2. A Roupinha do Menino Jesus
- Roubaram o Menino Jesus. Roubaram o Menino Jesus.- gritava horrorizada a ti Maria
Guedelhas saindo a correr da igreja. O pessoal que estava em volta da fogueira ficou atónito e
paralisado, primeiro, mas depois desatou a correr para dentro da igreja. Confirmava-se.
Tinham roubado o Menino Jesus do presépio. Que ultraje! Que heresia! Que profanação! Já
não se respeitava o Natal, nem o deus menino. Já não se importavam com o desespero de uma
mãe que perde, por roubo, o filho no dia em que nasce. O mundo estava perdido! A ti Maria
Guedelhas, escandalizada, não parava o seu coro de lástimas. A sua fama de mulher que anda
de soalheira em soalheira, a levar e a trazer, ou como dizia o Zé Camelo, a enterrar os vivos e a
desenterrar os mortos, não apoucava o crime hediondo. Os mordomos do Menino
preocuparam-se: como ia ser dado a beijar o Menino se não havia? E não havendo, como iam
poder pedir a esmola para a festa? E quem ia depois pagar as despesas? As mordomas de
Nossa Senhora, que tinham feito o presépio e tinham comprado as figuras que naquela noite
se estreavam, deixavam cair lágrimas de tristeza, incómodo e vexame. Diziam que tinham que
desmanchar o presépio, porque nele não pode faltar o Menino. Sentiam a sua vaidade aviltada
e suja por aquele acto, logo este ano que tanto tinham caprichado para adquirir as novas
imagens, logo este ano que até à Espanha tinham ido em busca dos musgos mais atapetados e
mais verdinhos. Gerou-se uma confusão no interior da igreja por causa do seguimento a dar ao
caso e sobretudo como se resolveria o problema para a missa do galo, para a qual faltava
menos de uma hora. Quando o padre Daniel chegou e foi confrontado com aquele espetáculo,
teve vontade de fazer como Cristo aos vendilhões do templo - expulsá-los a golpes de cordas.
Explicaram-lhe o sucedido.
–Não vamos deixar de festejar o Natal porque desapareceu o Menino. Se calhar portaram-se
mal na sua casa e ele fugiu de vergonha.- disse gracejando.
–É missa do galo. Temos de beijar o menino.- Lembrou um dos mordomos.
–Beijaremos, beijaremos…- Ficou a pensar por uns breves instantes. Depois, olhando para o
Sto. António:
-Baixem o Sto. António. Vamos tirar-lhe o menino, por esta noite.- A ti Guedelhas e umas
quantas comentaram escandalizadas:
-Santo Deus! Vejam bem. Tirar o Menino ao Sto. António!- Persignavam-se como se
esconjurassem um sacrilégio. O santo foi descido do altar, virado de cabeça para baixo para
que ficasse exposto e fosse retirado o parafuso que segura o Menino ao missal e à mão do
santo. Não faltaram comentários: uns que lamentavam a tristeza e a humilhação do santo,
outros jocosos e impróprios para o lugar porque referiam o sítio onde o parafuso prendia o
Menino e a sugestão indecorosa que isso levantava. Alguns escandalizaram-se, e com razão,
com tamanha blasfémia. O padre acalmou a situação com gritos e ameaças de pecado. O
Menino Jesus de Sto. António foi colocado nas palhinhas. Comparado com os seus pais que o
protegiam dos lados, lembrava uma cria de urso panda acabada de nascer- uma insignificância
de tamanho. Mal a missa começou, logo após os votos de boas-festas, o padre Daniel explicou
o sucedido e lamentou-o varado por uma tristeza enorme, por se tratar de um sacrilégio
absurdo e humilhante. Num banco a meio da igreja, Rita Maria, menina de oito anos, teve uma
comoção quando ouviu o relato do padre. Encostou-se à mãe procurando segurança. O seu
gesto não escapou ao pai que para a tranquilizar lhe pousou a mão enorme e quentinha no
ombro. Era uma asa protetora. A cerimónia decorreu segundo os preceitos litúrgicos. Mesmo o
3. beijar do Menino correu bem apesar da insistência dos olhares quer para as palhinhas vazias,
quer para a pequenez daquele Menino Jesus improvisado. Mesmo assim não faltaram alguns
risinhos provocados pelo tamanho de amostra daquele Menino. Acentuava a sua fragilidade, a
sua humanidade. Não faltaria assunto para o sermão do dia seguinte. Não faltou. Também não
faltou comoção e muita lágrima nos olhos das velhas.
Às três da tarde do dia vinte e cinco, Rita Maria saiu da sua casa onde a família estava
reunida por ser natal e foi rua Direita abaixo, dirigindo-se para a igreja. Levava na mão
direita um saco de plástico volumoso e na esquerda o seu coração, que é como quem diz, ia
cheia de medo. Abriu a porta da igreja de forma decidida. Entrou. Ajoelhou-se no primeiro
banco que viu. A obscuridade que reinava arrepiou-a de medo. Controlou-se. Olhou
demoradamente todo o interior da igreja, a partir do presépio e voltando a ele. Ninguém.
Levantou-se. Com firmeza dirigiu-se ao presépio. Tirou das palhinhas o Menino Jesus de
Sto. António. Beijou-o. Deitou-o em cima das ovelhas, pôs um cordeirinho a servir de manta,
dizendo:
-Aqui não terás frio e será por pouco tempo.- Depois, abriu o saco de plástico, tirou de lá o
Menino que na tarde anterior tinha levado para casa, deu-lhe um beijo e colocou-o nas
palhinhas.
-Desculpa José, desculpa Maria. Vós sabíeis que eu ia regressar. - Saiu da igreja o mais
rápido que foi capaz. Retomou o caminho para casa. Estava feito. Ninguém tinha dado conta.
O medo que sentira no caminho da ida transformara-se em alegria no caminho do regresso.
Tinha reparado uma negligência grave. Em casa, entre conversas, risos, brincadeiras,
prendas e comida gulosa ninguém dera pela sua falta.
Antes que escureça e todos se fechem em redor da lareira e das filhoses, a ti Guedelhas
convida a Josefa, a quem chamam a Correndona, e a Ofélia para irem rezar um terço de
desagravo pelo roubo do Menino. Também não hão-de desperdiçar a oportunidade para
fazerem a verificação dos que vieram para o Natal e para partilharem as novidades. Entram
na igreja e vão ajoelhar-se em frente do presépio. No entanto, em vez disso, recuam
espavoridas, gritando:
-Jasus, Jasus. Isto é obra do dialho.- Perturbadíssimas, correm na velocidade máxima que
as suas quase octogenárias pernas lhes permitem. Vão chamar o padre para que veja.
Correndo, o padre entrou na igreja, dirigiu-se para o presépio e olhou. Compreendeu.
Enterneceu-se. Um sorriso feliz iluminou-lhe o rosto e os seus olhos ainda juvenis. Vendo-o
assim, as mulheres ficam perplexas e confusas: -Roubaram o Menino, vestiram-no com a
vaidade dos ricos e você acha bem!- Lá ia o pobre padre ter de chamar a mais funda das
suas calmas para explicar àquelas três o que tinha sucedido e qual o seu significado.
As mordomas de Nossa Senhora, como era hábito, fizeram o presépio no dia de
Consoada, logo pela manhã. Era um dia como o Natal quer: frio, muito frio,
ameaçando neve. Enquanto o faziam tiveram de ir buscar uma braseira de lume que
afugentasse aquele gelo que paralisava as mãos e dava à igreja uma atmosfera de
frigorífico acentuada pela humidade dos musgos. De tarde, Rita Maria foi ver o
presépio com os primos de Lisboa, a mãe a avó e os tios. O pai ficara na conversa com
o avô, enquanto preparava mais uns paus para o lume, não fosse o caso de aquele frio
ficar mais aceso e consumir mais lenha do que o esperado. Não podia haver Natal sem
mesa farta, nem fogueira viva. A nudez do Menino no meio daquele frio metia dó a Rita
Maria. Até estava a ficar roxinho! Coitadinho do Menino Jesus! Ia apanhar uma
4. constipação das grandes ou até uma pneumonia. Olhou para Maria: ela lá estava de
túnica azul e manto branco. Olhou para José: lá estava ele protegido com uma túnica
castanha e um manto cor de mel. E o Menino? Nada. Só aquele paninho a esconder-
lhe o rabinho! A vaca e burro bem tentavam aquecê-lo com o seu bafo, mas era
insuficiente. Doía-lhe a negligência desses pais. Ao menos podiam pegar-lhe ao colo.
Que desumanos! Mal chegou a casa inventou uma desculpa para ir ver a amiga Dulce.
Em vez disso foi à igreja, tirou o Menino, meteu-o num saco de plástico, levou-o para
casa e escondeu-o no armário. Oxalá a prima não se lembrasse de vasculhar as suas
coisas. A festa de Natal, todo aquele frenesim e confusão não a deixaram fazer o que
queria. Levantou-se cedo no dia seguinte, aproveitando o pretexto de abrir as prendas.
Meteu-se na casa de banho. Procurou as roupinhas de inverno do seu Nenuco e
vestiu-as ao Menino Jesus. Ficavam-lhe um bocadinho grandes, mas pelo menos
protegiam-no do frio. Agora só faltava voltar a colocá-lo nas palhinhas de onde o tinha
tirado.
c.xara