O documento discute a relação entre trabalho e cidadania ao longo da história. Originalmente na Grécia Antiga, o trabalho era visto como algo negativo e excludente da cidadania, que era reservada àqueles que não precisavam trabalhar. Ao longo dos séculos, o trabalho passou a ser visto de forma positiva e como promotor da cidadania na sociedade industrial moderna. O documento também analisa os pensamentos de John Locke, que vinculou a cidadania à propriedade do corpo e do trabalho.
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
1. Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania*
Introdução
O presente estudo tem a sua motivação no confronto quotidiano ao qual o mundo
atual é protagonista, um confronto que se realiza através das grandes e rápidas
transformações, pondo em crise garantias arduamente conquistadas que até então eram
tidas como certezas absolutas. Entre estas transformações, as econômicas e tecnológicas
que vivenciamos atualmente têm enfraquecido as formas de organização e de proteção
ligadas ao trabalho, influenciando na relação deste último com a cidadania.
Para uma melhor compreensão da sociedade presente, faz-se uso da genealogia
buscando no passado, elementos que permitam esclarecer a construção da realidade atual.
No caso da cidadania, o principal elemento a caracterizá-la no mundo antigo era a
liberdade. Esta vinha representada pelo fato do indivíduo não ter a necessidade de
trabalhar. Nesta perspectiva, os trabalhadores eram excluídos da sociedade. Esta última, e
por conseqüência também a cidadania, se contrapunham ao trabalho. Partindo do trabalho
sob a forma de escravidão – e como elemento em contraposição a cidadania –, a
humanidade conseguiu traçar um percurso que conduziu à liberdade através do trabalho.
Chegou-se a um patamar no qual o trabalho passa a ser considerado como promotor de
cidadania. Se na Antigüidade o trabalho significava a marginalização dos indivíduos da
sociedade, hoje, contrariamente, significa inclusão. O trabalho passa, deste modo, a se
transformar no centro irradiador de valores e de integração das sociedades modernas.
Neste sentido, vem salientado que nos últimos milênios o trabalho (entendido
como a atividade na qual o homem, através das sua ações, transforma a natureza) tem
representado para a sociedade ocidental a sua ocupação fundamental, vindo a adquirir
uma dimensão moderna e se transformar em um fator de produção com o advento da
Revolução Industrial. Tendo esta última, conduzido à atual noção de trabalho, ou seja, a
de emprego.
O conceito de cidadania, por sua vez, herdou de sua origem grega a índole
política, enquanto da latina, o aspecto jurídico. Ao realizar este percurso milenário, a
*
Prof. Dra. Aline dos Santos Laner. Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil
2. cidadania conquistou uma maior importância ampliando as suas áreas de interesse. Nesta
perspectiva, a noção de cidadania passou a vincular-se a evolução do Estado,
distanciando-se, deste modo, da concepção clássica ou cívico-republicana da cidadania
como prática. Neste movimento, aproxima-se da idéia liberal ou liberal-individualista da
cidadania enquanto status.
Em tal contexto, o dilema que atualmente se manifesta na relação entre trabalho e
cidadania, é caracterizado: pelo emprego – fundador do status de cidadão, na sociedade
industrial – e, o status de cidadão – propiciador do direito ao emprego. A grande questão,
enquadrada pela crise da sociedade assalariada e que vem examinada, refere-se a
diminuição ou desaparecimento das características tradicionais do emprego (até então,
promotoras de cidadania). Neste âmbito, questiona-se sobre as possibilidades ou não, da
interconexão entre trabalho e cidadania e as novas possibilidades de recomposição social.
Considerações sobre a cidadania
Segundo Giovanna Zincone1, a cidadania possui em sua essência uma ligação com
os direitos e com a participação. E ainda, com a utilização destes direitos, englobando
desta forma os comportamentos. Comportamentos que englobam a distribuição de
recursos na sociedade civil e as diversas organizações políticas e que resultam da
aplicação dos direitos de cidadania. Mais precisamente, dos direitos de cidadania social,
civil e política. Desta forma, uma considerável presença de direitos de cidadania
potencializa o desenvolvimento da participação e vice-versa.
Ao conjunto de direitos civis, políticos e sociais Theodor H. Marshall2 refere
como cidadania. A distribuição deste conjunto de direitos, porém não é uniforme, já que
os regimes democráticos, tanto contemporâneas como antigos sempre produziram os seus
excluídos.
Deste modo, ser cidadão significa possuir direitos e deveres, ser súdito e
soberano. Tal situação é descrita na Declaração dos Direitos Humanos das Nações
1
ZINCONE, G. Da sudditti a cittadini. Bologna: Il Mulino, 1992, p. 10.
2
MARSHALL, T. H. Cittadinanza e classe sociale. Torino: UTET, 1976.
3. Unidas em 1948. Documento este, inspirado na Constituição dos Estados Unidos, de
1776 e na Revolução Francesa de 1798. O âmago da proposta dos direitos de cidadania
reside na igualdade entre os homens perante a lei, sem discriminação de raça, sexo,
religião ou concepção política. Concerne ainda, o direito sobre o próprio corpo e sobre a
própria vida, o direito a educação, a saúde, a habitação, ao laser, a livre expressão de
pensamento e de participação política.
Em contrapartida, o cidadão também possui deveres, tais como: assegurar a
difusão dos direitos a todos, responsabilidade perante a comunidade, seguir as normas
propostas e decididas coletivamente, participar governo, de modo direto ou indireto.
Apesar da cidadania estar sempre ligada aos direitos do homem, esta é muito
posterior ao conceito de cidadão. Tal fato conduz a idéia de cidadania enquanto status, ao
qual se baseiam os próprios critérios de cidadania, por exemplo: a cidadania romana
representava um status concordado em função de determinados interesses políticos.
O poder político, a seu turno, encontra-se de acordo com uma ou outra dada
situação, com uma parte dos direitos para uma determinada parte da população. Desta
forma, a cidadania plena e total se opõe a uma cidadania incompleta. Este aspecto
encontra-se no cerne da interpretação da Declaração francesa dos direitos do homem e do
cidadão, de 1789. Esta Declaração se fundamenta no direito natural, que constitui a base
do pensamento de soberania e das relações entre o homem e o cidadão. Neste âmbito,
graças à soberania da lei, o homem surge no espaço político como cidadão.
Considerar a cidadania um status não significa considerá-la como um fenômeno
arbitrário. Quando os direitos dos cidadãos não acompanham os do homem, estes direitos
são suscetíveis de reinvidicações políticas por parte da população que se encontra
impedida de usufruí-los. Seguindo este raciocínio, a cidadania não é mais uma utopia e
sim, uma relação de forças individuais ou coletivas no interior da coletividade, ou seja,
entre indivíduo e Estado. Neste sentido, a cidadania é medida através da eficiência do
controle que os indivíduos e as coletividades conseguem exercer sobre o Estado, que em
contrapartida exige obediência, vinculadora e promotora de segurança.
Na opinião de Émile Benvénise3, o verdadeiro significado de civis não é cidadão,
como usado tradicionalmente, mas sim, concidadão. Deste modo, a civitas traz em si uma
3
BENVÉNISTE É. Le vocabulaire des instituions indo-européenne. Paris: Minuit, 1969, p. 335-337.
4. noção de coletividade. A cidadania, porém, está longe de fornecer somente o surgimento
de uma identidade de reconhecimento, trazendo consigo também relação de exclusão,
tanto no interior como no exterior de um universo político.
Ser cidadão significa adquirir um status jurídico de igualdade perante seus
concidadãos, gozar de determinados direitos e deveres em comum. A partir da afirmação
de igualdade entre os homens, os direitos dos cidadãos devem, nesta perspectiva garantir
a manutenção desta igualdade no âmago da comunidade política.
A Revolução Francesa baseou-se na idéia de que somente os direitos do cidadão
podem realizar os direitos do homem, apesar desta realização se separar com o passar do
tempo. Os direitos do cidadão serão definidos primeiro, em função da finalidade
concedida a este status, que significa proteger a liberdade do indivíduo ou garantir a
realização de um bem comum.
Já a Constituição dos Estados Unidos baseia-se na convicção de que o
funcionamento natural da sociedade tende a realizar espontaneamente os direitos do
homem, mesmo que este se abandone a si mesmo e o Estado limite o máximo possível os
as suas intervenções. Nesta perspectiva, somente os direitos de liberdade são legitimados.
A desobediência civil será então desobediência cívica, no sentido em que os cidadãos não
criticam somente a autoridade recriam a própria cidadania através de uma demonstração
pública de desobediência ao Estado.
Ao tratar-se de cidadania é indispensável sublinhar o seu caráter de construção
histórica e de desenvolvimento da civilização humana, enquanto desejo de liberdade e de
igualdade. Neste sentido, é possível afirmar que esta se constitui de inúmeras
significações e condicionamentos, fato que sugere não existir uma única essência ao
conceito de cidadania. O que pode ser observado como pertinente à idéia de cidadania é a
participação, no sentido da ação que constrói o seu próprio destino.
A ascensão do trabalho no conceito de cidadania
Para a compreensão da transformação social, que conduziu a passagem de
praticamente um extremo ao outro, entre trabalho e cidadania. Relação que passou da
5. total desvinculação na Grécia antiga para a mútua dependência da sociedade
industrializada, faz-se necessário retomar o contexto que promoveu o desenvolvimento
da cidadania na sociedade capitalista.
É importante frisar que o mundo burguês foi gerado a partir das idéias de
intelectuais cujo comportamento era incompatível com as idéias consagradas no mundo
feudal. Ao qual se contrapunha o estado natural, no qual os homens nascem livres e com
direitos. Neste sentido, pode-se afirmar que até o século XVIII a cidadania era
prerrogativa de um pequeno grupo de pessoas e que possuía características aristocráticas,
excluindo as classes populares de seus direitos.
A doutrina do Estado absolutista sustentou-se enquanto o Estado representou uma
tentativa da burguesia em tomar parte do poder político que a nobreza detinha,
deslegitimando a teoria de origem divina do poder. Com o fortalecimento da burguesia o
monarca e seu poder absoluto não conseguiram sustentar-se mais. A burguesia procurava
consolidar o poder, dominar as outras classes e construir um novo Estado com uma nova
classe hegemônica.
Nesta trajetória, ganha importância o pensamento de John Locke4, segundo o qual,
existem direitos que pertencem ao homem no seu estado natural. É o caso da propriedade
privada; no raciocínio de Locke, o capital seria a extensão natural da livre disposição que
homem possui sobre o seu corpo e seu trabalho.
No “Segundo tratado sobre o governo” Locke discorre sobre a conservação da
propriedade, do vínculo entre a propriedade do próprio corpo e a cidadania. Segundo o
filósofo inglês é cidadão somente aquele que é proprietário do próprio corpo. O sentido
desta propriedade não é especificamente o corpo humano, mas o produto realizado pelo
corpo através do seu trabalho de apropriação da natureza5. Locke argumenta que esta
apropriação não necessita do consenso expresso de todos os homens. Deste modo, as
coisas que me pertencem não são somente aquelas que eu mesmo colho da natureza, mas
também aquelas extraídas pelo meu cavalo ou pelo meu servidor. Desta forma, delimita-
4
A doutrina do filósofo inglês John Locke, nascido em 1632 e falecido em 1704, é considerada o alicerse
do Estado Constitucional Inglês. E também fonte de inspiração para a teoria da separação dos poderes, de
Charles di Montesquieu e ainda da Declaração de Independência americana e da Declaração dos Direitos
francesa. In: BONAMIGO, R.I.H. Cidadania: considerações e possibilidades. Porto Alegre: Dacasa, 2000,
p. 12-14.
5
MANZINE COVRE, M.L. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1999, p. 25.
6. se que os cidadãos são aqueles que possuem a propriedade sobre seus corpos, enquanto
os não cidadãos são os que possuem os seus corpos comandados por outros. Desta forma
o processo de construção da cidadania para Locke, é caracterizado como um processo de
exploração entre os homens6.
Ao prever o processo de construção da cidadania com estas características, Locke
contradiz uma de suas declarações iniciais, em que afirma que todos os homens possuem
a propriedade sobre seu próprio corpo. O autor, completa então a sua reflexão com a
seguinte afirmação: o direito a propriedade sobre o próprio corpo pertence aos homens
mais diligentes e racionais, enquanto não pertencem aqueles homens preguiçosos e
incapazes. Com este discurso, Locke vincula a cidadania ao trabalho, abrindo espaço para
o desenvolvimento de ideologias úteis a burguesia. Tais como a de que o trabalho
dignifica o homem e, de que existem diferentes tipos de pobres: os trabalhadores e os
vagabundos, sendo os primeiros mais merecedores do que os últimos.
Segundo a teoria do filósofo inglês o indivíduo é proprietário daquilo que
consegue ter através do suor de seu rosto, com a força de seu trabalho. A riqueza que o
indivíduo possui é vista como conseqüência do seu trabalho e não como resultado da
exploração da propriedade dos outros. É possível constatar que o individualismo e o
elitismo são elementos muito presentes na obra de Locke. Tal constatação se materializa
na análise da tutela da igualdade, concebida pelo filósofo como de natureza abstrata,
genérica e puramente formal, as quais somente uma minoria, ou seja, os proprietários
possuiriam a plena cidadania. Podemos nascer todos iguais, como Locke defendia7,
porém não em igualdade de condições, o que modifica decisivamente as possibilidades de
realizações futuras, como o acesso à propriedade e a plena cidadania.
Com o Iluminismo, movimento intelectual que promoveu mudanças radicais na
sociedade ocidental, entre estas, resgatou o conceito de cidadania clássica. Os vários
pensadores que escreveram sobre cidadania nesta época assumiram muitas vezes posições
contrastantes. É o caso de Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Joseph Sieyès ao
analisarem os requisitos que deveriam possuir os candidatos a participação na
comunidade política. Foram as posturas destes autores que marcaram as discussões sobre
6
Idem, p. 26.
7
Desconsidera a concepção de idéias inatas ao defender que o homem nasce uma tabula rasa.
7. a cidadania, enquanto instituição ambientada na nova ordem estabelecida.
Pode-se verificar em todas as obras do pensamento iluminista, o preponderante
desejo de retorno às idéias de cidadania grega, baseada na participação política, produto
da virtude cívica, qualidade do homem livre que possui capacidade e vontade de
participar nas questões públicas. A virtude cívica se define em oposição ao egoísmo de
quem prefere e, impõe a própria vontade particular ao invés dos interesses comuns, a todo
o corpo social. A virtude cívica foi vista pelos Iluministas come um instrumento
essencial á construção da comunidade política; principalmente por Rousseau que
adicionou à virtude cívica a concepção horizontal da cidadania grega, já resgatada por
Grotius e Pufendorf8.
Apesar da igualdade entre os cidadãos ser considerada um fator essencial na nova
ordem, o abade Sieyès9 delineou a sua doutrina excluindo do corpo social grande parte da
população. O abade, fortemente influenciado pela teoria aristotélica, afirmava que
somente os portadores de características representativas da virtude cívica poderiam aderir
à cidadania. Ao propor uma igualdade interna, realizável somente entre os indivíduos que
fossem reconhecidos como membros do círculo dos cidadãos, deixou de considerar
completamente as massas que derrubaram a Bastilha. Desta forma, Sieyès excluiu e
marginalizou as mulheres, os servos, os pobres e os mendigos, nivelando todos a um
conjunto de ignorantes e sem vontade própria10.
O abade via no burguês o modelo de cidadão grego. Deste modo, procurou
consolidar a concepção de classe aristotélica e impedir a participação ativa das classes
inferiores no corpo social. Sieyès defendeu a existência de “dois povos”11 sob um mesmo
território, o primeiro formado por verdadeiros cidadãos, ou melhor, pela burguesia. E o
segundo, composto pelo restante da população. A primeira categoria de indivíduos foi
considerada pelo abade como aquela de “cidadãos ativos”, detentores do direito de ter um
8
DAL RI JÚNIOR, A. História do direito internacional. Comércio e moeda. Cidadania e nacionalidade.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 242.
9
Nascido em Fréjus, em 3 de maio de 1748, o eclesiástico Sieyès foi também um importante político e
escritor francês. Representante dos interesses da Igreja e da aristocracia, faleceu em 20 de junho de 1836,
em Paris.
10
DAL RI JÚNIOR, A. Op. cit., p. 244.
11
Não foi somente o abade Sieyès a teorizar sobre a excusão de várias classes sociais no cículo dos
“virtuosos”, também Voltaire e Diderot em alguns trechos de seus escritos o fazem. Diderot
particularmente, até mesmo sustenta em sua Enciclopédia a ignorância das grandes massas. In: Idem, p.
245.
8. papel ativo na formação dos poderes públicos. Já a segunda categoria, aquela dos
“cidadãos passivos”, possuíam o direito a proteção da própria pessoa, da propriedade e da
liberdade.
Esta dinâmica de inclusão e exclusão, não encontrava ressonância nos escritos de
Rousseau12. O filósofo suíço, defendia uma ampla igualdade entre os homens que
aderiam ao pacto13 não contemplando nenhuma divisão funcional no corpo social.
Rousseau14 dava grande importância ao caráter abstrato da cidadania pensando-a de
maneira inclusiva15, extensiva a todos aqueles que faziam parte do “povo”16.
A grande diferença entre Rousseau e Sieyès se constitui no fato do primeiro,
conceber a igualdade como algo natural, inerente ao ser humano. Desta maneira, seria
através da igualdade que o indivíduo teria acesso à cidadania. Já o abade, predicava uma
“desigualdade funcional” em relação ao acesso à cidadania. Deste modo, diminuiu o
valor da cidadania, restringindo-a à burguesia17.
12
A obra “O Contrato Social” é a exata síntese do contrato entre os homens no qual “Encontra uma forma
de associação que defende e protege através de uma força comum, as pessoas e os bens de cada associado
e para a qual, o homem se unem porém todavia obedecendo somente a si mesmo e continuando livre
como antes”. Deste modo, o conjunto de cidadãos em via de constituição é uma das partes contrastantes
como se estivessem já constituídas, é ao mesmo tempo a condição e o resultado do contrato. Rousseau
revendica a consciência da dignidade do homem, sendo a defesa desta consciência que conectaria o eu
individual ao eu social. O Contrato Social, para ser legítimo, deve originar-se de um consenso unânime,
contrariamente, o indivíduo renuncia a liberdade natural conquistando uma liberdade convencional, que
protegendo todos protege cada um. Através do pacto o homem abdica de sua liberdade em favor da
comunidade, sendo ele mesmo parte do social. Neste sentido, quando o homem cumpre a lei obedesse a
si mesmo, tornando-se livre desta maneira. Para Rousseau, o contrato não causa ao povo a perda da
soberania porque não existe um Estado criado separado do povo. Desta forma, o soberano representa para
Rousseau a coletividade, que atarvés da lei expressa a vontade geral na qual o povo é o único soberano
legítimo. In: BONAMIGO, R.I.H. Op. Cit., p. 14-15.
13
Neste contexto, é importante observar que Rousseau excluia as mulheres do acesso a cidadania.
14
Jean-Jacques Rousseau, filósofo suiço que viveu entre 1712 e 1778. Recuperou o ideal de cidadão grego,
no qual o conceito de “virtude cívica” foi transformado em “virtude política”. Neste sentido, Rousseau
defende uma cidadania “militante”. In: DAL RI JÚNIOR, A. Op. cit., p. 242-243.
15
Na sua obra, Rousseau se preocupa também em garantir a conservação sem a perda da liberdade.
Constrói o seu conceito de cidadania em base a relações mais justas entre os homens. No livro “O
Contrato Social”, declara procurar o regime político legítimo. Argumentando que nenhum homem possui
a autoridade natural sobre o seu semelhante e que a força não produz nenhum direito.
16
Idem. cit., p. 246.
17
Como demonstra Grosso, Rousseau amplia a concepção do burguês apresentando-o como o pequeno
proprietário, que sem a ajuda dos outros desenvolve o seu trabalho com as próprias mãos, em total
autonomia e independência. Desta concepção, pode-se deduzir que qualquer indivíduo poderia ser um
burguês, a condição de ser homem e capaz de se auto-sustentar. In: GROSSO, E. Le vie della cittadinanza.
Le grandi radici. I modelli storici di riferimento. Padova: CEDAM, 1997, p. 195.
9. Sublinha-se que Sieyès foi um dos pensadores mais influentes na elaboração da
Declaração dos direitos do homem e do cidadão. Deste modo, torna-se claro que a
Revolução Francesa, impulsionada pelos interesses burgueses, não mudaram
substancialmente a condição do cidadão-trabalhador. Apesar de cidadão da revolução, o
trabalhador continuava não proprietário, fazendo com que sua subsistência dependesse da
venda de sua força de trabalho.
Apogeu e crise da cidadania centrada no trabalho
Robert Castel18, elucida muito bem todo o processo de íntima união e posterior
crise, entre trabalho e cidadania. O sociólogo francês, considera a categoria trabalho
como indo além das relações técnicas de produção e, enquanto fazendo parte de uma
gama de relações sociais, culturais e identitárias de indivíduos e grupos coletivos.
A questão social, a vista por Castel do prisma histórico, fazendo uma ponte com o
presente, é analisada a partir do enfraquecimento da condição salarial. Desta forma, a
regulamentação das relações de trabalho é tida como elemento-chave, para a
compreensão da questão social na sociedade industrial.
Neste sentido, o trabalho representa muito mais do que uma ocupação e, o não
trabalho mais que o desemprego. Por abarcarem o leque de relações descritas
anteriormente, a exclusão não representa apenas a ausência de uma relação social, mas
sim, de um conjunto de relações sociais particulares da sociedade em sua totalidade19.
A este ponto, também é enriquecedora a contribuição de Castel sobre o conceito
de “propriedade social”20, esta seria um modelo análogo ao de propriedade privada. A
analogia acontece pela transmissão de segurança e garantias sociais que, os indivíduos
conquistaram ao longo da sociedade industrial. Trata-se de algo que não se encontra a
venda no mercado, e depende de um sistema de direitos e obrigações. Nestes termos,
relaciona-se diretamente com a cidadania social, um exemplo de propriedade social,
citado por Castel, é a aposentadoria. A aposentadoria não está a venda e representa
18
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
19
Idem., p.568-569.
20
Idem, p. 345-413.
10. segurança e alguma garantia ao trabalhador, que desta forma, terá como sobreviver
quando não trabalhar mais.
Sobre a relevância da propriedade social na emancipação dos trabalhadores,
Henrique Caetano Nardi21, comenta que foi o nascimento desta nova modalidade a
permitir a superação da propriedade privada. Fato que finalmente, possibilitou ao
indivíduo a apropriação de si mesmo, de sua dignidade enquanto trabalhador e cidadão.
Castel considera que, a sociedade salarial representou o sistema social no qual a
distribuição da propriedade social esteve muito próxima de se universalizar. Neste
sentido, o autor denomina as três décadas subseqüentes a 2º guerra mundial, de: “trinta
gloriosos”, representados pelos anos de grande estabilidade e crescimento entre 1945-
1975. Este período possibilitou também o surgimento de vários movimentos
contestatórios: movimento de diversas minorias, de contra-cultura e etc.
Neste contexto, durante o início dos anos 70 (especialmente nos países
industrialmente desenvolvidos) a tutela do trabalho significou o "compromisso social"
sustentado pelas políticas do Estado do Bem-Estar. Este período representou o auge da
cidadania industrial, que nasce e vem exercida através do trabalho, inserida na sociedade
salarial.
Cabe ressaltar que, a sociedade salarial pode consolidar-se na Europa do pos-
guerra através da construção do Estado Social, e do trabalho estável, que permitiu a
filiação dos indivíduos a essa sociedade e ao conjunto de proteções que lhe são
característicos.
Acabamos de descrever o panorama de apogeu da cidadania enraizada no
trabalho, já o contexto atual, diferencia-se radicalmente, vivi-se a crise da cidadania
centrada no trabalho. Tendo-se iniciado um processo de decomposição das garantias que
foram obtidas nos anos áureos do pós-guerra, faz-se necessário uma análise das
conseqüências que tal fenômeno pode ter sobre a relação entre cidadania e trabalho.
Desta forma, a desestruturação da sociedade salariada e o movimento de
transformação do Estado Social em Estando Mínimo, tem configurado um quadro de
crise na relação entre trabalho e cidadania. Vale lembrar que apesar de não ser mais uma
21
NARDI, H.C. a propriedade social como suporte da existência: a crise do individualismo moderno e os
modos de subjetivação contemporâneos. Psicologia & Sociedade; 15 (1): 37-56; jan./jun. 2003.
11. realidade viável para a maioria das pessoas, é ainda através do emprego estável que se
obtém a cidadania plena.
A grande questão que vem examinada neste contexto, refere-se a diminuição ou
desaparecimento das características tradicionais do emprego, até então, propiciadoras de
cidadania. Deste modo, a flexibilização do trabalho o torna precário, reduzindo-o a uma
mera forma de subsistência, e como visto nos primórdios de sua história, sem enriquecer
de sentido e dignidade o trabalhador, em resumo, sem conceder uma cidadania plena.
Conseqüentemente a precarização do trabalho, as pessoas excluídas do acesso à
plena cidadania integram uma situação de mal estar e sofrimento psicológico, que se
configura não só a nível individual mas também, social. Nesta situação, encontram-se: a
desfiliação da sociedade salarial por parte do indivíduo; as famílias mais vulneráveis, que
vêem seu status social ameaçado; os jovens super qualificados ocupando postos de
trabalho pouco qualificados. Esta realidade social acaba repercutindo numa série de
outros problemas como: o aumento da violência, da delinqüência, da xenofobia, da
toxicodependência, da depressão, entre outros.
Os problemas apenas descritos tem sido alvo de algumas ações paleativas da parte
do Estado e também da sociedade civil. Da parte do estado, Castel22 faz uma
diferenciação entre as políticas de integração23: seriam aquelas que procuram grandes
equilíbrios, pela homogeneização da sociedade a partir do centro e buscam a promoção a
todos do acesso aos serviços públicos. Enquanto às políticas de inserção: seriam
formadas por uma gama de empreendimentos que visam o reequilíbrio, no intuito de
diminuir a distância em relação a uma completa integração – ajuda social.
O autor é cauteloso em relação a estas políticas e alerta para alguns pontos de
reflexão, cujo o principal, nos parece ser o fato de que; todas as pessoas atendidas por
esses programas de ajuda não conseguem acompanhar o ritmo da sociedade salarial,
permanecendo na legião de “inadaptados sociais”, conseqüentemente, sem cidadania.
Outro ponto que merece destaque, é o caráter de permanência24 que adquirem
certas políticas, que inicialmente deflagradas em caráter provisório, passam a configurar
um forma precária de existência, que também não concede cidadania.
22
CASTEL, R. Op. Cit., p.538.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, p.542-543.
12. Enquanto Castel nos fornece uma detalhada radiografia do processo de desfiliação
social, que passamos hoje. Luis Enrique Alonso, percebe na crise da sociedade salariada,
como toda crise, uma grande possibilidade de questionamento e mudanças, inclusive, a
re-elaboração do vínculo entre cidadania e trabalho25; através do aumento da participação
democrática e da mobilização das identidades sociais.
Nesta visão, Alonso, defende que o emprego estável é apenas uma das
possibilidades de trabalho26, que hoje, é a mais escassa. E que os novos movimentos
sociais representariam uma possibilidade de construção de uma nova cidadania27.
O sociólogo espanhol, valoriza sobremaneira formas alternativas de trabalho,
como as vagas abertas no Terceiro Setor. Por vislumbrar nas ONGs, uma grande
possibilidade de valorização da ação humana e desenvolvimento da solidariedade social,
representando a possibilidade de se ultrapassar a lógica mercantil. Porém, também
alerta28 que, para que tais formas alternativas de trabalho sejam válidas, estas devem
necessariamente, passar por um princípio universalista. Ou seja, as novas formas de
trabalho devem passar por um processo de legitimação, através da institucionalização,
reconhecimento e consideração; ultrapassando desta maneira, ações particulares de
grupos isolados.
Em relação a contribuição dos movimentos sociais, recorda-se que nos anos 60 e
início dos 70, estes buscavam a paridade de direitos. E que passaram, a partir dos anos
90, a representar mais um nicho de mercado29, como por exemplo, o mercado
ecologicamente correto ou o mercado gay. Deste modo, para que os movimentos sociais
possam contribuir na construção de uma nova cidadania; urge a necessidade de repensá-
los, valorizando seu caráter inicialmente revolucionário e questionador.
Neste sentido, é oportuno recordar ainda que, a cidadania não é somente a relação
vertical entre os membros de um Estado e o poder soberano, é também uma relação
horizontal entre iguais. Não é por acaso que na história das línguas o termo civilização
tenha através dos séculos, oscilado o seu sentido entre o âmbito político e no âmbito das
25
ALONSO, L.E. Trabajo y cidadania.Estudios sobre la crisis de la sociedad salarial. Madrid: Trotta,
1999, p. 209.
26
Idem, p. 211.
27
Idem, p. 87-88, 210.
28
ALONSO, L.E. Trabajo y posmodernidad: el empleo débil. Madrid, Fundamentos, 2000, p. 148.
29
NARDI, H.C. a propriedade social como suporte da existência: a crise do individualismo moderno e os
modos de subjetivação contemporâneos. Psicologia & Sociedade; 15 (1): 37-56; jan./jun. 2003.
13. relações humanas. Significando, no universo político as forma em que o governo se
organiza, e no universo das relações humanas uma certa afabilidade ou doçura.
Conclusão
Como observado durante este ensaio, a noção de cidadania, ao realizar seu
percurso milenário, adquiriu diferentes formas e conquistou uma maior importância,
ampliando e re-significando os elementos que a compunham. Desta forma, culminou na
modernidade, uma noção de cidadania orientada pela razão iluminista sob a forma das
“Carta de Direitos” e, posteriormente pela razão técnica, concretizada pelas políticas do
“Estado do Bem-Estar”30. A noção de cidadania passou, deste modo, a se vincular a
evolução do Estado, se distanciando da concepção clássica ou cívico-republicana da
cidadania como prática. Neste movimento, se aproximou da idéia liberal ou liberal-
individualista da cidadania ancorada ao status.
Torna-se pertinente, retomar, mais uma vez, o legado grego cuja virtude cívica
representava a supremacia dos interesses coletivos em detrimento dos individuais. Nesta
situação, em que a cidadania de concepção liberal procura equilibrar a tensão entre
interesses individuais e coletivos31; teria o princípio lançado pela Revolução Francesa se
desviado? Teríamos passado, da liberdade política, igualdade econômica e fraternidade
social para a liberdade econômica, igualdade política, perdendo, deste modo, a
preocupação com a fraternidade social?
A humanidade vive atualmente sob a égide de uma ideologia que prega um
individualismo exacerbado32, de maneira que, a ajuda desinteressada deixou de existir
para ser geradora de lucro, a reciprocidade passou a ser vista como crédito ou débito de
30
MANZINI-COVRE, M.L. Cidadania, cultura e sujeitos. In: SPINK, Mary Jane Paris. A Cidadania em
Construção. Uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994, p. 141.
31
SEIXAS VILANI, Maria Cristina. Origens medievais da democracia moderna. Belo Horizonte: Inédita,
1999, p. 20.
32
O que Robert Castel chama de: individualismo negativo. CASTEL, R. Op. Ci., p. 596. E Henrique
Caetano Nardi, de: hiperindividualismo. NARDI, H.C.Op. Cit.
14. favores e na busca frenética pela rápida acumulação, se desconsiderou a fraternidade33.
Diante desta realidade, os valores de solidariedade e fraternidade poderiam ser
incentivados por novas formas de organização da sociedade civil, como os novos
movimentos sociais e o Terceiro Setor.
O desenvolvimento das novas formas de recomposição social, acima
mencionadas, poderia facilitar a construção de um novo discurso de cidadania, capaz de
delimitar as diferenças entre uma cidadania passiva, concedida pelo Estado, e uma
cidadania ativa, que estabelece o cidadão como sujeito portador de direitos e deveres, e,
principalmente, que participa da arena pública criando novos direitos capazes de ampliar
os espaços de participação.
A cidadania ativa, desta forma, seria reforçada por novas entidades sociais,
entendidas enquanto uma construção, que abarca o comprometimento ético em respeito
da coletividade, mas sem oprimir a singularidade dos cidadãos; reconhecendo e
facilitando a conexão de outras identidades, comunidades, territórios e circunstâncias.
No que concerne o impasse e a insegurança em relação aos destinos da relação
entre cidadania e trabalho, verifica-se a certeza de que são as práticas sociais, presentes e
futuras que iram elaborar um novo discurso e conseqüentemente uma nova prática para a
conexão trabalho-cidadania.
Ao findar este ensaio, outra certeza que se reforça é, a necessidade da continuação
dos estudos em relação as novas práticas e estratégias de gestão que acompanham às
transformações sociais, e também, sobre as propostas de trabalho de empenho civil, de
Favor Credits e de crédito de cidadania34.
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