maneira
que um tema pode ser formado por várias figuras. No caso da invariabilidade da
52. figura, a percepção do tema no qual está inserida vai depender do contexto da
discursivização. O arroto, no Brasil, é considerado gesto de má-educação. Em
alguns países do oriente médio, no entanto, é sinal de polidez, de apreciação da
refeição. No nível axiológico, o arroto é disfórico na cultura brasileira, e eufórico na
cultura médio-oriental. Essas relações podem ser visualizadas no quadro abaixo:
Figura: arroto
Brasil Oriente Médio
Axiologia disfórico eufórico
Tema má-educação polidez
Na relação oposta, quando um tema é constituído por várias figuras
diferentes, temos o que Courtés (1991, p. 167) chama de discurso parabólico: um
mesmo conceito é ilustrado por diversas figuras, onde a austeridade do tema dá
lugar ao prazer do figurativo. Conforme o autor francês, o discurso parabólico, pela
sua força de persuasão, é muito utilizado não só no mito, no conto, na religião, mas
também no discurso político e no publicitário. Quanto a este último, pode-se retomar
o exemplo do anúncio do produto dietético para exemplificar o processo. Existe um
tema - a boa forma - e várias figuras que ilustram essa promessa, conforme já citado
acima: a fita métrica, a imagem de uma mulher magra, um vestido justo, uma pena,
cores claras, as palavras "leve", "magra", "boa forma", "diet", "light".
As figuras utilizadas para a ilustração de um tema são escolhidas pelo
enunciador. Há figuras, no entanto, que já são intimamente relacionadas com um
determinado tema. São os símbolos, elementos concretos a veicular um conteúdo
abstrato (FIORIN, 2000, p. 69). Essa noção, aplicada ao papel da figura em relação
ao tema, segue a linha semiótica de Pierce, que define o símbolo como um dos tipos
de signos cuja relação com o referente é arbitrária e convencional (PIGNATARI,
1992, p. 25).
53. Barros (1992, p. 25) também retoma a semiótica de Peirce ao identificar um
outro tipo de figura, o ícone, signo que possui semelhança ou analogia com o seu
referente. Para a autora, esse processo no discurso tem a função de ancoragem, de
construção do efeito de realidade, para tornar o discurso crível.
Na iconização [do discurso], mas também nas demais etapas da
figurativização, o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o
enunciatário a reconhecer 'imagens do mundo' e, a partir daí, a acreditar na
'verdade' do discurso, graças, em grande parte, ao reconhecimento de
figuras do mundo (1999, p. 72).
Os ícones, sob esse aspecto, são informações reais sobre espaço, tempo e
também sobre o sujeito. Como exemplo na publicidade, podemos citar as
campanhas da empresa de cosméticos Natura, cuja estratégia de comunicação
consiste em mostrar mulheres "reais" (que não sejam modelos), apresentando, ao
lado de suas fotografias, informações como idade e profissão. A empresa, enquanto
enunciatária, deseja com isso dar credibilidade aos seus produtos, mostrando
mulheres "normais", belas de acordo com a idade que têm.
Ampliando ainda mais a contribuição de Peirce para a classificação das
figuras com base na sua teoria semiótica, pode-se considerar a presença do índice,
o terceiro tipo de signo. O índice "mantém uma relação direta com o seu referente,
ou a coisa que produz o signo" (PIGNATARI, 1992, p. 25). Na publicidade, um
exemplo de índice é a utilização de aroma de pizza em determinada campanha de
outdoor veiculada pela Pizza Hut. A figura do cheiro ilustra o percurso temático do
sabor e é índice na medida em que tem relação direta com a pizza que o produziu.
Uma outra relação entre tema e figura pode ser percebida na metáfora,
conforme a concepção de Courtés (1991, p. 169). Para o autor, existe na metáfora
uma relação entre duas figuras que é mediada por outra figura ou por um tema. A
metáfora "rosa" para "moça" passa pelo tema "beleza". Já na frase "Cette faucille
54. d'or dans le champ des étoiles"11, a metáfora de "foice" para "lua" reconhece-se pela
cor e forma que ambas têm em comum. A figura produto da metáfora, no entanto,
vai ilustrar um tema. O tema, ilustrado por uma figura produto de metáfora, pode se
encaixar na concepção de Barthes (1975, p. 131) para o mito. Segundo o autor, o
mito é um sistema de comunicação, uma mensagem, cuja estrutura pode ser
representada da seguinte maneira:
significante signficado
significante significado
MITO
Mitos, também, são projeções da alma que emanam da psique inconsciente,
e representam sonhos coletivos, aspirações instintivas, sentimentos e padrões de
pensamento da humanidade, conforme o pensamento de Jung interpretado por
Randazzo (1997, p. 11). Desta forma, tem-se o mito como o tema projetado na
discursivização, algo que os consumidores reconhecem e do qual precisam.
Considerando o anúncio de produto dietético como exemplo, o tema /boa forma/
pode ser expandido para /beleza/, cujo caráter mitológico é patente. Em relação à
imagem de uma fita métrica, o significante seria a foto do objeto e o significado seria
o objeto para tirar medidas. Essa combinação de significante-significado, na
estrutura mitológica de Barthes, daria origem a um significante fita métrica, que por
sua vez teria como significado a /magreza/. O signo oriundo dessa estrutura seria,
então, a /boa forma/, a /beleza/.
Apesar de cada tipo de figura ser analisada isoladamente, sua apreensão no
texto decorre de uma análise em conjunto, da percepção de um percurso figurativo,
conforme explica Fiorin:
11
Esta foice de ouro no campo de estrelas.