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N
ASCIDA em 1983, em uma fa-
mília abastada da cidade de
São Paulo, filha de uma psi-
cóloga e de um engenheiro,
a menina estudou nos melhores colé-
gios, teve ao seu alcance facilidades de
uma vida bem estruturada e, no ano de
2002, cursava Direito na Pontifícia Uni-
versidade Católica da capital.
Nesse mesmo ano, a jovem bonita,
de aparência angelical, envolvida em
um relacionamento doentio com um
rapaz pouco mais velho, de família hu-
milde e mal visto pelos seus pais, co-
meça a usar drogas e se volta contra
sua família. Na noite de 31 de outubro
desse mesmo ano, ela tem seus pais
mortos em um assalto à sua residência.
Mais tarde, já com o irmão, finge
surpresa ao saber do ocorrido, e telefo-
na pedindo ajuda ao namorado.
Demonstra sofrimento no enterro
dos pais, para, dias depois, confessar a
participação no crime. Revela detalhes,
como a ida ao motel para forjar um álibi.
A arma escondida num urso de pelúcia.
A até então doce criatura alimentava
ódio pelos pais, e durante muito tempo,
seduziu seu namorado e seu cunhado
com a promessa de que a única manei-
ra de serem livres para viver o relaciona-
mento, era dando fim a Alfred e Marísia.
Até que finalmente criaram um pla-
no para simular um latrocínio e assas-
sinar o casal Richthofen, podendo as-
sim usufruir da herança de Suzane.
Até que fosse julgada e condenada,
passaram-se 4 anos, com inúmeras
tentativas dos advogados de defesa
para que ela fosse liberada ou tivesse
sua acusação atenuada. Somente em
julho de 2006, Suzane e Daniel foram
condenados a 39 anos de reclusão em
regime integralmente fechado. A im-
prensa usava de seu alcance e pene-
tração para informar o público sobre a
vida da condenada. Um personagem
foi criado e era alimentado.
O ano agora é 2018. Mês de maio. O
sol brilha no céu azul e, atrás da mulher
bonita de cabelos longos e bem trata-
dos, de olhar que chega a ser sedutor,
a porta da penitenciária feminina de
Tremembé se fecha e assim, a pessoa
que matou seus pais a pauladas ganha
a liberdade mais uma vez, num absur-
do concedido aos encarcerados do
regime semiaberto, benefício esse que
ela adquiriu há 3 anos, por bom com-
portamento. A sua espera, o noivo. E a
imprensa.
Desde 2007, Suzane construiu e
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homo e heteroafetivos, inclusive fora
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quais as motivações e sentimentos
essas pessoas comuns dispõem para
entregar seu tempo e sua vida à uma
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um criminoso já sentenciado.
A mídia, que tantas outras vezes
ficou entre a condenada e o público,
cumpriu novamente seu papel, di-
vulgando, acompanhando e, de certa
forma, influenciando a população, po-
pulação essa formada por gente que
nutre ódio e gente que sente amor
pela personagem construída.
Quais os fascínios que criminosos
exercem sobre a mente das pessoas?
Exemplos existem às centenas, manía-
cos recebem cartas de mulheres apai-
xonadas, assassinos confessos tornam-
-se pastores com seguidores fiéis.
Psicólogos afirmam que traumas
e abusos sofridos em alguma idade
levam pessoas a se relacionar com
criminosos; em um relacionamento
desses, exercem o controle que não ti-
veram em outras fases de sua vida. Tra-
gédias e crimes são vendidos através
da arte, do cinema, do teatro, e até da
música, mas a tragédia real atrai de for-
ma irresistível, por ser algo particular,
mas ao mesmo tempo, muito próximo
de qualquer um. Fatos que envolvem
violência brutal sempre são sucesso e
manchetes. A provedora global de fil-
mes e séries de televisão via streaming
(Netflix) soma atualmente mais de 100
milhões de assinantes. E tem em seu
catálogo diversos filmes, séries e do-
cumentários onde o foco principal é a
violência, com personagens na maioria
das vezes extremamente envolventes.
O sensacionalismo da mídia atrai
milhões de espectadores para os noti-
ciários de TVs, rádios e jornais. Vende-
-se a notícia e explora-se a comoção
humana. Crimes que chocaram e mar-
caram uma época por sua natureza ab-
surda e cruel, tiveram cobertura mórbi-
da e incansável da mídia. Transmissões
em tempo real, especiais de domingo,
entrevistas com envolvidos e terceiros,
tudo numa exploração para alimentar
a curiosidade do público, em um incrí-
vel fenômeno midiático. É inegável que
a imprensa tem um papel importante
em um Estado Democrático de Direito,
pois é livre a manifestação de pensa-
mento (art. 5, IV, da CF), e é assegura-
da a liberdade de informação (art. 5º,
XIV, da CF), como direitos fundamen-
tais, porém, a curiosidade pelos crimes
hediondos, pela desgraça, atrai muito
mais do que boas noticias. A curiosida-
de pelos psicopatas também.
Sendo assim, a imprensa é tenden-
ciosa. Vende o que é esperado. Tragé-
dias vendem. E sabendo disso, a mídia,
que deveria ter como princípio fazer
saber, esbarra na necessidade da au-
diência, dos lucros, do ibope.
A mídia que poderia conscientizar,
espalha ideias de que o crime compen-
sa, graças à demora na solução dos ca-
sos, na sobreposição de outros acon-
tecimentos, o que pode afetar algumas
pessoas e levá-las a cometer crimes
semelhantes apenas pelo desejo de se
tornar famoso também. Acende-se na
pessoa com características propícias,
a vontade de tentar. Existem muitos
casos de imitadores. A mídia incita a
prática delitiva. Quanto mais se noticia,
mais crimes acontecem, em maior ou
menor grau de gravidade.
Se a imprensa se reservasse ao traba-
lho de informar, mas usando métodos
menos exagerados, sem a glamurização
do crime, sem apelo emocional desca-
bido, certamente os criminosos teriam
seu merecido fim. O silêncio absoluto do
esquecimento. Cumpririam suas penas
sem que se tornassem fenômenos.
“
Acho que as pessoas
amam monstros.
Então, quando
têm uma chance,
elas querem vê-
los. As pessoas
projetam seus
medos. Elas querem
a reconfirmação de
que sabem quem
são as pessoas
ruins, e que não são
elas. Então talvez
seja isso, nós todos
temos medo, e o
medo enlouquece as
pessoas” – Amanda
Knox, protagonista de
documentário exibido
na Netflix, acusada de
matar sua colega de
quarto em 2006 e hoje
em liberdade por falta
de provas.
A sedução do perigo e o
papel exercido pela mídia
Por Evelyn Schuermann

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  • 1. N ASCIDA em 1983, em uma fa- mília abastada da cidade de São Paulo, filha de uma psi- cóloga e de um engenheiro, a menina estudou nos melhores colé- gios, teve ao seu alcance facilidades de uma vida bem estruturada e, no ano de 2002, cursava Direito na Pontifícia Uni- versidade Católica da capital. Nesse mesmo ano, a jovem bonita, de aparência angelical, envolvida em um relacionamento doentio com um rapaz pouco mais velho, de família hu- milde e mal visto pelos seus pais, co- meça a usar drogas e se volta contra sua família. Na noite de 31 de outubro desse mesmo ano, ela tem seus pais mortos em um assalto à sua residência. Mais tarde, já com o irmão, finge surpresa ao saber do ocorrido, e telefo- na pedindo ajuda ao namorado. Demonstra sofrimento no enterro dos pais, para, dias depois, confessar a participação no crime. Revela detalhes, como a ida ao motel para forjar um álibi. A arma escondida num urso de pelúcia. A até então doce criatura alimentava ódio pelos pais, e durante muito tempo, seduziu seu namorado e seu cunhado com a promessa de que a única manei- ra de serem livres para viver o relaciona- mento, era dando fim a Alfred e Marísia. Até que finalmente criaram um pla- no para simular um latrocínio e assas- sinar o casal Richthofen, podendo as- sim usufruir da herança de Suzane. Até que fosse julgada e condenada, passaram-se 4 anos, com inúmeras tentativas dos advogados de defesa para que ela fosse liberada ou tivesse sua acusação atenuada. Somente em julho de 2006, Suzane e Daniel foram condenados a 39 anos de reclusão em regime integralmente fechado. A im- prensa usava de seu alcance e pene- tração para informar o público sobre a vida da condenada. Um personagem foi criado e era alimentado. O ano agora é 2018. Mês de maio. O sol brilha no céu azul e, atrás da mulher bonita de cabelos longos e bem trata- dos, de olhar que chega a ser sedutor, a porta da penitenciária feminina de Tremembé se fecha e assim, a pessoa que matou seus pais a pauladas ganha a liberdade mais uma vez, num absur- do concedido aos encarcerados do regime semiaberto, benefício esse que ela adquiriu há 3 anos, por bom com- portamento. A sua espera, o noivo. E a imprensa. Desde 2007, Suzane construiu e manteve sólidos relacionamentos, homo e heteroafetivos, inclusive fora da cadeia, o que nos leva a pensar quais as motivações e sentimentos essas pessoas comuns dispõem para entregar seu tempo e sua vida à uma mente perversa e doente como a de um criminoso já sentenciado. A mídia, que tantas outras vezes ficou entre a condenada e o público, cumpriu novamente seu papel, di- vulgando, acompanhando e, de certa forma, influenciando a população, po- pulação essa formada por gente que nutre ódio e gente que sente amor pela personagem construída. Quais os fascínios que criminosos exercem sobre a mente das pessoas? Exemplos existem às centenas, manía- cos recebem cartas de mulheres apai- xonadas, assassinos confessos tornam- -se pastores com seguidores fiéis. Psicólogos afirmam que traumas e abusos sofridos em alguma idade levam pessoas a se relacionar com criminosos; em um relacionamento desses, exercem o controle que não ti- veram em outras fases de sua vida. Tra- gédias e crimes são vendidos através da arte, do cinema, do teatro, e até da música, mas a tragédia real atrai de for- ma irresistível, por ser algo particular, mas ao mesmo tempo, muito próximo de qualquer um. Fatos que envolvem violência brutal sempre são sucesso e manchetes. 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A mídia incita a prática delitiva. Quanto mais se noticia, mais crimes acontecem, em maior ou menor grau de gravidade. Se a imprensa se reservasse ao traba- lho de informar, mas usando métodos menos exagerados, sem a glamurização do crime, sem apelo emocional desca- bido, certamente os criminosos teriam seu merecido fim. O silêncio absoluto do esquecimento. Cumpririam suas penas sem que se tornassem fenômenos. “ Acho que as pessoas amam monstros. Então, quando têm uma chance, elas querem vê- los. As pessoas projetam seus medos. Elas querem a reconfirmação de que sabem quem são as pessoas ruins, e que não são elas. Então talvez seja isso, nós todos temos medo, e o medo enlouquece as pessoas” – Amanda Knox, protagonista de documentário exibido na Netflix, acusada de matar sua colega de quarto em 2006 e hoje em liberdade por falta de provas. A sedução do perigo e o papel exercido pela mídia Por Evelyn Schuermann