SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  18
Télécharger pour lire hors ligne
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
2
CAPÍTULO I
LI-SEUG
Há três mil anos...
Apenas um pequeno movimento de vento, acompanhado de um leve silvo, foi
percebido por Shoi. Uma fração de segundos separava a espada do inimigo de
sua estimada cabeça. O arco feito pelo movimento da arma branca foi
interrompido pelo forte golpe desferido rapidamente por sua própria espada.
Tempo não era luxo naquele momento. Tomando rapidamente a posição de
atacante e não mais de defensor, Shoi penetrou sua lâmina no ventre de seu
adversário. Naqueles instantes de silêncio, só se ouvia o pulsar do coração
constantemente refletido em suas têmporas e a forte respiração emitida pelos
dois guerreiros. O sangue quente escorria na empunhadura e fazia um curto
caminho até sua mão. O contraste com o frio naquele dia era extremamente
visível, a ponto de o vapor exalar, como nuvens, do sangue e dos corpos quen-
tes ao se chocarem com os primeiros raios de sol, que timidamente apareciam
nas horas mais quentes do dia; só que havia a dificuldade em usar a
classificação "quente" em tão terrível inverno. Olhos arregalados encaravam o
adversário e as pupilas aos poucos se movimentavam, demonstrando o fim
iminente. Uma vez demonstrando olhos mortos, a espada foi retirada do ventre
empalado com uma força ainda maior, fazendo o corpo de seu oponente cair
como uma marionete desprendida das cordas sustentadas por mãos de um
descuidado titeriteiro. Aqueles momentos eram tão rápidos como os reflexos de
Shoi, pois não tardava absolutamente nada até outro inimigo aparecer, e
novamente, com a rapidez de um tigre, Shoi aumentava sua coleção de almas.
Um a um os adversários caíam a seus pés, mas a facilidade inicial tornava-se
um misto de dificuldade e cansaço. Os braços começavam a pesar mais, e a
concentração, ainda que determinada, também começava a falhar. Um jogo
para fortes. A paciência e o momento certo tornavam-se elementos
fundamentais para um bom resultado e só nesses momentos surgiam lendas
vivas como Shoi. Uma luta em iguais condições tornava-se o máximo em
termos de glória. Não havia riqueza, troféu, nada palpável. Somente a honra e
a satisfação da justiça. Não há nada como a consciência e a honra, seguidas
nos moldes da justiça guerreira. A própria personificação do real combate
entre homens. Nada se interpondo à dança mortal sobre um palco de sangue e
carne. Somente um homem contra outro homem, e nada mais.
Depois de vencer facilmente alguns daqueles bandoleiros, enfrentara um
verdadeiro desafio em sua jornada guerreira. O homem já havia matado
alguns de seus amigos e aquilo não poderia ficar impune. O bandoleiro,
usando roupas típicas daquela região, com seu chapéu forrado de pele, olhos
pequenos e maliciosos, dentes podres e barba densa, desafiava Shoi fazendo
movimentos com suas armas, imitando um gesto de provocação. Aceitou o
significado do gestual e, como de costume, partiu para o ataque. Desviando-se
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
3
rapidamente dos golpes mortais desferidos, cravou a pequena espada no
ventre do adversário. Contudo sentiu algo duro. Aquele bandoleiro usava um
peitoral de couro e ferro e a espada não conseguiu penetrar na proteção.
Reflexo em dia, não perdeu tempo e aparou dois golpes das espadas e pulou
para trás. Teria de pensar rapidamente em como feri-lo de modo letal. Naquele
segundo, as espadas do bandido faziam um vôo mortal em sua direção com
ausência de qualquer piedade. Golpes para matar rápido. Chegara ao ponto de
um simples defensor naquele embate. Teria de mudar rapidamente de posição.
Ao defender os golpes pesados, parecia defender golpes de uma pesada
marreta. Aquele homem, além de habilidoso, possuía força extraordinária.
Levaria seus esforços e sua técnica ao máximo para vencê-lo. Perder, contudo,
não estava na ordem do dia para Shoi.
Enquanto o habilidoso bandoleiro golpeava sem parar, Shoi percebeu uma
falha na proteção peitoral daquele homem. Uma tira de couro prendia o
peitoral à proteção das costas e deixava vulnerável a parte entre pescoço e
ombro. Ali encontrou a resposta para seu dilema. Deu sucessivos passos para
trás e o homem, furioso com seu insucesso até então, correu raivosamente na
direção de Shoi. Por ser mais dinâmico, Shoi conseguiu afastar-se bem para
fazer aquilo que pretendia. De frente para o adversário, manteve a posição
desafiadora, ereto como um tronco de pinheiro, até que inflamado de raiva o
bandoleiro correu com a espada direita em riste e a esquerda em posição
defensiva. Em fração de segundos, Shoi percebeu o momento certo e desviou.
O homem projetara seu corpo todo à frente, com o intuito de ser mais rápido e
forte, e deixou aquela parte desprotegida de sua anatomia na posição perfeita
para o abate. Segurando rapidamente a espada ao contrário, enfiou-a entre o
pescoço e ombro, usando a força de seu oponente. A lâmina penetrou a carne
até chegar à empunhadura e o adversário rendeu-se quase morto naqueles
poucos instantes de agonia. A arma pulsou as batidas do coração daquele
infeliz. Shoi colocou o pé entre ombro e peito e puxou a espada de volta ao ar
frio daquela manhã. De joelhos, ainda com um filete de vida, Shoi interrompeu
sua queda e passou a espada no pescoço do moribundo, decepando-lhe a
cabeça. Dividido em dois, finalmente as partes encontraram a neve maculada
de sangue quente. O combate exauriu as forças de Shoi. Se tivesse de
enfrentar outro igual, temia por sua própria vida. Contudo afastou esse
pensamento e continuou. Olhou ao redor e viu somente mais um em pé e
disposto a combater. Respirou, tentou reunir o máximo de forças e seguiu em
frente em seus objetivos. O homem parecia bem mais baixo e magro em
relação ao último. Usava roupas simples, aparentemente sem armadura por
baixo, e apenas uma espada. Observava aquele outro bandido e planejava
rapidamente sua pequena estratégia de combate.
Após um jogo de paciência e estudo de seu último adversário, Shoi resolveu
atacar, mas o bandido foi mais rápido fazendo um ferimento em sua perna.
Apesar da dor, a adrenalina permitiu uma sensibilidade não maior que um
pequeno arranhão. Aproveitando-se da projeção à frente em que se encontrava
do oponente, segurou sua espada de modo inverso com a lâmina posicionada
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
4
abaixo de seus dedos mínimos fortemente apertados, como fizera no final do
combate do adversário anterior. Shoi estocou para trás e atravessou-o,
começando pela parte inferior das costas. Virou-se rapidamente e, fazendo um
caminho em diagonal com a lâmina, terminou com a ponta dela rasgando
carne e pele perto do pescoço daquele pobre infeliz, que, por um instante em
sua miserável vida achou-se vantajoso em função de um ferimento produzido
na perna de seu habilidoso oponente. Assim caiu o último obstáculo do dia.
Impressionante era a fantástica concentração demonstrada em combate por
Li-Seug Shoi, dos Li-Seugs.Tudo se transformava em uma única entidade, ou
seja, guerreiro e ambiente se fundiam em desempenho perfeito. Não eram
apenas boatos as histórias contadas. Shoi estava entre os melhores guerreiros
daquela remota região, no extremo nordeste da Ásia. Toda uma vida de
experiências em combate e treinos estafantes não significava absolutamente
nada, mas nada mesmo, se um guerreiro não voltasse para contá-las aos seus
e, em nova oportunidade, o ciclo da necessidade continuasse um caminho em
que sua destreza guerreira seria posta à prova mais uma vez. Assim
construiu-se a vida de Shoi. Uma profissão muito arriscada, porém
extremamente necessária em dias tão difíceis. Entretanto, sua sensibilidade
nunca foi abalada por tão dura vida. Em comunidade sempre foi o mais
prestativo à seu povo e seu interesse por conhecimento nunca foi diminuído,
dando-lhe, por mérito, a capacidade de um líder nato. Assim, quando todos os
líderes Li-Seugs morreram, sobrou a Shoi mais essa tarefa, a qual aceitou
imbuído da convicção e da responsabilidade exigida de qualquer um realmente
merecedor de tão pesado fardo, afinal, cabia a um líder, nos moldes culturais
dos Li-Seugs, a proteção e a manutenção de seu povo.
Mesmo exausto daqueles instantes anteriores, em que uma chuva de sangue e
morte foi o resultado de tão necessária empreitada, Shoi levantou sua cabeça
e olhou atentamente, já diminuindo sua fúria assassina, constatando uma
recompensa extremamente desfavorável. Não sobrara quase ninguém de seu
reduzido grupo. Apenas mais dois estavam vivos e de pé. Naquele campo
coberto da mais alva neve maculada por rajadas em vermelho, Ji, grande
amigo e habilidoso guerreiro, e o menino Goo estavam de pé como montanhas
intransponíveis, imóveis, como se naquele momento o tempo estivesse
paralisado e nada mais existisse vivo em tão sombria cena. Quebrando o uivo
suave produzido pelo vento, Shoi respirou fundo e gritou para seus dois
estáticos companheiros:
— Ji! Goo! Conseguimos! — tomava fôlego mais uma vez. — Estou indo até
vocês.
Com passos lentos e difíceis, Shoi foi em direção aonde os amigos estavam. Ao
encontrar Ji, um forte abraço selou o fim daqueles momentos de vida e morte.
Logo em seguida passou a mão na jovem cabeça de Goo elogiando-o por seu
feito corajoso.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
5
Os acontecimentos nos quais Shoi e seus dois restantes companheiros foram
colocados não tinham nenhum objetivo que não fosse o de defesa. Por sinal
era algo extremamente exigido deles nos últimos tempos. Os ataques
constantes de bandoleiros estavam cada vez piores. A defesa de seu povo era
uma necessidade. Mas seu reduzido grupo, os Li-Seugs, encontrava-se numa
posição desfavorável. O grupo já não era próspero como no passado e estes
últimos ataques deixaram seqüelas que dificilmente poderiam ser restauradas.
Estavam, naquele momento, quase extintos. Somando os sobreviventes deste
último combate, eram pouco mais de dez pessoas, ou, mais precisamente,
treze pessoas. Número modesto para um grupo que, num passado longínquo,
dominou aquela região. Domínio não à base da força, mas do comércio e da
troca de conhecimento. A realidade daqueles dias apresentava-se diferente e
não restava mais nada a fazer a não ser uma nova estratégia para uma
tentativa de sobrevivência. Teriam como única opção o abandono de suas
terras. Essa mudança seria uma ofensa para os ancestrais, mas com número
extremamente reduzido, a vida nômade tornava-se uma das terríveis opções; a
outra seria a morte. Reduzidos, a oposição à idéia de Shoi não seria
rechaçada. Afinal, o leque estava fechado.
Depois do abraço em Ji, Shoi verificou se ainda restava algum ferido em
campo, mas infelizmente sua procura não encontrou bons resultados.
Começou, com a companhia de Ji e Goo, a procurar algo de valor nos
cadáveres dos bandoleiros. Shoi não gostava da atitude em si, mas aqueles
tempos não permitiam filosofias sofisticadas. Goo encontrou uma coisa
surpreendente numa bolsa presa a um cavalo. Havia um filhote de lobo
totalmente negro enrolado em trapos. O pequenino, esboçando vitalidade,
abriu seus diminutos olhos para o menino. Este o envolveu, junto aos trapos,
dentro de sua roupa, próximo à barriga, fazendo dos bracinhos o apoio
perfeito para a jovem criatura.
— Olhem! — gritou o menino.
Eles viram o filhote como um símbolo de sorte, pois a fragilidade do
animalzinho conseguia superar o mais terrível dia. Frio e morte não
conseguiram distrair aquele lobo de sua luta pela sobrevivência. Shoi passou a
mão na cabeça peluda do lobinho.
— Pelo menos temos mais um novo Li-Seug — disse Shoi. — Estes bandidos
devem tê-lo encontrado ao norte. Seu passado é um mistério. Contudo, seu
futuro será percorrido conosco.
Apesar de não demonstrar, o que mais Shoi temia nos últimos tempos
confirmou-se. Não poderiam mais ficar. Andaram entre os mortos em direção a
sua aldeia, carregando alguns mantimentos — principalmente arroz, trazidos
pelos bandoleiros — e, em um lugar onde não havia a mácula da morte e da
violência, acenderam uma fogueira para permanecer algumas horas.
Descansariam um pouco.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
6
— Acredito na necessidade de descanso, queridos amigos — disse Shoi
demonstrando em sua grossa voz um cansaço pouco comum.
— Concordo plenamente! Por sinal, o que restou com vocês para comermos? —
roncos eram ouvidos provenientes da barriga do jovem Goo enquanto
perguntava aos dois fatigados guerreiros.
Acomodações foram providenciadas. Shoi e Ji fizeram uma pequena barreira
com neve para protegê-los dos ventos gélidos em sua breve estada no local.
Shoi sugeriu uma permanência não maior que três horas, para encontrarem o
mais rápido possível seus parentes e providenciarem sua mudança. Enquanto
o fogo crepitava, comiam carne de caça seca com um pouco de arroz, sobras
daquilo que um dia foi uma grande fartura. O descanso e o alimento aos
poucos faziam seus esperados efeitos. Durante o descanso, deitados em
cobertores de pele e próximos ao fogo, Shoi, um interessado por lendas
antigas, contava histórias para sua diminuta plateia. Grandes guerreiros,
cavaleiros, história dos deuses, riquezas, etc., constituíam os enredos por ele
contados. Ji e o jovem Goo não se cansavam de escutar aquelas histórias,
principalmente da maneira contada por Shoi. Em função de sua juventude, os
outros jovens Li-Seugs permitiam-se alguma intimidade com Shoi. Chuva de
perguntas e questionamentos, coisa que não acontecia com contadores bem
mais velhos em função de um misto de respeito e temor, sempre caíam aos
ouvidos de Shoi quando se dispunha a contá-las. Apesar de os mais velhos
acharem inoportunos os questionamentos, Shoi não se importava com tal
atitude de sua platéia. Até gostava, pois dava a informalidade e a humildade
tão apreciada por ele. Aquilo era como uma conversa, porém uma conversa
profundamente informativa sobre os costumes e lendas de seu povo.
A primeira lenda contava a história de um comerciante. Esse comerciante deu
origem ao povo Li-Seug.Toda a tradição e expansão dos Li-Seugs tiveram
origem na arte do comércio. Suas caravanas, muito famosas no passado, iam
a terras já há muito tempo esquecidas. Todo um intercâmbio de cultura e
riquezas circundava esse povo. Dizia-se daqueles tempos memoráveis que
cada componente dos Li-Seugs possuía dez cavalos e que os jantares eram
fartos; especiarias de todo o mundo frequentavam as suntuosas mesas
forradas com a mais bela e macia seda. Ah, como gostaria de viver tempos
assim!, resmungava consigo Shoi. Mas os tempos pioraram. Os Li-Seugs
descobriram a outra faceta da ganância. Quiseram demais e acabaram
declinando como comerciantes. Somava-se a isso o problema de guerras
intermináveis entre os clãs instalados nas rotas comerciais. Um antigo
provérbio dizia: Aos não sábios, o poder da incapacidade de adaptar-se, e foi
exatamente isso que aconteceu aos Li-Seugs.
— Caso tivesse vivido esse tempo, tentaria outros lugares para expandir
nossas relações — disse Ji.
— Eu fico imaginando as guloseimas dos antigos — enchia-se de saliva a boca
do guloso Goo. — Imaginem tanta fartura nos dias de hoje.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
7
— Ah! Meus amigos! Disto devemos tirar preciosas lições — afirmava Shoi. —
Quem não se adapta, morre. Assim é no combate também. A um guerreiro, a
adaptação é fundamental para o combate, pois não há lição suficiente que nos
prepare ao real.
— Shoi! Shoi! — Freneticamente chamava Goo. — Conte a história do deus
dragão, por favor!
— Conte Shoi, isso mesmo, conte, por favor!
— Tudo bem, tudo bem, eu conto — Shoi ria com a insistência dos amigos.
A lenda do deus dragão tornara-se a predileta entre os Li-Seugs. Contava a
incrível história do início dos tempos, quando vários deuses se enfrentaram
em um combate, durando aproximadamente mil gerações. A lenda contava
como o deus dragão foi o vitorioso nesse grandioso combate. Uma epopéia com
todos os detalhes. Histórias de amor, traição e vingança construíam o enredo
desse conto. Shoi contava-a de forma muito atraente para seus ouvintes, mas
pessoalmente a tinha apenas como uma simples lenda. Há a parte dos
ensinamentos desse deus aos humanos, dando-lhes seus espíritos.Toda a
essência do ser humano vinha da criação do deus vitorioso da guerra das mil
gerações.
— Cante aquela canção — pediu Goo. — Como é mesmo?
-Vou cantá-la - disse Shoi. Preparou-se e, meio desafinado, pois não tinha
muito talento para cantorias, emitiu as palavras da letra:
Antes de o primeiro homem
Sentir a luz penetrar em seus olhos,
Havia uma Era de ontem,
Governada por deuses gloriosos.
Oh, deus Dragão!
Volte de seu longo exílio forçado.
Traga de volta a redenção
Para seu filho maltratado.
Retire-nos das trevas,
Escuridão eterna, miséria.
Ofereça-nos regras,
Viveremos tua glória.
Volte, volte, Dragão.
Não há esperança sem ti.
Volte, volte, Dragão.
Para um dia podermos sentir
O amargo sabor
De, verdadeiramente, existir.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
8
Todos ouviram a canção mesmo o intérprete não sendo dos melhores.
— Já pensou se tivéssemos um deus como este a nosso lado? — disse Goo
com um volume de voz e articulação como se não dormisse há dias. Acariciava
o filhote, distraidamente.
— Não acredito nisso, apesar de ser um belo conto — Shoi olhava com olhos
de ternura para o pequeno com o filhote no colo. —Vejo por um ponto
diferente essa história de crescimento, afinal o deus dragão venceu por ser
honrado e não o mais forte.
— Só estava sonhando acordado.
— Ah! Sonhar é algo bom, fugimos por alguns instantes de nossa realidade,
porém, meu jovem — neste momento Shoi colocou a mão no ombro de Goo —,
não permita o domínio desse estado em detrimento do presente e de nossas
realidades atuais.
— Eu sei! Eu sei! — Goo bocejava, alternando palavras.
Todos se calaram. Nesses instantes de silêncio, Shoi começou a sentir o
ferimento provocado por seu último adversário. Examinando o rasgo no tecido
de suas calças, verificou um corte superficial, nada para se preocupar. Apenas
mais um troféu de combate que não deixaria vestígios no futuro. Shoi,
analisando, agora com mais calma e consciência, percebeu uma perda de
força por parte de seu rival no momento do golpe de espada, por isso o pouco
estrago produzido. Aliviado por sair ileso deste evento, aproveitou para
descansar o máximo que pudesse, afinal deveriam partir o quanto antes e
decisões deveriam ser tomadas de imediato. Instantes depois, com a
normalidade restabelecida, uma lágrima escorreu de seu olho direito. Grandes
amigos foram para junto dos deuses, e suas perdas seriam irreparáveis.
Lágrimas e mais lágrimas desciam de seus olhos inflamados conforme as
lembranças daquele dia passavam como uma volta no tempo em sua mente.
Simplesmente virou-se para o lado, escondendo seu momento de fragilidade
manifestado fisicamente, sentindo respeito e saudade por aqueles que não
existiam mais. Mas como líder recém-eleito, não poderia demonstrar esse tipo
de condição, afinal, cabia-lhe a tarefa da esperança, esperança motivacional
para os não possuidores dela. Apesar da tristeza, Shoi constituiu em sua
mente a idéia da possível sobrevivência de seu povo. Sua tristeza, naquele
instante, era apenas pelos parentes e amigos queridos, agora falecidos. Faria
de tudo para aquelas mortes não serem em vão.
Duas horas se passaram e os três levantaram-se, não com a energia
totalmente restauradas, mas com a disposição daqueles que precisam cumprir
seus compromissos, e nesse caso vida e morte alternavam a frágil liderança
numa corrida atípica. Um dos Li-Seugs vigiara na noite anterior, em um ponto
estratégico, e constatou a vinda de bandoleiros para a aldeia de Shoi. Pegou
seu cavalo e avisou-os do perigo. Então Shoi juntou alguns homens da tribo e
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
9
esperaram perto do acampamento dos ladrões antes que qualquer ação
prejudicial fosse causada aos Li-Seugs. Por isso o combate foi na parte da
manhã; mal amanhecera quando tudo aconteceu. Entretanto como as noites
são longas e os dias curtos no inverno, o descanso foi bem rápido; teriam
tempo suficiente para chegar à aldeia com luz natural banhando seus rostos
sofridos.
Cinco quilômetros os separavam do campo de batalha. Caminharam mais um
pouco e Shoi viu seus cavalos vagando a esmo, como se seus donos nunca os
tivessem domado. Com um chamado indistinguível mesmo para a língua dos
Li-Seugs, Shoi chamou-os. Os cavalos foram em sua direção, deixando um
rastro de neve remexida. A obediência era espetacular. Cavalos treinados a
obedecer e que lembravam um fiel soldado cumprindo ordens de seu
comandante. Os Li-Seugs eram exímios adestradores de cavalos, herança
deixada há muitas gerações por seus ancestrais comerciantes. Não perderam
tempo e carregaram os cavalos com sua bagagem, e os outros cavalos dos
guerreiros mortos foram colocados em fila, amarrados para que não saíssem
da ordem.
— Goo! Contou os cavalos? — perguntava Shoi à frente da comitiva.
— Sem problemas, chefe! Temos os vinte cavalos aqui! — falou Goo com sua
voz ainda juvenil.
— Goo, venha até aqui. Vamos todos juntos — gritou com entusiasmo Ji.
— Esse menino é muito esforçado e um grande guerreiro. Não conheço caso
como o dele — conversava Shoi com Ji. — Talvez seja sorte, talvez não.
Contudo, mesmo assim, qualquer pessoa precisa, também, de muita sorte
para o que fazemos.
— Mas, mesmo assim, sorte não faltou para esse menino, fora a esperteza dele
no combate. Lembra como desde pequenino observava os treinos dos
guerreiros, escondido muitas vezes?
— Lembro muito bem. Mas não vamos pensar nisso agora. Deixe a vida seguir
seu curso — o excesso de preocupações não permitia a Shoi momentos
prolongados de conjecturas.
Caminhando pela conhecida trilha, Shoi elaborava um plano de fuga para
apresentar aos seus. Uma imensidão branca com pontos florestais despontava
em seu campo de visão. A perna, apesar de não ter acontecido nada grave,
pulsava uma dor não muito forte, porém constante. O balançar dos cavalos
em marcha lenta, com seus cascos fazendo sons abafados contra a neve,
convidava à distração. O pensamento viajava a lugares pouco prováveis.
Tornava-se uma espécie de entorpecente para uma mente perturbada e
cansada, apesar de Shoi não ter completado nem vinte e cinco anos de
existência. Em outros tempos, essa idade seria considerada uma idade
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
10
imatura, contudo, a situação exigia amadurecimento rápido, e Shoi
demonstrava uma vocação extremamente precoce ao assunto.
A luz do dia não se apresentava forte. A noite aproximava-se quando a
diminuta comitiva chegou próxima à vila dos Li-Seugs. Foram recepcionados
pelos poucos que sobreviveram aos últimos combates, a maioria composta de
mulheres e crianças pequenas. O único homem presente, o velho e sábio
mestre Sue, estava à frente do comitê de recepção.
— Tão poucos voltaram! — mestre Sue balançava a cabeça lamentando o
ocorrido. — Meus filhos, vocês estão bem? Estão feridos?
— Estamos bem na medida do possível — respondia Ji nem um pouco
animado com o resultado mostrado ao mestre.
— Conseguimos, desta vez, evitar a chegada do inimigo aqui — disse Shoi. —
Mas infelizmente o preço foi alto, mestre — neste momento, Shoi desmontou
do cavalo e indicava com o braço o local aonde Goo deveria levar os animais.
Ji seguiu seus passos e também desmontou de sua montaria.
— Mestre Sue, precisamos descansar, mas, pela manhã, bem cedo, vamos nos
reunir e decidir nosso destino daqui para a frente — disse Shoi ao mestre que
demonstrava alegria por ver seu pupilo vivo.
— Sim, meus filhos, descansem, pois vocês merecem mais do que ninguém.
Acredito que não há mais sobreviventes, estou certo?
— Sim, mestre, só nós três conseguimos sobreviver. Foi uma perda lastimável
— lamentou Ji.
Shoi foi à sua yurt, uma tenda típica da região. Apesar de não ser uma
construção fixa, era a forma tradicional utilizada como moradia pelos Li-
Seugs. As tendas, bem pequenas, comportavam não mais que duas pessoas. O
motivo de sua metragem estava exatamente nas baixas temperaturas
vivenciadas no inverno. Em locais pequenos, o calor era mais fácil de isolar.
Uma estrutura feita com varas de madeira sustentava o lugar, as paredes
eram forradas com tecido grosso e reforçadas com peles de animais há muito
tempo caçados. O chão também era forrado com peles grossas e felpudas,
possibilitando um isolamento térmico do chão gelado característico das regiões
de inverno forte. Sua cama, elevada a alguns centímetros do chão,
aproveitava-se dos alicerces da tenda para seu uso próprio. Ali, além do
tradicional forro com peles, havia uma cobertura de seda rústica, não tão boa
quanto às comercializadas no passado, mas servia muito bem para o propósito
determinado e, além de ser confortável, evitava o contato direto com as
desagradáveis peles. Shoi retirou sua indumentária mais pesada, composta de
uma roupa básica feita em tecido grosso, um peitoral de couro forrado com
placas de ferro e seu cinto ricamente trabalhado com a espada curta presa por
uma meia bainha. Suas botas de couro e as peles que o protegiam do frio,
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
11
feitas em formato de roupas para dar mais agilidade ao guerreiro, também
foram retiradas e colocadas com as outras peças. Shoi, exausto, deitou-se na
cama e dormiu muito rápido. Todavia, não foi um sono tranqüilo. Pesadelos e
mais pesadelos, sem um sentido lógico, assombraram. Shoi durante aquela
noite. Um misto de fatos vividos com situações absurdas povoou seus
malignos sonhos. Acostumado desde criança com esses pesadelos, não se
abalava mais com isso. Shoi possuía essa fantástica habilidade,
principalmente com os pesadelos sem nenhum nexo. Uma mistura de gemidos
e sons provenientes das constantes reviravoltas ressonava quase
imperceptivelmente da pequena yurt.
Na manhã seguinte, bem cedo, com o sol ainda escondido, Shoi alimentou-se,
sentindo seu corpo descansado, mas havia nele um pouco de cansaço mental,
proveniente da noite cheia de maus sonhos. Todo o ritual de vestir suas
indumentárias fora completado em menos de quinze minutos, herança de sua
experiência adquirida em combate. Aproveitou o silêncio ainda existente na
vila para caminhar um pouco.
Ouviu um barulho estranho vindo da orda, uma yurt maior, de mestre Sue.
Chamou-o com um tom de voz bem baixo, para os outros não acordarem. Do
meio da abertura da tenda saiu uma cabeça idosa, com olhos cinzentos e rosto
macilento.
— É você, Shoi?
— Sim, mestre, sou eu.
— Entre, filho, entre, por favor. Vamos conversar. Estou ansioso por isso.
— Sim, mestre.
Shoi entrou na orda de mestre Sue. Sua barraca era bem maior que a de Shoi,
com alguns objetos pessoais colecionados pelo idoso mestre. Sentou-se no
chão. Mestre Sue também se sentou só que de frente para Shoi. Os anciões da
vila e as famílias com mais de três componentes tinham direito a uma yurt
maior.
— Conte-me, filho, o que aconteceu no caso dos bandoleiros.
— Conseguimos interceptá-los e nos escondemos perto do acampamento dos
malditos. Atacamos pela manhã — Shoi coçava a cabeça. - A batalha foi dura,
mas conseguimos eliminá-los com eficiência. Não sobrou ninguém.
— Lamento muito a perda de nossos companheiros, filho — mestre Sue, nesse
momento, colocou a mão no ombro de Shoi. — Mas acredito em seu empenho,
e ainda estamos aqui graças a você.
— Obrigado, mestre. Suas palavras são reconfortantes.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
12
— Não se preocupe, vamos orar aos deuses para receber bem nossos filhos
perdidos.
— Sim, mestre Sue. Vamos orar.
Os dois abaixaram suas respectivas cabeças, em demonstração de respeito,
murmurando alguma coisa semelhante a uma oração, mas indistinguível aos
ouvidos de possíveis ouvintes naquele recinto; a maneira típica de os Li-Seugs
orarem. Não havia uma oração preestabelecida ou ritual propriamente dito. A
tradição oral ensinava-lhes a história dos deuses e a única coisa ensinada a
eles a respeito de religião era uma busca sincera dentro de si para a
comunicação, via oração, com os deuses. Essa comunicação era feita
espontaneamente, não havendo necessidade de frases feitas. O único detalhe
nisso tudo estava exatamente no coração desprovido de sentimentos não
apropriados para este diálogo. Terminada a oração, mestre Sue perguntou a
seu aflito pupilo:
— O que lhe aflige, meu rapaz?
— Mestre, eu sei que não é unanimidade entre nosso povo a saída de nossas
terras, mas só vejo esta como única alternativa à nossa sobrevivência.
— Ora, Shoi, não estamos em posição de discutir isso. Mais do que nunca os
Li-Seugs precisam de alguém para liderá-los; e esse alguém é você, meu filho.
— Agradeço mais uma vez suas palavras de incentivo, mestre.
— Não há de quê.
— Mestre, o senhor lembra de algum lugar que lhe pareça seguro em direção
ao Sul, onde provavelmente é mais quente que aqui?
— Há um lugar — mestre Sue puxava pela memória. — Eu lembro muito bem.
Este lugar fica bem na direção onde apontaste. Deixe-me ver os mapas dos
antigos.
Mestre Sue levantou-se e em um pequeno baú encontrou vários pergaminhos
empoeirados, há muito tempo esquecidos. Começou então a abri-los. Um
pouco de poeira começou a entrar nas vias respiratórias de Shoi, provocando-
lhe tosses e espirros alternados. De repente o velho homem fez um som
estranho pela boca, lembrando um grito, só que em um som baixo, de
comemoração.
— Aqui está! Aqui está! — falava com ar de comemoração o velho mestre. —
Achei o mapa. Era uma antiga rota utilizada pelos antigos para o Sul. Havia,
se não me engano, um entreposto comercial de nosso povo em algum lugar por
aqui.
— Talvez seja um bom lugar para ficarmos.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
13
— Acho que me lembro, quando criança, de estar nesse lugar. Caso seja o
mesmo, então estaremos salvos por um bom tempo.
— Pelo menos é, sem dúvida, um risco menor irmos para lá, do que ficarmos
ou andarmos sem rumo.
— Exatamente, meu filho! Exatamente!
— Pelo mapa, mestre, nós poderíamos traçar um tempo estimado de chegada?
— Creio que sim, filho. Podemos, sim!
— Quanto, mais ou menos, levaria para chegar?
— Se não me falha a memória, cada distância de um dedo equivale
aproximadamente a duas semanas — fazia um muxoxo mestre Sue. —
Portanto, acredito em uns dois meses de viagem.
— Até que é um tempo razoável.
— Razoável é; ideal, não — contestava mestre Sue, com um sorriso
tranquilizador.
— Não temos alternativas, não é?
— Não.
— Eu acredito, sinceramente, nesse caminho que trilharemos. Acredito nessa
alternativa — dizia Shoi com convicção inabalável.
— Ao líder cabe essa missão. Confio em você, meu filho. Acredite sempre em
si, pois seu coração é puro. Não deixe de confiar em seus instintos. Também
acredito no sucesso dessa nossa empreitada.
Shoi curvou-se diante de seu mestre, em respeito ao antigo professor, saiu da
tenda e constatou, pela ardência nos olhos, um novo dia amanhecendo. Não
percebera o tempo utilizado na conversa, mas não se importava. O plano,
auxiliado por mestre Sue, tinha grandes chances de ser bem-sucedido. Não
havia sol naquele novo dia. O tempo estava completamente nublado, mas até
aquele momento não aparentava a possibilidade de neve. O céu tinha matizes
de branco e cinza claro. De repente, Shoi ouviu um barulho abafado, de
cavalgada sobre a neve. O som tinha as características de apenas um animal
galopando, a toda a velocidade. A imagem começava a ficar mais nítida. Uma
mulher usando roupas de guerreiro. O rosto, branco como a mais delicada
porcelana, sustentava uma beleza simétrica. Os cabelos lisos e negros quase
cobriam os olhos castanhos da mulher. Era Zhi, irmã mais nova de Shoi,
voltando da vigília nas fronteiras do Leste. Shoi sentiu um alívio por ver a irmã
viva. A possibilidade era mínima de ataques-surpresa vindos daquela direção,
afinal, a troca de guarda seria feita naquele dia e a notícia teria chegado. Tudo
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
14
indicava uma rotina normal. Agora o grupo estava completo com o retorno de
Zhi.
Mulheres eram aceitas nos Li-Seugs, diferentemente de outras aldeias da
região, nos mesmos cargos que os homens. A degradação dos Li-Seugs
possibilitou essa precoce atitude. Não havia opções, e a solução demonstrou-
se fabulosa e pouco previsível nas antigas ideias Li-Seugs. Zhi era uma boa
guerreira e apresentava-se sempre para cuidar das fronteiras. Quando Shoi
contou-lhe o acontecido do dia anterior e expôs sua solução para resolverem
seus problemas, Zhi apoiou-o, e confiou a seu irmão sua fidelidade e sua
espada para defenderem o restante dos Li-Seugs do extermínio.
Shoi pediu a ajuda de Zhi, Ji e Goo para reunir o restante do grupo. Na
reunião, expôs sua alternativa para o problema. Como a maioria era de
mulheres, sendo mais flexíveis e adaptáveis em situações necessárias, não
houve oposição às ideias de Shoi. Todos concordaram, apesar de a tradição
ancestral estar ligada profundamente àquela terra, interpretando a solução
como a melhor possível. Mesmo entre os homens, como já era predefinido, não
houve oposição, pois só havia Ji, o menino Goo e mestre Sue. Tudo funcionava
com uma precisão ainda melhor. Shoi encontrava-se mais otimista do que
nunca, pois a unanimidade o estimulava a seguir o caminho traçado por ele e
pelas circunstâncias.
Os Li-Seugs não perderam tempo. Reuniram tudo o que precisavam. Comida,
peles, animais de montaria e de carga, objetos pessoais, etc., tudo era reunido
da melhor maneira possível. Quarenta animais compunham o plantei. Não
sendo mais que treze pessoas, os outros cavalos poderiam carregar muita
carga. E poderiam se dar ao luxo de ir boa parte do caminho montados em
suas bestas. Todo o processo de desmonte e preparação para a fuga rumo ao
Sul levou cerca de três dias. Antes de saírem de suas queridas terras, fizeram
uma oração em silêncio, com o intuito de homenagear os recém-falecidos, que
deram suas vidas pela defesa de seu povo e sua cultura, e para os antigos an-
cestrais há muito tempo enterrados naquelas sagradas e antigas terras. Com a
convicção dos que acalmaram e justificaram suas atitudes aos antigos
senhores, sentiram-se prontos para partir. Formaram duas fileiras de vinte
cavalos cada e a caravana seguiu viagem rumo a uma terra melhor, onde
poderiam começar uma nova vida, e talvez, quem sabe, reconstruir e restituir
uma antiga glória pertencente aos Li-Seugs. Não haveria homenagem melhor
aos espíritos ancestrais que uma antiga glória restituída.
Um mês se passara desde a saída da aldeia mais ao norte. A primavera
começava a desabrochar junto a terras um pouco mais quentes, os animais da
comitiva tinham acesso a pasto fresco, não necessitando mais de fenos e
complementos de cereais. As águas de rios próximos começavam a surgir
novamente, seguindo seus antigos cursos. Era uma época muito bonita,
porém, também, possuía seus inconvenientes. Os insetos perturbavam um
pouco, mas só de não precisarem mais usar roupas pesadas já era uma
sensação de alívio para qualquer pessoa.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
15
Shoi, observando o velho mapa de mestre Sue, verificou alguns desenhos dos
marcos de referência e sua localização exata e constatou a veracidade dos
cálculos com poucos critérios utilizados pelo estimado mestre. O cálculo de
um mês para chegar ao ponto determinado, naquele momento e localização,
estava muito próximo da realidade. Reunidos numa roda, todos estavam
devidamente acomodados, Shoi relatou aos seus parentes a situação atual.
— Irmãos e irmãs. Ainda falta um mês, aproximadamente, para chegarmos ao
nosso ponto final. Gostaria, dos responsáveis, um relato de nossa situação
atual. Alimentos, condições dos animais e opiniões, se as tiverem.
— Shoi — começou mestre Sue. — Acredito na durabilidade de nossas
reservas de alimento até o momento de nos instalarmos nas novas terras.
Creio que serão suficientes até a primeira colheita. Mas devemos nos
precaver.Tudo que é comestível encontrado pelo caminho deve ser estocado,
para possíveis eventualidades.
— Os animais estão melhores, principalmente depois do fim deste horroroso
inverno — interrompia de modo inocente o menino Goo. - Não há sinal de
doenças ou algo do gênero.
— As novas pastagens renovaram os ânimos dos cavalos — dizia Zhi.
— Com a primavera, há uma esperança de novos tempos — completava de
modo filosófico, mestre Sue. — Tenho certeza de nosso sucesso nesta
empreitada. Shoi nos trouxe até aqui sãos e salvos e nada há de nos
acontecer.
— Suas palavras me estimulam muito, mestre, porém não teríamos sucesso se
não tivéssemos a cooperação de todos aqui. Estamos ligados em nossas
necessidades e acabamos formando uma única entidade. Portanto, o sucesso é
nosso e não de uma única pessoa.
— Sua modéstia é típica dos grandes líderes - rebatia com ternura mestre Sue.
— Não desmereça seus feitos, pois, se errássemos, você seria o culpado na
visão da maioria.
—Agradeço mais uma vez, porém continuo com minhas convicções.
—Vamos ao que interessa. Precisamos saber o que fazer daqui para a frente!
— interrompeu Ji.
— Concordo e peço desculpas por desvirtuar o assunto — disse mestre Sue.
— Tudo bem, mestre. Não se preocupe, concordo com suas idéias — Ji
balançava a cabeça positivamente.
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
16
— Acredito no tempo de um mês, afinal os mapas não mentiram para nós —
comunicou a todos Shoi. — Não vamos desanimar agora. Continuem com suas
tarefas e conseguiremos vencer esta jornada.
Todos se ergueram e foram cumprir seus deveres à continuidade das rotinas
do grupo; assim, levantariam o acampamento e prosseguiriam com a viagem e
seus planos.
Tudo se manteve tranquilo nos quinze dias seguintes. A viagem tornou-se
muito menos estafante, pois o clima ajudava, menos, obviamente, quando as
chuvas da primavera davam o ar da graça. Nem a chuva era tão desagradável
quanto uma tempestade de neve, por isso ninguém reclamava. A noite,
naquele dia específico, aparentava uma estabilidade pouco vista naquela
época do ano. Um belo céu estrelado apresentava-se aos olhos mais tristes,
exibindo um espetáculo visual sem precedentes. Milhares de pontinhos
luminosos enfeitavam aquela bela noite. Via-se um pedacinho do universo
naquela janela estrelada. Nebulosas, estrelas, planetas muito distantes e uma
bela lua minguante complementavam o espetáculo. O grupo acampou num
pequeno descampado onde uma tenda coletiva foi armada, desta vez com a
proteção de tecidos e não as excessivas peles utilizadas no inverno. Uma
fogueira foi acesa próxima à barraca onde se cozinhava arroz para os próximos
dias. Todos se reuniam para ouvir as histórias contadas por mestre Sue e
Shoi. Todos se divertiam, pois cada um contava de uma forma pessoal os
antigos contos Li-Seugs. Não era surpresa, pois se sabia que em uma tradição
oral, o importante era a preservação da essência dos contos e não a
transmissão total, preto no branco, das histórias. Todo o contador fazia
pequenas adaptações para melhorá-las a seu bel-prazer. Todos comiam,
ouvindo atentamente as histórias, rindo e conversando entre si, quando um
barulho nunca ouvido antes chamou a atenção deles.
Era um barulho ensurdecedor. Um chiado estranhíssimo. De repente, o
pequeno Goo que estava ao lado de Andarilho, o filhote de lobo negro, apontou
com seu pequeno dedo para o céu. Um ponto luminoso, parecido com uma
estrela, movia-se de um jeito totalmente inédito àquela gente. O ponto
começava a aumentar rapidamente. Com ele trazia o estranhíssimo som
aumentando proporcionalmente à medida que se aproximava.
— Pelos deuses! O que é aquilo?
O objeto estranho passou pela cabeça dos Li-Seugs, obviamente a uma altura
elevadíssima, e seguiu uma trajetória reta. E todos estavam com os olhos fixos
no estranho ponto luminoso. Ninguém ousou se mexer, num misto de medo e
curiosidade. O ponto de repente parou abruptamente a cerca de dois
quilômetros do local de onde estavam começou, então, segundos depois, a
descer num ângulo perfeito de noventa graus em relação a sua trajetória
original. E, no pouso, um clarão iluminou todas as terras ao seu redor como
se o dia voltasse por alguns segundos. Shoi imediatamente chamou Ji e Zhi
para pegarem seus cavalos e verificarem o que significava aquilo. Apesar de
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
17
estarem com um medo fora do comum, a curiosidade falou mais alto. Pediram
que mestre Sue orasse por eles. Mestre Sue pediu, nos instantes antes da
partida, que todos tomassem cuidado, pois aquilo era totalmente desco-
nhecido. Todos, devidamente montados, seguiram na direção nordeste onde o
objeto havia pousado. Não levou nem dez minutos a chegada no local.
Pararam alguns metros do ponto inicial do clarão. Amarraram seus cavalos
para que não debandassem. Seguiram com passos de fantasma até o local
exato.
— Silêncio! Temos de ir bem devagar — dizia Shoi com a voz mais baixa
possível, quase um sussurro.
O local estava todo chamuscado, porém não havia mais nenhum vestígio de
fogo nem um odor de queimado excessivo. O objeto estava no chão, intacto,
sem movimento algum. Shoi, Ji e Zhi aproximaram-se cada vez mais. Aquela
coisa tinha um formato muito estranho aos olhos deles. Como uma flecha
gigante, tinha quatro bolhas negras ovais acima da ponta, não possuía
abertura alguma aparente. Tinha cores intensas, preto, vermelho, verde. Cores
de metal prateado, queimado. Coisas que lembravam, com muito esforço e
criatividade, barbatanas e chifres que saíam da pele daquele objeto, como as
penas colocadas atrás de uma flecha. Nada parecido com aquilo havia sequer
povoado os sonhos mais profundos dos que estavam presentes. Shoi
aproximou-se bem perto dele e tocou-lhe com mãos trêmulas. Estava quente,
mas numa temperatura suportável. Ficaram por meia hora olhando aquela
aberração vinda do céu.
— Será alguma coisa dos deuses que caiu acidentalmente? — perguntou Ji a
Shoi.
— Não sei.
— É melhor voltarmos — disse Zhi.
— Você tem razão. Vamos voltar, pois não há nada aqui para nós —
respondeu Shoi.
Quando deram as costas para a flecha gigante dos deuses, um barulho saiu
das entranhas daquilo. Eles, assustadíssimos, olharam com espanto e pavor
na direção contrária ao seu caminho. Uma espécie de porta abriu-se diante
deles. Uma luz intensa, a ponto de deixá-los sem uma visão decente,
iluminou-os. Tentando se proteger com as mãos, fazendo uma espécie de aba,
Shoi viu algo mexendo-se dentro do estranho objeto. De repente saiu uma
criatura monstruosa, com aproximadamente três metros de altura. Trajava
uma espécie de armadura totalmente preta, porém a luz intensa não permitia
ver com mais detalhes. De seu elmo, observando seus pequenos visitantes, a
criatura aproximou-se levantando sua pata num gesto pacífico. A viseira que
cobria o rosto da criatura foi removida por ela mesma e olhos amarelos com
A Essência do Dragão: Ressurreição
Edição de 2010 (Novo Século Editora)
18
um rasgo negro apareceram. Não é possível!, pensava Shoi. Aquele rosto era-
lhe conhecido de alguns desenhos antigos mostrados por mestre Sue.
Naqueles instantes de contato, todos se ajoelharam, como se cultuassem uma
divindade, mas em uma atitude mais de espanto do que de adoração.
Sentimentos confusos. A criatura esboçou algo parecido com um sorriso e
pronunciou, com sua voz grossa e metálica, algo indecifrável para os ouvidos
daquelas três pessoas. Shoi encarou-o mais uma vez e disse com espanto e
euforia nunca sentidos por ele em sua existência:
Pelos espíritos ancestrais dos Li-Seugs! Eu não acredito...

Contenu connexe

En vedette (10)

Grammar
GrammarGrammar
Grammar
 
Bautismos
BautismosBautismos
Bautismos
 
2016 Resume
2016 Resume2016 Resume
2016 Resume
 
Santillana4
Santillana4Santillana4
Santillana4
 
100
100100
100
 
Entrevistas a adulto mayor 60 a 69 años
Entrevistas a adulto mayor 60 a 69 años Entrevistas a adulto mayor 60 a 69 años
Entrevistas a adulto mayor 60 a 69 años
 
Brincadeiras infantis nas aulas de matemática
Brincadeiras infantis nas aulas de matemáticaBrincadeiras infantis nas aulas de matemática
Brincadeiras infantis nas aulas de matemática
 
Inteligencia Emocional
Inteligencia EmocionalInteligencia Emocional
Inteligencia Emocional
 
Pantallas híbridas
Pantallas híbridasPantallas híbridas
Pantallas híbridas
 
Proc lectura
Proc lecturaProc lectura
Proc lectura
 

Dernier

Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTeoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTailsonSantos1
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIAPROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIAHELENO FAVACHO
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdfPROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdfHELENO FAVACHO
 
matematica aula didatica prática e tecni
matematica aula didatica prática e tecnimatematica aula didatica prática e tecni
matematica aula didatica prática e tecniCleidianeCarvalhoPer
 
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptaula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptssuser2b53fe
 
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptxOs editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptxTailsonSantos1
 
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para crianças
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para criançasJogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para crianças
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para criançasSocorro Machado
 
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptxSlides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Ilda Bicacro
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)ElliotFerreira
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfTutor de matemática Ícaro
 
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptxSlides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSOLeloIurk1
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfprofesfrancleite
 
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfProjeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfHELENO FAVACHO
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...azulassessoria9
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteVanessaCavalcante37
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfHELENO FAVACHO
 

Dernier (20)

Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIXAula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
Aula sobre o Imperialismo Europeu no século XIX
 
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptxTeoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
Teoria heterotrófica e autotrófica dos primeiros seres vivos..pptx
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIAPROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
 
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdfPROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO I - SERVIÇOS JURÍDICOS, CARTORÁRIOS E NOTARIAIS.pdf
 
matematica aula didatica prática e tecni
matematica aula didatica prática e tecnimatematica aula didatica prática e tecni
matematica aula didatica prática e tecni
 
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.pptaula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
aula de bioquímica bioquímica dos carboidratos.ppt
 
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptxOs editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
Os editoriais, reportagens e entrevistas.pptx
 
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para crianças
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para criançasJogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para crianças
Jogo de Rimas - Para impressão em pdf a ser usado para crianças
 
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptxSlides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
Slides Lição 05, Central Gospel, A Grande Tribulação, 1Tr24.pptx
 
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
Rota das Ribeiras Camp, Projeto Nós Propomos!
 
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)Análise poema país de abril (Mauel alegre)
Análise poema país de abril (Mauel alegre)
 
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdfCurrículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
Currículo - Ícaro Kleisson - Tutor acadêmico.pdf
 
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptxSlides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
Slides Lição 6, CPAD, As Nossas Armas Espirituais, 2Tr24.pptx
 
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdfPROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
PROJETO DE EXTENSÃO - EDUCAÇÃO FÍSICA BACHARELADO.pdf
 
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
2° ANO - ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO RELIGIOSO
 
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdfPRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
PRÉDIOS HISTÓRICOS DE ASSARÉ Prof. Francisco Leite.pdf
 
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdfProjeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
Projeto_de_Extensão_Agronomia_adquira_ja_(91)_98764-0830.pdf
 
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
PROVA - ESTUDO CONTEMPORÂNEO E TRANSVERSAL: LEITURA DE IMAGENS, GRÁFICOS E MA...
 
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcanteCOMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
COMPETÊNCIA 2 da redação do enem prodção textual professora vanessa cavalcante
 
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdfProjeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
Projeto de Extensão - ENGENHARIA DE SOFTWARE - BACHARELADO.pdf
 

A Batalha de Shoi contra os Bandidos em Defesa de seu Povo

  • 1.
  • 2. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 2 CAPÍTULO I LI-SEUG Há três mil anos... Apenas um pequeno movimento de vento, acompanhado de um leve silvo, foi percebido por Shoi. Uma fração de segundos separava a espada do inimigo de sua estimada cabeça. O arco feito pelo movimento da arma branca foi interrompido pelo forte golpe desferido rapidamente por sua própria espada. Tempo não era luxo naquele momento. Tomando rapidamente a posição de atacante e não mais de defensor, Shoi penetrou sua lâmina no ventre de seu adversário. Naqueles instantes de silêncio, só se ouvia o pulsar do coração constantemente refletido em suas têmporas e a forte respiração emitida pelos dois guerreiros. O sangue quente escorria na empunhadura e fazia um curto caminho até sua mão. O contraste com o frio naquele dia era extremamente visível, a ponto de o vapor exalar, como nuvens, do sangue e dos corpos quen- tes ao se chocarem com os primeiros raios de sol, que timidamente apareciam nas horas mais quentes do dia; só que havia a dificuldade em usar a classificação "quente" em tão terrível inverno. Olhos arregalados encaravam o adversário e as pupilas aos poucos se movimentavam, demonstrando o fim iminente. Uma vez demonstrando olhos mortos, a espada foi retirada do ventre empalado com uma força ainda maior, fazendo o corpo de seu oponente cair como uma marionete desprendida das cordas sustentadas por mãos de um descuidado titeriteiro. Aqueles momentos eram tão rápidos como os reflexos de Shoi, pois não tardava absolutamente nada até outro inimigo aparecer, e novamente, com a rapidez de um tigre, Shoi aumentava sua coleção de almas. Um a um os adversários caíam a seus pés, mas a facilidade inicial tornava-se um misto de dificuldade e cansaço. Os braços começavam a pesar mais, e a concentração, ainda que determinada, também começava a falhar. Um jogo para fortes. A paciência e o momento certo tornavam-se elementos fundamentais para um bom resultado e só nesses momentos surgiam lendas vivas como Shoi. Uma luta em iguais condições tornava-se o máximo em termos de glória. Não havia riqueza, troféu, nada palpável. Somente a honra e a satisfação da justiça. Não há nada como a consciência e a honra, seguidas nos moldes da justiça guerreira. A própria personificação do real combate entre homens. Nada se interpondo à dança mortal sobre um palco de sangue e carne. Somente um homem contra outro homem, e nada mais. Depois de vencer facilmente alguns daqueles bandoleiros, enfrentara um verdadeiro desafio em sua jornada guerreira. O homem já havia matado alguns de seus amigos e aquilo não poderia ficar impune. O bandoleiro, usando roupas típicas daquela região, com seu chapéu forrado de pele, olhos pequenos e maliciosos, dentes podres e barba densa, desafiava Shoi fazendo movimentos com suas armas, imitando um gesto de provocação. Aceitou o significado do gestual e, como de costume, partiu para o ataque. Desviando-se
  • 3. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 3 rapidamente dos golpes mortais desferidos, cravou a pequena espada no ventre do adversário. Contudo sentiu algo duro. Aquele bandoleiro usava um peitoral de couro e ferro e a espada não conseguiu penetrar na proteção. Reflexo em dia, não perdeu tempo e aparou dois golpes das espadas e pulou para trás. Teria de pensar rapidamente em como feri-lo de modo letal. Naquele segundo, as espadas do bandido faziam um vôo mortal em sua direção com ausência de qualquer piedade. Golpes para matar rápido. Chegara ao ponto de um simples defensor naquele embate. Teria de mudar rapidamente de posição. Ao defender os golpes pesados, parecia defender golpes de uma pesada marreta. Aquele homem, além de habilidoso, possuía força extraordinária. Levaria seus esforços e sua técnica ao máximo para vencê-lo. Perder, contudo, não estava na ordem do dia para Shoi. Enquanto o habilidoso bandoleiro golpeava sem parar, Shoi percebeu uma falha na proteção peitoral daquele homem. Uma tira de couro prendia o peitoral à proteção das costas e deixava vulnerável a parte entre pescoço e ombro. Ali encontrou a resposta para seu dilema. Deu sucessivos passos para trás e o homem, furioso com seu insucesso até então, correu raivosamente na direção de Shoi. Por ser mais dinâmico, Shoi conseguiu afastar-se bem para fazer aquilo que pretendia. De frente para o adversário, manteve a posição desafiadora, ereto como um tronco de pinheiro, até que inflamado de raiva o bandoleiro correu com a espada direita em riste e a esquerda em posição defensiva. Em fração de segundos, Shoi percebeu o momento certo e desviou. O homem projetara seu corpo todo à frente, com o intuito de ser mais rápido e forte, e deixou aquela parte desprotegida de sua anatomia na posição perfeita para o abate. Segurando rapidamente a espada ao contrário, enfiou-a entre o pescoço e ombro, usando a força de seu oponente. A lâmina penetrou a carne até chegar à empunhadura e o adversário rendeu-se quase morto naqueles poucos instantes de agonia. A arma pulsou as batidas do coração daquele infeliz. Shoi colocou o pé entre ombro e peito e puxou a espada de volta ao ar frio daquela manhã. De joelhos, ainda com um filete de vida, Shoi interrompeu sua queda e passou a espada no pescoço do moribundo, decepando-lhe a cabeça. Dividido em dois, finalmente as partes encontraram a neve maculada de sangue quente. O combate exauriu as forças de Shoi. Se tivesse de enfrentar outro igual, temia por sua própria vida. Contudo afastou esse pensamento e continuou. Olhou ao redor e viu somente mais um em pé e disposto a combater. Respirou, tentou reunir o máximo de forças e seguiu em frente em seus objetivos. O homem parecia bem mais baixo e magro em relação ao último. Usava roupas simples, aparentemente sem armadura por baixo, e apenas uma espada. Observava aquele outro bandido e planejava rapidamente sua pequena estratégia de combate. Após um jogo de paciência e estudo de seu último adversário, Shoi resolveu atacar, mas o bandido foi mais rápido fazendo um ferimento em sua perna. Apesar da dor, a adrenalina permitiu uma sensibilidade não maior que um pequeno arranhão. Aproveitando-se da projeção à frente em que se encontrava do oponente, segurou sua espada de modo inverso com a lâmina posicionada
  • 4. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 4 abaixo de seus dedos mínimos fortemente apertados, como fizera no final do combate do adversário anterior. Shoi estocou para trás e atravessou-o, começando pela parte inferior das costas. Virou-se rapidamente e, fazendo um caminho em diagonal com a lâmina, terminou com a ponta dela rasgando carne e pele perto do pescoço daquele pobre infeliz, que, por um instante em sua miserável vida achou-se vantajoso em função de um ferimento produzido na perna de seu habilidoso oponente. Assim caiu o último obstáculo do dia. Impressionante era a fantástica concentração demonstrada em combate por Li-Seug Shoi, dos Li-Seugs.Tudo se transformava em uma única entidade, ou seja, guerreiro e ambiente se fundiam em desempenho perfeito. Não eram apenas boatos as histórias contadas. Shoi estava entre os melhores guerreiros daquela remota região, no extremo nordeste da Ásia. Toda uma vida de experiências em combate e treinos estafantes não significava absolutamente nada, mas nada mesmo, se um guerreiro não voltasse para contá-las aos seus e, em nova oportunidade, o ciclo da necessidade continuasse um caminho em que sua destreza guerreira seria posta à prova mais uma vez. Assim construiu-se a vida de Shoi. Uma profissão muito arriscada, porém extremamente necessária em dias tão difíceis. Entretanto, sua sensibilidade nunca foi abalada por tão dura vida. Em comunidade sempre foi o mais prestativo à seu povo e seu interesse por conhecimento nunca foi diminuído, dando-lhe, por mérito, a capacidade de um líder nato. Assim, quando todos os líderes Li-Seugs morreram, sobrou a Shoi mais essa tarefa, a qual aceitou imbuído da convicção e da responsabilidade exigida de qualquer um realmente merecedor de tão pesado fardo, afinal, cabia a um líder, nos moldes culturais dos Li-Seugs, a proteção e a manutenção de seu povo. Mesmo exausto daqueles instantes anteriores, em que uma chuva de sangue e morte foi o resultado de tão necessária empreitada, Shoi levantou sua cabeça e olhou atentamente, já diminuindo sua fúria assassina, constatando uma recompensa extremamente desfavorável. Não sobrara quase ninguém de seu reduzido grupo. Apenas mais dois estavam vivos e de pé. Naquele campo coberto da mais alva neve maculada por rajadas em vermelho, Ji, grande amigo e habilidoso guerreiro, e o menino Goo estavam de pé como montanhas intransponíveis, imóveis, como se naquele momento o tempo estivesse paralisado e nada mais existisse vivo em tão sombria cena. Quebrando o uivo suave produzido pelo vento, Shoi respirou fundo e gritou para seus dois estáticos companheiros: — Ji! Goo! Conseguimos! — tomava fôlego mais uma vez. — Estou indo até vocês. Com passos lentos e difíceis, Shoi foi em direção aonde os amigos estavam. Ao encontrar Ji, um forte abraço selou o fim daqueles momentos de vida e morte. Logo em seguida passou a mão na jovem cabeça de Goo elogiando-o por seu feito corajoso.
  • 5. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 5 Os acontecimentos nos quais Shoi e seus dois restantes companheiros foram colocados não tinham nenhum objetivo que não fosse o de defesa. Por sinal era algo extremamente exigido deles nos últimos tempos. Os ataques constantes de bandoleiros estavam cada vez piores. A defesa de seu povo era uma necessidade. Mas seu reduzido grupo, os Li-Seugs, encontrava-se numa posição desfavorável. O grupo já não era próspero como no passado e estes últimos ataques deixaram seqüelas que dificilmente poderiam ser restauradas. Estavam, naquele momento, quase extintos. Somando os sobreviventes deste último combate, eram pouco mais de dez pessoas, ou, mais precisamente, treze pessoas. Número modesto para um grupo que, num passado longínquo, dominou aquela região. Domínio não à base da força, mas do comércio e da troca de conhecimento. A realidade daqueles dias apresentava-se diferente e não restava mais nada a fazer a não ser uma nova estratégia para uma tentativa de sobrevivência. Teriam como única opção o abandono de suas terras. Essa mudança seria uma ofensa para os ancestrais, mas com número extremamente reduzido, a vida nômade tornava-se uma das terríveis opções; a outra seria a morte. Reduzidos, a oposição à idéia de Shoi não seria rechaçada. Afinal, o leque estava fechado. Depois do abraço em Ji, Shoi verificou se ainda restava algum ferido em campo, mas infelizmente sua procura não encontrou bons resultados. Começou, com a companhia de Ji e Goo, a procurar algo de valor nos cadáveres dos bandoleiros. Shoi não gostava da atitude em si, mas aqueles tempos não permitiam filosofias sofisticadas. Goo encontrou uma coisa surpreendente numa bolsa presa a um cavalo. Havia um filhote de lobo totalmente negro enrolado em trapos. O pequenino, esboçando vitalidade, abriu seus diminutos olhos para o menino. Este o envolveu, junto aos trapos, dentro de sua roupa, próximo à barriga, fazendo dos bracinhos o apoio perfeito para a jovem criatura. — Olhem! — gritou o menino. Eles viram o filhote como um símbolo de sorte, pois a fragilidade do animalzinho conseguia superar o mais terrível dia. Frio e morte não conseguiram distrair aquele lobo de sua luta pela sobrevivência. Shoi passou a mão na cabeça peluda do lobinho. — Pelo menos temos mais um novo Li-Seug — disse Shoi. — Estes bandidos devem tê-lo encontrado ao norte. Seu passado é um mistério. Contudo, seu futuro será percorrido conosco. Apesar de não demonstrar, o que mais Shoi temia nos últimos tempos confirmou-se. Não poderiam mais ficar. Andaram entre os mortos em direção a sua aldeia, carregando alguns mantimentos — principalmente arroz, trazidos pelos bandoleiros — e, em um lugar onde não havia a mácula da morte e da violência, acenderam uma fogueira para permanecer algumas horas. Descansariam um pouco.
  • 6. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 6 — Acredito na necessidade de descanso, queridos amigos — disse Shoi demonstrando em sua grossa voz um cansaço pouco comum. — Concordo plenamente! Por sinal, o que restou com vocês para comermos? — roncos eram ouvidos provenientes da barriga do jovem Goo enquanto perguntava aos dois fatigados guerreiros. Acomodações foram providenciadas. Shoi e Ji fizeram uma pequena barreira com neve para protegê-los dos ventos gélidos em sua breve estada no local. Shoi sugeriu uma permanência não maior que três horas, para encontrarem o mais rápido possível seus parentes e providenciarem sua mudança. Enquanto o fogo crepitava, comiam carne de caça seca com um pouco de arroz, sobras daquilo que um dia foi uma grande fartura. O descanso e o alimento aos poucos faziam seus esperados efeitos. Durante o descanso, deitados em cobertores de pele e próximos ao fogo, Shoi, um interessado por lendas antigas, contava histórias para sua diminuta plateia. Grandes guerreiros, cavaleiros, história dos deuses, riquezas, etc., constituíam os enredos por ele contados. Ji e o jovem Goo não se cansavam de escutar aquelas histórias, principalmente da maneira contada por Shoi. Em função de sua juventude, os outros jovens Li-Seugs permitiam-se alguma intimidade com Shoi. Chuva de perguntas e questionamentos, coisa que não acontecia com contadores bem mais velhos em função de um misto de respeito e temor, sempre caíam aos ouvidos de Shoi quando se dispunha a contá-las. Apesar de os mais velhos acharem inoportunos os questionamentos, Shoi não se importava com tal atitude de sua platéia. Até gostava, pois dava a informalidade e a humildade tão apreciada por ele. Aquilo era como uma conversa, porém uma conversa profundamente informativa sobre os costumes e lendas de seu povo. A primeira lenda contava a história de um comerciante. Esse comerciante deu origem ao povo Li-Seug.Toda a tradição e expansão dos Li-Seugs tiveram origem na arte do comércio. Suas caravanas, muito famosas no passado, iam a terras já há muito tempo esquecidas. Todo um intercâmbio de cultura e riquezas circundava esse povo. Dizia-se daqueles tempos memoráveis que cada componente dos Li-Seugs possuía dez cavalos e que os jantares eram fartos; especiarias de todo o mundo frequentavam as suntuosas mesas forradas com a mais bela e macia seda. Ah, como gostaria de viver tempos assim!, resmungava consigo Shoi. Mas os tempos pioraram. Os Li-Seugs descobriram a outra faceta da ganância. Quiseram demais e acabaram declinando como comerciantes. Somava-se a isso o problema de guerras intermináveis entre os clãs instalados nas rotas comerciais. Um antigo provérbio dizia: Aos não sábios, o poder da incapacidade de adaptar-se, e foi exatamente isso que aconteceu aos Li-Seugs. — Caso tivesse vivido esse tempo, tentaria outros lugares para expandir nossas relações — disse Ji. — Eu fico imaginando as guloseimas dos antigos — enchia-se de saliva a boca do guloso Goo. — Imaginem tanta fartura nos dias de hoje.
  • 7. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 7 — Ah! Meus amigos! Disto devemos tirar preciosas lições — afirmava Shoi. — Quem não se adapta, morre. Assim é no combate também. A um guerreiro, a adaptação é fundamental para o combate, pois não há lição suficiente que nos prepare ao real. — Shoi! Shoi! — Freneticamente chamava Goo. — Conte a história do deus dragão, por favor! — Conte Shoi, isso mesmo, conte, por favor! — Tudo bem, tudo bem, eu conto — Shoi ria com a insistência dos amigos. A lenda do deus dragão tornara-se a predileta entre os Li-Seugs. Contava a incrível história do início dos tempos, quando vários deuses se enfrentaram em um combate, durando aproximadamente mil gerações. A lenda contava como o deus dragão foi o vitorioso nesse grandioso combate. Uma epopéia com todos os detalhes. Histórias de amor, traição e vingança construíam o enredo desse conto. Shoi contava-a de forma muito atraente para seus ouvintes, mas pessoalmente a tinha apenas como uma simples lenda. Há a parte dos ensinamentos desse deus aos humanos, dando-lhes seus espíritos.Toda a essência do ser humano vinha da criação do deus vitorioso da guerra das mil gerações. — Cante aquela canção — pediu Goo. — Como é mesmo? -Vou cantá-la - disse Shoi. Preparou-se e, meio desafinado, pois não tinha muito talento para cantorias, emitiu as palavras da letra: Antes de o primeiro homem Sentir a luz penetrar em seus olhos, Havia uma Era de ontem, Governada por deuses gloriosos. Oh, deus Dragão! Volte de seu longo exílio forçado. Traga de volta a redenção Para seu filho maltratado. Retire-nos das trevas, Escuridão eterna, miséria. Ofereça-nos regras, Viveremos tua glória. Volte, volte, Dragão. Não há esperança sem ti. Volte, volte, Dragão. Para um dia podermos sentir O amargo sabor De, verdadeiramente, existir.
  • 8. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 8 Todos ouviram a canção mesmo o intérprete não sendo dos melhores. — Já pensou se tivéssemos um deus como este a nosso lado? — disse Goo com um volume de voz e articulação como se não dormisse há dias. Acariciava o filhote, distraidamente. — Não acredito nisso, apesar de ser um belo conto — Shoi olhava com olhos de ternura para o pequeno com o filhote no colo. —Vejo por um ponto diferente essa história de crescimento, afinal o deus dragão venceu por ser honrado e não o mais forte. — Só estava sonhando acordado. — Ah! Sonhar é algo bom, fugimos por alguns instantes de nossa realidade, porém, meu jovem — neste momento Shoi colocou a mão no ombro de Goo —, não permita o domínio desse estado em detrimento do presente e de nossas realidades atuais. — Eu sei! Eu sei! — Goo bocejava, alternando palavras. Todos se calaram. Nesses instantes de silêncio, Shoi começou a sentir o ferimento provocado por seu último adversário. Examinando o rasgo no tecido de suas calças, verificou um corte superficial, nada para se preocupar. Apenas mais um troféu de combate que não deixaria vestígios no futuro. Shoi, analisando, agora com mais calma e consciência, percebeu uma perda de força por parte de seu rival no momento do golpe de espada, por isso o pouco estrago produzido. Aliviado por sair ileso deste evento, aproveitou para descansar o máximo que pudesse, afinal deveriam partir o quanto antes e decisões deveriam ser tomadas de imediato. Instantes depois, com a normalidade restabelecida, uma lágrima escorreu de seu olho direito. Grandes amigos foram para junto dos deuses, e suas perdas seriam irreparáveis. Lágrimas e mais lágrimas desciam de seus olhos inflamados conforme as lembranças daquele dia passavam como uma volta no tempo em sua mente. Simplesmente virou-se para o lado, escondendo seu momento de fragilidade manifestado fisicamente, sentindo respeito e saudade por aqueles que não existiam mais. Mas como líder recém-eleito, não poderia demonstrar esse tipo de condição, afinal, cabia-lhe a tarefa da esperança, esperança motivacional para os não possuidores dela. Apesar da tristeza, Shoi constituiu em sua mente a idéia da possível sobrevivência de seu povo. Sua tristeza, naquele instante, era apenas pelos parentes e amigos queridos, agora falecidos. Faria de tudo para aquelas mortes não serem em vão. Duas horas se passaram e os três levantaram-se, não com a energia totalmente restauradas, mas com a disposição daqueles que precisam cumprir seus compromissos, e nesse caso vida e morte alternavam a frágil liderança numa corrida atípica. Um dos Li-Seugs vigiara na noite anterior, em um ponto estratégico, e constatou a vinda de bandoleiros para a aldeia de Shoi. Pegou seu cavalo e avisou-os do perigo. Então Shoi juntou alguns homens da tribo e
  • 9. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 9 esperaram perto do acampamento dos ladrões antes que qualquer ação prejudicial fosse causada aos Li-Seugs. Por isso o combate foi na parte da manhã; mal amanhecera quando tudo aconteceu. Entretanto como as noites são longas e os dias curtos no inverno, o descanso foi bem rápido; teriam tempo suficiente para chegar à aldeia com luz natural banhando seus rostos sofridos. Cinco quilômetros os separavam do campo de batalha. Caminharam mais um pouco e Shoi viu seus cavalos vagando a esmo, como se seus donos nunca os tivessem domado. Com um chamado indistinguível mesmo para a língua dos Li-Seugs, Shoi chamou-os. Os cavalos foram em sua direção, deixando um rastro de neve remexida. A obediência era espetacular. Cavalos treinados a obedecer e que lembravam um fiel soldado cumprindo ordens de seu comandante. Os Li-Seugs eram exímios adestradores de cavalos, herança deixada há muitas gerações por seus ancestrais comerciantes. Não perderam tempo e carregaram os cavalos com sua bagagem, e os outros cavalos dos guerreiros mortos foram colocados em fila, amarrados para que não saíssem da ordem. — Goo! Contou os cavalos? — perguntava Shoi à frente da comitiva. — Sem problemas, chefe! Temos os vinte cavalos aqui! — falou Goo com sua voz ainda juvenil. — Goo, venha até aqui. Vamos todos juntos — gritou com entusiasmo Ji. — Esse menino é muito esforçado e um grande guerreiro. Não conheço caso como o dele — conversava Shoi com Ji. — Talvez seja sorte, talvez não. Contudo, mesmo assim, qualquer pessoa precisa, também, de muita sorte para o que fazemos. — Mas, mesmo assim, sorte não faltou para esse menino, fora a esperteza dele no combate. Lembra como desde pequenino observava os treinos dos guerreiros, escondido muitas vezes? — Lembro muito bem. Mas não vamos pensar nisso agora. Deixe a vida seguir seu curso — o excesso de preocupações não permitia a Shoi momentos prolongados de conjecturas. Caminhando pela conhecida trilha, Shoi elaborava um plano de fuga para apresentar aos seus. Uma imensidão branca com pontos florestais despontava em seu campo de visão. A perna, apesar de não ter acontecido nada grave, pulsava uma dor não muito forte, porém constante. O balançar dos cavalos em marcha lenta, com seus cascos fazendo sons abafados contra a neve, convidava à distração. O pensamento viajava a lugares pouco prováveis. Tornava-se uma espécie de entorpecente para uma mente perturbada e cansada, apesar de Shoi não ter completado nem vinte e cinco anos de existência. Em outros tempos, essa idade seria considerada uma idade
  • 10. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 10 imatura, contudo, a situação exigia amadurecimento rápido, e Shoi demonstrava uma vocação extremamente precoce ao assunto. A luz do dia não se apresentava forte. A noite aproximava-se quando a diminuta comitiva chegou próxima à vila dos Li-Seugs. Foram recepcionados pelos poucos que sobreviveram aos últimos combates, a maioria composta de mulheres e crianças pequenas. O único homem presente, o velho e sábio mestre Sue, estava à frente do comitê de recepção. — Tão poucos voltaram! — mestre Sue balançava a cabeça lamentando o ocorrido. — Meus filhos, vocês estão bem? Estão feridos? — Estamos bem na medida do possível — respondia Ji nem um pouco animado com o resultado mostrado ao mestre. — Conseguimos, desta vez, evitar a chegada do inimigo aqui — disse Shoi. — Mas infelizmente o preço foi alto, mestre — neste momento, Shoi desmontou do cavalo e indicava com o braço o local aonde Goo deveria levar os animais. Ji seguiu seus passos e também desmontou de sua montaria. — Mestre Sue, precisamos descansar, mas, pela manhã, bem cedo, vamos nos reunir e decidir nosso destino daqui para a frente — disse Shoi ao mestre que demonstrava alegria por ver seu pupilo vivo. — Sim, meus filhos, descansem, pois vocês merecem mais do que ninguém. Acredito que não há mais sobreviventes, estou certo? — Sim, mestre, só nós três conseguimos sobreviver. Foi uma perda lastimável — lamentou Ji. Shoi foi à sua yurt, uma tenda típica da região. Apesar de não ser uma construção fixa, era a forma tradicional utilizada como moradia pelos Li- Seugs. As tendas, bem pequenas, comportavam não mais que duas pessoas. O motivo de sua metragem estava exatamente nas baixas temperaturas vivenciadas no inverno. Em locais pequenos, o calor era mais fácil de isolar. Uma estrutura feita com varas de madeira sustentava o lugar, as paredes eram forradas com tecido grosso e reforçadas com peles de animais há muito tempo caçados. O chão também era forrado com peles grossas e felpudas, possibilitando um isolamento térmico do chão gelado característico das regiões de inverno forte. Sua cama, elevada a alguns centímetros do chão, aproveitava-se dos alicerces da tenda para seu uso próprio. Ali, além do tradicional forro com peles, havia uma cobertura de seda rústica, não tão boa quanto às comercializadas no passado, mas servia muito bem para o propósito determinado e, além de ser confortável, evitava o contato direto com as desagradáveis peles. Shoi retirou sua indumentária mais pesada, composta de uma roupa básica feita em tecido grosso, um peitoral de couro forrado com placas de ferro e seu cinto ricamente trabalhado com a espada curta presa por uma meia bainha. Suas botas de couro e as peles que o protegiam do frio,
  • 11. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 11 feitas em formato de roupas para dar mais agilidade ao guerreiro, também foram retiradas e colocadas com as outras peças. Shoi, exausto, deitou-se na cama e dormiu muito rápido. Todavia, não foi um sono tranqüilo. Pesadelos e mais pesadelos, sem um sentido lógico, assombraram. Shoi durante aquela noite. Um misto de fatos vividos com situações absurdas povoou seus malignos sonhos. Acostumado desde criança com esses pesadelos, não se abalava mais com isso. Shoi possuía essa fantástica habilidade, principalmente com os pesadelos sem nenhum nexo. Uma mistura de gemidos e sons provenientes das constantes reviravoltas ressonava quase imperceptivelmente da pequena yurt. Na manhã seguinte, bem cedo, com o sol ainda escondido, Shoi alimentou-se, sentindo seu corpo descansado, mas havia nele um pouco de cansaço mental, proveniente da noite cheia de maus sonhos. Todo o ritual de vestir suas indumentárias fora completado em menos de quinze minutos, herança de sua experiência adquirida em combate. Aproveitou o silêncio ainda existente na vila para caminhar um pouco. Ouviu um barulho estranho vindo da orda, uma yurt maior, de mestre Sue. Chamou-o com um tom de voz bem baixo, para os outros não acordarem. Do meio da abertura da tenda saiu uma cabeça idosa, com olhos cinzentos e rosto macilento. — É você, Shoi? — Sim, mestre, sou eu. — Entre, filho, entre, por favor. Vamos conversar. Estou ansioso por isso. — Sim, mestre. Shoi entrou na orda de mestre Sue. Sua barraca era bem maior que a de Shoi, com alguns objetos pessoais colecionados pelo idoso mestre. Sentou-se no chão. Mestre Sue também se sentou só que de frente para Shoi. Os anciões da vila e as famílias com mais de três componentes tinham direito a uma yurt maior. — Conte-me, filho, o que aconteceu no caso dos bandoleiros. — Conseguimos interceptá-los e nos escondemos perto do acampamento dos malditos. Atacamos pela manhã — Shoi coçava a cabeça. - A batalha foi dura, mas conseguimos eliminá-los com eficiência. Não sobrou ninguém. — Lamento muito a perda de nossos companheiros, filho — mestre Sue, nesse momento, colocou a mão no ombro de Shoi. — Mas acredito em seu empenho, e ainda estamos aqui graças a você. — Obrigado, mestre. Suas palavras são reconfortantes.
  • 12. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 12 — Não se preocupe, vamos orar aos deuses para receber bem nossos filhos perdidos. — Sim, mestre Sue. Vamos orar. Os dois abaixaram suas respectivas cabeças, em demonstração de respeito, murmurando alguma coisa semelhante a uma oração, mas indistinguível aos ouvidos de possíveis ouvintes naquele recinto; a maneira típica de os Li-Seugs orarem. Não havia uma oração preestabelecida ou ritual propriamente dito. A tradição oral ensinava-lhes a história dos deuses e a única coisa ensinada a eles a respeito de religião era uma busca sincera dentro de si para a comunicação, via oração, com os deuses. Essa comunicação era feita espontaneamente, não havendo necessidade de frases feitas. O único detalhe nisso tudo estava exatamente no coração desprovido de sentimentos não apropriados para este diálogo. Terminada a oração, mestre Sue perguntou a seu aflito pupilo: — O que lhe aflige, meu rapaz? — Mestre, eu sei que não é unanimidade entre nosso povo a saída de nossas terras, mas só vejo esta como única alternativa à nossa sobrevivência. — Ora, Shoi, não estamos em posição de discutir isso. Mais do que nunca os Li-Seugs precisam de alguém para liderá-los; e esse alguém é você, meu filho. — Agradeço mais uma vez suas palavras de incentivo, mestre. — Não há de quê. — Mestre, o senhor lembra de algum lugar que lhe pareça seguro em direção ao Sul, onde provavelmente é mais quente que aqui? — Há um lugar — mestre Sue puxava pela memória. — Eu lembro muito bem. Este lugar fica bem na direção onde apontaste. Deixe-me ver os mapas dos antigos. Mestre Sue levantou-se e em um pequeno baú encontrou vários pergaminhos empoeirados, há muito tempo esquecidos. Começou então a abri-los. Um pouco de poeira começou a entrar nas vias respiratórias de Shoi, provocando- lhe tosses e espirros alternados. De repente o velho homem fez um som estranho pela boca, lembrando um grito, só que em um som baixo, de comemoração. — Aqui está! Aqui está! — falava com ar de comemoração o velho mestre. — Achei o mapa. Era uma antiga rota utilizada pelos antigos para o Sul. Havia, se não me engano, um entreposto comercial de nosso povo em algum lugar por aqui. — Talvez seja um bom lugar para ficarmos.
  • 13. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 13 — Acho que me lembro, quando criança, de estar nesse lugar. Caso seja o mesmo, então estaremos salvos por um bom tempo. — Pelo menos é, sem dúvida, um risco menor irmos para lá, do que ficarmos ou andarmos sem rumo. — Exatamente, meu filho! Exatamente! — Pelo mapa, mestre, nós poderíamos traçar um tempo estimado de chegada? — Creio que sim, filho. Podemos, sim! — Quanto, mais ou menos, levaria para chegar? — Se não me falha a memória, cada distância de um dedo equivale aproximadamente a duas semanas — fazia um muxoxo mestre Sue. — Portanto, acredito em uns dois meses de viagem. — Até que é um tempo razoável. — Razoável é; ideal, não — contestava mestre Sue, com um sorriso tranquilizador. — Não temos alternativas, não é? — Não. — Eu acredito, sinceramente, nesse caminho que trilharemos. Acredito nessa alternativa — dizia Shoi com convicção inabalável. — Ao líder cabe essa missão. Confio em você, meu filho. Acredite sempre em si, pois seu coração é puro. Não deixe de confiar em seus instintos. Também acredito no sucesso dessa nossa empreitada. Shoi curvou-se diante de seu mestre, em respeito ao antigo professor, saiu da tenda e constatou, pela ardência nos olhos, um novo dia amanhecendo. Não percebera o tempo utilizado na conversa, mas não se importava. O plano, auxiliado por mestre Sue, tinha grandes chances de ser bem-sucedido. Não havia sol naquele novo dia. O tempo estava completamente nublado, mas até aquele momento não aparentava a possibilidade de neve. O céu tinha matizes de branco e cinza claro. De repente, Shoi ouviu um barulho abafado, de cavalgada sobre a neve. O som tinha as características de apenas um animal galopando, a toda a velocidade. A imagem começava a ficar mais nítida. Uma mulher usando roupas de guerreiro. O rosto, branco como a mais delicada porcelana, sustentava uma beleza simétrica. Os cabelos lisos e negros quase cobriam os olhos castanhos da mulher. Era Zhi, irmã mais nova de Shoi, voltando da vigília nas fronteiras do Leste. Shoi sentiu um alívio por ver a irmã viva. A possibilidade era mínima de ataques-surpresa vindos daquela direção, afinal, a troca de guarda seria feita naquele dia e a notícia teria chegado. Tudo
  • 14. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 14 indicava uma rotina normal. Agora o grupo estava completo com o retorno de Zhi. Mulheres eram aceitas nos Li-Seugs, diferentemente de outras aldeias da região, nos mesmos cargos que os homens. A degradação dos Li-Seugs possibilitou essa precoce atitude. Não havia opções, e a solução demonstrou- se fabulosa e pouco previsível nas antigas ideias Li-Seugs. Zhi era uma boa guerreira e apresentava-se sempre para cuidar das fronteiras. Quando Shoi contou-lhe o acontecido do dia anterior e expôs sua solução para resolverem seus problemas, Zhi apoiou-o, e confiou a seu irmão sua fidelidade e sua espada para defenderem o restante dos Li-Seugs do extermínio. Shoi pediu a ajuda de Zhi, Ji e Goo para reunir o restante do grupo. Na reunião, expôs sua alternativa para o problema. Como a maioria era de mulheres, sendo mais flexíveis e adaptáveis em situações necessárias, não houve oposição às ideias de Shoi. Todos concordaram, apesar de a tradição ancestral estar ligada profundamente àquela terra, interpretando a solução como a melhor possível. Mesmo entre os homens, como já era predefinido, não houve oposição, pois só havia Ji, o menino Goo e mestre Sue. Tudo funcionava com uma precisão ainda melhor. Shoi encontrava-se mais otimista do que nunca, pois a unanimidade o estimulava a seguir o caminho traçado por ele e pelas circunstâncias. Os Li-Seugs não perderam tempo. Reuniram tudo o que precisavam. Comida, peles, animais de montaria e de carga, objetos pessoais, etc., tudo era reunido da melhor maneira possível. Quarenta animais compunham o plantei. Não sendo mais que treze pessoas, os outros cavalos poderiam carregar muita carga. E poderiam se dar ao luxo de ir boa parte do caminho montados em suas bestas. Todo o processo de desmonte e preparação para a fuga rumo ao Sul levou cerca de três dias. Antes de saírem de suas queridas terras, fizeram uma oração em silêncio, com o intuito de homenagear os recém-falecidos, que deram suas vidas pela defesa de seu povo e sua cultura, e para os antigos an- cestrais há muito tempo enterrados naquelas sagradas e antigas terras. Com a convicção dos que acalmaram e justificaram suas atitudes aos antigos senhores, sentiram-se prontos para partir. Formaram duas fileiras de vinte cavalos cada e a caravana seguiu viagem rumo a uma terra melhor, onde poderiam começar uma nova vida, e talvez, quem sabe, reconstruir e restituir uma antiga glória pertencente aos Li-Seugs. Não haveria homenagem melhor aos espíritos ancestrais que uma antiga glória restituída. Um mês se passara desde a saída da aldeia mais ao norte. A primavera começava a desabrochar junto a terras um pouco mais quentes, os animais da comitiva tinham acesso a pasto fresco, não necessitando mais de fenos e complementos de cereais. As águas de rios próximos começavam a surgir novamente, seguindo seus antigos cursos. Era uma época muito bonita, porém, também, possuía seus inconvenientes. Os insetos perturbavam um pouco, mas só de não precisarem mais usar roupas pesadas já era uma sensação de alívio para qualquer pessoa.
  • 15. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 15 Shoi, observando o velho mapa de mestre Sue, verificou alguns desenhos dos marcos de referência e sua localização exata e constatou a veracidade dos cálculos com poucos critérios utilizados pelo estimado mestre. O cálculo de um mês para chegar ao ponto determinado, naquele momento e localização, estava muito próximo da realidade. Reunidos numa roda, todos estavam devidamente acomodados, Shoi relatou aos seus parentes a situação atual. — Irmãos e irmãs. Ainda falta um mês, aproximadamente, para chegarmos ao nosso ponto final. Gostaria, dos responsáveis, um relato de nossa situação atual. Alimentos, condições dos animais e opiniões, se as tiverem. — Shoi — começou mestre Sue. — Acredito na durabilidade de nossas reservas de alimento até o momento de nos instalarmos nas novas terras. Creio que serão suficientes até a primeira colheita. Mas devemos nos precaver.Tudo que é comestível encontrado pelo caminho deve ser estocado, para possíveis eventualidades. — Os animais estão melhores, principalmente depois do fim deste horroroso inverno — interrompia de modo inocente o menino Goo. - Não há sinal de doenças ou algo do gênero. — As novas pastagens renovaram os ânimos dos cavalos — dizia Zhi. — Com a primavera, há uma esperança de novos tempos — completava de modo filosófico, mestre Sue. — Tenho certeza de nosso sucesso nesta empreitada. Shoi nos trouxe até aqui sãos e salvos e nada há de nos acontecer. — Suas palavras me estimulam muito, mestre, porém não teríamos sucesso se não tivéssemos a cooperação de todos aqui. Estamos ligados em nossas necessidades e acabamos formando uma única entidade. Portanto, o sucesso é nosso e não de uma única pessoa. — Sua modéstia é típica dos grandes líderes - rebatia com ternura mestre Sue. — Não desmereça seus feitos, pois, se errássemos, você seria o culpado na visão da maioria. —Agradeço mais uma vez, porém continuo com minhas convicções. —Vamos ao que interessa. Precisamos saber o que fazer daqui para a frente! — interrompeu Ji. — Concordo e peço desculpas por desvirtuar o assunto — disse mestre Sue. — Tudo bem, mestre. Não se preocupe, concordo com suas idéias — Ji balançava a cabeça positivamente.
  • 16. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 16 — Acredito no tempo de um mês, afinal os mapas não mentiram para nós — comunicou a todos Shoi. — Não vamos desanimar agora. Continuem com suas tarefas e conseguiremos vencer esta jornada. Todos se ergueram e foram cumprir seus deveres à continuidade das rotinas do grupo; assim, levantariam o acampamento e prosseguiriam com a viagem e seus planos. Tudo se manteve tranquilo nos quinze dias seguintes. A viagem tornou-se muito menos estafante, pois o clima ajudava, menos, obviamente, quando as chuvas da primavera davam o ar da graça. Nem a chuva era tão desagradável quanto uma tempestade de neve, por isso ninguém reclamava. A noite, naquele dia específico, aparentava uma estabilidade pouco vista naquela época do ano. Um belo céu estrelado apresentava-se aos olhos mais tristes, exibindo um espetáculo visual sem precedentes. Milhares de pontinhos luminosos enfeitavam aquela bela noite. Via-se um pedacinho do universo naquela janela estrelada. Nebulosas, estrelas, planetas muito distantes e uma bela lua minguante complementavam o espetáculo. O grupo acampou num pequeno descampado onde uma tenda coletiva foi armada, desta vez com a proteção de tecidos e não as excessivas peles utilizadas no inverno. Uma fogueira foi acesa próxima à barraca onde se cozinhava arroz para os próximos dias. Todos se reuniam para ouvir as histórias contadas por mestre Sue e Shoi. Todos se divertiam, pois cada um contava de uma forma pessoal os antigos contos Li-Seugs. Não era surpresa, pois se sabia que em uma tradição oral, o importante era a preservação da essência dos contos e não a transmissão total, preto no branco, das histórias. Todo o contador fazia pequenas adaptações para melhorá-las a seu bel-prazer. Todos comiam, ouvindo atentamente as histórias, rindo e conversando entre si, quando um barulho nunca ouvido antes chamou a atenção deles. Era um barulho ensurdecedor. Um chiado estranhíssimo. De repente, o pequeno Goo que estava ao lado de Andarilho, o filhote de lobo negro, apontou com seu pequeno dedo para o céu. Um ponto luminoso, parecido com uma estrela, movia-se de um jeito totalmente inédito àquela gente. O ponto começava a aumentar rapidamente. Com ele trazia o estranhíssimo som aumentando proporcionalmente à medida que se aproximava. — Pelos deuses! O que é aquilo? O objeto estranho passou pela cabeça dos Li-Seugs, obviamente a uma altura elevadíssima, e seguiu uma trajetória reta. E todos estavam com os olhos fixos no estranho ponto luminoso. Ninguém ousou se mexer, num misto de medo e curiosidade. O ponto de repente parou abruptamente a cerca de dois quilômetros do local de onde estavam começou, então, segundos depois, a descer num ângulo perfeito de noventa graus em relação a sua trajetória original. E, no pouso, um clarão iluminou todas as terras ao seu redor como se o dia voltasse por alguns segundos. Shoi imediatamente chamou Ji e Zhi para pegarem seus cavalos e verificarem o que significava aquilo. Apesar de
  • 17. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 17 estarem com um medo fora do comum, a curiosidade falou mais alto. Pediram que mestre Sue orasse por eles. Mestre Sue pediu, nos instantes antes da partida, que todos tomassem cuidado, pois aquilo era totalmente desco- nhecido. Todos, devidamente montados, seguiram na direção nordeste onde o objeto havia pousado. Não levou nem dez minutos a chegada no local. Pararam alguns metros do ponto inicial do clarão. Amarraram seus cavalos para que não debandassem. Seguiram com passos de fantasma até o local exato. — Silêncio! Temos de ir bem devagar — dizia Shoi com a voz mais baixa possível, quase um sussurro. O local estava todo chamuscado, porém não havia mais nenhum vestígio de fogo nem um odor de queimado excessivo. O objeto estava no chão, intacto, sem movimento algum. Shoi, Ji e Zhi aproximaram-se cada vez mais. Aquela coisa tinha um formato muito estranho aos olhos deles. Como uma flecha gigante, tinha quatro bolhas negras ovais acima da ponta, não possuía abertura alguma aparente. Tinha cores intensas, preto, vermelho, verde. Cores de metal prateado, queimado. Coisas que lembravam, com muito esforço e criatividade, barbatanas e chifres que saíam da pele daquele objeto, como as penas colocadas atrás de uma flecha. Nada parecido com aquilo havia sequer povoado os sonhos mais profundos dos que estavam presentes. Shoi aproximou-se bem perto dele e tocou-lhe com mãos trêmulas. Estava quente, mas numa temperatura suportável. Ficaram por meia hora olhando aquela aberração vinda do céu. — Será alguma coisa dos deuses que caiu acidentalmente? — perguntou Ji a Shoi. — Não sei. — É melhor voltarmos — disse Zhi. — Você tem razão. Vamos voltar, pois não há nada aqui para nós — respondeu Shoi. Quando deram as costas para a flecha gigante dos deuses, um barulho saiu das entranhas daquilo. Eles, assustadíssimos, olharam com espanto e pavor na direção contrária ao seu caminho. Uma espécie de porta abriu-se diante deles. Uma luz intensa, a ponto de deixá-los sem uma visão decente, iluminou-os. Tentando se proteger com as mãos, fazendo uma espécie de aba, Shoi viu algo mexendo-se dentro do estranho objeto. De repente saiu uma criatura monstruosa, com aproximadamente três metros de altura. Trajava uma espécie de armadura totalmente preta, porém a luz intensa não permitia ver com mais detalhes. De seu elmo, observando seus pequenos visitantes, a criatura aproximou-se levantando sua pata num gesto pacífico. A viseira que cobria o rosto da criatura foi removida por ela mesma e olhos amarelos com
  • 18. A Essência do Dragão: Ressurreição Edição de 2010 (Novo Século Editora) 18 um rasgo negro apareceram. Não é possível!, pensava Shoi. Aquele rosto era- lhe conhecido de alguns desenhos antigos mostrados por mestre Sue. Naqueles instantes de contato, todos se ajoelharam, como se cultuassem uma divindade, mas em uma atitude mais de espanto do que de adoração. Sentimentos confusos. A criatura esboçou algo parecido com um sorriso e pronunciou, com sua voz grossa e metálica, algo indecifrável para os ouvidos daquelas três pessoas. Shoi encarou-o mais uma vez e disse com espanto e euforia nunca sentidos por ele em sua existência: Pelos espíritos ancestrais dos Li-Seugs! Eu não acredito...