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"Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que,
positivamente, a crônica "não baixa". O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos,
levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na
vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. Aí então é que, se ele
é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz - Vamos, escreve, ó mascarado!
Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí na sua frente! E que ela seja bem
feita e divirta os leitores! - E o negócio sai de qualquer maneira."

                                 Vinicius de Morais, em "Para Viver um Grande Amor"




      Crônicas publicadas no "Diário de
               Votuporanga"

                                     Regime
                              15 de janeiro de 2000
Minha mulher chegou pisando duro. Entrou em casa escandalosamente e, sem olhar
para trás, bateu a porta num estrondo. Foi direto para o quarto.
Eu nem me levantei do sofá. Não é bom se intrometer com as mulheres quando elas
estão assim. Passados uns dez minutos, a curiosidade venceu. Eu me levantei e fui
até o quarto, para ver o que era. Lá estava minha mulher, vestindo uma roupinha
colante, que já foi de baile e hoje é usada só nos nossos finais de semana, no rancho.
Ela estava de perfil, em frente ao espelho do armário.
- Você acha que eu estou gorda, querido?
Uma coisa que eu aprendi nesses quinze anos de casado é que, em hipótese alguma,
você pode falar que sua esposa engordou. Fale qualquer outra coisa. Desconverse.
Comente sobre o tempo. Fale sobre futebol. Mas nunca, absolutamente nunca,
responda sim quando ela perguntar se engordou.
- E se a gente fosse ao cinema?
- Você não me respondeu. Eu perguntei se você acha que eu engordei.
- Acho que ainda está passando "Xuxa Requebra".
- Eu estou uma baleia, não estou?
- No outro está passando um filme do Renato Aragão. Você prefere?
Aí ela começou a choramingar. Eu me abracei nela. Comentei que ninguém liga para
isso. Depois de tanto tempo juntos, o que um quilinho a mais ou a menos significa?
Foi como o rompimento da barreira de uma usina hidrelétrica. Chorou como criança.
Mas - e essa foi uma das razões de eu ter me casado com ela - minha companheira é
uma mulher decidida. Já no dia seguinte, chegava em casa com um regime
sensacional, que ela tinha conseguido não sei onde. Resume-se mais ou menos no
seguinte: você come e bebe o que quiser durante cinco dias da semana - só dando
uma regulada nos refrigerantes - e, nos dois dias restantes, você só ingere leite e
maçãs, também na quantidade que bem entender.
Minha esposa chamou a empregada lá de casa (ou secretária, como parece ser moda
chamar) e avisou que não precisava mais fazer almoço às segundas e quintas-feiras,
dias escolhidos para serem os "Dias das Maçãs e do Leite". A moça até que gostou da
idéia. Além de não precisar cozinhar, também estava precisando perder uns quilinhos,
adquiridos nas festas de final de ano. Resolveu aderir ao regime.
Sei que, desde o começo de janeiro, todos lá em casa, em dois dias da semana, só
comemos maçãs e bebemos leite. Sem açúcar. Parecia fácil.
No primeiro dia, até que correu tudo bem. Levamos na brincadeira.
- E aí? Está conseguindo?
- Mas não pode nem café?
- Não pode.
- Não pode.
Agora, já se vão lá três semanas, a coisa parece que está piorando. Outro dia desses,
a empregada envesgou os olhos e bambeou as pernas. Achei que ia desmaiar. Demos
uma abanada, oferecemos um copo de leite. Ela fez cara de nojo. Não bebeu, mas
deu uma reanimada e pediu para ir embora mais cedo. Eu não sei, mas aposto que ela
parou no primeiro boteco e comeu uma bola de carne ou uma coxinha. Ou os dois.
Eu mesmo, não vou mentir, já estou ficando meio nervoso. Quinta-feira passada,
estava caminhando para o emprego quando passei por um desses sorveteiros, de
carrinho de empurrar. Fiquei olhando, olhando. Eu ainda não tinha comido nada no
dia. Também ando com uma certa ojeriza por leite e por maçãs.
O sorveteiro percebeu que eu não tirava o olho dele. Se aproximou e perguntou:
- Vai um sorvete?
- Hum... Eu... não sei... Ah, que se dane! Vê um de limão. Melhor ainda: de tamarindo.
- Desculpa. De fruta acabou. Só tem de LEITE.
Eu não vou dizer aqui o que eu mandei o sorveteiro fazer com o sorvete de leite dele.
Mas eu te falo uma coisa: ele nunca mais vai deixar faltar sorvete de frutas no
carrinho.

                               A idade do lobo
                             10 de fevereiro de 2000
Acordou com o peito apertado. Sabe quando a gente acorda com o peito apertado?
Uma agonia que a gente não sabe bem de onde vem? Então. Se levantou da cama e
foi direto para o banheiro. Dava sempre um beijo na esposa antes de se levantar.
Naquele dia não deu.
- O que foi, querido? - ouviu a esposa gritar do quarto.
- Nada - resmungou.
- O QUÊ??
- NADA!!!
Que coisa... Será que tem de beijar todos os dias? Jogou água no rosto e se olhou no
espelho. Pêlos no nariz. Nunca teve pêlos no nariz. Se lembrou do tio Nino, velho
italiano, irmão da avó. Impressionava pela quantidade de pêlos no nariz. E nos
ouvidos.

Dizem que conforme vamos ficando velhos, os pêlos no nariz e nos ouvidos
aumentam na mesma proporção em que diminuem os cabelos. Pois o tio Nino era
careca. E os pêlos que lhe saíam das narinas e das orelhas eram como... como... de
um lobo. Corria na família, inclusive, uma lenda de que eram mesmo. O tio se
transformava em lobisomem nas tais noites de lua cheia. É claro que eram histórias
contadas para assustar as crianças, e foi exatamente o que aconteceu. Ficou com
aquilo na cabeça para o resto da vida.

E agora quem estava se transformando em lobisomem era ele. Ali, a olhos vistos. Na
frente do espelho. Pêlos saindo pelo ouvido, pelas narinas e, reparando melhor, os
das sobrancelhas também estavam meio desarranjados.
Não era uma transformação como nos filmes, rápida. Era uma mutação que,
provavelmente, iria demorar um pouco mais. Talvez uns anos. Mas que, nesse ritmo,
acabaria se transformando num lobisomem, isso não restava dúvidas.
- Querida! Sabe onde é que tem uma tesoura?
- O QUÊ? - a esposa gritou do quarto.
- UMA TESOURA!!!
Silêncio. Ouviu a esposa se aproximando pelo corredor.
- O que foi, meu bem?
- Uma tesoura. Sabe onde é que tem uma tesoura?
- Pra quê que você quer uma tesoura?
Ele olhou para a esposa. Porque será que as esposas querem saber de tudo?
- Os pêlos. Do nariz. Eu quero cortar.
- Deixa os pêlos aí. Se ficar cortando, crescem mais fortes.
- Olha. Eu não pedi uma opinião. Pedi uma tesoura.
- Ííííííííííííííííííí... Está naqueles dias...
A mulher saiu de perto, desanimada. O marido andava esquisito já fazia uns dias.
Deprimido. Acho que era a idade. Os homens, quando começam a se aproximar dos
quarenta, entram em pane. Já não conseguirão ser os gerentes da empresa. Quando
não perdem o emprego, já se dão por felizes. Os filhos saem de casa e deixam os pais
sozinhos, nas noites de sábado. Os maridos se sentem na obrigação de, como direi,
mostrar serviço. E o serviço já não é mais o mesmo de vinte anos atrás,
evidentemente.
Os homens começam a se tornar uns resmungões. Começam a comprar shampoos
contra queda de cabelo. Outros começam a andar com camisetas estampadas.
Encontrou, enfim, uma tesoura. Na gaveta de costura. Conforme voltava para o
banheiro, vinha se lembrando de quando conheceu o marido. Era tão romântico.
Todos os dias trazia uma flor para casa. Ia se aproximando da porta e já dava para
ouvir os resmungos. Coitado. Não devia ser fácil para ele ficar velho. Era tão bonito
aos vinte anos...
Chegou. A porta do banheiro estava fechada. Foi abrindo devagarinho.
- Querido? Querid... AHHHHHHHH!!!!
Num salto, o lobo pulou por cima da mulher.
Deu uma última olhada para trás. E fugiu pela janela.


                               Vamos pastar?
                            12 de fevereiro de 2000
O calendário dos rodeios que se realizam anualmente em Araçatuba, conhecida como
"terra do boi gordo", está sendo ameaçado por uma ação judicial movida pelo
Ministério Público, que proíbe a realização de eventos envolvendo maus tratos em
animais.
Eu nunca achei muita graça naquilo mesmo, não vou sentir a mínima falta. Mas tem
gente que gosta. Eu tinha um amigo, por exemplo, que adorava. Ele era açougueiro.
Quando tinha Exposição na cidade, não perdia uma das provas. Os cavalos e os bois
pulando e derrubando os caras. Ele delirava. Levava o filho, bem pequeno na época.
Uns seis anos. Se sentavam na arquibancada uma ou duas horas antes de começar o
rodeio, para pegar lugar melhor, e só saiam depois da famosa poeira assentar.
Bem. Um dia, um dos peões caiu de mau jeito e desmaiou. Ficou lá, esparramado no
chão, até chegar alguém com uma maca e tirar ele de lá. O filho do açougueiro
perguntou:
- Ô pai, o que é que aconteceu?
- O peão, filho. Se machucou.
- Mas como, machucou? Não é tudo brincadeira?
- Como brincadeira?
- Brincadeira, ué... Os bois não são treinados? Que nem no circo?
- Não filho... Ali é caiu, quebrou...
O menino arregalou os olhos.
Passou mais um pouco, um dos touros começou a sangrar, depois de ser esporeado
entusiasticamente por outro cowboy. O menino só aguentou mais uns quinze minutos
sentado. Pediu para ir embora.
- Mas... por quê, filho?
- A gente vai ficar aqui sem fazer nada, vendo os bois e os caras se machucarem? Eu
quero ir embora...
O açougueiro nunca mais foi num rodeio. As palavras do filho devem ter marcado
tanto que mudou até de profissão. Virou eletricista eu acho, mas isso não vem ao
caso.
O que vem ao caso é que esse negócio de rodeios e touradas, é uma coisa meio
besta. E além do mais, uma besteira importada. É coisa de espanhol e de americano.
Não sei se tem muito a ver com a gente.
Tanto não tem que, no Brasil, inventaram o Bumba-meu-boi, que é mais ou menos a
mesma coisa, só que de mentirinha, como preferia o filho do açougueiro. Um cara se
veste de boi e finge que ataca. O outro finge que é toureiro. Ficam ali, brincando de
tourada, até a platéia enjoar. Aí, um finge que mata o boi. No fim, todo mundo
agradece o público e vão lá, o boi e o toureiro, tomar uma cervejinha no bar da
esquina.
Mesmo quem gosta de ver aquele sangue todo jorrar dos bois quando são espetados
nas touradas tem de concordar comigo que o Bumba-meu-boi é uma coisa muito mais
civilizada. E nesses nossos tempos de realidade virtual, não vejo a mínima razão para
continuar a machucar os animais, a não ser por motivos de um bom filé ao molho
madeira.
Já existe muita violência por aí para promovermos mais algumas, só pelo prazer de
demonstrar nossa superioridade frente aos outros animais. Porque um rodeio não
passa disso. Uma disputa idiota para provar que o ser humano é superior a um
ruminante.
Aliás, acho que nem disputa é. Seria disputa se o boi também estivesse competindo,
mas o boi, eu te garanto, não está nem aí para quem ganhou ou perdeu. Ele só quer
mesmo é sair vivo dali.
Pode perguntar pro boi.


                              Os pais dos patos
                             15 de fevereiro de 2000
Desde a mais tenra idade, uma terrível dúvida aflige meus pensamentos: quem são os
pais do Huguinho, do Zézinho e do Luisinho?
Pode até parecer uma coisa sem importância para você, mas para mim talvez seja a
diferença entre a salvação ou o castigo eterno.
Fui criado em um apartamento. Era uma apartamento grande se compararmos com as
kitnets atuais, mas não deixava de ser um apartamento. E uma das únicas maneiras
dos pais manterem seus rebentos razoavelmente calmos num apartamento era
chuchando-lhes incontáveis gibis.
A TV já existia sim, mas era uma coisa diferente. Não ficava ligada o dia inteiro, como
fica hoje. Normalmente era acionada só depois da janta, para que os pais conferissem
o jornal e as mães, suas novelas.
Durante o dia, as crianças se viravam mesmo era com os gibis. Aqui em Votuporanga,
me disseram, havia sessões de troca em frente ao cinema. Já em Campinas, onde
nasci, as crianças apenas colecionavam. Acumulávamos imensas pilhas de gibis, e ai
de quem chegasse perto deles. Nosso prazer não se resumia em apenas ler, mas em
ter mais gibis que os outros. Como se pode observar, o capitalismo atingia as crianças
de grandes centros de maneira um pouco mais traumática.
Bem. Sei que, enquanto por aqui as crianças ficavam andando de bicicleta no jardim,
em Campinas eu ficava trancado no meu quarto. Lendo gibis.
Não posso dizer que foi ruim. Até hoje gosto de histórias em quadrinhos e ainda
guardo uma imensa coleção, que minha mulher vive pedindo para eu jogar fora. "Um
ninho de baratas", ela diz.
O que ela não entende é que foi desse ninho de baratas que tirei minhas primeiras
impressões sobre o mundo. Lições, até hoje, não muito bem compreendidas. Uma das
maiores dúvidas é aquela, com a qual iniciei a crônica: onde diabos se meteram os
pais dos sobrinhos do Pato Donald?
São órfãos, os pobres patinhos? E o Tio Patinhas? Se é tio, é irmão da mãe de
alguém, não é? Ou do pai. E cadê esses irmãos? E o pai do Pato Donald? Por onde
anda?
Tem também a Vovó Donalda. É irmã do Tio Patinhas? Ou o quê, então? E se são
irmãos, onde estão os pais? Ninguém tem pai nessa história?
Porque, você pode dar uma olhada. O Cebolinha. A Mônica. O Cascão. Todos eles
têm pai e mãe. Mas os personagens Disney não. Um bando de animais órfãos que
vivem numa tremenda promiscuidade. São cachorros andando com ratos e patos.
Porquinhos chafurdando num pesadelo incestuoso. Bois, cavalos e, vejam bem,
VACAS!!! Sim, vacas, a maioria com suas tetas pendendo sensualmente à vista de
todos - e isso tudo muito antes de liberarem o topless.
Sei que, se aliarmos essa esculhambação toda do Walt Disney à rígida educação
católica que recebi, não se poderia esperar mesmo nada de muito proveitoso. São
coisas muito antagônicas: a igreja pregando a importância de uma vida familiar
saudável e os quadrinhos nessa geléia geral. Não há cabeça de criança que consiga
conciliar essas duas visões de mundo sem entrar em conflito.
Bem fazem algumas igrejas que proíbem seus seguidores de lerem histórias em
quadrinhos, ouvirem rock’n roll e até mesmo de tomarem Coca-Cola.
São coisas do demônio, evidentemente. Só não vê quem não quer.



                                 Eternamente
                             19 de fevereiro de 2000
Você pode até não acreditar, mas alguns cientistas americanos acabaram de descobrir
a causa do envelhecimento dos animais. E, pode esperar: agora que descobriram a
causa, para inventarem a cura é um passo.
O estudo foi publicado num artigo da revista científica "Nature", de quinta-feira
passada. No Instituto de Tecnologia de Massachusetts alguns pesquisadores, meio
sem querer, toparam com a proteína SIR-2 que, segundo eles, rege a duração da vida.
Já fizeram, inclusive, alguns experimentos com ratos, vermes e moscas, conseguindo
aumentar um bocado o tempo de vida dos espécimes.
Bem, o homem não é tão diferente assim desses animais. Observando por certos
ângulos, é até muito parecido. E, se deu certo com eles, não vai demorar muito para
dar certo com a gente também.
Isso quer dizer, meu caro, que provavelmente nossos bisnetos - ou, vá lá, os bisnetos
deles - vão ter uma vida tão longa quanto Ponce de Leon sonhou ter. Ou seja:
alcançarão a eternidade.
Ponce de Leon, para quem não sabe, foi aquele espanhol maluco que embrenhou-se
nas selvas americanas (das Américas, não dos EUA) em busca da fonte da juventude,
e que acabou tendo uma vida ainda mais curta do que a da maioria dos seus
contemporâneos. Morreu de febre amarela ou alguma outra dessas doenças que até
hoje ainda infestam nossos trópicos. Mesmo assim, a fantasia de Ponce de Leon me
consolou muitas madrugadas na infância, quando, debaixo das cobertas, eu começava
a pensar sobre a morte.
A morte é, talvez, nosso primeiro medo real. Os pais não dão muita importância a
esses temores enquanto eles se restringem ao escuro, aos fantasmas e aos monstros
debaixo da cama. Consolam as crianças mas, no fundo, riem. Agora, quando o filho
chega e diz que está com medo de morrer, a coisa muda de figura. Os pais não
conseguem consolá-los porque também têm medo. E provavelmente têm até mais que
os próprios filhos pois, pressupõe-se, restam-lhes ainda menos tempo de vida. O
pavor da morte rondará as nossas madrugadas mesmo quando nos tornamos avós. É
uma espécie de pesadelo coletivo da raça humana.
Certo. Um sabadão desses. Um dia gostoso. Todo mundo com planos para pescarias
ou para a boate à noite. E o estraga prazer aqui com esse papo funesto sobre a morte.
Mas dessa vez você está enganado. Eu não estou falando da morte. Não sei se você
lembra, mas eu estava falando da descoberta da cura da morte, pelos cientistas
americanos. Estamos falando aqui da eternidade.
E é aí que eu pergunto: e quem é que quer viver para sempre?
Pare um pouco o que está fazendo e pense na possibilidade de você sobreviver a
tudo. Aos dias. Às semanas. Aos séculos. Ao trânsito da rua Amazonas. A tudo. De
repente, você não vai mais morrer. Mesmo que queira. É uma idéia assustadora.
Eu, pelo menos, não sei se quero viver para sempre. Está certo que também não
quero morrer amanhã, mas "para sempre" é um termo um tanto quanto radical demais.
Andei perguntando por aí, para ver se era só eu, mas não é não. Ninguém quer a
eternidade. Excluindo um colega de serviço, que é um daqueles chatos insistentes,
todo mundo para quem eu perguntei disse que não pretendia viver mais que setenta
anos. Alguns, nem setenta. Contentam-se com seus cinquenta, cinquenta e cinco. Até
menos.
E estão certos. Imaginem só ter que aguentar a programação de sábado à tarde na
TV, por toda a eternidade. Não sei de vocês. Eu prefiro a morte.


                Descoberto novo animal em Cardoso
                             26 de fevereiro de 2000
A Polícia Florestal de Cardoso descobriu, na última quinta-feira, uma nova espécie de
reptil que, aparentemente, só pode ser encontrado em nossa região. Alguns
exemplares já foram enviados para a Universidade de Princetton (EUA) para eventual
catalogação.

Após receber um telefonema do caseiro da Fazenda Mirante, propriedade da família
Lemos, de Votuporanga, o capitão Silviano Martins dirigiu-se até a estância, situada à
beira de um dos lagos represados de Cardoso.
Chegando lá, foi informado que as águas do "Marinheirinho" estavam subindo a níveis
alarmantes, colocando em risco, inclusive, a sede da fazenda, uma mansão de dois
andares construída no século passado.
O capitão e sua equipe, imaginando tratar-se apenas de algum ajuste nas comportas
da usina de Ilha Solteira, só decidiram averiguar o local após a insistência do caseiro,
que dizia que as águas jamais haviam ultrapassado a distância de cem metros das
construções e agora já estavam quase invadindo a varanda da mansão principal.
Seguindo ordens do Capitão Silviano, os cabos Silvio Andrade e Mateus Peregrini
subiram a pé pelas margens da represa, enquanto o próprio capitão mais o soldado
Régis seguiram de barco pela água.
Após meia hora de caminhada, o cabo Silvio, às margens do rio, comentou com seu
companheiro que já não conseguia ouvir o motor da embarcação do capitão. Subiu
numa árvore e, munido de um binóculo, iniciou minuciosa busca. Passados alguns
minutos, percebeu alguma coisa boiando na margem oposta.
Eram os restos do barco da Polícia Florestal. Aparentemente, a pequena embarcação
de alumínio havia se chocado contra uma formação rochosa e se partido. Junto aos
destroços, foram encontradas duas mochilas de primeiros socorros e uma lanterna
com o emblema da corporação. Não havia, no entanto, nenhum vestígio do capitão
Silviano ou do soldado Régis.
Os cabos Silvio e Mateus retornaram então à sede da fazenda e, a partir da viatura,
entraram em contato via rádio com seus superiores, pedindo instruções.
Imediatamente foi acionado um helicóptero que, partindo de Rio Preto, em apenas
quarenta minutos já estava sobrevoando o local.
Após cerca de duas horas de busca, e já quase ao fim do combustível, o capitão José
Stuppiello, piloto do helicóptero, informou aos policiais em terra que havia detectado
uma coloração incomum na corrente da água, a cerca de três quilômetros do local
onde foram encontrados os restos do barco.
Imediatamente, todo o contingente terrestre, que naquele momento já era constituído
de mais de trinta homens, partiu para a região apontada pelo helicóptero. Lá
chegando, houve confirmação das informações. As águas, que no local normalmente
têm a coloração esverdeada devido à ação de algas, em determinado trecho assumia
estranhos tons avermelhados. Alguns mergulhadores já se preparavam para uma
incursão quando foi avistado o primeiro de muitos animais que começariam a sair do
rio.
Totalmente desconhecidos, tinham o tamanho e a aparência de um jacaré de médio
porte, possuindo, no entanto, uma espécie de casco, semelhante ao das tartarugas-
marinhas, e com tonalidades que variavam entre o vermelho e o amarelo-ouro.
Assustados com o número de criaturas que surgiam das águas, alguns policiais
sacaram de suas armas e haveria um verdadeiro massacre, não fosse o sangue-frio
do capitão e piloto José Stuppiello.
Substituindo a munição normal por anestésicos, o capitão e seus subordinados
conseguiram aprisionar dezenas de espécimes vivos. A maioria deles se encontra
agora numa lagoa situada na cidade de Cardoso, gentilmente cedida pela prefeitura, e
é motivo de curiosidade por parte de toda população. O restante foi enviado para
universidades e entidades científicas.
Ao cabo de toda operação, só houve necessidade do sacrifício de um dos animais.
Ainda às margens do rio, o capitão José Stuppiello percebeu que um dos espécimes
capturados estava tendo estranhas convulsões. Diante do olhar atônito da corporação,
o mesmo homem responsável pela sobrevivência de toda espécie, munido apenas de
uma faca, atracou-se com o animal, retalhando-o em questões de minutos. A seguir, o
capitão Stuppiello introduziu as mãos nas entranhas ensanguentadas do bicho e, para
surpresa geral, puxou lá de dentro dois grandes volumes.
Eram o soldado Régis e o capitão Silviano. Inacreditavelmente vivos!


                            Terapia Ocupacional
                              21 de março de 2000
Minha mulher, volta e meia, aparece com uma novidade. Ela sempre foi assim, desde
solteira. Uma dessas novidades, inclusive, fui eu - e o meu sogro até hoje ainda não
se recompôs da surpresa.
Bem. A última mania dela é uma tal de Cromoterapia. Está fazendo um curso,
pensando talvez em se profissionalizar. Quando ela encasqueta com uma coisa, gosta
de ir fundo. Já fez uma porção desses cursos que misturam um pouco de misticismo
com ciência. Ela chega um dia em casa e, como quem não quer nada, pergunta -
Amor, você já ouviu falar da energia dos cristais? - e aí, pode se preparar: nas
semanas seguintes, a casa se encherá de cristais energizantes e pedras filosofais.
Dessa vez, era a Cromoterapia.
- Amor, você já ouviu falar em Cromoterapia?
- Cromo-o-quê?
- Cromoterapia. A terapia através das cores. Deixa eu explicar... Cada cor influencia o
ser humano de um jeito. E nós podemos mudar a maneira de ser, assim, só mudando
a cor de nossas roupas. Ou de nossas casas. Entende?
- Entendo.
Na semana seguinte, já comecei encontrar rastros da tal Cromoterapia pela casa.
Abria o armarinho do banheiro, para pegar a escova de dentes, e onde é que estava
minha escova de dentes?
- É essa aí, vermelhinha. Eu comprei uma nova.
- Mas...aquela amarela estava novinha...
- É que a cor vermelha ajuda a combater as infecções.
Pouco a pouco, minha casa foi mudando. Um dia, uma cortina azul.
- É pra gente se acalmar um pouco.
- Mas quem é que está nervoso? Eu não estou nervoso.
- Está sim.
- Não estou não.
- Está sim.
- NÃO ESTOU NÃO!
No outro dia, a mesa do almoço estava lilás.
- Mas uma mesa lilás? Eu não consigo almoçar com essa coisa lilás embaixo do meu
prato.
- É porque você não está equilibrado. O lilás vai equilibrar você.
- Eu não quero me equilibrar. Estou muito bem assim, desequilibrado. Porque é que eu
vou querer me equilibrar agora?
Quando dei por mim, eu estava morando numa espécie de arco-íris. Cadeiras listradas
de vermelho e jasmim. Lustres alaranjados. Os copos antigos sumiram da cristaleira,
dando lugar a copos cor-de-rosa. Os pratos, cinzas.
- Mas cinza não é cor.
- É sim. O cinza ajuda na percepção dos sabores.
- Mas a comida fica com cara de morta.
- É porque a comida está morta. Ou você quer comer a coisa viva?
O ambiente em casa foi piorando. Os diálogos, cada vez mais ríspidos.
- Eu não vou sair com você vestida desse jeito.
- Mas o que é que você tem contra um vestido vermelho e amarelo?
- Isso nem parece um vestido... Parece a...a...bandeira da Espanha.
- E quem é que disse que a bandeira da Espanha é amarela e vermelha?
- Eu sei, ué..
- Sabe nada.
- Sei sim.
- Não sabe.
Mas, do mesmo jeito que as manias de minha mulher começam, terminam. Um dia
cheguei em casa e tudo tinha voltado ao normal. Até minha escova de dentes, a
amarelinha, estava lá, de volta. As cortinas, as mesas. Tudo com suas respectivas
cores normais. Fui para o quarto, e lá estavam os lençóis. Brancos de novo. Só não
conseguia encontrar a minha mulher.
Fui encontrá-la lá no fundo da casa, no jardim. Cavoucando a terra. Olhou para mim e
sorriu:
- Você já ouviu falar nos Florais de Bach?
O papa e a tartaruga
                              25 de março de 2000
O final de mandato do papa João Paulo II (papa tem mandato?) ficará marcado na
história por seus pedidos de desculpas pelos erros da igreja católica no passado.
Em 1992 o Papa já havia admitido que Galileu estava certo ao afirmar que era a Terra
que girava em torno do sol, e não o sol em torno da Terra, como a igreja acreditava. O
Papa pediu desculpas ao Galileu, ao Kepler e a uns outros que quase foram
queimados na fogueira (alguns foram mesmo) por defenderem idéias tão absurdas.
Desde esse primeiro "mea culpa", o Papa não parou mais. Outro dia, pediu desculpas
pela inquisição. Agora, aproveitando uma visita a Israel, parece que anda tentando se
desculpar com os judeus pelo silêncio do Vaticano à época do Holocausto.
Devíamos todos seguir tão ilustre exemplo e começar a pedir nossas desculpas.
Não, amigo leitor. Não adianta fazer essa cara de quem não tem culpa de nada. É
claro que tem, a sua memória é que anda fraca. Mas também não precisa ficar assim,
tão chateado. Todos nós somos culpados de alguma coisa, só que a maioria de
nossas culpas são coisinhas bobas, que só interessam à gente mesmo.
Eu, por exemplo, também tenho cá os meus tormentos. E um dos maiores é a
lembrança de uma tartaruguinha que tive quando criança.
Eu morava em um apartamento, em Campinas. Meus irmãos e eu sempre quisemos
ter um animalzinho de estimação, e cachorros e gatos eram proibidos no condomínio.
Um belo dia, meu pai chegou em casa com uma surpresa. Era a tal da tartaruga.
Era dessas pequenininhas, que não passam do tamanho de um mouse de
computador. São chamadas de tartarugas-de-aquário.
Só que a nossa veio sem aquário. Precisávamos arrumar urgentemente um habitat
para o pequeno reptil (tartaruga é reptil? ou é anfíbio?).
Tentamos alojá-la em diversos compartimentos. Uma máquina de lavar quebrada.
Uma bacia, onde eram lavados nossos uniformes de escola. Mas todos eles, por uma
razão ou outra, acabavam não dando certo. A lavadora não dava porque ficava muito
difícil pegar a tartaruga, quando ele se escondia lá no fundo. A bacia também não,
porque minha mãe tinha que colocar nossos uniformes de molho, assim que
chegávamos da escola.
E foi desse jeito que a nova residência do animal passou a ser a casa-de-bonecas da
minha irmã. Não era uma mansão, está certo, mas até que era um belo sobrado. E
esse foi o grande problema.
A tartaruguinha passava as tardes a escalar as paredes da casa-de-boneca e, ao
chegar ao topo, sem ter para onde ir, caía. Era muito engraçado vê-la escalar as
paredes, feito o homem-aranha. E depois cair. Virou a atração do prédio. Vinham os
vizinhos de todos andares conhecerem a nossa pequena maravilha. E todo mundo ria
muito a cada tombo dela.
A tartaruga parecia que estava na dela. Mesmo com platéia, continuava a escalar as
paredes, sempre da mesma maneira. Ia até o topo, escorregava e caía. Subia de
novo. E de novo caía. O dia inteiro. O mês inteiro.
Até que, um dia, quando fui alimentar o bichinho, encontrei a tartaruga de costas.
Talvez minha memória de criança exagere um pouco, mas eu me lembro de encontrá-
la com o pescoço virado para trás, e um pequeno filete de sangue escorrendo
(tartaruga tem sangue?). Na sua última escalada, deve ter caído de cabeça. Sangrou
até a morte.
Muito anos depois, ganhei de presente duas tartarugas iguaizinhas, que tenho até
hoje. Desta vez, precavido, coloquei-as dentro de um pequeno aquário, onde elas não
tem por onde escalar. Mas elas cresceram bastante e já ando pensando em fazer um
aquário maior, mais confortável. Fiz até o projeto, com vários compartimentos, vidro
fumê e plataformas. Plataformas acolchoadas, evidentemente.
Já até pedi um orçamento num vidraceiro, e um dia mando fazer. Se não para o
conforto das tartarugas, ao menos para diminuir um pouco o meu peso na consciência.
Está certo que não é nenhum Holocausto mas, tal como o Papa, eu não pretendo viver
com a morte daquela tartaruguinha nas costas até o fim do "meu mandato", que, aliás,
já não deve durar tanto assim.



                          A máquina-da-verdade
                               04 de abril de 2000
Durante a vida, que eu me lembre, apenas duas coisas conseguiram me dar, nem que
por breves momentos, alguma esperança no futuro da espécie humana.
A primeira foi o seguro-de-vida.
Quando eu era criança, não entendia bem o que era um seguro-de-vida. Eu imaginava
que era literalmente o que o nome quer dizer, ou seja, que pagando-se lá uma certa
taxa, ficaríamos com nossa vida assegurada, e não morreríamos mais. É claro que
devia ser uma taxa bem grande, haja visto o número de pessoas que eu via morrer a
toda hora. Mas ela existia. E, se existia, talvez, se trabalhássemos muito, ao cabo da
vida teríamos conseguido juntar o bastante e nos veríamos livres do pesadelo da
morte.
Foi terrível quando descobri que eu só havia acertado mesmo no preço do tal seguro,
e que ele, se garantia alguma vida, era a dos outros, não a minha.
A outra coisa era a máquina-da-verdade. Me lembro de ter assistido um filme no
cinema, com meu pai. Era um filme de guerra, eu acho. Branco e preto. E os nazistas
usavam uma máquina-da-verdade no herói. Um monte de fios presos na cabeça do
pobre coitado o ligavam diretamente na máquina, que desenhava estranhos rabiscos
numa folha de papel. Um dos nazistas ficava perguntando as coisas, o outro ficava
analisando os tais rabiscos, e dizendo se o herói mentia ou não. O tenente norte-
americano não teve chances e acabou delatando sua tropa, que foi destroçada pela
SS. É claro que depois ele se vingou, mas essa já é outra história. O que me marcou
mesmo, e para o resto da vida, foi a tal máquina.
Tal como a morte, a verdade é um grande mistério. Por exemplo, vamos dizer que
uma pessoa diz que te ama.
- Então prove.
- Como, prove?
- Prove, oras.
- Mas...como é que eu faço para provar?
- Sei lá. Corte um braço fora, por exemplo.
- Co...co...cor...tar um braço?
- É. Se você cortar um braço, eu acredito que você me ama.
Aí a pessoa que diz que te ama pega e corta o braço fora. Com uma serra elétrica.
Coloca o braço na linha do trem, sei lá. Mas ela corta o braço:
- E agora? Acredita que eu te amo?
- Hum... Por que foi mesmo que você cortou o braço esquerdo?
Tem coisas, que a gente só acredita por acreditar. O amor é só um exemplo. Toda
nossa convivência social é baseada no pressuposto de que os outros estão dizendo a
verdade. Trabalhamos trinta dias na esperança de que o patrão não estivesse
mentindo quando afirmou que nos pagaria no fim do mês. A gente nunca vai saber
com certeza se ele estava sendo sincero, até ele pagar.
Agora, há quantos anos já sabemos da existência da máquina-da-verdade? Se já
existia no tempo dos nazistas, deve ter sido inventada ainda na década de trinta. E
como é que uma das maiores invenções da humanidade ainda não chegou às nossas
casas? Pois, se já chegaram rádios, televisores, microondas, computadores, mais um
monte de tranqueira – porque é que uma máquina que poderia mudar completamente
nossas vidas ainda não chegou?
Eu não entendo. Será que nenhuma multinacional nunca pensou nesse filão do
mercado? Devem existir por aí milhões de pessoas ávidas pela verdade. Eu, por
exemplo, gostaria muitíssimo de saber se a minha esposa me ama tanto quanto fala. E
ela, se ontem à noite eu estava realmente no bar, com uns amigos.
Se todos tivessem uma máquina-da-verdade, o sistema judiciário não teria mais razão
de ser. Se não houver mais jeito de mentir, quem vai precisar de advogados? Já
imaginaram? Um mundo livre dos advogados?
Isso para não falar da religião. Se ficar provado, por exemplo, que os livros
psicografados são verdadeiros, teríamos que rever não apenas nossa maneira de
encarar a eternidade, mas também nossas leituras prediletas. Já imaginaram as obras
póstumas de Franz Kafka? E o quanto Jean Paul Sartre teria que se explicar?
E para quem acha que máquinas-da-verdade não existem, domingo passado o Gugu
Liberato levou uma de última geração no seu programa. Nada parecida com aquela
dos nazistas. Coisa sofisticada, num computador. E nada de fios presos na cabeça do
entrevistado. Aliás, a pessoa investigada nem precisa estar presente. É só colocar lá
uma fita com a voz do sujeito, que ela responde se o que ele está dizendo é verdade
ou mentira.
Mas é claro que uma invenção com tal poder revolucionário ainda não tem lugar no
mundo, e vai ser sempre motivo de boicotes. O Gugu, ainda acho que de propósito,
testou a máquina logo com uma fita do Celso Pitta. Não deu outra: a engenhoca pirou.
Devem estar tentando recalibrar até agora.



                                    Reclame
                              03 de junho de 2000
Nos primórdios da televisão, muita gente não entendia direito qual era a razão das
propagandas. Por que diabos, bem na hora que o programa estava ficando bom, eles
colocavam os "reclames"? É. Era assim que a gente chamava as propagandas
antigamente: reclames.
Não sei direito de onde o termo vem, mas imagino que seja exatamente de onde você
imaginou. Do verbo reclamar. É que, na hora que começava a propaganda, todo
mundo reclamava.
Eu me lembro do meu avô, reclamando:
- Eu não vou assistir esse programa. Tem muito reclame.
E não assistia mesmo. Ia lá para o seu quarto, vestia um pijama e lia um livro, dois
hábitos já meio fora de moda desde aquele tempo.
Mas hoje em dia a coisa mudou. As propagandas se sofisticaram. Tanto é, que
ninguém mais chama as danadas de reclame. Tem gente que tem até suas favoritas:
- Há quanto tempo não passa aquela do cachorrinho da Cofap, né?
- E o rapaz da Bombril? Anda sumido... Será que aconteceu alguma coisa?
Pouco a pouco, a propaganda acabou sendo reconhecida como a verdadeira mola
mestra do capitalismo. Já não dava para viver sem ela. Se uma televisão não tem
propaganda, não sobrevive, ora essa... Nem um jornal. Nem uma rádio.
O meu sobrinho mesmo, outro dia desses, veio pedir meu carro emprestado para que
ele e uns amigos pudessem ir... para a praia! Ante o meu espanto, ele, com a maior
cara de pau do mundo, perguntou:
- O que é, tio? Nunca ouviu falar de Patrocínio?
Mas com esse sobrinho, eu tenho um pouco de culpa. Acostumei ele muito mal. Desde
aquela vez quando ele veio me pedir um dinheirinho para ir ao cinema.
- Apoio Cultural, manja?
Dessa maneira, a propaganda acabou por se tornar uma instituição nacional. Ninguém
mais faz nada se não tiver uma patrocínio, um apoio cultural, ou coisa que o valha.
Livros onde se mesclam poesias com comerciais de lojas de sapatos. Revistas onde
não se sabe mais se o que estamos lendo é propaganda ou matéria. Times de futebol
que a gente nem chama mais pelo seus nomes mesmo, mas pelo nome do
patrocinador. E os pilotos de Formula 1, então? Uma verdadeira propaganda
ambulante.
Não é de se espantar que o governo federal tenha gasto 18,8 milhões de reais para
montar um estande na Expo 2000 em Hannover, na Alemanha, inaugurada no mês
passado. Um dinheiro muito bem investido, segundo todo o alto escalão brasileiro.
E eles têm razão. Uma boa propaganda pode tirar uma empresa quebrada do buraco.
Quem sabe não dá certo com um país também? Há, inclusive, inúmeros casos de
políticos absolutamente medíocres que, através de uma boa propaganda,
conseguiram se eleger para cargos de suma importância para a vida nacional. É só
dar uma boa maquiada, esconder uma coisinha aqui, inventar outra lá, e pronto. A
propaganda elegeu o cara.
O problema, me parece, é que o nosso presidente não entendeu direito o espírito da
coisa. Ao comparecer na festa de inauguração da Expo 2000, e tentando explicar as
razões do Brasil ter gasto tanto dinheiro para montar seu pavilhão, me saiu com essa:
"- O Brasil não pode deixar de mostrar (ao mundo) o que é"
Olha lá, hem presidente... Não vai me levar essa sua frase ao pé da letra, senão aí é
que estaremos ferrados de vez.



                          Chamem os bombeiros
                               08 de abril de 2000
Minha mulher passou uma semana fora. Deve chegar hoje à noite. Foi fazer um retiro
espiritual em Itaici, uma espécie de Disneylândia para os retirantes espirituais. No
embalo, demos folga para a empregada.
Ficamos em casa só minha filha e eu.
No primeiro dia, até que mantivemos a compostura. Ao acordar, ambos demos uma
arrumada nas devidas camas. Lavamos nossos pratos depois do almoço. Na janta,
porém, já se podia atinar com um futuro sombrio. Comemos uns sanduíches na sala,
assistindo o Show do Milhão. Como já era tarde, acabamos deixando os pratos e os
copos por ali mesmo, no tapete. E acabei esquecendo o vidro de maionese fora da
geladeira.
No segundo dia, ao acordar, tropecei num dos copos e o resto do refrigerante se
espalhou. Saí à caça de um pano. Onde é que as mulheres guardam os panos de
chão? Acabei secando com um daqueles panos-de-prato novinhos, que ficam anos na
gaveta, à espera de visitas. Enquanto isso, minha filha passeava pela sala, comendo
um pãozinho requentado e tomando um copo de leite. Tudo sem pires ou pratos,
evidentemente. As migalhas do pão se espalhando pelo tapete e pelo sofá.
Olhei para o relógio. A aula dela já tinha começado há pelo menos meia hora.
Apressado, acabei deixando o pano ali mesmo, em cima da poça de coca-cola. Mais
tarde, os restos do almoço e da janta foram se amontoando. Minha filha
até que tentou dar uma arrumada, e deu uma empilhada nos pratos. Foi quando ela
achou o vidro de maionese. Estava começando "MIB - Os Homens de Preto" e ela,
delicadamente, colocou a pilha de pratos em cima da TV e o vidro de maionese em
cima de tudo. Dormimos com a TV ligada.
Lá pelo quarto dia, o sofá já estava, segundo a minha filha, insentável. Havia manchas
de catchup, de maionese e de uma substância que eu não conseguia definir direito,
mas, pelas outras manchas, imaginei ser mostarda. As casquinhas de pão tornavam o
deitar-se uma experiência inviável.
Trouxemos do quarto um colchão limpo e jogamos na frente da televisão. Tinha um
pano ali, atrapalhando, que eu empurrei com o pé. Mais algumas almofadas e já
tínhamos novamente onde nos aninhar.
Acordamos no outro dia junto a restos de sanduíches de salame e sentindo um cheiro
esquisito. Alertei minha filha que era melhor jogar aquela maionese fora, e ela disse
que depois jogava. Precisávamos correr. Parece que se o aluno chegar três dias
seguidos atrasado, o diretor da escola chama o pai para conversar. E eu não estava
disposto a me encontrar com diretor nenhum.
Hoje, quando cheguei, tive que abrir as janelas da casa e ligar os ventiladores de teto.
Tinha alguma coisa fedendo por ali. Descobri que era aquela frigideira, onde
derretemos queijo no outro dia. Tentei alcançá-la, mas temi que a imensa pilha de
panelas e pratos que se equilibrava sobre a pia perdesse a estabilidade, e
despencasse sobre mim. Joguei um tanto de detergente em cima daquilo tudo para
ver se o cheiro passava. Até que deu uma melhorada. Satisfeito, voltei para a sala.
Empurrei alguns pratos com os pés, puxei o saco de biscoitos para o lado e me deitei.
Foi quando dei pela falta da minha filha.
Joguei o edredon para cima, e restos de pipoca voaram na minha cara. Olhei em baixo
das almofadas. Levantei o tapete. Só encontrei um pano de prato amassado e meio
úmido.
- Filha? Filha!! FILHA!!!
De repente, parece que ouvi sua voz. Desliguei a TV e fiquei atento. Procurei entre as
pilhas de roupa suja. As embalagens de bombons. As cascas de tangerina. Da última
vez que eu me lembrava, ela estava tentando encontrar o controle remoto. Devia estar
em casa ainda. Dei uma espiada atrás do sofá. Nada.
Estou ficando maluco. Já procurei em cima do fogão. Na geladeira. No armário do
quarto. Tudo em vão. Não sei mais o que fazer. Minha mulher chega hoje à noite da
viagem, e eu perdi a filha dela.
Sou um homem morto.


                                  Hipocondria
                               17 de junho de 2000
Amanheci com o rosto cheio de brotoejas. Brotoejas, não sei se você sabe, são umas
bolinhas vermelhas. Que coçam.
- Então é sarampo.
- Que sarampo, que nada...
- Tô te falando...
- Onde já se viu? Um homem de quarenta anos... Sarampo... Além do mais, eu já tive
sarampo quando era criança.
- E o que é que tem?
- Oras... Sarampo não pega duas vezes. Pega?
- Pega. O que não pega duas vezes é catapora.
- Catapora?
- É. Catapora. Quem sabe não é catapora. Você já teve catapora também?
- Sei lá. Agora você me confundiu. Qual é a diferença entre catapora e sarampo?
- A diferença é que uma só pega uma vez e a outra pega um monte de vezes.
- E caxumba? Será que não pode ser caxumba?
- Caxumba... Caxumba é aquela que incha o pescoço, não é? Você está com o
pescoço inchado?
- Não.
- Então não é caxumba. Tem que ser sarampo.
- Ou catapora.
- É. Ou catapora. Em todo o caso, é melhor ir num médico.
- Médico? Mas será que precisa?
- Precisa. Porque, eu não sei qual dessas doenças, quando pega em adulto tem o
perigo de descer.
- Como assim, descer?
- Descer, oras... Nunca ouviu falar?
- Não. Descer pra onde?
- Descer para o... para o... Ora, você sabe...
- Já disse que não sei! Descer para onde? Vai dizer que...
- É. Lá mesmo. Não sei qual dessas doenças, desce. E se descer, ó...
E ele apontou o dedo para cima e foi abaixando, abaixando, até apontar para baixo.
Isso acompanhado de um barulhinho, que nem de uma bexiga murchando:
- Pfffuúúúúúússssssss....
Eu arregalei os olhos. Descer é que não! Corri para a Santa Casa. O médico de
plantão me atendeu. Me levou até o consultório. Raspou uma das brotoejas com uma
espécie de estilete e colocou a pele dentro de um plastiquinho. Disse para eu voltar
amanhã. Eu disse que não. Eu ia ficar ali, esperando. Vai que no caminha essa coisa,
sei lá, resolve descer. Fiquei lá umas cinco horas. Esperando. Enfim, o médico voltou
com o resultado dos exames.
- Alergia. Você deve ter comido alguma coisa que te fez mal. Pode voltar para casa
tranquilo.
Eu olhei para ele. Conferi os resultados dos exames, embora não entendesse nada
daqueles números. Olhei para o médico de novo:
- Doutor. Alergia não desce, desce?
- Não. Não desce.
Respirei aliviado. A gente leva cada susto nessa vida...



                           A função do cronista
                               13 de julho de 2000
Por muito pouco não me tornei um arquiteto. Para ser mais preciso, por exatos seis
meses. Esse era o tempo que faltava para que eu me formasse na faculdade Brás
Cubas de Arquitetura, em Moji das Cruzes, na década de 80.
É engraçado como, quase sem perceber, passamos a dividir o tempo em décadas. A
minha filha, por exemplo, ainda divide seu tempo em semanas: "a semana passada eu
fui"; "essa semana eu vou"; "semana que vem eu irei". E o pai dela aqui, regurgitando
recordações de duas décadas atrás...
Bem, como eu dizia, por muito pouco não fui um arquiteto. Na época eu estava
decidido que essa seria a melhor maneira de ajudar a humanidade.
É sério. Convencido por um colega, meio comunista, de que através da arquitetura de
uma cidade, de um bairro ou até mesmo de uma casa, poderíamos dar início à
revolução, fui eu dar lá o meu quinhão em prol do socialismo mundial. E estávamos
bem acompanhados. O Niemeyer está na luta até hoje, inclusive.
Com o desenrolar do curso, no entanto, fui percebendo que a coisa não era bem
assim. As pessoas comuns estavam pouco se lixando para suas residências, contanto
que houvesse um teto que às protegesse da chuva, e paredes, que às protegessem
do vento e de eventuais ladrões.
Quem realmente se importava com a estética e a funcionalidade das moradias eram
os milionários - e desenhar mansões de socialites para o resto da vida não estava de
modo algum nos meus planos revolucionários.
Foi quando larguei tudo e resolvi dar uma repensada no futuro. O que é, afinal, que eu
queria ser quando crescesse? Qual profissão poderia cumprir a função básica de me
sustentar e, ao mesmo tempo, satisfazer essa vontade insana de contribuir de alguma
maneira para o bem estar da civilização?
Passei anos fazendo experiências. Algumas muito boas, outras nem tanto. A que mais
tempo durou foi a de padeiro. Não, eu não fui exatamente um padeiro, aquele que faz
o pão, mas sim um capitalistazinho, proprietário de padaria. Durante quatorze anos.
Foi uma experiência válida, afinal eu trabalhei e contribuí de alguma maneira com uma
necessidade básica da população: a alimentação.
Pois bem. Foi atrás do balcão de uma padaria, sufocado entre broas de milho e
croissants, que consegui, afinal, vislumbrar um ideal para o meu futuro. Mas não teve
nada a ver com a alimentação em si, mas sim com os consumidores.
O contato direto com os clientes me ensinou muito sobre o ser humano. A solidão. Os
medos. A felicidade. Nesses quatorze anos de convivência, eles me trouxeram
charutos para comemorar nascimentos. Me trouxeram Raios X dos próprios pulmões.
Comeram. Beberam. Deram risadas. Alguns esperavam de mim apenas um bom
ouvinte, mas a maioria queria mesmo era ouvir alguém. O ser humano, mais até que
de uma residência, precisa muito de palavras. De conforto, de incentivo, de revolta.
Mas palavras.
Foi quando resolvi definitivamente o que eu queria, ou devia, fazer dessa vida. Larguei
tudo que tinha - que não era muito, a bem da verdade - e vim escrever para o jornal.
Foi a decisão mais acertada que tomei desde que nasci. Hoje, desconhecidos me
param na rua. Me cumprimentam. Comentam que se sentem quase íntimos. Seguem
minhas crônicas há três anos afinal de contas, e chegam até a dar palpites sobre a
maneira de eu educar minha filha. Concordam com muita coisa que falo. Discordam de
outras. Mais ou menos como convivemos com nossas esposas, esposos, pais e mães.
Ok. Posso não estar atuando diretamente na vida das pessoas, como os arquitetos, os
médicos e os políticos. Mas estou servindo, ao menos, de companhia.
Pode não ser grande coisa, mas já é um começo. Eu acho.


                      Se fosse bom, ninguém dava
                               20 de julho de 2000
Quando a gente tem dezoito anos, não consegue se imaginar dando conselhos. Então,
quando me pego dando um, a primeira coisa que me vem à cabeça é a constatação
óbvia de que eu não tenho mais dezoito anos - fato com o qual ainda não me
acostumei totalmente.
Ter dezoito anos é cultivar olheiras, só para fazer charme. Ter dezoito anos é andar
com uma calça vermelha e ninguém achar estranho. Ter dezoito anos é... é... é ter
dezoito anos, puxa vida...
Bem. Hoje cedo minha filha foi viajar. Foi com os meus pais para Campinas, tirar umas
férias. Férias de mim, pressuponho, já que do colégio já estava de férias há alguns
dias. Na rodoviária, na porta do ônibus, após os usuais beijos e abraços, me vi na
obrigação de dar algum conselho. Afinal, minha filha estava embarcando para uma
das cidades mais violentas do país. Li outro dia desses, na "Folha de São Paulo", que
Campinas era, comparativamente, mais violenta até que São Paulo e Rio de Janeiro.
E que conselho dar ali, naqueles poucos segundos antes do embarque, e com isso
não parecer nem muito careta nem muito displicente?
O que me veio à cabeça foi um trecho de um livro que li há muitos anos, obrigado pela
professora de português. Não lembro o nome do livro. Era de uma série, dessas de
aventuras de adolescentes, que os professores dão para ver se seus alunos pegam o
gosto pela leitura.
No tal livro, o personagem principal está prestes a embarcar numa excursão, junto
com seus colegas de escola. A mãe dele, antes de deixá-lo partir, segura-o pelos
ombro e pede para que, durante os passeios, ele nunca seja o primeiro. Nem o último.
- Fique sempre no meio, meu filho.
É um ótimo conselho, este. Os primeiros arriscam-se muito. Os últimos, correm o risco
de serem esquecidos. Na dúvida, fique no meio. É muito mais seguro, embora,
convenhamos, bem menos divertido.
O conselho daquela mãe ficou na minha cabeça por muito tempo, mas só veio mesmo
ter utilidade agora, quase trinta anos depois. Bem ali, na porta do ônibus, olhei para
minha filha e decretei:
- Fique sempre no meio, minha filha.
Ela já estava subindo no ônibus. Não dava muito tempo de responder. Ela apenas
sorriu e galgou os degraus, abanando a mão. Me abracei à minha mulher e ficamos os
dois, olhando o ônibus partir, dando tchauzinhos, com os olhos marejados.
Na volta para casa, já razoavelmente recuperada da despedida, minha esposa
perguntou:
- O que é que você quis dizer com aquilo?
- Aquilo o quê?
- "Fique no meio, minha filha". Fique no meio do quê?
- Não é pra ela ficar no meio de nada. Muito pelo contrário. Era para ela não ser a
última, entende?
E eu expliquei aquele negócio de que os últimos se perdem e os primeiros arriscam-se
muito. Minha esposa insistiu.
- Não sei não. Se eu não entendi, ela também não entendeu. "Ficar no meio"... Onde
já se viu? Que conselho mais esdrúxulo.
Ora bolas. Foi um dos primeiros conselhos que dei na minha vida. Me pareceu muito
bom ali, na hora. Agora já foi. Pronto. Mas, por via das dúvidas, vou dar uma ligadinha
hoje à noite, para ver como é que eles chegaram de viagem.
Se minha filha não entendeu direito o tal conselho, vai saber no meio do quê essa
menina é capaz de se meter naquela cidade...Campinas anda muito violenta.
Comparativamente, até mais que o Rio de Janeiro. Ou São Paulo.
Mas acho que já falei sobre isso.



                               Aviões de papel
                                    31/12/1997
Correio Popular, Campinas
Nosso aviãozinho de papel descia, desenhando círculos no céu de Campinas, até
pousar macio, na calçada em frente ao prédio. Meu irmão e eu fixamos os olhos na
rua e olhamos para meu pai, que corrigia as provas submetidas aos alunos do
segundo ano do Colégio Notre Dame. Perguntamos se podíamos descer um pouco, -
Para pegar o avião... Fazia calor e alguns colegas estavam batendo bola, com o
portão do Orozimbo Maia fazendo as vezes do gol. - É claro, disse meu pai, sem
desviar muito a atenção das correções. - Só não se atrasem para o jantar... Nós dois,
garotos nem próximos da adolescência (essas coisas aconteciam mais tarde naquela
época), descíamos as escadas apostando para ver quem chegava primeiro. O porteiro
do prédio ria quando chegávamos ao térreo e simulava uma dura: - Sem algazarra,
molecada... O fim da tarde era uma gritaria de moleques apelidando os gordos de
gordo-pipa, os de óculos de quatro-olhos e os menores de café-com-leite. Os gols no
portão de madeira do Grupo Escolar ecoavam na esquina como pancadas de martelo.
A bola de capotão era dura e o dono dela nunca saia do time. Os medos se
restringiam aos carros, que passavam devagar, às vezes silenciosamente, se
desviando do jogo, como que para não atrapalhar, outras vezes buzinando, talvez com
receio de que suas DKV’s tivessem a lataria avariada. O jogo terminava quando,
literalmente, não conseguíamos mais ver a bola. A noite já vinha alta e nossos
estômagos já nos alertavam do novo atraso para o jantar. Muito tempo depois
saberíamos que nossa mãe só preparava realmente nossos pratos depois do
anoitecer, já prevendo o atraso.
O que estou querendo dizer com tudo isso é que nessa esquina agora, quase trinta
anos depois, ainda existe o Orozinbo Maia, com novas cores e novo portão, mas ele
ainda está lá. O prédio da minha mãe também, embora o térreo tenha sido alugado
para diversas lojas e os bares em volta quase não nos deixarem achar a entrada. O
porteiro já não nos cumprimenta. Nos olha, desconfiado, todos os anos quando vamos
visitar nossos pais no natal, por que todos os anos é um novo porteiro que está lá,
sentado e com a mesma cara de sono. Mas não existem mais crianças. Nostalgia?
Não, não estou com nostalgia. Estou fazendo uma constatação. Por volta das oito
horas da noite as pessoas se trancam. Com seus computadores, com suas televisões,
com suas mulheres, com seus livros, mas trancadas. Os meninos ainda devem soltar
seus aviõezinhos. O voar ainda é mágico. Só que eles devem olhar pelas janelas e
para o local de pouso de seu jato supersônico de papel e imaginar o quão distante
aquela calçada fica dele. Os meninos olham para os seus pais e sequer tentam pedir
para descer um pouco, encontrar os colegas. Primeiro: não existem mais colegas.
Segundo: não existe mais a certeza de que voltarão atrasados para o jantar por que
ficaram se apelidando uns aos outros. Talvez o atraso signifique que não voltarão
mais.
Há alguns anos, quando minha filha completou o primeiro aniversário, tive que fazer
uma escolha: ou ficar em Campinas, seguindo assim uma recém iniciada carreira na
publicidade e esperar minha formatura na faculdade de jornalismo da PUCC ou me
mudar para o interior, onde meu cunhado me convidava para uma sociedade numa
pizzaria. Escolhendo a segunda opção, depois de alguns anos, me via angustiado.
Nenhum de meus sonhos profissionais estava sequer próximo de se realizar. A vida
por aqui, interiorzão, é pacata. O jornalista melhor remunerado é o responsável pelas
colunas sociais. A publicidade engatinha e os carros com alto-falante ainda são uma
das melhores opções na área. Só a tranquilidade de ver minha filha de doze anos indo
sozinha para a escola me dá a certeza de ter feito a escolha certa.
O que é que vocês deixaram acontecer com minha cidade, esses anos todos que a
deixei em suas mãos? Me lembro que, certa vez, me disseram que Campinas era uma
cidade modelo. Confundi o "modelo" - no caso sendo usado como "padrão; similar aos
níveis sociais e econômicos do restante do país" - ao "modelo" significando "exemplo
a se seguir". Tenho até hoje comigo que o segundo "modelo" era também aplicável.
Mas hoje em dia já não se pode abrir o jornal sem receber notícias tétricas de minha
terrinha. Assaltos nem são noticiados mais. São casos de assassinatos, sequestros,
balas perdidas e sei lá mais o quê. Outro dia o "Correio Popular" publicou, em primeira
página, a notícia do lançamento de um livro que pregava o revide armado aos
assaltos. Campinas cresceu? Campinas já era grande na minha época. Com bairros
que eram e são maiores que a cidade onde hoje moro. Mas não é mais um exemplo a
seguir.
Gilberto Dimenstein escreve sempre de Nova York, relatando as experiências do
prefeito daquela cidade americana no combate ao crime. Enquanto isso os prefeitos
de Campinas sonham com o cargo de deputado federal ou de, quiçá, governador. Os
universitários, onde estão os universitários? Escondidos também? Que tal se as
faculdades de arquitetura (ou direito ou jornalismo) dessem, como provas finais,
tentativas de soluções para Campinas, e não projetos aleatórios? Projetos específicos
para a terra que está formando esses alunos, numa espécie de retribuição.
O que eu sei é que daqui de Votuporanga (pertinho de Rio Preto) eu fico assistindo
Campinas se desmanchar e olho para minha filha saindo, dizendo que volta para o
jantar. Eu sei que ela vai se atrasar, mas não ficarei preocupado. Ela estará com as
amigas, e o filho do dono da sorveteria estava de paquera, - você entende, né pai?
Entendo, filha. E entendo que há alguns anos atrás fiz uma das melhores escolhas
que um pai poderia ter feito. Escolhi que minha filha teria liberdade, e isso Campinas já
não pode oferecer. É uma pena. Provavelmente fiz parte de uma das últimas gerações
que conheceram Campinas a pé, e não trancado num carro, com os vidros levantados,
sufocado porque esse maldito carro não tem ar-condicionado.



                                  Nós e a Xuxa
                             16 de dezembro de 1997
                                Diário de Votuporanga

Vamos por partes. Digamos que sua filha (supondo que tenha uma) chegue hoje à
noite em casa, com uma expressão de pura felicidade. Ela chega e, por conhecê-la,
você sabe que tem notícias. Boas notícias. Você pergunta o que foi e ela faz charme.
Você ri por dentro da brincadeira. Faz o jogo. Finge-se de curioso (não que não
esteja). Após falsos "nem ligo", convence a menina a lhe contar.
- Eu estou grávida. De um mês!!!
Ok. Você é um pai liberal e o mundo não vai desabar por causa disso. Sua menina
sabe o que está fazendo.
Não? Você não é um pai liberal? E o mundo vai desabar. Não se preocupe. Com o
tempo as coisas se consertam. Experiência própria.
Bem, em qualquer uma das hipóteses você gostaria de saber de quem. Ou não?
- Bem, pai... É do "fulano". Sabe? Aquele que veio aqui, naquele dia.
Que dia, meu deus? Que dia foi esse que o "fulano" veio aqui e eu nem prestei
atenção... E vocês vão se casar?
- Que é isso pai? A gente nem se conhece direito... O que importa é que eu terei meu
filho. E você vai ser avô e ele vai ter um monte de tios e tias.
O pai liberal, o que acha? Acha que tudo bem, sua filha já está pensando por si. Vai
tentar ajudá-la. Não vai? E o outro pai, o durão? Descabelar-se não adiantará muito.
Vai acabar aceitando as coisas. Ou não?
O problema não está nem nos pais nem nas filhas nem em ninguém. O problema é a
indiferença com a qual a sociedade trata situações absurdas. A sociedade brasileira é,
teoricamente, católica apostólica romana. A religião oficial do país é essa. Essa
religião proíbe a convivência conjugal de dois seres se não estiverem ligados pelos
"sagrados laços do matrimônio". É um dos sete sacramentos. Um dogma indiscutível.
Indiscutível? Pois pergunte à "sua" empregada doméstica se ela é casada. É? Pois
oitenta por cento delas não são. E todas se dizem católicas. Ou quase todas. Pergunte
por aí, para as pessoas de renda um pouco mais baixa que a sua. A sociedade
resolveu a seu modo que esse não era um sacramento tão necessário assim. Você se
espanta. Mas você fica com os olhos lacrimejados no seu domingo a tarde, quando a
Xuxa Meneguel avisa que, enfim, conseguiu engravidar. E nós todos somos tios e tias.
Há um certo burburinho na sala. O rapaz escolhido para pai é elegante e seu par de
óculos dá um certo ar responsável. É um belo rapaz. Agora, esperem... Nossa filhas
cresceram tendo a Xuxa como exemplo. Toda uma geração que tem, agora, por volta
de dezesseis anos. Uma bela idade. Não é?
Eu não me atrevo a dizer que, com todo meu liberalismo, talvez não sinta uma
fisgadinha doída se um dia acontecer um diálogo parecido ao descrito nos primeiros
parágrafos desse texto. Mas, em todo caso, nada que me abalasse a ponto de deixar
de tomar meu café da manhã no dia seguinte. E nunca gostei muito da Xuxa e seus
programas matutinos. O grande problema reside no outro tipo de pai. Naquele que
ainda cultiva uma rigidez completamente fora de tempo. Esses mesmos pais adoram o
tipo "boa moça" que a Xuxa e toda sua equipe tentam enfiar-nos goela abaixo a tantos
anos. Esses pais agora aplaudem e parabenizam a moça que lhes anuncia em festa
exatamente aquilo que , caso acontecesse com suas filhas, tanto abominariam. Esses
pais deixam suas crianças na frente da TV assistindo mulheres agarrando-se numa
banheira.
Aos pais liberais, nada de anormal. A sociedade tendia a isso mesmo. Minha filha
cresceu assistindo, além da Xuxa, o "Rá-Tim-Bum" da Cultura, por exemplo. Ela
conhece os dois lados.
Aos pais "durões", que achavam uma gracinha quando sua filha aparecia vestida de
mini-saia e com "xuquinhas" no cabelo, e a mostrava aos vizinhos, ah esses pais...
Talvez elas já não queiram brincar com bonecas. E você ainda não aprendeu a
conversar com ela.



               História de uma quarta-feira de cinzas
                              03 de março de 1998
Aquela fila enorme e meu tio, lá na frente, em vez de colocar na boca das pessoas
uma hóstia, enfiava seu polegar direito dentro de um cálice e o retirava de lá sujo de
alguma coisa indefinida. Com essa coisa, marcava a testa das pessoas com uma cruz.
Meu tio era padre em Agudos, perto de Bauru, e eu tinha uns dez anos. Era lá em
Agudos que passávamos a maioria dos feriados. As famílias de minha mãe e de meu
pai eram de lá. Eu estava começando a ligar o nome da quarta-feira pós carnaval com
seu nome: "de cinzas".
"- Pai, o que é aquilo que o tio padre está fazendo nas pessoas?"- perguntei, enquanto
nossa vez não chegava.
"- Está perdoando as pessoas pelos pecados do carnaval."
"- Carnaval é pecado, pai?"
"- Olha para frente e vê se para de falar..."
Na minha vez meu tio sorriu, fez a tal cruz e balbuciou alguma coisa em latim. Eu
espionei dentro do cálice e, para mim, aquilo parecia mais um cinzeiro. Minha primeira
reação, ao voltar ao banco da igreja, foi a de passar a mão na testa, para tentar tirar
aquela marca. Meu pai segurou minha mão e disse que de maneira nenhuma
podíamos tirar aquela marca. Era pecado.
"- Que nem morder hóstia, pai?"
"- Que nem..."- meu pai respondeu, num resmungo.
À noite, na cama, a tal cruz começou a coçar. Com o passar do tempo, aquilo tornou-
se um suplício. Meus olhos lacrimejavam mas resisti bravamente. Eu não dormi aquela
noite. E não encostei na minha testa. Porém, ao me levantar de manhã e ir até o
espelho do banheiro, a cruz não estava mais lá.
"- É assim mesmo, filho. A cruz some sozinha para mostrar que a gente não tem mais
pecados." - meu pai me disse, sorrindo.
Vinte e seis anos depois, ateu convicto, fico pensando naquela cruz. E te falo uma
coisa: eu não limpei minha testa naquela noite. Juro por deus.


                                     De saias
                              12 de março de 1998
Enquanto conversávamos, eu percebia que o suor escorria de sua testa. A gotícula ia
crescendo, conforme descia pelas têmporas. Ao chegar à altura do pescoço, já havia
se unido a uma espécie de riacho que descia do rosto e desembocava na gola da
camiseta ensopada. Aquilo foi me agoniando, e aquele calor infernal parecia tomar o
ar de meus pulmões. Eu já não conseguia compreender as palavras que saiam de sua
boca e ele continuava a falar e a falar e aquele calor. Opinei, em vão, para que
saíssemos, ao menos, de baixo do sol. Eu olhava para cima (à essa altura a voz do
rapaz era apenas um blá-blá-blá interminável) e o sol ardia. Aí, interrompendo sei lá
qual assunto, falei:
- Eu te digo uma coisa. Eu não me lembro de ter passado tanto calor assim na vida...
Ele concordou. Estou em Votuporanga já há anos e realmente essa vez está de
amargar. Os dias estão modorrentos e nós nem sabemos se, ao sair do trabalho,
queremos ir para uma lanchonete tomar a "fresca" ou ir direto para casa, tomar um
banho, deitar debaixo do ventilador e ficar torcendo por uma daquelas chuvinhas de
verão que estão caindo nos fins de tarde.
Foi aí que ela passou. Uma moça, seus vinte e poucos anos, numa saia esvoaçante,
daquele tecido que parece seda, como é o nome daquele tecido? Bom, a moça
passou e deixou no ar aquele perfume de shampoo que as garotas costumam deixar
quando acabaram de sair de um banho. Ao ser brindada por uma pequena brisa, a
garota segurou levemente sua saia de (como é que chama aquele tecido?) seda e
sorriu.
- Ela não parece estar ligando para o calor... - meu companheiro disse.
É. Não parecia. Não havia sinais de suor, muito pelo contrário. Ela parecia estar
gostando daquele sol infernal.
- É a saia - falei.
- O quê?
- É a saia. Usando saias, nós também não estaríamos assim, com tanto calor -
respondi, olhando nossas grossas calças jeans - Agora me responda: Por que é que
só as mulheres podem usar saias? Eu te falo uma coisa, eu já li uma vez que em 1956
um cara até famoso, o Flávio de Carvalho, saiu andando pelas ruas de São Paulo de
saias. E ele era um homem de quase dois metros de altura e famoso na época. Era
arquiteto e participou até da Semana de Arte Moderna. Ele ficou com calor, usou
saias.
- E aí?
- E aí que eu vou comprar umas saias. Cansei do calor, eu não consigo pensar direito
com esse calor todo. Está resolvido, vou comprar saias é agora mesmo. Mini-saias!!!
E saí, deixando meu companheiro boquiaberto. Lógicamente não comprei saia
nenhuma, mas pelo menos não tive mais que ficar ouvindo a conversa daquele fulano.
Quando cheguei em casa, tirei a camiseta e me joguei no sofá. Minha esposa se
chegou e perguntou como é que eu estava. Eu respondi com uma pergunta:
- Como é que se chama aquele tecido que se parece com seda? Aquele,
enrugadinho...




                                 Caminhadas
                              15 de março de 1998

- Pois eu, logo que acordo, vou fazer uma caminhada...
Meu deus, pensei. Outro desses. Agora ele vai querer me convencer a fazer o mesmo.
É só esperar..."- E você? Não faz uma caminhada de manhã?"
- Não. Não faço.
Aí ele começou com aquele papo. Que era uma coisa que tinha mudado a vida dele.
Que ele se sentia muito mais disposto no decorrer do dia, com vontade de trabalhar.
Essas coisas. Que, além de tudo, sua saúde melhorara sensivelmente. Estava se
sentindo saudável, diminuiu o cigarro. Até a bebida diminuiu. Parabenizei-o. São
coisas realmente difíceis de se conseguir. E veja só, apenas com uma caminhada
diária..."- E não é só isso... - animou-se, puxando-me para mais perto, quase
fofocando - Até as mulheres começaram a me olhar de outra maneira. Mais sensuais,
entende?"
É. Tinha lógica. Provavelmente ele deve ter perdido uns quilinhos. E, se diminuiu a
bebida e os cigarros, sua conversa deve ter melhorado um pouco. E seu hálito.
- Você não quer começar a fazer essa caminhada comigo? É só uma hora por dia...
Não dói.
Eu sabia. Demorou até mais que imaginei. Argumentei que não estava precisando.
Estava até me sentindo meio magro. Me sinto tão disposto a trabalhar quanto qualquer
um. E já não bebo há alguns anos. Recomendações médicas... Mas meus
argumentos, pelo visto, foram insuficientes.
- Mas não é só isso. O gostoso da coisa toda é ir olhando a cidade, as ruas vazias, o
céu. É um horário gostoso, não temos o que fazer naquela hora e meia. Ficamos com
o tempo livre para observarmos melhor as coisas, sem pressa...
É. Ele agora estava com uma boa argumentação. Falou da vez em que viu umas
nuvens e ficou, a caminhada inteira, seguindo-as com o olhar e percebendo como se
transformavam. E da vez que viu um pássaro grande, parecia uma siriema, ali no
centro, perto da concha acústica. Falou também do bêbado que ele encontrava todos
os dias, voltando para casa, e que eles se cumprimentavam ao se cruzarem, quase
sempre na mesma esquina. Era um bêbado pontual, ele riu. E disse para mim que
aquilo era uma espécie de terapia. Eu tinha que experimentar.
Para te falar a verdade eu ando meio "estressado". Quem não anda? Aquelas últimas
idéias me soaram até que bem. Uma hora e meia, só para a gente mesmo. Não é todo
mundo que tem uma hora e meia no dia para organizar melhor os pensamentos.
- Até onde? - perguntei.
- Até onde o que?
- Até onde você caminha?
- Às vezes até o Pozzobon, às vezes até mais...
Ele morava perto da CESP. Caminhava até o Pozzobon. Era longe. Às vezes mais
longe ainda. Respondi que ia pensar. Mas, para ser sincero, estava precisando desse
tempo diário para relaxar.
Acordei disposto. Coloquei uma roupa leve. O despertador havia feito sua parte e me
acordou uma hora e meia antes. Ainda amanhecia. Beijei minha esposa, ainda
dormindo. Saí sem muito barulho. Parti por uma dessas vicinais de terra. Parei à beira
de um pasto.
Desci do carro e fiquei olhando as nuvens e os pássaros. Suspirei:
- Uma hora e meia, só para mim...




                             Um sonho de valsa
                              31 de março de 1998

Outro dia desses eu li, não me lembro onde: mediram as ondas elétricas que nosso
cérebro emite quando a pessoa amada está em nossa presença. A pessoa amada,
veja bem. Não a pessoa pela qual temos alguma atração sexual. Aquela pessoa pela
qual suspiramos de vez em quando, até hoje, mesmo depois de tanto tempo juntos.
Aquela pessoa, sabe? Você sabe quem é. Todos sabemos. Eu tenho guardada a
reportagem em algum lugar, junto àqueles livros empoeirados no quartinho lá no fundo
de casa. Se alguém quiser saber mais, me procure. Eu não vou procurar agora. Mas lá
na reportagem tinha os nomes das tais ondas, captadas por eletrodos colados na
cabeça de uns fulanos e impressas naqueles gráficos que ficam rabiscadinhos, com
altos e baixos, sabe? aparece muito naqueles filmes de hospital, quando o paciente
está tendo um ataque cardíaco ou algo assim.
O que estou querendo dizer é que conseguiram medir o "amor". Vejam vocês... Eles
mediram outras coisas também. A raiva. A tristeza. Coisas assim. E cada sentimento
com seu gráfico particular, cada um bem diferente um do outro.
Volto a insistir que tudo isso é científico. Provado e tudo. Saiu numa dessa revistas
européias especializadas em publicar estudos avançados.
Bem, vamos à parte boa da coisa toda. Um dos pacientes comeu um chocolate. O
chocolate, a marca, não foi especificado. Pode ser um diamante negro ou um
prestígio. Sei lá. Pois mediram as ondas que o cérebro do homem emitia ao degustar
um chocolate. E imprimiram um gráfico. Resultado: igualzinho ao gráfico do amor. O
ser humano, ao ingerir um chocolate, emite ondas cerebrais idênticas às que emite
quando na presença de sua paixão.
Há algum tempo atrás já haviam descoberto que o chocolate possui em sua fórmula
alguns dos componentes ativos da cannabis. Cannabis, meu caro, se você não sabe,
é a tal da maconha. Agora descobrem que o chocolate e o amor são mais ou menos a
mesma coisa para o cérebro.
Se houve Adão, se houve Eva, se houve serpente, talvez não uma maçã. Talvez o
cacau.
Há algo de perverso nisso tudo. Eu me lembro de minha primeira namorada. Quem
não lembra? E lembro que, na minha cabeça de adolescente, aquela torrente de
sentimentos era algo indecifrável. Um mistério que beirava o caos. Não havia
maneiras de me concentrar em mais nada. As noites mal dormidas eram um martírio.
Me lembro de sentir tremores. Ok, estou exagerando um pouco. Mas as lembranças
que me vêm são exageradas. O chamado do telefone era ao mesmo tempo um alívio
e uma preocupação. As esperas, ah, as esperas... Imaginando se ela viria ao
encontro. Que talvez não devesse ter falado daquele jeito com ela a noite passada.
Que agora ela não viria mais.
De repente, tudo isso esquecido quando a vemos descer do carro e olhar para gente,
sorrindo. Uma sensação de paz e tranquilidade.
Só comparável a ... comer um chocolate?




                                       Juntos
                                02 de abril de 1998
                                     (para Telma)

Estávamos sentados num gramado. Não me lembro das formigas, mas me lembro da
borboleta. Você lembra daquela borboleta? (ela disse que lembrava). Eu lembro que
estava meio calor. Não estava? (ela disse que não, estava até meio frio). Porque é que
estávamos lá mesmo? (ela também não se lembrava, ou se lembrava vagamente). Eu
sei que tinha um cheiro. Não sei se era do seu shampoo. O sabonete ou sei lá, das
flores. Tinha flores, não tinha? (tinha, ela disse). Então era das flores. Aquele cheiro.
Era domingo ou algo assim (não era não, era um dia de semana). Nós estávamos
faltando do emprego? Mas eu nunca faltava de meu emprego (faltou aquela vez).
E depois a gente foi passear lá no bosque. Antes tomamos uma cerveja num barzinho,
não foi? (foi, era um barzinho escuro e o dono colocou uma mesa na calçada e ficou
olhando para a gente, parecia que ele estava com inveja da gente, lembra? você ainda
comentou). Eu não lembrava nada daquilo. Nem da mesa do bar. Mas lembrava
daquele dia. Perfeitamente.
E depois fomos para o bosque (foi). E passeamos naquelas trilhas que o bosque tem,
tudo era meio úmido. Eu lembro agora. Estava meio frio mesmo. Havia até uma certa
neblina. Neblina tinha, não tinha? (não lembro, acho que tinha sim). Tinha sim. Neblina
eu tenho certeza que tinha. E eu lembro que o pavão abriu o leque colorido para você.
E nós dois ficamos olhando para ele e eu comentei que os pavões não precisam de
alucinógenos. Eles tinham um no rabo. E nós rimos. (é, disse ela, rindo). E eu ri
também. Quantos anos depois? Quantos anos já fazem? (uns quatorze, quinze,
menos eu acho, acho que fazem treze anos). É mais ou menos a idade da filha.
Quantos anos está a Gabi mesmo? Treze? (doze, ela falou).
Doze anos. Veja você... Mas ela está para fazer aniversário. São quase treze anos (é).
Eu lembro que eu ia para a praça pedir diretas-já (é mesmo! tinha aquelas passeatas e
tudo). É, tinha. E aquelas rosas amarelas que a gente andava na lapela. Lembra
quando fomos votar de branco. Era o símbolo da campanha do Suplicy. Era para
senador? (deputado? não, era senador mesmo, fomos nós três, você, a Gabi e eu). A
Gabriela já tinha nascido? (tinha, estava aprendendo a andar, ela foi de branco
também). E hoje o Lula quer fazer acordo com o Quércia... Veja só, como o tempo
passa (é). Ainda teve a vez do "fora-Collor", lembra? (lembro, mas isso já é bem mais
recente). É. E eu pendurei uma bandeira preta na frente da padaria. Para protestar,
lembra? (lembro). E quando o Collor caiu, de gozação, eu mandei imprimir na gráfica
uns panfletinhos escritos "fora-Itamar" (é, e meu pai ficou bem bravo com você). Foi
mesmo. E nós rimos de novo.
Quatorze anos. Às vezes eu achava que não ia durar (eu também, lembra aquela
menina que morava comigo? dizia que não ia durar e eu ficava encanada). Eu lembro
dela. Como ela se chamava mesmo? (nem lembro).
Ficamos em silêncio uns minutos. Aí a Elba Ramalho cantou a última frase da música.
"Pavão Misterioso", sabe?
...não temas, minha donzela, nossa sorte nessa guerra...
Pouco depois fomos dormir. É bom não estar sozinho.




                               Conversa franca
                               14 de abril de 1998
- Pai, a gente precisa voltar...
- Porquê?
- Esqueci uma coisa. Já tinha esquecido ontem. Hoje tenho que levar.
Fiquei olhando para a escola. Todas as crianças entrando e os pais indo embora. E
minha filha tinha esquecido uma coisa.
- Que coisa?
- Um negócio lá, para a aula de arte.
Aula de arte. O que será que essas professoras dão numa aula de arte? Essas
pinturas modernas, nem precisa muita técnica. E para um trabalho escolar sempre tem
aqueles arquivos no computador, com uns desenhinhos. Não precisa nem saber
desenhar mais. Olhei no relógio. Dava tempo de voltar para casa, pegar a tal coisa e
voltar. Com folga.
- Mas é importante mesmo?
- É, pai. Vamos, se não não vai dar tempo.
Engatei primeira e saí. Bravo. Não sei também por que fiquei bravo. Não tinha nada
para fazer até lá pelas oito da manhã. Em vez de ficar em casa vendo aqueles
desenhos animados idiotas, ficaria um pouco mais com minha filha. Bater um papo...
- E as coisas, filha? Como vão?
- Ahn ?
- As coisas, filha...Como vão indo para você?
- Ahn...Bem., eu acho. Que coisas?
Que coisas? Boa pergunta. O que é que eu posso perguntar para uma garota de doze
anos? Posso perguntar como é que ela vai na escola. Ou se ela já arrumou algum
paquera. É isso.
- E então? Como é que vão as coisas na escola? Já arrumou algum paquera?
- É...Tem um carinha, mas não é nada não...
- Ah...
Aí, idiota. Ela tem um paquera. E agora? O que é que você fala? Sua filha de doze
anos tem um paquera. Veja só...Ela não é muito nova? Doze anos... Perguntar para
alguém. Se é normal ou não. O que é que eu fazia mesmo com doze anos? Eu não
lembro de uma paquera. Para falar a verdade, eu não me lembro dos meus doze anos.
- Pai, cuidado com o cara aí, da bicicleta...
- Eu estou vendo filha...
Chegamos em casa e ela desceu. Olhei para ela. Uma mocinha. Colocando a chave
na porta, entrando, logo depois saindo, com um embrulho na mão. A coisa. E se fosse
um presente para o tal namorado? Ela esqueceu do aniversário dele ontem, tinha que
levar hoje. É isso.
- Isso aí é o presente do seu namorado, não é? - eu disse, saindo com o carro.
- Que namorado? Pai, é um moleque lá que eu dou umas olhadas. Que nem o
Leonardo de Caprio, acho ele bonitinho, só isso. Não é namorado.
- Então o que é essa coisa?
Estávamos já quase de volta na escola. O trânsito começava a piorar, os pais parando
em fila dupla, crianças atravessando. Minha filha olhou para mim e riu, mas começou a
desembrulhar o presente do namorado. Chegamos à entrada da escola e ela me
mostrou: uma caixa de giz de cera.
- É para a aula de artes, pai...Tchau.
Eu fui embora mais devagar que o de costume. Pensando no dia que ela nasceu,
naquele dia que ela foi atropelada e eu desmaiei de susto e nem consegui ajudar, na
primeira vez que ela viu o mar. E agora, veja só...Minha filha está namorando...
- E namorando um artista...- pensei, resignado - Um artista...




                    Viagra: Desenterrando Maristela
                                14 de maio de 1998
Já era pai de família. Três filhos: duas meninas mais velhas e um garoto de quinze
anos. Não precisava provar mais nada para ninguém. Nem para a esposa, que estava
muito satisfeita, obrigado. O problema era com ele mesmo. Tentava não pensar no
assunto mas, todas as vezes que via a notícia no jornal ou na televisão, a maldita idéia
voltava a perturbar. Ficou esperando o tal do remédio ser liberado para o Brasil. As
pessoas estavam mandando importar, não ia demorar muito. Leu no jornal que a
Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária estava tentando, junto à empresa
fabricante, a antecipação da comercialização do produto. Na mesma reportagem havia
uma descrição aproximada do comprimido: um lozangozinho azul. Chegava em casa à
noite, cansado, e ia dormir. Não queria pensar no assunto mas, em seus sonhos, o
maldito comprimido surgia. Aparecia como um balão, às vezes. Flutuando e azul. Em
outras aparecia como uma estrela no céu.
Numa dessas noites tentou manter uma relação sexual com a esposa e não
conseguiu. Nunca mais havia acontecido. Nem com a esposa nem com qualquer
outra. Desde aquele dia, há trinta anos atrás. Ele tinha quinze. Dois amigos mais
velhos resolveram ir na zona. Perguntaram se ele queria ir. Não podia dizer que não, o
que iriam dizer? Foi. Os amigos tomaram umas cervejas e ele tomou também. Aí os
amigos começaram a brincar com ele, dizendo que era virgem. Ora, se ele era, se ele
não era, ninguém tinha nada com isso. O que não podia aguentar era aquela gozação.
Disse que não era. Então os amigos pagaram um mulher adiantado. A filha da dona.
Ele estava meio bêbado, não lembra direito o que aconteceu depois. Lembra que
foram para o quarto e ele não conseguiu nada. Perguntou quanto eles tinham pago
para ela. Maristela disse. Ela se chamava Maristela. Ele pagou o dobro para ela não
falar. Que ele não tinha conseguido, entende?
E nunca mais conseguiu esquecer aquele dia. Ficou incrustado assim, na sua cabeça.
O dia, o nome da prostituta e a casa em que estavam. E agora lançam esse
comprimido que causa a ereção uma hora depois de ingerido. Uma maravilha. Só que
inventada trinta anos atrasada.
O Viagra, enfim, chega ao Brasil. Não é barato. Vai até à farmácia e compra uma
cartela. Não precisa de mais que uma. Doze comprimidos. Viagra. É um nome danado
para um remédio para...para isso. Parece ser de uma coisa, sei lá, ilegal.
Pega o ônibus no dia seguinte e, em vez de ir para o emprego, vai até aquele bairro.
Se lembrava mais ou menos. Ela ainda deve trabalhar por lá. Essas mulheres não
mudam de vida. E ela era filha da dona. Maristela. No trajeto tomou um comprimido.
Uma hora, dizia a bula. Uma hora e faria efeito. Continuou lendo. Informações ao
paciente: Cuidado, pode causar priapismo. O que diabo seria priapismo? Parou de ler.
Não ia querer ficar preocupado. Não hoje. O ônibus chegou. Fim da linha, estavam
quase fora da cidade. Era ali mesmo. Sabia o caminho de cor. Sonhou quantas vezes
esses anos todos. Achou a casa. Entrou. Algumas mulheres na sala. Não estavam
acostumadas com fregueses assim, de manhã. Perguntou se alguém conhecia a
Maristela. - A filha da dona. As mulheres se olharam e disseram que sim, conheciam a
Maristela. Uma delas se levantou e disse que iria chamá-la. Talvez demorasse um
pouco. Ele se sentou e pediu um copo de água. Tomou mais dois Viagra. O que será
priapismo? Quinze minutos, meia hora. Sentiu que estava ficando excitado. Muito
excitado. Quarenta minutos, entra no recinto uma senhora, seus sessenta, sessenta e
poucos anos:
- Pois não. O senhor queria me ver?
Trinta anos. Como você foi estúpido. - Desculpe, não. Quer dizer, foi um engano.
Obrigado. Bom...ãhm...trabalho. Bom dia para todas. E foi embora. Com uma senhora
ereção e a sensação que estava velho. Mais velho que a Maristela.
- Eu estou é ficando gagá... - e riu sozinho, no ônibus, voltando para casa. Para sua
mulher e seus três filhos. Duas meninas e um garoto. De quinze anos.
obs: priamismo é uma ereção descontrolada e constante. O Viagra ainda não tinha
sido liberado no Brasil.




                                  Quanto foi?
                               11 de junho de 1998
Era um velório. O que é que se podia fazer? Há um defunto, há um velório. Mesmo os
mais chegados, os que realmente sentiam alguma coisa mais forte pelo defunto,
sabiam. Dia errado. Já se esperava algum constrangimento. Os médicos disseram
para enterrá-lo logo depois do meio-dia. Eles se entreolharam e, constrangidos,
aceitaram. Mas não dava. Jogo da seleção. Abertura da Copa. Quando informavam o
horário do enterro para os amigos, diziam: - Depois das duas, lá pelas três da tarde.
Era uma boa hora. Haveria tempo para as pessoas colocarem seus humores nos
devidos lugares. Lá pelas onze só restavam os filhos. Nem os primos que vieram lá do
Rio de Janeiro ficaram. Mas era compreensível. Não havia clima. O filho mais novo
quase foi com um dos primos cariocas. Disse que era preciso alguém para fazer sala
para as visitas. A irmã e o irmão mais velho fuzilaram olhares. Ele desistiu da idéia e
sentou-se, mal disfarçando o mau humor. Lá pelo meio-dia começaram a pipocar os
rojões. Primeiro tímidos, depois ensurdecedores. Os três irmãos se entreolharam. Já
tinham conversado sobre isso. Era esperado. Ficariam calmos, não havia o que fazer.
Quietos, deixaram os minutos passarem. Meio-dia e meia. O silêncio do velório só era
cortado pelo barulho do isqueiro, acendendo mais um cigarro do filho mais novo, e
pelos suspiros da irmã. A cada suspiro da irmã os dois irmãos se revolviam nas
cadeiras de madeira. Olhavam para ela e se sentiam culpados. O pai ali, morto, e seus
pensamentos voltados para coisas tão...tão...mundanas... Ouviram rojões novamente.
Os dois irmãos se olharam. O mais velho se levantou e sentou-se próximo ao mais
novo:
- O que é que você acha?
- O que eu acho do quê?
- Ora, você sabe, os rojões...
O mais novo disfarçou um sorriso. - Não sei. Com a Argentina eu ouvi uns rojões. Têm
uns caras que quando o Brasil joga mal, torcem para o outro, de sacanagem. O mais
velho se levantou. Pediu um cigarro para o mais novo e foi até a entrada do velório.
Ninguém. Absolutamente ninguém. - Podia ter um barzinho aqui por perto, nem isso. A
irmã suspirou, trazendo-o de volta. Olhou para o pai, ali no caixão. Acendeu o cigarro.
Estava parando de fumar, mas não hoje. Voltou a se sentar com o irmão. Repararam
na irmã. O olhar perdido. De vez em quando um suspiro. Invejavam a sua integridade
naquele momento desconfortável. Os amigos com desculpas esfarrapadas
abandonaram o velório. E ela suportando tudo, firme. Certo, o pai já vinha doente. Já
estavam conformados há tempos. Mas nada que desculpasse estarem alheios ao
momento fúnebre. A irmã não. Ela demonstrava sua dor. De vez em quando, lágrimas
rolavam de seus olhos. E suspiros. Passaram-se mais alguns incontáveis minutos e
um senhor, velho amigo de seu pai, entra pela porta do velório. Os três, quase que
surpresos, encaram o homem. Ele se dirige à moça. A abraça e lhe dá os pêsames.
Depois vem em direção a eles.
- Pergunta para ele, o mais novo fala, ao ouvido do irmão.
- Pergunta o quê?
- Quanto está o jogo, ué...O que é que você acha?
- Pergunta você... Onde é que já se viu?
Nenhum dos dois perguntou. O velho ficou mais alguns momentos, rezou um pouco.
Ou, pelo menos, fez o sinal da cruz. E saiu. Os dois se enervaram um com o outro. O
mais velho sentou-se do outro lado da sala. - Perguntar quanto está o jogo... Com o
pai ali, morto...
Uma hora ou duas depois, os amigos começaram a voltar. O jogo tinha terminado.
Eles aguentaram até agora. Não perguntariam para ninguém, até enterrarem o pai.
Agora era questão de honra.
Pai enterrado, se despediram de todos. Subiram no carro. O irmão mais velho de
motorista, a irmã ao lado, o mais novo atrás.
- O que é isso na sua orelha? - o mais novo perguntou para a irmã, apontado um
pequeno volume que lhe saltava do ouvido.
- O quê? Isso? É...É...para surdez. Eu não ando escutando muito bem...
O irmão puxou da orelha dela: um radinho AM/FM. Do Paraguai.




                                A luta continua
                               02 de julho de 1998
Ela começou a falar e falar. Falar que as coisas não podiam ficar do jeito que estão. -
Você entende?, ela perguntava. Eu com a cabeça dizia que sim. Ela continuava. Dizia
que seria muito mais fácil se as pessoas dividissem as coisas, se houvesse uma
espécie de teto para os salários.
- Por que a gente precisa tanto do lixeiro quanto do médico, não precisa?
Eu respondia que sim. É claro. Tanto do médico quanto do lixeiro.
- Ou dos advogados, eu disse.
- É isso. Você está pegando a idéia.
E dizia que ninguém podia viver assim, fingindo que não via. Que era hora de se unir.
As pessoas precisam de mais espírito de luta. Os estudantes têm esse espírito de luta.
- E os intelectuais têm o respeito da sociedade... Têm que se unir, criar um
movimento, sei lá...
Eu me levantei e fui tomar um café. Falei para ela esperar um pouco, eu ia até ali fora,
fumar um cigarro. Eu não gostava de fumar em ambientes fechados. Ainda mais com
uma criança de dezesseis anos por perto. Ela me disse que podia fumar. Ela mesma
já havia dado uns tragos. Não achou graça, mas cada um podia fazer o que bem
entendesse na vida. Era mais uma coisa que ficava martelando a cabeça dela. Por
que é que as pessoas interferiam tanto na vida umas das outras. Será que não podiam
tomar conta das próprias vidas? Por ela, liberavam tudo.
- Drogas, tudo...
Ela vinha me seguindo, lá para fora. Chegamos na varanda e eu acendi meu cigarro.
Dei um trago comprido, tentando parecer pensativo. Olhei para ela e perguntei:
- E de que maneira você pretende implantar essas suas idéias?
Ela me disse que já tinha uma porção de amigos, que se reuniam toda semana. Que
eles faziam até planos. Precisavam fazer panfletos, espalhar a idéia. Por que não era
uma idéia regional. Era uma coisa que poderia se transformar numa bola de neve. -
Quem é que não quer igualdade? Todo mundo quer igualdade. Até as religiões
querem a igualdade. Embora as religiões também sirvam para amansar a população,
mas essa é outra história. O que estou querendo dizer é que para difundir as idéias é
preciso dinheiro. Para tudo precisa dinheiro. E dinheiro só os que não querem
mudanças têm. Então (nesse ponto ela olhou em volta e abaixou o tom de voz) nós
achamos que devemos tirar dinheiro na marra. Sequestros, sei lá. Mas só de
banqueiros, esses caras. Tipos Robin Hood, entende?
- Entendo, eu disse, dando outro trago no cigarro e soltando a fumaça pelo nariz.
Ela continuou dizendo que tinha uns amigos que entendiam demais de computador.
Eram hacker's. Explicou que hacker's são caras que entram em outros computadores
pela internet e fazem o que querem. Perguntou se eu nunca tinha ouvido falar neles, já
tinham entrado até nos computadores da CIA. Eu já tinha ouvido falar.
- E o que é que tem os hacher's?, perguntei.
Ela respondeu que os amigos dela poderiam entrar nos computadores do governo,
desativar cobranças de impostos, trocar números de contas bancárias. Instalar o caos.
E aí eles se aproveitariam e...tomariam o poder!!!
- Tomariam o quê?
- O poder! Tomaríamos o poder! Fundaríamos uma sociedade mais justa, onde a
riqueza do país fosse dividida igualitáriamente. Logo outros países veriam que esse é
o único modo possível de viver. Se aliariam a nós, num imenso bloco. Seríamos a
outra face do neo-liberalismo. Você não entende? Eu estou falando do futuro. Um
futuro que, queiramos ou não, vai acontecer. O homem evolui para isso. Seria a
sociedade perfeita!
Eu acabei meu cigarro. Joguei no chão e pisei, esmagando os últimos sinais de brasa
com a ponta do sapato. Sorri.
Ela tinha acabado de inventar o comunismo.
Uma gata
                               14 de julho de 1998
Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando,
continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela
de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava
olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou
uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos
animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São
programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou
a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando
de CD. A música sertaneja invadiu as FM’s. Ele era do tempo em que as FM’s só
tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se
lembrar. E agora...só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela
janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver
uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu
colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha
um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar.
Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas.
Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou
a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV. Eles nem
sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três
lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. A sala estava
lotada. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela
estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes
se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas
na sua barriga. Ela não aguentava cócegas na barriga. Se davam bem.
Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um
pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e
colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava
gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha
uma bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas
maizena.
É o que há.
Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a
gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso
muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como que a
pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores.
Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite.
Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia.
Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava,
acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas
almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios,
garotas loiras de biquini. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia
o filme, depois nem isso. Dormiu.
Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um
tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado.
Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor
de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu.
Ela sempre voltava.
Atenção dona de casa
                              01 de agosto de 1998
"Caminhão carregado com galinhas "Cross" de 2,3 kg está com problemas mecânicos
em frente ao Posto do Villar. Sendo a carga composta de animais vivos, precisamos
vendê-la urgentemente. Os preços estão pela metade do custo...São 5 galinhas
"Cross" por R$5,00 ou 12 por R$10,00 e você ainda leva ovos de brinde. Favor levar
sacos ou sacolas. Somente hoje..."
O rádio estava insistente. Perguntei para a cozinheira, lá do serviço, se era um bom
preço.
- Ótimo preço, sim senhor. Para estar vendendo assim, o dono deve estar em apuros.
Cocei a cabeça. Galinhas vivas. Mas, segundo ela, estava mesmo valendo a pena.
(pena?). O problema seria matá-las. Por que uma coisa é você tirar um frango de
dentro de um saco plástico, destrinchar e colocar dentro de uma panela de pressão e
outra, bem diferente, é você olhar para a cara de uma galinha, e ela ali, olhando para
você. Ela deve olhar para gente, não deve? E aí a gente pah! corta a cabeça dela.
Sangue.
Sangra, não sangra?
- Sangra, confirmou a cozinheira. E bastante.
Então. Não sei se eu dou conta. Um amigo um dia viu uma galinha botar um ovo.
Nunca mais comeu nem omelete.
- Faz o seguinte. O senhor vai lá, compra e trás aqui. Eu mato para o senhor. E limpo.
- Por que limpa? Ela vem suja?
- As penas. Tem que tirar as penas...
Ah é. As penas. Tinha me esquecido das penas. Combinei lá, com ela. Depois do
almoço eu traria as galinhas.
- E você limpa as cinco?
- Doze. Se o senhor não se incomodar, pode trazer doze que eu vou levar umas para
casa, para criar no quintal...São doze por dez, não é?
Era. Doze galinhas por dez reais. E não eram galinhas quaisquer. Galinhas Cross.
- Como é que são as Galinhas Cross?
- São galinhas, como as outras, só que de marca.
De raça, ela devia estar querendo dizer. Quase hora do almoço. Comecei a procurar
por lá uns sacos, ou sacolas. O rapaz pedia no rádio: levar sacos. Entrei na cozinha do
emprego e dei uma procurada. Dentro de um armarinho encontrei um pacote de
Sanito, desses pretos, grandes. Achei que dava. Em vez de ir para casa, almoçar, fui
para o Posto do Villar. Comprar galinhas.
Uma fila enorme. Não deu nem para almoçar. Paguei primeiro e disse que vinha com o
carro até ali. A gente já joga as galinhas para dentro. Melhor, não é?
- É, não se preocupe. E elas estão com as pernas amarradas. Não vão sair por aí,
correndo.
Encostei o carro ao lado do caminhão. O rapaz veio com as galinhas. Peguei os sacos
e comecei a abrir. Cabiam umas três galinhas em cada um. Fomos ajeitando aqui e ali.
- Amarra bem a boca do saco.
O rapaz ria e falava que não era bom, elas poderiam morrer sufocadas. É mesmo.
Galinha respira. Deixamos as bocas dos sacos meio abertas. Paguei os dez reais. Dei
uma última olhada para o caminhão e para as galinhas. O rapaz não ia ter muito
prejuízo. Pelo jeito, ia vender tudo até a tarde.
Cheiro forte. De ração, de galinha, sei lá. Abri as janelas do carro, para ventilar. As
galinhas começaram a cacarejar. Penas começaram a fazer redemoinhos. O carpete,
os bancos, meu cabelo, tudo coberto de penas. Uma delas, acho que com o bico,
rasgou o saco. Começou a bater as asas, achei que ia sair voando. Galinhas voam?
Fechei as janelas.
O incrivel homem de 4 olhos
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O incrivel homem de 4 olhos

  • 1. "Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente, a crônica "não baixa". O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele se pega pela gola e diz - Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica sobre esta cadeira que está aí na sua frente! E que ela seja bem feita e divirta os leitores! - E o negócio sai de qualquer maneira." Vinicius de Morais, em "Para Viver um Grande Amor" Crônicas publicadas no "Diário de Votuporanga" Regime 15 de janeiro de 2000 Minha mulher chegou pisando duro. Entrou em casa escandalosamente e, sem olhar para trás, bateu a porta num estrondo. Foi direto para o quarto. Eu nem me levantei do sofá. Não é bom se intrometer com as mulheres quando elas estão assim. Passados uns dez minutos, a curiosidade venceu. Eu me levantei e fui até o quarto, para ver o que era. Lá estava minha mulher, vestindo uma roupinha colante, que já foi de baile e hoje é usada só nos nossos finais de semana, no rancho. Ela estava de perfil, em frente ao espelho do armário. - Você acha que eu estou gorda, querido? Uma coisa que eu aprendi nesses quinze anos de casado é que, em hipótese alguma, você pode falar que sua esposa engordou. Fale qualquer outra coisa. Desconverse. Comente sobre o tempo. Fale sobre futebol. Mas nunca, absolutamente nunca, responda sim quando ela perguntar se engordou. - E se a gente fosse ao cinema? - Você não me respondeu. Eu perguntei se você acha que eu engordei. - Acho que ainda está passando "Xuxa Requebra". - Eu estou uma baleia, não estou? - No outro está passando um filme do Renato Aragão. Você prefere? Aí ela começou a choramingar. Eu me abracei nela. Comentei que ninguém liga para isso. Depois de tanto tempo juntos, o que um quilinho a mais ou a menos significa? Foi como o rompimento da barreira de uma usina hidrelétrica. Chorou como criança. Mas - e essa foi uma das razões de eu ter me casado com ela - minha companheira é uma mulher decidida. Já no dia seguinte, chegava em casa com um regime sensacional, que ela tinha conseguido não sei onde. Resume-se mais ou menos no seguinte: você come e bebe o que quiser durante cinco dias da semana - só dando uma regulada nos refrigerantes - e, nos dois dias restantes, você só ingere leite e maçãs, também na quantidade que bem entender. Minha esposa chamou a empregada lá de casa (ou secretária, como parece ser moda chamar) e avisou que não precisava mais fazer almoço às segundas e quintas-feiras, dias escolhidos para serem os "Dias das Maçãs e do Leite". A moça até que gostou da
  • 2. idéia. Além de não precisar cozinhar, também estava precisando perder uns quilinhos, adquiridos nas festas de final de ano. Resolveu aderir ao regime. Sei que, desde o começo de janeiro, todos lá em casa, em dois dias da semana, só comemos maçãs e bebemos leite. Sem açúcar. Parecia fácil. No primeiro dia, até que correu tudo bem. Levamos na brincadeira. - E aí? Está conseguindo? - Mas não pode nem café? - Não pode. - Não pode. Agora, já se vão lá três semanas, a coisa parece que está piorando. Outro dia desses, a empregada envesgou os olhos e bambeou as pernas. Achei que ia desmaiar. Demos uma abanada, oferecemos um copo de leite. Ela fez cara de nojo. Não bebeu, mas deu uma reanimada e pediu para ir embora mais cedo. Eu não sei, mas aposto que ela parou no primeiro boteco e comeu uma bola de carne ou uma coxinha. Ou os dois. Eu mesmo, não vou mentir, já estou ficando meio nervoso. Quinta-feira passada, estava caminhando para o emprego quando passei por um desses sorveteiros, de carrinho de empurrar. Fiquei olhando, olhando. Eu ainda não tinha comido nada no dia. Também ando com uma certa ojeriza por leite e por maçãs. O sorveteiro percebeu que eu não tirava o olho dele. Se aproximou e perguntou: - Vai um sorvete? - Hum... Eu... não sei... Ah, que se dane! Vê um de limão. Melhor ainda: de tamarindo. - Desculpa. De fruta acabou. Só tem de LEITE. Eu não vou dizer aqui o que eu mandei o sorveteiro fazer com o sorvete de leite dele. Mas eu te falo uma coisa: ele nunca mais vai deixar faltar sorvete de frutas no carrinho. A idade do lobo 10 de fevereiro de 2000 Acordou com o peito apertado. Sabe quando a gente acorda com o peito apertado? Uma agonia que a gente não sabe bem de onde vem? Então. Se levantou da cama e foi direto para o banheiro. Dava sempre um beijo na esposa antes de se levantar. Naquele dia não deu. - O que foi, querido? - ouviu a esposa gritar do quarto. - Nada - resmungou. - O QUÊ?? - NADA!!! Que coisa... Será que tem de beijar todos os dias? Jogou água no rosto e se olhou no espelho. Pêlos no nariz. Nunca teve pêlos no nariz. Se lembrou do tio Nino, velho italiano, irmão da avó. Impressionava pela quantidade de pêlos no nariz. E nos ouvidos. Dizem que conforme vamos ficando velhos, os pêlos no nariz e nos ouvidos aumentam na mesma proporção em que diminuem os cabelos. Pois o tio Nino era careca. E os pêlos que lhe saíam das narinas e das orelhas eram como... como... de um lobo. Corria na família, inclusive, uma lenda de que eram mesmo. O tio se transformava em lobisomem nas tais noites de lua cheia. É claro que eram histórias contadas para assustar as crianças, e foi exatamente o que aconteceu. Ficou com aquilo na cabeça para o resto da vida. E agora quem estava se transformando em lobisomem era ele. Ali, a olhos vistos. Na frente do espelho. Pêlos saindo pelo ouvido, pelas narinas e, reparando melhor, os das sobrancelhas também estavam meio desarranjados.
  • 3. Não era uma transformação como nos filmes, rápida. Era uma mutação que, provavelmente, iria demorar um pouco mais. Talvez uns anos. Mas que, nesse ritmo, acabaria se transformando num lobisomem, isso não restava dúvidas. - Querida! Sabe onde é que tem uma tesoura? - O QUÊ? - a esposa gritou do quarto. - UMA TESOURA!!! Silêncio. Ouviu a esposa se aproximando pelo corredor. - O que foi, meu bem? - Uma tesoura. Sabe onde é que tem uma tesoura? - Pra quê que você quer uma tesoura? Ele olhou para a esposa. Porque será que as esposas querem saber de tudo? - Os pêlos. Do nariz. Eu quero cortar. - Deixa os pêlos aí. Se ficar cortando, crescem mais fortes. - Olha. Eu não pedi uma opinião. Pedi uma tesoura. - Ííííííííííííííííííí... Está naqueles dias... A mulher saiu de perto, desanimada. O marido andava esquisito já fazia uns dias. Deprimido. Acho que era a idade. Os homens, quando começam a se aproximar dos quarenta, entram em pane. Já não conseguirão ser os gerentes da empresa. Quando não perdem o emprego, já se dão por felizes. Os filhos saem de casa e deixam os pais sozinhos, nas noites de sábado. Os maridos se sentem na obrigação de, como direi, mostrar serviço. E o serviço já não é mais o mesmo de vinte anos atrás, evidentemente. Os homens começam a se tornar uns resmungões. Começam a comprar shampoos contra queda de cabelo. Outros começam a andar com camisetas estampadas. Encontrou, enfim, uma tesoura. Na gaveta de costura. Conforme voltava para o banheiro, vinha se lembrando de quando conheceu o marido. Era tão romântico. Todos os dias trazia uma flor para casa. Ia se aproximando da porta e já dava para ouvir os resmungos. Coitado. Não devia ser fácil para ele ficar velho. Era tão bonito aos vinte anos... Chegou. A porta do banheiro estava fechada. Foi abrindo devagarinho. - Querido? Querid... AHHHHHHHH!!!! Num salto, o lobo pulou por cima da mulher. Deu uma última olhada para trás. E fugiu pela janela. Vamos pastar? 12 de fevereiro de 2000 O calendário dos rodeios que se realizam anualmente em Araçatuba, conhecida como "terra do boi gordo", está sendo ameaçado por uma ação judicial movida pelo Ministério Público, que proíbe a realização de eventos envolvendo maus tratos em animais. Eu nunca achei muita graça naquilo mesmo, não vou sentir a mínima falta. Mas tem gente que gosta. Eu tinha um amigo, por exemplo, que adorava. Ele era açougueiro. Quando tinha Exposição na cidade, não perdia uma das provas. Os cavalos e os bois pulando e derrubando os caras. Ele delirava. Levava o filho, bem pequeno na época. Uns seis anos. Se sentavam na arquibancada uma ou duas horas antes de começar o rodeio, para pegar lugar melhor, e só saiam depois da famosa poeira assentar. Bem. Um dia, um dos peões caiu de mau jeito e desmaiou. Ficou lá, esparramado no chão, até chegar alguém com uma maca e tirar ele de lá. O filho do açougueiro perguntou: - Ô pai, o que é que aconteceu? - O peão, filho. Se machucou. - Mas como, machucou? Não é tudo brincadeira?
  • 4. - Como brincadeira? - Brincadeira, ué... Os bois não são treinados? Que nem no circo? - Não filho... Ali é caiu, quebrou... O menino arregalou os olhos. Passou mais um pouco, um dos touros começou a sangrar, depois de ser esporeado entusiasticamente por outro cowboy. O menino só aguentou mais uns quinze minutos sentado. Pediu para ir embora. - Mas... por quê, filho? - A gente vai ficar aqui sem fazer nada, vendo os bois e os caras se machucarem? Eu quero ir embora... O açougueiro nunca mais foi num rodeio. As palavras do filho devem ter marcado tanto que mudou até de profissão. Virou eletricista eu acho, mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que esse negócio de rodeios e touradas, é uma coisa meio besta. E além do mais, uma besteira importada. É coisa de espanhol e de americano. Não sei se tem muito a ver com a gente. Tanto não tem que, no Brasil, inventaram o Bumba-meu-boi, que é mais ou menos a mesma coisa, só que de mentirinha, como preferia o filho do açougueiro. Um cara se veste de boi e finge que ataca. O outro finge que é toureiro. Ficam ali, brincando de tourada, até a platéia enjoar. Aí, um finge que mata o boi. No fim, todo mundo agradece o público e vão lá, o boi e o toureiro, tomar uma cervejinha no bar da esquina. Mesmo quem gosta de ver aquele sangue todo jorrar dos bois quando são espetados nas touradas tem de concordar comigo que o Bumba-meu-boi é uma coisa muito mais civilizada. E nesses nossos tempos de realidade virtual, não vejo a mínima razão para continuar a machucar os animais, a não ser por motivos de um bom filé ao molho madeira. Já existe muita violência por aí para promovermos mais algumas, só pelo prazer de demonstrar nossa superioridade frente aos outros animais. Porque um rodeio não passa disso. Uma disputa idiota para provar que o ser humano é superior a um ruminante. Aliás, acho que nem disputa é. Seria disputa se o boi também estivesse competindo, mas o boi, eu te garanto, não está nem aí para quem ganhou ou perdeu. Ele só quer mesmo é sair vivo dali. Pode perguntar pro boi. Os pais dos patos 15 de fevereiro de 2000 Desde a mais tenra idade, uma terrível dúvida aflige meus pensamentos: quem são os pais do Huguinho, do Zézinho e do Luisinho? Pode até parecer uma coisa sem importância para você, mas para mim talvez seja a diferença entre a salvação ou o castigo eterno. Fui criado em um apartamento. Era uma apartamento grande se compararmos com as kitnets atuais, mas não deixava de ser um apartamento. E uma das únicas maneiras dos pais manterem seus rebentos razoavelmente calmos num apartamento era chuchando-lhes incontáveis gibis. A TV já existia sim, mas era uma coisa diferente. Não ficava ligada o dia inteiro, como fica hoje. Normalmente era acionada só depois da janta, para que os pais conferissem o jornal e as mães, suas novelas. Durante o dia, as crianças se viravam mesmo era com os gibis. Aqui em Votuporanga, me disseram, havia sessões de troca em frente ao cinema. Já em Campinas, onde nasci, as crianças apenas colecionavam. Acumulávamos imensas pilhas de gibis, e ai
  • 5. de quem chegasse perto deles. Nosso prazer não se resumia em apenas ler, mas em ter mais gibis que os outros. Como se pode observar, o capitalismo atingia as crianças de grandes centros de maneira um pouco mais traumática. Bem. Sei que, enquanto por aqui as crianças ficavam andando de bicicleta no jardim, em Campinas eu ficava trancado no meu quarto. Lendo gibis. Não posso dizer que foi ruim. Até hoje gosto de histórias em quadrinhos e ainda guardo uma imensa coleção, que minha mulher vive pedindo para eu jogar fora. "Um ninho de baratas", ela diz. O que ela não entende é que foi desse ninho de baratas que tirei minhas primeiras impressões sobre o mundo. Lições, até hoje, não muito bem compreendidas. Uma das maiores dúvidas é aquela, com a qual iniciei a crônica: onde diabos se meteram os pais dos sobrinhos do Pato Donald? São órfãos, os pobres patinhos? E o Tio Patinhas? Se é tio, é irmão da mãe de alguém, não é? Ou do pai. E cadê esses irmãos? E o pai do Pato Donald? Por onde anda? Tem também a Vovó Donalda. É irmã do Tio Patinhas? Ou o quê, então? E se são irmãos, onde estão os pais? Ninguém tem pai nessa história? Porque, você pode dar uma olhada. O Cebolinha. A Mônica. O Cascão. Todos eles têm pai e mãe. Mas os personagens Disney não. Um bando de animais órfãos que vivem numa tremenda promiscuidade. São cachorros andando com ratos e patos. Porquinhos chafurdando num pesadelo incestuoso. Bois, cavalos e, vejam bem, VACAS!!! Sim, vacas, a maioria com suas tetas pendendo sensualmente à vista de todos - e isso tudo muito antes de liberarem o topless. Sei que, se aliarmos essa esculhambação toda do Walt Disney à rígida educação católica que recebi, não se poderia esperar mesmo nada de muito proveitoso. São coisas muito antagônicas: a igreja pregando a importância de uma vida familiar saudável e os quadrinhos nessa geléia geral. Não há cabeça de criança que consiga conciliar essas duas visões de mundo sem entrar em conflito. Bem fazem algumas igrejas que proíbem seus seguidores de lerem histórias em quadrinhos, ouvirem rock’n roll e até mesmo de tomarem Coca-Cola. São coisas do demônio, evidentemente. Só não vê quem não quer. Eternamente 19 de fevereiro de 2000 Você pode até não acreditar, mas alguns cientistas americanos acabaram de descobrir a causa do envelhecimento dos animais. E, pode esperar: agora que descobriram a causa, para inventarem a cura é um passo. O estudo foi publicado num artigo da revista científica "Nature", de quinta-feira passada. No Instituto de Tecnologia de Massachusetts alguns pesquisadores, meio sem querer, toparam com a proteína SIR-2 que, segundo eles, rege a duração da vida. Já fizeram, inclusive, alguns experimentos com ratos, vermes e moscas, conseguindo aumentar um bocado o tempo de vida dos espécimes. Bem, o homem não é tão diferente assim desses animais. Observando por certos ângulos, é até muito parecido. E, se deu certo com eles, não vai demorar muito para dar certo com a gente também. Isso quer dizer, meu caro, que provavelmente nossos bisnetos - ou, vá lá, os bisnetos deles - vão ter uma vida tão longa quanto Ponce de Leon sonhou ter. Ou seja: alcançarão a eternidade. Ponce de Leon, para quem não sabe, foi aquele espanhol maluco que embrenhou-se nas selvas americanas (das Américas, não dos EUA) em busca da fonte da juventude, e que acabou tendo uma vida ainda mais curta do que a da maioria dos seus
  • 6. contemporâneos. Morreu de febre amarela ou alguma outra dessas doenças que até hoje ainda infestam nossos trópicos. Mesmo assim, a fantasia de Ponce de Leon me consolou muitas madrugadas na infância, quando, debaixo das cobertas, eu começava a pensar sobre a morte. A morte é, talvez, nosso primeiro medo real. Os pais não dão muita importância a esses temores enquanto eles se restringem ao escuro, aos fantasmas e aos monstros debaixo da cama. Consolam as crianças mas, no fundo, riem. Agora, quando o filho chega e diz que está com medo de morrer, a coisa muda de figura. Os pais não conseguem consolá-los porque também têm medo. E provavelmente têm até mais que os próprios filhos pois, pressupõe-se, restam-lhes ainda menos tempo de vida. O pavor da morte rondará as nossas madrugadas mesmo quando nos tornamos avós. É uma espécie de pesadelo coletivo da raça humana. Certo. Um sabadão desses. Um dia gostoso. Todo mundo com planos para pescarias ou para a boate à noite. E o estraga prazer aqui com esse papo funesto sobre a morte. Mas dessa vez você está enganado. Eu não estou falando da morte. Não sei se você lembra, mas eu estava falando da descoberta da cura da morte, pelos cientistas americanos. Estamos falando aqui da eternidade. E é aí que eu pergunto: e quem é que quer viver para sempre? Pare um pouco o que está fazendo e pense na possibilidade de você sobreviver a tudo. Aos dias. Às semanas. Aos séculos. Ao trânsito da rua Amazonas. A tudo. De repente, você não vai mais morrer. Mesmo que queira. É uma idéia assustadora. Eu, pelo menos, não sei se quero viver para sempre. Está certo que também não quero morrer amanhã, mas "para sempre" é um termo um tanto quanto radical demais. Andei perguntando por aí, para ver se era só eu, mas não é não. Ninguém quer a eternidade. Excluindo um colega de serviço, que é um daqueles chatos insistentes, todo mundo para quem eu perguntei disse que não pretendia viver mais que setenta anos. Alguns, nem setenta. Contentam-se com seus cinquenta, cinquenta e cinco. Até menos. E estão certos. Imaginem só ter que aguentar a programação de sábado à tarde na TV, por toda a eternidade. Não sei de vocês. Eu prefiro a morte. Descoberto novo animal em Cardoso 26 de fevereiro de 2000 A Polícia Florestal de Cardoso descobriu, na última quinta-feira, uma nova espécie de reptil que, aparentemente, só pode ser encontrado em nossa região. Alguns exemplares já foram enviados para a Universidade de Princetton (EUA) para eventual catalogação. Após receber um telefonema do caseiro da Fazenda Mirante, propriedade da família Lemos, de Votuporanga, o capitão Silviano Martins dirigiu-se até a estância, situada à beira de um dos lagos represados de Cardoso. Chegando lá, foi informado que as águas do "Marinheirinho" estavam subindo a níveis alarmantes, colocando em risco, inclusive, a sede da fazenda, uma mansão de dois andares construída no século passado. O capitão e sua equipe, imaginando tratar-se apenas de algum ajuste nas comportas da usina de Ilha Solteira, só decidiram averiguar o local após a insistência do caseiro, que dizia que as águas jamais haviam ultrapassado a distância de cem metros das construções e agora já estavam quase invadindo a varanda da mansão principal. Seguindo ordens do Capitão Silviano, os cabos Silvio Andrade e Mateus Peregrini subiram a pé pelas margens da represa, enquanto o próprio capitão mais o soldado Régis seguiram de barco pela água.
  • 7. Após meia hora de caminhada, o cabo Silvio, às margens do rio, comentou com seu companheiro que já não conseguia ouvir o motor da embarcação do capitão. Subiu numa árvore e, munido de um binóculo, iniciou minuciosa busca. Passados alguns minutos, percebeu alguma coisa boiando na margem oposta. Eram os restos do barco da Polícia Florestal. Aparentemente, a pequena embarcação de alumínio havia se chocado contra uma formação rochosa e se partido. Junto aos destroços, foram encontradas duas mochilas de primeiros socorros e uma lanterna com o emblema da corporação. Não havia, no entanto, nenhum vestígio do capitão Silviano ou do soldado Régis. Os cabos Silvio e Mateus retornaram então à sede da fazenda e, a partir da viatura, entraram em contato via rádio com seus superiores, pedindo instruções. Imediatamente foi acionado um helicóptero que, partindo de Rio Preto, em apenas quarenta minutos já estava sobrevoando o local. Após cerca de duas horas de busca, e já quase ao fim do combustível, o capitão José Stuppiello, piloto do helicóptero, informou aos policiais em terra que havia detectado uma coloração incomum na corrente da água, a cerca de três quilômetros do local onde foram encontrados os restos do barco. Imediatamente, todo o contingente terrestre, que naquele momento já era constituído de mais de trinta homens, partiu para a região apontada pelo helicóptero. Lá chegando, houve confirmação das informações. As águas, que no local normalmente têm a coloração esverdeada devido à ação de algas, em determinado trecho assumia estranhos tons avermelhados. Alguns mergulhadores já se preparavam para uma incursão quando foi avistado o primeiro de muitos animais que começariam a sair do rio. Totalmente desconhecidos, tinham o tamanho e a aparência de um jacaré de médio porte, possuindo, no entanto, uma espécie de casco, semelhante ao das tartarugas- marinhas, e com tonalidades que variavam entre o vermelho e o amarelo-ouro. Assustados com o número de criaturas que surgiam das águas, alguns policiais sacaram de suas armas e haveria um verdadeiro massacre, não fosse o sangue-frio do capitão e piloto José Stuppiello. Substituindo a munição normal por anestésicos, o capitão e seus subordinados conseguiram aprisionar dezenas de espécimes vivos. A maioria deles se encontra agora numa lagoa situada na cidade de Cardoso, gentilmente cedida pela prefeitura, e é motivo de curiosidade por parte de toda população. O restante foi enviado para universidades e entidades científicas. Ao cabo de toda operação, só houve necessidade do sacrifício de um dos animais. Ainda às margens do rio, o capitão José Stuppiello percebeu que um dos espécimes capturados estava tendo estranhas convulsões. Diante do olhar atônito da corporação, o mesmo homem responsável pela sobrevivência de toda espécie, munido apenas de uma faca, atracou-se com o animal, retalhando-o em questões de minutos. A seguir, o capitão Stuppiello introduziu as mãos nas entranhas ensanguentadas do bicho e, para surpresa geral, puxou lá de dentro dois grandes volumes. Eram o soldado Régis e o capitão Silviano. Inacreditavelmente vivos! Terapia Ocupacional 21 de março de 2000 Minha mulher, volta e meia, aparece com uma novidade. Ela sempre foi assim, desde solteira. Uma dessas novidades, inclusive, fui eu - e o meu sogro até hoje ainda não se recompôs da surpresa. Bem. A última mania dela é uma tal de Cromoterapia. Está fazendo um curso, pensando talvez em se profissionalizar. Quando ela encasqueta com uma coisa, gosta de ir fundo. Já fez uma porção desses cursos que misturam um pouco de misticismo
  • 8. com ciência. Ela chega um dia em casa e, como quem não quer nada, pergunta - Amor, você já ouviu falar da energia dos cristais? - e aí, pode se preparar: nas semanas seguintes, a casa se encherá de cristais energizantes e pedras filosofais. Dessa vez, era a Cromoterapia. - Amor, você já ouviu falar em Cromoterapia? - Cromo-o-quê? - Cromoterapia. A terapia através das cores. Deixa eu explicar... Cada cor influencia o ser humano de um jeito. E nós podemos mudar a maneira de ser, assim, só mudando a cor de nossas roupas. Ou de nossas casas. Entende? - Entendo. Na semana seguinte, já comecei encontrar rastros da tal Cromoterapia pela casa. Abria o armarinho do banheiro, para pegar a escova de dentes, e onde é que estava minha escova de dentes? - É essa aí, vermelhinha. Eu comprei uma nova. - Mas...aquela amarela estava novinha... - É que a cor vermelha ajuda a combater as infecções. Pouco a pouco, minha casa foi mudando. Um dia, uma cortina azul. - É pra gente se acalmar um pouco. - Mas quem é que está nervoso? Eu não estou nervoso. - Está sim. - Não estou não. - Está sim. - NÃO ESTOU NÃO! No outro dia, a mesa do almoço estava lilás. - Mas uma mesa lilás? Eu não consigo almoçar com essa coisa lilás embaixo do meu prato. - É porque você não está equilibrado. O lilás vai equilibrar você. - Eu não quero me equilibrar. Estou muito bem assim, desequilibrado. Porque é que eu vou querer me equilibrar agora? Quando dei por mim, eu estava morando numa espécie de arco-íris. Cadeiras listradas de vermelho e jasmim. Lustres alaranjados. Os copos antigos sumiram da cristaleira, dando lugar a copos cor-de-rosa. Os pratos, cinzas. - Mas cinza não é cor. - É sim. O cinza ajuda na percepção dos sabores. - Mas a comida fica com cara de morta. - É porque a comida está morta. Ou você quer comer a coisa viva? O ambiente em casa foi piorando. Os diálogos, cada vez mais ríspidos. - Eu não vou sair com você vestida desse jeito. - Mas o que é que você tem contra um vestido vermelho e amarelo? - Isso nem parece um vestido... Parece a...a...bandeira da Espanha. - E quem é que disse que a bandeira da Espanha é amarela e vermelha? - Eu sei, ué.. - Sabe nada. - Sei sim. - Não sabe. Mas, do mesmo jeito que as manias de minha mulher começam, terminam. Um dia cheguei em casa e tudo tinha voltado ao normal. Até minha escova de dentes, a amarelinha, estava lá, de volta. As cortinas, as mesas. Tudo com suas respectivas cores normais. Fui para o quarto, e lá estavam os lençóis. Brancos de novo. Só não conseguia encontrar a minha mulher. Fui encontrá-la lá no fundo da casa, no jardim. Cavoucando a terra. Olhou para mim e sorriu: - Você já ouviu falar nos Florais de Bach?
  • 9. O papa e a tartaruga 25 de março de 2000 O final de mandato do papa João Paulo II (papa tem mandato?) ficará marcado na história por seus pedidos de desculpas pelos erros da igreja católica no passado. Em 1992 o Papa já havia admitido que Galileu estava certo ao afirmar que era a Terra que girava em torno do sol, e não o sol em torno da Terra, como a igreja acreditava. O Papa pediu desculpas ao Galileu, ao Kepler e a uns outros que quase foram queimados na fogueira (alguns foram mesmo) por defenderem idéias tão absurdas. Desde esse primeiro "mea culpa", o Papa não parou mais. Outro dia, pediu desculpas pela inquisição. Agora, aproveitando uma visita a Israel, parece que anda tentando se desculpar com os judeus pelo silêncio do Vaticano à época do Holocausto. Devíamos todos seguir tão ilustre exemplo e começar a pedir nossas desculpas. Não, amigo leitor. Não adianta fazer essa cara de quem não tem culpa de nada. É claro que tem, a sua memória é que anda fraca. Mas também não precisa ficar assim, tão chateado. Todos nós somos culpados de alguma coisa, só que a maioria de nossas culpas são coisinhas bobas, que só interessam à gente mesmo. Eu, por exemplo, também tenho cá os meus tormentos. E um dos maiores é a lembrança de uma tartaruguinha que tive quando criança. Eu morava em um apartamento, em Campinas. Meus irmãos e eu sempre quisemos ter um animalzinho de estimação, e cachorros e gatos eram proibidos no condomínio. Um belo dia, meu pai chegou em casa com uma surpresa. Era a tal da tartaruga. Era dessas pequenininhas, que não passam do tamanho de um mouse de computador. São chamadas de tartarugas-de-aquário. Só que a nossa veio sem aquário. Precisávamos arrumar urgentemente um habitat para o pequeno reptil (tartaruga é reptil? ou é anfíbio?). Tentamos alojá-la em diversos compartimentos. Uma máquina de lavar quebrada. Uma bacia, onde eram lavados nossos uniformes de escola. Mas todos eles, por uma razão ou outra, acabavam não dando certo. A lavadora não dava porque ficava muito difícil pegar a tartaruga, quando ele se escondia lá no fundo. A bacia também não, porque minha mãe tinha que colocar nossos uniformes de molho, assim que chegávamos da escola. E foi desse jeito que a nova residência do animal passou a ser a casa-de-bonecas da minha irmã. Não era uma mansão, está certo, mas até que era um belo sobrado. E esse foi o grande problema. A tartaruguinha passava as tardes a escalar as paredes da casa-de-boneca e, ao chegar ao topo, sem ter para onde ir, caía. Era muito engraçado vê-la escalar as paredes, feito o homem-aranha. E depois cair. Virou a atração do prédio. Vinham os vizinhos de todos andares conhecerem a nossa pequena maravilha. E todo mundo ria muito a cada tombo dela. A tartaruga parecia que estava na dela. Mesmo com platéia, continuava a escalar as paredes, sempre da mesma maneira. Ia até o topo, escorregava e caía. Subia de novo. E de novo caía. O dia inteiro. O mês inteiro. Até que, um dia, quando fui alimentar o bichinho, encontrei a tartaruga de costas. Talvez minha memória de criança exagere um pouco, mas eu me lembro de encontrá- la com o pescoço virado para trás, e um pequeno filete de sangue escorrendo (tartaruga tem sangue?). Na sua última escalada, deve ter caído de cabeça. Sangrou até a morte. Muito anos depois, ganhei de presente duas tartarugas iguaizinhas, que tenho até hoje. Desta vez, precavido, coloquei-as dentro de um pequeno aquário, onde elas não tem por onde escalar. Mas elas cresceram bastante e já ando pensando em fazer um aquário maior, mais confortável. Fiz até o projeto, com vários compartimentos, vidro fumê e plataformas. Plataformas acolchoadas, evidentemente.
  • 10. Já até pedi um orçamento num vidraceiro, e um dia mando fazer. Se não para o conforto das tartarugas, ao menos para diminuir um pouco o meu peso na consciência. Está certo que não é nenhum Holocausto mas, tal como o Papa, eu não pretendo viver com a morte daquela tartaruguinha nas costas até o fim do "meu mandato", que, aliás, já não deve durar tanto assim. A máquina-da-verdade 04 de abril de 2000 Durante a vida, que eu me lembre, apenas duas coisas conseguiram me dar, nem que por breves momentos, alguma esperança no futuro da espécie humana. A primeira foi o seguro-de-vida. Quando eu era criança, não entendia bem o que era um seguro-de-vida. Eu imaginava que era literalmente o que o nome quer dizer, ou seja, que pagando-se lá uma certa taxa, ficaríamos com nossa vida assegurada, e não morreríamos mais. É claro que devia ser uma taxa bem grande, haja visto o número de pessoas que eu via morrer a toda hora. Mas ela existia. E, se existia, talvez, se trabalhássemos muito, ao cabo da vida teríamos conseguido juntar o bastante e nos veríamos livres do pesadelo da morte. Foi terrível quando descobri que eu só havia acertado mesmo no preço do tal seguro, e que ele, se garantia alguma vida, era a dos outros, não a minha. A outra coisa era a máquina-da-verdade. Me lembro de ter assistido um filme no cinema, com meu pai. Era um filme de guerra, eu acho. Branco e preto. E os nazistas usavam uma máquina-da-verdade no herói. Um monte de fios presos na cabeça do pobre coitado o ligavam diretamente na máquina, que desenhava estranhos rabiscos numa folha de papel. Um dos nazistas ficava perguntando as coisas, o outro ficava analisando os tais rabiscos, e dizendo se o herói mentia ou não. O tenente norte- americano não teve chances e acabou delatando sua tropa, que foi destroçada pela SS. É claro que depois ele se vingou, mas essa já é outra história. O que me marcou mesmo, e para o resto da vida, foi a tal máquina. Tal como a morte, a verdade é um grande mistério. Por exemplo, vamos dizer que uma pessoa diz que te ama. - Então prove. - Como, prove? - Prove, oras. - Mas...como é que eu faço para provar? - Sei lá. Corte um braço fora, por exemplo. - Co...co...cor...tar um braço? - É. Se você cortar um braço, eu acredito que você me ama. Aí a pessoa que diz que te ama pega e corta o braço fora. Com uma serra elétrica. Coloca o braço na linha do trem, sei lá. Mas ela corta o braço: - E agora? Acredita que eu te amo? - Hum... Por que foi mesmo que você cortou o braço esquerdo? Tem coisas, que a gente só acredita por acreditar. O amor é só um exemplo. Toda nossa convivência social é baseada no pressuposto de que os outros estão dizendo a verdade. Trabalhamos trinta dias na esperança de que o patrão não estivesse mentindo quando afirmou que nos pagaria no fim do mês. A gente nunca vai saber com certeza se ele estava sendo sincero, até ele pagar. Agora, há quantos anos já sabemos da existência da máquina-da-verdade? Se já existia no tempo dos nazistas, deve ter sido inventada ainda na década de trinta. E como é que uma das maiores invenções da humanidade ainda não chegou às nossas casas? Pois, se já chegaram rádios, televisores, microondas, computadores, mais um
  • 11. monte de tranqueira – porque é que uma máquina que poderia mudar completamente nossas vidas ainda não chegou? Eu não entendo. Será que nenhuma multinacional nunca pensou nesse filão do mercado? Devem existir por aí milhões de pessoas ávidas pela verdade. Eu, por exemplo, gostaria muitíssimo de saber se a minha esposa me ama tanto quanto fala. E ela, se ontem à noite eu estava realmente no bar, com uns amigos. Se todos tivessem uma máquina-da-verdade, o sistema judiciário não teria mais razão de ser. Se não houver mais jeito de mentir, quem vai precisar de advogados? Já imaginaram? Um mundo livre dos advogados? Isso para não falar da religião. Se ficar provado, por exemplo, que os livros psicografados são verdadeiros, teríamos que rever não apenas nossa maneira de encarar a eternidade, mas também nossas leituras prediletas. Já imaginaram as obras póstumas de Franz Kafka? E o quanto Jean Paul Sartre teria que se explicar? E para quem acha que máquinas-da-verdade não existem, domingo passado o Gugu Liberato levou uma de última geração no seu programa. Nada parecida com aquela dos nazistas. Coisa sofisticada, num computador. E nada de fios presos na cabeça do entrevistado. Aliás, a pessoa investigada nem precisa estar presente. É só colocar lá uma fita com a voz do sujeito, que ela responde se o que ele está dizendo é verdade ou mentira. Mas é claro que uma invenção com tal poder revolucionário ainda não tem lugar no mundo, e vai ser sempre motivo de boicotes. O Gugu, ainda acho que de propósito, testou a máquina logo com uma fita do Celso Pitta. Não deu outra: a engenhoca pirou. Devem estar tentando recalibrar até agora. Reclame 03 de junho de 2000 Nos primórdios da televisão, muita gente não entendia direito qual era a razão das propagandas. Por que diabos, bem na hora que o programa estava ficando bom, eles colocavam os "reclames"? É. Era assim que a gente chamava as propagandas antigamente: reclames. Não sei direito de onde o termo vem, mas imagino que seja exatamente de onde você imaginou. Do verbo reclamar. É que, na hora que começava a propaganda, todo mundo reclamava. Eu me lembro do meu avô, reclamando: - Eu não vou assistir esse programa. Tem muito reclame. E não assistia mesmo. Ia lá para o seu quarto, vestia um pijama e lia um livro, dois hábitos já meio fora de moda desde aquele tempo. Mas hoje em dia a coisa mudou. As propagandas se sofisticaram. Tanto é, que ninguém mais chama as danadas de reclame. Tem gente que tem até suas favoritas: - Há quanto tempo não passa aquela do cachorrinho da Cofap, né? - E o rapaz da Bombril? Anda sumido... Será que aconteceu alguma coisa? Pouco a pouco, a propaganda acabou sendo reconhecida como a verdadeira mola mestra do capitalismo. Já não dava para viver sem ela. Se uma televisão não tem propaganda, não sobrevive, ora essa... Nem um jornal. Nem uma rádio. O meu sobrinho mesmo, outro dia desses, veio pedir meu carro emprestado para que ele e uns amigos pudessem ir... para a praia! Ante o meu espanto, ele, com a maior cara de pau do mundo, perguntou: - O que é, tio? Nunca ouviu falar de Patrocínio? Mas com esse sobrinho, eu tenho um pouco de culpa. Acostumei ele muito mal. Desde aquela vez quando ele veio me pedir um dinheirinho para ir ao cinema. - Apoio Cultural, manja?
  • 12. Dessa maneira, a propaganda acabou por se tornar uma instituição nacional. Ninguém mais faz nada se não tiver uma patrocínio, um apoio cultural, ou coisa que o valha. Livros onde se mesclam poesias com comerciais de lojas de sapatos. Revistas onde não se sabe mais se o que estamos lendo é propaganda ou matéria. Times de futebol que a gente nem chama mais pelo seus nomes mesmo, mas pelo nome do patrocinador. E os pilotos de Formula 1, então? Uma verdadeira propaganda ambulante. Não é de se espantar que o governo federal tenha gasto 18,8 milhões de reais para montar um estande na Expo 2000 em Hannover, na Alemanha, inaugurada no mês passado. Um dinheiro muito bem investido, segundo todo o alto escalão brasileiro. E eles têm razão. Uma boa propaganda pode tirar uma empresa quebrada do buraco. Quem sabe não dá certo com um país também? Há, inclusive, inúmeros casos de políticos absolutamente medíocres que, através de uma boa propaganda, conseguiram se eleger para cargos de suma importância para a vida nacional. É só dar uma boa maquiada, esconder uma coisinha aqui, inventar outra lá, e pronto. A propaganda elegeu o cara. O problema, me parece, é que o nosso presidente não entendeu direito o espírito da coisa. Ao comparecer na festa de inauguração da Expo 2000, e tentando explicar as razões do Brasil ter gasto tanto dinheiro para montar seu pavilhão, me saiu com essa: "- O Brasil não pode deixar de mostrar (ao mundo) o que é" Olha lá, hem presidente... Não vai me levar essa sua frase ao pé da letra, senão aí é que estaremos ferrados de vez. Chamem os bombeiros 08 de abril de 2000 Minha mulher passou uma semana fora. Deve chegar hoje à noite. Foi fazer um retiro espiritual em Itaici, uma espécie de Disneylândia para os retirantes espirituais. No embalo, demos folga para a empregada. Ficamos em casa só minha filha e eu. No primeiro dia, até que mantivemos a compostura. Ao acordar, ambos demos uma arrumada nas devidas camas. Lavamos nossos pratos depois do almoço. Na janta, porém, já se podia atinar com um futuro sombrio. Comemos uns sanduíches na sala, assistindo o Show do Milhão. Como já era tarde, acabamos deixando os pratos e os copos por ali mesmo, no tapete. E acabei esquecendo o vidro de maionese fora da geladeira. No segundo dia, ao acordar, tropecei num dos copos e o resto do refrigerante se espalhou. Saí à caça de um pano. Onde é que as mulheres guardam os panos de chão? Acabei secando com um daqueles panos-de-prato novinhos, que ficam anos na gaveta, à espera de visitas. Enquanto isso, minha filha passeava pela sala, comendo um pãozinho requentado e tomando um copo de leite. Tudo sem pires ou pratos, evidentemente. As migalhas do pão se espalhando pelo tapete e pelo sofá. Olhei para o relógio. A aula dela já tinha começado há pelo menos meia hora. Apressado, acabei deixando o pano ali mesmo, em cima da poça de coca-cola. Mais tarde, os restos do almoço e da janta foram se amontoando. Minha filha até que tentou dar uma arrumada, e deu uma empilhada nos pratos. Foi quando ela achou o vidro de maionese. Estava começando "MIB - Os Homens de Preto" e ela, delicadamente, colocou a pilha de pratos em cima da TV e o vidro de maionese em cima de tudo. Dormimos com a TV ligada. Lá pelo quarto dia, o sofá já estava, segundo a minha filha, insentável. Havia manchas de catchup, de maionese e de uma substância que eu não conseguia definir direito,
  • 13. mas, pelas outras manchas, imaginei ser mostarda. As casquinhas de pão tornavam o deitar-se uma experiência inviável. Trouxemos do quarto um colchão limpo e jogamos na frente da televisão. Tinha um pano ali, atrapalhando, que eu empurrei com o pé. Mais algumas almofadas e já tínhamos novamente onde nos aninhar. Acordamos no outro dia junto a restos de sanduíches de salame e sentindo um cheiro esquisito. Alertei minha filha que era melhor jogar aquela maionese fora, e ela disse que depois jogava. Precisávamos correr. Parece que se o aluno chegar três dias seguidos atrasado, o diretor da escola chama o pai para conversar. E eu não estava disposto a me encontrar com diretor nenhum. Hoje, quando cheguei, tive que abrir as janelas da casa e ligar os ventiladores de teto. Tinha alguma coisa fedendo por ali. Descobri que era aquela frigideira, onde derretemos queijo no outro dia. Tentei alcançá-la, mas temi que a imensa pilha de panelas e pratos que se equilibrava sobre a pia perdesse a estabilidade, e despencasse sobre mim. Joguei um tanto de detergente em cima daquilo tudo para ver se o cheiro passava. Até que deu uma melhorada. Satisfeito, voltei para a sala. Empurrei alguns pratos com os pés, puxei o saco de biscoitos para o lado e me deitei. Foi quando dei pela falta da minha filha. Joguei o edredon para cima, e restos de pipoca voaram na minha cara. Olhei em baixo das almofadas. Levantei o tapete. Só encontrei um pano de prato amassado e meio úmido. - Filha? Filha!! FILHA!!! De repente, parece que ouvi sua voz. Desliguei a TV e fiquei atento. Procurei entre as pilhas de roupa suja. As embalagens de bombons. As cascas de tangerina. Da última vez que eu me lembrava, ela estava tentando encontrar o controle remoto. Devia estar em casa ainda. Dei uma espiada atrás do sofá. Nada. Estou ficando maluco. Já procurei em cima do fogão. Na geladeira. No armário do quarto. Tudo em vão. Não sei mais o que fazer. Minha mulher chega hoje à noite da viagem, e eu perdi a filha dela. Sou um homem morto. Hipocondria 17 de junho de 2000 Amanheci com o rosto cheio de brotoejas. Brotoejas, não sei se você sabe, são umas bolinhas vermelhas. Que coçam. - Então é sarampo. - Que sarampo, que nada... - Tô te falando... - Onde já se viu? Um homem de quarenta anos... Sarampo... Além do mais, eu já tive sarampo quando era criança. - E o que é que tem? - Oras... Sarampo não pega duas vezes. Pega? - Pega. O que não pega duas vezes é catapora. - Catapora? - É. Catapora. Quem sabe não é catapora. Você já teve catapora também? - Sei lá. Agora você me confundiu. Qual é a diferença entre catapora e sarampo? - A diferença é que uma só pega uma vez e a outra pega um monte de vezes. - E caxumba? Será que não pode ser caxumba? - Caxumba... Caxumba é aquela que incha o pescoço, não é? Você está com o pescoço inchado? - Não. - Então não é caxumba. Tem que ser sarampo.
  • 14. - Ou catapora. - É. Ou catapora. Em todo o caso, é melhor ir num médico. - Médico? Mas será que precisa? - Precisa. Porque, eu não sei qual dessas doenças, quando pega em adulto tem o perigo de descer. - Como assim, descer? - Descer, oras... Nunca ouviu falar? - Não. Descer pra onde? - Descer para o... para o... Ora, você sabe... - Já disse que não sei! Descer para onde? Vai dizer que... - É. Lá mesmo. Não sei qual dessas doenças, desce. E se descer, ó... E ele apontou o dedo para cima e foi abaixando, abaixando, até apontar para baixo. Isso acompanhado de um barulhinho, que nem de uma bexiga murchando: - Pfffuúúúúúússssssss.... Eu arregalei os olhos. Descer é que não! Corri para a Santa Casa. O médico de plantão me atendeu. Me levou até o consultório. Raspou uma das brotoejas com uma espécie de estilete e colocou a pele dentro de um plastiquinho. Disse para eu voltar amanhã. Eu disse que não. Eu ia ficar ali, esperando. Vai que no caminha essa coisa, sei lá, resolve descer. Fiquei lá umas cinco horas. Esperando. Enfim, o médico voltou com o resultado dos exames. - Alergia. Você deve ter comido alguma coisa que te fez mal. Pode voltar para casa tranquilo. Eu olhei para ele. Conferi os resultados dos exames, embora não entendesse nada daqueles números. Olhei para o médico de novo: - Doutor. Alergia não desce, desce? - Não. Não desce. Respirei aliviado. A gente leva cada susto nessa vida... A função do cronista 13 de julho de 2000 Por muito pouco não me tornei um arquiteto. Para ser mais preciso, por exatos seis meses. Esse era o tempo que faltava para que eu me formasse na faculdade Brás Cubas de Arquitetura, em Moji das Cruzes, na década de 80. É engraçado como, quase sem perceber, passamos a dividir o tempo em décadas. A minha filha, por exemplo, ainda divide seu tempo em semanas: "a semana passada eu fui"; "essa semana eu vou"; "semana que vem eu irei". E o pai dela aqui, regurgitando recordações de duas décadas atrás... Bem, como eu dizia, por muito pouco não fui um arquiteto. Na época eu estava decidido que essa seria a melhor maneira de ajudar a humanidade. É sério. Convencido por um colega, meio comunista, de que através da arquitetura de uma cidade, de um bairro ou até mesmo de uma casa, poderíamos dar início à revolução, fui eu dar lá o meu quinhão em prol do socialismo mundial. E estávamos bem acompanhados. O Niemeyer está na luta até hoje, inclusive. Com o desenrolar do curso, no entanto, fui percebendo que a coisa não era bem assim. As pessoas comuns estavam pouco se lixando para suas residências, contanto que houvesse um teto que às protegesse da chuva, e paredes, que às protegessem do vento e de eventuais ladrões. Quem realmente se importava com a estética e a funcionalidade das moradias eram os milionários - e desenhar mansões de socialites para o resto da vida não estava de modo algum nos meus planos revolucionários.
  • 15. Foi quando larguei tudo e resolvi dar uma repensada no futuro. O que é, afinal, que eu queria ser quando crescesse? Qual profissão poderia cumprir a função básica de me sustentar e, ao mesmo tempo, satisfazer essa vontade insana de contribuir de alguma maneira para o bem estar da civilização? Passei anos fazendo experiências. Algumas muito boas, outras nem tanto. A que mais tempo durou foi a de padeiro. Não, eu não fui exatamente um padeiro, aquele que faz o pão, mas sim um capitalistazinho, proprietário de padaria. Durante quatorze anos. Foi uma experiência válida, afinal eu trabalhei e contribuí de alguma maneira com uma necessidade básica da população: a alimentação. Pois bem. Foi atrás do balcão de uma padaria, sufocado entre broas de milho e croissants, que consegui, afinal, vislumbrar um ideal para o meu futuro. Mas não teve nada a ver com a alimentação em si, mas sim com os consumidores. O contato direto com os clientes me ensinou muito sobre o ser humano. A solidão. Os medos. A felicidade. Nesses quatorze anos de convivência, eles me trouxeram charutos para comemorar nascimentos. Me trouxeram Raios X dos próprios pulmões. Comeram. Beberam. Deram risadas. Alguns esperavam de mim apenas um bom ouvinte, mas a maioria queria mesmo era ouvir alguém. O ser humano, mais até que de uma residência, precisa muito de palavras. De conforto, de incentivo, de revolta. Mas palavras. Foi quando resolvi definitivamente o que eu queria, ou devia, fazer dessa vida. Larguei tudo que tinha - que não era muito, a bem da verdade - e vim escrever para o jornal. Foi a decisão mais acertada que tomei desde que nasci. Hoje, desconhecidos me param na rua. Me cumprimentam. Comentam que se sentem quase íntimos. Seguem minhas crônicas há três anos afinal de contas, e chegam até a dar palpites sobre a maneira de eu educar minha filha. Concordam com muita coisa que falo. Discordam de outras. Mais ou menos como convivemos com nossas esposas, esposos, pais e mães. Ok. Posso não estar atuando diretamente na vida das pessoas, como os arquitetos, os médicos e os políticos. Mas estou servindo, ao menos, de companhia. Pode não ser grande coisa, mas já é um começo. Eu acho. Se fosse bom, ninguém dava 20 de julho de 2000 Quando a gente tem dezoito anos, não consegue se imaginar dando conselhos. Então, quando me pego dando um, a primeira coisa que me vem à cabeça é a constatação óbvia de que eu não tenho mais dezoito anos - fato com o qual ainda não me acostumei totalmente. Ter dezoito anos é cultivar olheiras, só para fazer charme. Ter dezoito anos é andar com uma calça vermelha e ninguém achar estranho. Ter dezoito anos é... é... é ter dezoito anos, puxa vida... Bem. Hoje cedo minha filha foi viajar. Foi com os meus pais para Campinas, tirar umas férias. Férias de mim, pressuponho, já que do colégio já estava de férias há alguns dias. Na rodoviária, na porta do ônibus, após os usuais beijos e abraços, me vi na obrigação de dar algum conselho. Afinal, minha filha estava embarcando para uma das cidades mais violentas do país. Li outro dia desses, na "Folha de São Paulo", que Campinas era, comparativamente, mais violenta até que São Paulo e Rio de Janeiro. E que conselho dar ali, naqueles poucos segundos antes do embarque, e com isso não parecer nem muito careta nem muito displicente? O que me veio à cabeça foi um trecho de um livro que li há muitos anos, obrigado pela professora de português. Não lembro o nome do livro. Era de uma série, dessas de aventuras de adolescentes, que os professores dão para ver se seus alunos pegam o gosto pela leitura.
  • 16. No tal livro, o personagem principal está prestes a embarcar numa excursão, junto com seus colegas de escola. A mãe dele, antes de deixá-lo partir, segura-o pelos ombro e pede para que, durante os passeios, ele nunca seja o primeiro. Nem o último. - Fique sempre no meio, meu filho. É um ótimo conselho, este. Os primeiros arriscam-se muito. Os últimos, correm o risco de serem esquecidos. Na dúvida, fique no meio. É muito mais seguro, embora, convenhamos, bem menos divertido. O conselho daquela mãe ficou na minha cabeça por muito tempo, mas só veio mesmo ter utilidade agora, quase trinta anos depois. Bem ali, na porta do ônibus, olhei para minha filha e decretei: - Fique sempre no meio, minha filha. Ela já estava subindo no ônibus. Não dava muito tempo de responder. Ela apenas sorriu e galgou os degraus, abanando a mão. Me abracei à minha mulher e ficamos os dois, olhando o ônibus partir, dando tchauzinhos, com os olhos marejados. Na volta para casa, já razoavelmente recuperada da despedida, minha esposa perguntou: - O que é que você quis dizer com aquilo? - Aquilo o quê? - "Fique no meio, minha filha". Fique no meio do quê? - Não é pra ela ficar no meio de nada. Muito pelo contrário. Era para ela não ser a última, entende? E eu expliquei aquele negócio de que os últimos se perdem e os primeiros arriscam-se muito. Minha esposa insistiu. - Não sei não. Se eu não entendi, ela também não entendeu. "Ficar no meio"... Onde já se viu? Que conselho mais esdrúxulo. Ora bolas. Foi um dos primeiros conselhos que dei na minha vida. Me pareceu muito bom ali, na hora. Agora já foi. Pronto. Mas, por via das dúvidas, vou dar uma ligadinha hoje à noite, para ver como é que eles chegaram de viagem. Se minha filha não entendeu direito o tal conselho, vai saber no meio do quê essa menina é capaz de se meter naquela cidade...Campinas anda muito violenta. Comparativamente, até mais que o Rio de Janeiro. Ou São Paulo. Mas acho que já falei sobre isso. Aviões de papel 31/12/1997 Correio Popular, Campinas Nosso aviãozinho de papel descia, desenhando círculos no céu de Campinas, até pousar macio, na calçada em frente ao prédio. Meu irmão e eu fixamos os olhos na rua e olhamos para meu pai, que corrigia as provas submetidas aos alunos do segundo ano do Colégio Notre Dame. Perguntamos se podíamos descer um pouco, - Para pegar o avião... Fazia calor e alguns colegas estavam batendo bola, com o portão do Orozimbo Maia fazendo as vezes do gol. - É claro, disse meu pai, sem desviar muito a atenção das correções. - Só não se atrasem para o jantar... Nós dois, garotos nem próximos da adolescência (essas coisas aconteciam mais tarde naquela época), descíamos as escadas apostando para ver quem chegava primeiro. O porteiro do prédio ria quando chegávamos ao térreo e simulava uma dura: - Sem algazarra, molecada... O fim da tarde era uma gritaria de moleques apelidando os gordos de gordo-pipa, os de óculos de quatro-olhos e os menores de café-com-leite. Os gols no portão de madeira do Grupo Escolar ecoavam na esquina como pancadas de martelo. A bola de capotão era dura e o dono dela nunca saia do time. Os medos se restringiam aos carros, que passavam devagar, às vezes silenciosamente, se
  • 17. desviando do jogo, como que para não atrapalhar, outras vezes buzinando, talvez com receio de que suas DKV’s tivessem a lataria avariada. O jogo terminava quando, literalmente, não conseguíamos mais ver a bola. A noite já vinha alta e nossos estômagos já nos alertavam do novo atraso para o jantar. Muito tempo depois saberíamos que nossa mãe só preparava realmente nossos pratos depois do anoitecer, já prevendo o atraso. O que estou querendo dizer com tudo isso é que nessa esquina agora, quase trinta anos depois, ainda existe o Orozinbo Maia, com novas cores e novo portão, mas ele ainda está lá. O prédio da minha mãe também, embora o térreo tenha sido alugado para diversas lojas e os bares em volta quase não nos deixarem achar a entrada. O porteiro já não nos cumprimenta. Nos olha, desconfiado, todos os anos quando vamos visitar nossos pais no natal, por que todos os anos é um novo porteiro que está lá, sentado e com a mesma cara de sono. Mas não existem mais crianças. Nostalgia? Não, não estou com nostalgia. Estou fazendo uma constatação. Por volta das oito horas da noite as pessoas se trancam. Com seus computadores, com suas televisões, com suas mulheres, com seus livros, mas trancadas. Os meninos ainda devem soltar seus aviõezinhos. O voar ainda é mágico. Só que eles devem olhar pelas janelas e para o local de pouso de seu jato supersônico de papel e imaginar o quão distante aquela calçada fica dele. Os meninos olham para os seus pais e sequer tentam pedir para descer um pouco, encontrar os colegas. Primeiro: não existem mais colegas. Segundo: não existe mais a certeza de que voltarão atrasados para o jantar por que ficaram se apelidando uns aos outros. Talvez o atraso signifique que não voltarão mais. Há alguns anos, quando minha filha completou o primeiro aniversário, tive que fazer uma escolha: ou ficar em Campinas, seguindo assim uma recém iniciada carreira na publicidade e esperar minha formatura na faculdade de jornalismo da PUCC ou me mudar para o interior, onde meu cunhado me convidava para uma sociedade numa pizzaria. Escolhendo a segunda opção, depois de alguns anos, me via angustiado. Nenhum de meus sonhos profissionais estava sequer próximo de se realizar. A vida por aqui, interiorzão, é pacata. O jornalista melhor remunerado é o responsável pelas colunas sociais. A publicidade engatinha e os carros com alto-falante ainda são uma das melhores opções na área. Só a tranquilidade de ver minha filha de doze anos indo sozinha para a escola me dá a certeza de ter feito a escolha certa. O que é que vocês deixaram acontecer com minha cidade, esses anos todos que a deixei em suas mãos? Me lembro que, certa vez, me disseram que Campinas era uma cidade modelo. Confundi o "modelo" - no caso sendo usado como "padrão; similar aos níveis sociais e econômicos do restante do país" - ao "modelo" significando "exemplo a se seguir". Tenho até hoje comigo que o segundo "modelo" era também aplicável. Mas hoje em dia já não se pode abrir o jornal sem receber notícias tétricas de minha terrinha. Assaltos nem são noticiados mais. São casos de assassinatos, sequestros, balas perdidas e sei lá mais o quê. Outro dia o "Correio Popular" publicou, em primeira página, a notícia do lançamento de um livro que pregava o revide armado aos assaltos. Campinas cresceu? Campinas já era grande na minha época. Com bairros que eram e são maiores que a cidade onde hoje moro. Mas não é mais um exemplo a seguir. Gilberto Dimenstein escreve sempre de Nova York, relatando as experiências do prefeito daquela cidade americana no combate ao crime. Enquanto isso os prefeitos de Campinas sonham com o cargo de deputado federal ou de, quiçá, governador. Os universitários, onde estão os universitários? Escondidos também? Que tal se as faculdades de arquitetura (ou direito ou jornalismo) dessem, como provas finais, tentativas de soluções para Campinas, e não projetos aleatórios? Projetos específicos para a terra que está formando esses alunos, numa espécie de retribuição. O que eu sei é que daqui de Votuporanga (pertinho de Rio Preto) eu fico assistindo Campinas se desmanchar e olho para minha filha saindo, dizendo que volta para o jantar. Eu sei que ela vai se atrasar, mas não ficarei preocupado. Ela estará com as
  • 18. amigas, e o filho do dono da sorveteria estava de paquera, - você entende, né pai? Entendo, filha. E entendo que há alguns anos atrás fiz uma das melhores escolhas que um pai poderia ter feito. Escolhi que minha filha teria liberdade, e isso Campinas já não pode oferecer. É uma pena. Provavelmente fiz parte de uma das últimas gerações que conheceram Campinas a pé, e não trancado num carro, com os vidros levantados, sufocado porque esse maldito carro não tem ar-condicionado. Nós e a Xuxa 16 de dezembro de 1997 Diário de Votuporanga Vamos por partes. Digamos que sua filha (supondo que tenha uma) chegue hoje à noite em casa, com uma expressão de pura felicidade. Ela chega e, por conhecê-la, você sabe que tem notícias. Boas notícias. Você pergunta o que foi e ela faz charme. Você ri por dentro da brincadeira. Faz o jogo. Finge-se de curioso (não que não esteja). Após falsos "nem ligo", convence a menina a lhe contar. - Eu estou grávida. De um mês!!! Ok. Você é um pai liberal e o mundo não vai desabar por causa disso. Sua menina sabe o que está fazendo. Não? Você não é um pai liberal? E o mundo vai desabar. Não se preocupe. Com o tempo as coisas se consertam. Experiência própria. Bem, em qualquer uma das hipóteses você gostaria de saber de quem. Ou não? - Bem, pai... É do "fulano". Sabe? Aquele que veio aqui, naquele dia. Que dia, meu deus? Que dia foi esse que o "fulano" veio aqui e eu nem prestei atenção... E vocês vão se casar? - Que é isso pai? A gente nem se conhece direito... O que importa é que eu terei meu filho. E você vai ser avô e ele vai ter um monte de tios e tias. O pai liberal, o que acha? Acha que tudo bem, sua filha já está pensando por si. Vai tentar ajudá-la. Não vai? E o outro pai, o durão? Descabelar-se não adiantará muito. Vai acabar aceitando as coisas. Ou não? O problema não está nem nos pais nem nas filhas nem em ninguém. O problema é a indiferença com a qual a sociedade trata situações absurdas. A sociedade brasileira é, teoricamente, católica apostólica romana. A religião oficial do país é essa. Essa religião proíbe a convivência conjugal de dois seres se não estiverem ligados pelos "sagrados laços do matrimônio". É um dos sete sacramentos. Um dogma indiscutível. Indiscutível? Pois pergunte à "sua" empregada doméstica se ela é casada. É? Pois oitenta por cento delas não são. E todas se dizem católicas. Ou quase todas. Pergunte por aí, para as pessoas de renda um pouco mais baixa que a sua. A sociedade resolveu a seu modo que esse não era um sacramento tão necessário assim. Você se espanta. Mas você fica com os olhos lacrimejados no seu domingo a tarde, quando a Xuxa Meneguel avisa que, enfim, conseguiu engravidar. E nós todos somos tios e tias. Há um certo burburinho na sala. O rapaz escolhido para pai é elegante e seu par de óculos dá um certo ar responsável. É um belo rapaz. Agora, esperem... Nossa filhas cresceram tendo a Xuxa como exemplo. Toda uma geração que tem, agora, por volta de dezesseis anos. Uma bela idade. Não é? Eu não me atrevo a dizer que, com todo meu liberalismo, talvez não sinta uma fisgadinha doída se um dia acontecer um diálogo parecido ao descrito nos primeiros parágrafos desse texto. Mas, em todo caso, nada que me abalasse a ponto de deixar de tomar meu café da manhã no dia seguinte. E nunca gostei muito da Xuxa e seus programas matutinos. O grande problema reside no outro tipo de pai. Naquele que ainda cultiva uma rigidez completamente fora de tempo. Esses mesmos pais adoram o tipo "boa moça" que a Xuxa e toda sua equipe tentam enfiar-nos goela abaixo a tantos
  • 19. anos. Esses pais agora aplaudem e parabenizam a moça que lhes anuncia em festa exatamente aquilo que , caso acontecesse com suas filhas, tanto abominariam. Esses pais deixam suas crianças na frente da TV assistindo mulheres agarrando-se numa banheira. Aos pais liberais, nada de anormal. A sociedade tendia a isso mesmo. Minha filha cresceu assistindo, além da Xuxa, o "Rá-Tim-Bum" da Cultura, por exemplo. Ela conhece os dois lados. Aos pais "durões", que achavam uma gracinha quando sua filha aparecia vestida de mini-saia e com "xuquinhas" no cabelo, e a mostrava aos vizinhos, ah esses pais... Talvez elas já não queiram brincar com bonecas. E você ainda não aprendeu a conversar com ela. História de uma quarta-feira de cinzas 03 de março de 1998 Aquela fila enorme e meu tio, lá na frente, em vez de colocar na boca das pessoas uma hóstia, enfiava seu polegar direito dentro de um cálice e o retirava de lá sujo de alguma coisa indefinida. Com essa coisa, marcava a testa das pessoas com uma cruz. Meu tio era padre em Agudos, perto de Bauru, e eu tinha uns dez anos. Era lá em Agudos que passávamos a maioria dos feriados. As famílias de minha mãe e de meu pai eram de lá. Eu estava começando a ligar o nome da quarta-feira pós carnaval com seu nome: "de cinzas". "- Pai, o que é aquilo que o tio padre está fazendo nas pessoas?"- perguntei, enquanto nossa vez não chegava. "- Está perdoando as pessoas pelos pecados do carnaval." "- Carnaval é pecado, pai?" "- Olha para frente e vê se para de falar..." Na minha vez meu tio sorriu, fez a tal cruz e balbuciou alguma coisa em latim. Eu espionei dentro do cálice e, para mim, aquilo parecia mais um cinzeiro. Minha primeira reação, ao voltar ao banco da igreja, foi a de passar a mão na testa, para tentar tirar aquela marca. Meu pai segurou minha mão e disse que de maneira nenhuma podíamos tirar aquela marca. Era pecado. "- Que nem morder hóstia, pai?" "- Que nem..."- meu pai respondeu, num resmungo. À noite, na cama, a tal cruz começou a coçar. Com o passar do tempo, aquilo tornou- se um suplício. Meus olhos lacrimejavam mas resisti bravamente. Eu não dormi aquela noite. E não encostei na minha testa. Porém, ao me levantar de manhã e ir até o espelho do banheiro, a cruz não estava mais lá. "- É assim mesmo, filho. A cruz some sozinha para mostrar que a gente não tem mais pecados." - meu pai me disse, sorrindo. Vinte e seis anos depois, ateu convicto, fico pensando naquela cruz. E te falo uma coisa: eu não limpei minha testa naquela noite. Juro por deus. De saias 12 de março de 1998 Enquanto conversávamos, eu percebia que o suor escorria de sua testa. A gotícula ia crescendo, conforme descia pelas têmporas. Ao chegar à altura do pescoço, já havia se unido a uma espécie de riacho que descia do rosto e desembocava na gola da camiseta ensopada. Aquilo foi me agoniando, e aquele calor infernal parecia tomar o ar de meus pulmões. Eu já não conseguia compreender as palavras que saiam de sua
  • 20. boca e ele continuava a falar e a falar e aquele calor. Opinei, em vão, para que saíssemos, ao menos, de baixo do sol. Eu olhava para cima (à essa altura a voz do rapaz era apenas um blá-blá-blá interminável) e o sol ardia. Aí, interrompendo sei lá qual assunto, falei: - Eu te digo uma coisa. Eu não me lembro de ter passado tanto calor assim na vida... Ele concordou. Estou em Votuporanga já há anos e realmente essa vez está de amargar. Os dias estão modorrentos e nós nem sabemos se, ao sair do trabalho, queremos ir para uma lanchonete tomar a "fresca" ou ir direto para casa, tomar um banho, deitar debaixo do ventilador e ficar torcendo por uma daquelas chuvinhas de verão que estão caindo nos fins de tarde. Foi aí que ela passou. Uma moça, seus vinte e poucos anos, numa saia esvoaçante, daquele tecido que parece seda, como é o nome daquele tecido? Bom, a moça passou e deixou no ar aquele perfume de shampoo que as garotas costumam deixar quando acabaram de sair de um banho. Ao ser brindada por uma pequena brisa, a garota segurou levemente sua saia de (como é que chama aquele tecido?) seda e sorriu. - Ela não parece estar ligando para o calor... - meu companheiro disse. É. Não parecia. Não havia sinais de suor, muito pelo contrário. Ela parecia estar gostando daquele sol infernal. - É a saia - falei. - O quê? - É a saia. Usando saias, nós também não estaríamos assim, com tanto calor - respondi, olhando nossas grossas calças jeans - Agora me responda: Por que é que só as mulheres podem usar saias? Eu te falo uma coisa, eu já li uma vez que em 1956 um cara até famoso, o Flávio de Carvalho, saiu andando pelas ruas de São Paulo de saias. E ele era um homem de quase dois metros de altura e famoso na época. Era arquiteto e participou até da Semana de Arte Moderna. Ele ficou com calor, usou saias. - E aí? - E aí que eu vou comprar umas saias. Cansei do calor, eu não consigo pensar direito com esse calor todo. Está resolvido, vou comprar saias é agora mesmo. Mini-saias!!! E saí, deixando meu companheiro boquiaberto. Lógicamente não comprei saia nenhuma, mas pelo menos não tive mais que ficar ouvindo a conversa daquele fulano. Quando cheguei em casa, tirei a camiseta e me joguei no sofá. Minha esposa se chegou e perguntou como é que eu estava. Eu respondi com uma pergunta: - Como é que se chama aquele tecido que se parece com seda? Aquele, enrugadinho... Caminhadas 15 de março de 1998 - Pois eu, logo que acordo, vou fazer uma caminhada... Meu deus, pensei. Outro desses. Agora ele vai querer me convencer a fazer o mesmo. É só esperar..."- E você? Não faz uma caminhada de manhã?" - Não. Não faço. Aí ele começou com aquele papo. Que era uma coisa que tinha mudado a vida dele. Que ele se sentia muito mais disposto no decorrer do dia, com vontade de trabalhar. Essas coisas. Que, além de tudo, sua saúde melhorara sensivelmente. Estava se sentindo saudável, diminuiu o cigarro. Até a bebida diminuiu. Parabenizei-o. São coisas realmente difíceis de se conseguir. E veja só, apenas com uma caminhada diária..."- E não é só isso... - animou-se, puxando-me para mais perto, quase
  • 21. fofocando - Até as mulheres começaram a me olhar de outra maneira. Mais sensuais, entende?" É. Tinha lógica. Provavelmente ele deve ter perdido uns quilinhos. E, se diminuiu a bebida e os cigarros, sua conversa deve ter melhorado um pouco. E seu hálito. - Você não quer começar a fazer essa caminhada comigo? É só uma hora por dia... Não dói. Eu sabia. Demorou até mais que imaginei. Argumentei que não estava precisando. Estava até me sentindo meio magro. Me sinto tão disposto a trabalhar quanto qualquer um. E já não bebo há alguns anos. Recomendações médicas... Mas meus argumentos, pelo visto, foram insuficientes. - Mas não é só isso. O gostoso da coisa toda é ir olhando a cidade, as ruas vazias, o céu. É um horário gostoso, não temos o que fazer naquela hora e meia. Ficamos com o tempo livre para observarmos melhor as coisas, sem pressa... É. Ele agora estava com uma boa argumentação. Falou da vez em que viu umas nuvens e ficou, a caminhada inteira, seguindo-as com o olhar e percebendo como se transformavam. E da vez que viu um pássaro grande, parecia uma siriema, ali no centro, perto da concha acústica. Falou também do bêbado que ele encontrava todos os dias, voltando para casa, e que eles se cumprimentavam ao se cruzarem, quase sempre na mesma esquina. Era um bêbado pontual, ele riu. E disse para mim que aquilo era uma espécie de terapia. Eu tinha que experimentar. Para te falar a verdade eu ando meio "estressado". Quem não anda? Aquelas últimas idéias me soaram até que bem. Uma hora e meia, só para a gente mesmo. Não é todo mundo que tem uma hora e meia no dia para organizar melhor os pensamentos. - Até onde? - perguntei. - Até onde o que? - Até onde você caminha? - Às vezes até o Pozzobon, às vezes até mais... Ele morava perto da CESP. Caminhava até o Pozzobon. Era longe. Às vezes mais longe ainda. Respondi que ia pensar. Mas, para ser sincero, estava precisando desse tempo diário para relaxar. Acordei disposto. Coloquei uma roupa leve. O despertador havia feito sua parte e me acordou uma hora e meia antes. Ainda amanhecia. Beijei minha esposa, ainda dormindo. Saí sem muito barulho. Parti por uma dessas vicinais de terra. Parei à beira de um pasto. Desci do carro e fiquei olhando as nuvens e os pássaros. Suspirei: - Uma hora e meia, só para mim... Um sonho de valsa 31 de março de 1998 Outro dia desses eu li, não me lembro onde: mediram as ondas elétricas que nosso cérebro emite quando a pessoa amada está em nossa presença. A pessoa amada, veja bem. Não a pessoa pela qual temos alguma atração sexual. Aquela pessoa pela qual suspiramos de vez em quando, até hoje, mesmo depois de tanto tempo juntos. Aquela pessoa, sabe? Você sabe quem é. Todos sabemos. Eu tenho guardada a reportagem em algum lugar, junto àqueles livros empoeirados no quartinho lá no fundo de casa. Se alguém quiser saber mais, me procure. Eu não vou procurar agora. Mas lá na reportagem tinha os nomes das tais ondas, captadas por eletrodos colados na cabeça de uns fulanos e impressas naqueles gráficos que ficam rabiscadinhos, com altos e baixos, sabe? aparece muito naqueles filmes de hospital, quando o paciente está tendo um ataque cardíaco ou algo assim.
  • 22. O que estou querendo dizer é que conseguiram medir o "amor". Vejam vocês... Eles mediram outras coisas também. A raiva. A tristeza. Coisas assim. E cada sentimento com seu gráfico particular, cada um bem diferente um do outro. Volto a insistir que tudo isso é científico. Provado e tudo. Saiu numa dessa revistas européias especializadas em publicar estudos avançados. Bem, vamos à parte boa da coisa toda. Um dos pacientes comeu um chocolate. O chocolate, a marca, não foi especificado. Pode ser um diamante negro ou um prestígio. Sei lá. Pois mediram as ondas que o cérebro do homem emitia ao degustar um chocolate. E imprimiram um gráfico. Resultado: igualzinho ao gráfico do amor. O ser humano, ao ingerir um chocolate, emite ondas cerebrais idênticas às que emite quando na presença de sua paixão. Há algum tempo atrás já haviam descoberto que o chocolate possui em sua fórmula alguns dos componentes ativos da cannabis. Cannabis, meu caro, se você não sabe, é a tal da maconha. Agora descobrem que o chocolate e o amor são mais ou menos a mesma coisa para o cérebro. Se houve Adão, se houve Eva, se houve serpente, talvez não uma maçã. Talvez o cacau. Há algo de perverso nisso tudo. Eu me lembro de minha primeira namorada. Quem não lembra? E lembro que, na minha cabeça de adolescente, aquela torrente de sentimentos era algo indecifrável. Um mistério que beirava o caos. Não havia maneiras de me concentrar em mais nada. As noites mal dormidas eram um martírio. Me lembro de sentir tremores. Ok, estou exagerando um pouco. Mas as lembranças que me vêm são exageradas. O chamado do telefone era ao mesmo tempo um alívio e uma preocupação. As esperas, ah, as esperas... Imaginando se ela viria ao encontro. Que talvez não devesse ter falado daquele jeito com ela a noite passada. Que agora ela não viria mais. De repente, tudo isso esquecido quando a vemos descer do carro e olhar para gente, sorrindo. Uma sensação de paz e tranquilidade. Só comparável a ... comer um chocolate? Juntos 02 de abril de 1998 (para Telma) Estávamos sentados num gramado. Não me lembro das formigas, mas me lembro da borboleta. Você lembra daquela borboleta? (ela disse que lembrava). Eu lembro que estava meio calor. Não estava? (ela disse que não, estava até meio frio). Porque é que estávamos lá mesmo? (ela também não se lembrava, ou se lembrava vagamente). Eu sei que tinha um cheiro. Não sei se era do seu shampoo. O sabonete ou sei lá, das flores. Tinha flores, não tinha? (tinha, ela disse). Então era das flores. Aquele cheiro. Era domingo ou algo assim (não era não, era um dia de semana). Nós estávamos faltando do emprego? Mas eu nunca faltava de meu emprego (faltou aquela vez). E depois a gente foi passear lá no bosque. Antes tomamos uma cerveja num barzinho, não foi? (foi, era um barzinho escuro e o dono colocou uma mesa na calçada e ficou olhando para a gente, parecia que ele estava com inveja da gente, lembra? você ainda comentou). Eu não lembrava nada daquilo. Nem da mesa do bar. Mas lembrava daquele dia. Perfeitamente. E depois fomos para o bosque (foi). E passeamos naquelas trilhas que o bosque tem, tudo era meio úmido. Eu lembro agora. Estava meio frio mesmo. Havia até uma certa neblina. Neblina tinha, não tinha? (não lembro, acho que tinha sim). Tinha sim. Neblina eu tenho certeza que tinha. E eu lembro que o pavão abriu o leque colorido para você.
  • 23. E nós dois ficamos olhando para ele e eu comentei que os pavões não precisam de alucinógenos. Eles tinham um no rabo. E nós rimos. (é, disse ela, rindo). E eu ri também. Quantos anos depois? Quantos anos já fazem? (uns quatorze, quinze, menos eu acho, acho que fazem treze anos). É mais ou menos a idade da filha. Quantos anos está a Gabi mesmo? Treze? (doze, ela falou). Doze anos. Veja você... Mas ela está para fazer aniversário. São quase treze anos (é). Eu lembro que eu ia para a praça pedir diretas-já (é mesmo! tinha aquelas passeatas e tudo). É, tinha. E aquelas rosas amarelas que a gente andava na lapela. Lembra quando fomos votar de branco. Era o símbolo da campanha do Suplicy. Era para senador? (deputado? não, era senador mesmo, fomos nós três, você, a Gabi e eu). A Gabriela já tinha nascido? (tinha, estava aprendendo a andar, ela foi de branco também). E hoje o Lula quer fazer acordo com o Quércia... Veja só, como o tempo passa (é). Ainda teve a vez do "fora-Collor", lembra? (lembro, mas isso já é bem mais recente). É. E eu pendurei uma bandeira preta na frente da padaria. Para protestar, lembra? (lembro). E quando o Collor caiu, de gozação, eu mandei imprimir na gráfica uns panfletinhos escritos "fora-Itamar" (é, e meu pai ficou bem bravo com você). Foi mesmo. E nós rimos de novo. Quatorze anos. Às vezes eu achava que não ia durar (eu também, lembra aquela menina que morava comigo? dizia que não ia durar e eu ficava encanada). Eu lembro dela. Como ela se chamava mesmo? (nem lembro). Ficamos em silêncio uns minutos. Aí a Elba Ramalho cantou a última frase da música. "Pavão Misterioso", sabe? ...não temas, minha donzela, nossa sorte nessa guerra... Pouco depois fomos dormir. É bom não estar sozinho. Conversa franca 14 de abril de 1998 - Pai, a gente precisa voltar... - Porquê? - Esqueci uma coisa. Já tinha esquecido ontem. Hoje tenho que levar. Fiquei olhando para a escola. Todas as crianças entrando e os pais indo embora. E minha filha tinha esquecido uma coisa. - Que coisa? - Um negócio lá, para a aula de arte. Aula de arte. O que será que essas professoras dão numa aula de arte? Essas pinturas modernas, nem precisa muita técnica. E para um trabalho escolar sempre tem aqueles arquivos no computador, com uns desenhinhos. Não precisa nem saber desenhar mais. Olhei no relógio. Dava tempo de voltar para casa, pegar a tal coisa e voltar. Com folga. - Mas é importante mesmo? - É, pai. Vamos, se não não vai dar tempo. Engatei primeira e saí. Bravo. Não sei também por que fiquei bravo. Não tinha nada para fazer até lá pelas oito da manhã. Em vez de ficar em casa vendo aqueles desenhos animados idiotas, ficaria um pouco mais com minha filha. Bater um papo... - E as coisas, filha? Como vão? - Ahn ? - As coisas, filha...Como vão indo para você? - Ahn...Bem., eu acho. Que coisas?
  • 24. Que coisas? Boa pergunta. O que é que eu posso perguntar para uma garota de doze anos? Posso perguntar como é que ela vai na escola. Ou se ela já arrumou algum paquera. É isso. - E então? Como é que vão as coisas na escola? Já arrumou algum paquera? - É...Tem um carinha, mas não é nada não... - Ah... Aí, idiota. Ela tem um paquera. E agora? O que é que você fala? Sua filha de doze anos tem um paquera. Veja só...Ela não é muito nova? Doze anos... Perguntar para alguém. Se é normal ou não. O que é que eu fazia mesmo com doze anos? Eu não lembro de uma paquera. Para falar a verdade, eu não me lembro dos meus doze anos. - Pai, cuidado com o cara aí, da bicicleta... - Eu estou vendo filha... Chegamos em casa e ela desceu. Olhei para ela. Uma mocinha. Colocando a chave na porta, entrando, logo depois saindo, com um embrulho na mão. A coisa. E se fosse um presente para o tal namorado? Ela esqueceu do aniversário dele ontem, tinha que levar hoje. É isso. - Isso aí é o presente do seu namorado, não é? - eu disse, saindo com o carro. - Que namorado? Pai, é um moleque lá que eu dou umas olhadas. Que nem o Leonardo de Caprio, acho ele bonitinho, só isso. Não é namorado. - Então o que é essa coisa? Estávamos já quase de volta na escola. O trânsito começava a piorar, os pais parando em fila dupla, crianças atravessando. Minha filha olhou para mim e riu, mas começou a desembrulhar o presente do namorado. Chegamos à entrada da escola e ela me mostrou: uma caixa de giz de cera. - É para a aula de artes, pai...Tchau. Eu fui embora mais devagar que o de costume. Pensando no dia que ela nasceu, naquele dia que ela foi atropelada e eu desmaiei de susto e nem consegui ajudar, na primeira vez que ela viu o mar. E agora, veja só...Minha filha está namorando... - E namorando um artista...- pensei, resignado - Um artista... Viagra: Desenterrando Maristela 14 de maio de 1998 Já era pai de família. Três filhos: duas meninas mais velhas e um garoto de quinze anos. Não precisava provar mais nada para ninguém. Nem para a esposa, que estava muito satisfeita, obrigado. O problema era com ele mesmo. Tentava não pensar no assunto mas, todas as vezes que via a notícia no jornal ou na televisão, a maldita idéia voltava a perturbar. Ficou esperando o tal do remédio ser liberado para o Brasil. As pessoas estavam mandando importar, não ia demorar muito. Leu no jornal que a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária estava tentando, junto à empresa fabricante, a antecipação da comercialização do produto. Na mesma reportagem havia uma descrição aproximada do comprimido: um lozangozinho azul. Chegava em casa à noite, cansado, e ia dormir. Não queria pensar no assunto mas, em seus sonhos, o maldito comprimido surgia. Aparecia como um balão, às vezes. Flutuando e azul. Em outras aparecia como uma estrela no céu. Numa dessas noites tentou manter uma relação sexual com a esposa e não conseguiu. Nunca mais havia acontecido. Nem com a esposa nem com qualquer outra. Desde aquele dia, há trinta anos atrás. Ele tinha quinze. Dois amigos mais velhos resolveram ir na zona. Perguntaram se ele queria ir. Não podia dizer que não, o que iriam dizer? Foi. Os amigos tomaram umas cervejas e ele tomou também. Aí os amigos começaram a brincar com ele, dizendo que era virgem. Ora, se ele era, se ele
  • 25. não era, ninguém tinha nada com isso. O que não podia aguentar era aquela gozação. Disse que não era. Então os amigos pagaram um mulher adiantado. A filha da dona. Ele estava meio bêbado, não lembra direito o que aconteceu depois. Lembra que foram para o quarto e ele não conseguiu nada. Perguntou quanto eles tinham pago para ela. Maristela disse. Ela se chamava Maristela. Ele pagou o dobro para ela não falar. Que ele não tinha conseguido, entende? E nunca mais conseguiu esquecer aquele dia. Ficou incrustado assim, na sua cabeça. O dia, o nome da prostituta e a casa em que estavam. E agora lançam esse comprimido que causa a ereção uma hora depois de ingerido. Uma maravilha. Só que inventada trinta anos atrasada. O Viagra, enfim, chega ao Brasil. Não é barato. Vai até à farmácia e compra uma cartela. Não precisa de mais que uma. Doze comprimidos. Viagra. É um nome danado para um remédio para...para isso. Parece ser de uma coisa, sei lá, ilegal. Pega o ônibus no dia seguinte e, em vez de ir para o emprego, vai até aquele bairro. Se lembrava mais ou menos. Ela ainda deve trabalhar por lá. Essas mulheres não mudam de vida. E ela era filha da dona. Maristela. No trajeto tomou um comprimido. Uma hora, dizia a bula. Uma hora e faria efeito. Continuou lendo. Informações ao paciente: Cuidado, pode causar priapismo. O que diabo seria priapismo? Parou de ler. Não ia querer ficar preocupado. Não hoje. O ônibus chegou. Fim da linha, estavam quase fora da cidade. Era ali mesmo. Sabia o caminho de cor. Sonhou quantas vezes esses anos todos. Achou a casa. Entrou. Algumas mulheres na sala. Não estavam acostumadas com fregueses assim, de manhã. Perguntou se alguém conhecia a Maristela. - A filha da dona. As mulheres se olharam e disseram que sim, conheciam a Maristela. Uma delas se levantou e disse que iria chamá-la. Talvez demorasse um pouco. Ele se sentou e pediu um copo de água. Tomou mais dois Viagra. O que será priapismo? Quinze minutos, meia hora. Sentiu que estava ficando excitado. Muito excitado. Quarenta minutos, entra no recinto uma senhora, seus sessenta, sessenta e poucos anos: - Pois não. O senhor queria me ver? Trinta anos. Como você foi estúpido. - Desculpe, não. Quer dizer, foi um engano. Obrigado. Bom...ãhm...trabalho. Bom dia para todas. E foi embora. Com uma senhora ereção e a sensação que estava velho. Mais velho que a Maristela. - Eu estou é ficando gagá... - e riu sozinho, no ônibus, voltando para casa. Para sua mulher e seus três filhos. Duas meninas e um garoto. De quinze anos. obs: priamismo é uma ereção descontrolada e constante. O Viagra ainda não tinha sido liberado no Brasil. Quanto foi? 11 de junho de 1998 Era um velório. O que é que se podia fazer? Há um defunto, há um velório. Mesmo os mais chegados, os que realmente sentiam alguma coisa mais forte pelo defunto, sabiam. Dia errado. Já se esperava algum constrangimento. Os médicos disseram para enterrá-lo logo depois do meio-dia. Eles se entreolharam e, constrangidos, aceitaram. Mas não dava. Jogo da seleção. Abertura da Copa. Quando informavam o horário do enterro para os amigos, diziam: - Depois das duas, lá pelas três da tarde. Era uma boa hora. Haveria tempo para as pessoas colocarem seus humores nos devidos lugares. Lá pelas onze só restavam os filhos. Nem os primos que vieram lá do Rio de Janeiro ficaram. Mas era compreensível. Não havia clima. O filho mais novo quase foi com um dos primos cariocas. Disse que era preciso alguém para fazer sala para as visitas. A irmã e o irmão mais velho fuzilaram olhares. Ele desistiu da idéia e
  • 26. sentou-se, mal disfarçando o mau humor. Lá pelo meio-dia começaram a pipocar os rojões. Primeiro tímidos, depois ensurdecedores. Os três irmãos se entreolharam. Já tinham conversado sobre isso. Era esperado. Ficariam calmos, não havia o que fazer. Quietos, deixaram os minutos passarem. Meio-dia e meia. O silêncio do velório só era cortado pelo barulho do isqueiro, acendendo mais um cigarro do filho mais novo, e pelos suspiros da irmã. A cada suspiro da irmã os dois irmãos se revolviam nas cadeiras de madeira. Olhavam para ela e se sentiam culpados. O pai ali, morto, e seus pensamentos voltados para coisas tão...tão...mundanas... Ouviram rojões novamente. Os dois irmãos se olharam. O mais velho se levantou e sentou-se próximo ao mais novo: - O que é que você acha? - O que eu acho do quê? - Ora, você sabe, os rojões... O mais novo disfarçou um sorriso. - Não sei. Com a Argentina eu ouvi uns rojões. Têm uns caras que quando o Brasil joga mal, torcem para o outro, de sacanagem. O mais velho se levantou. Pediu um cigarro para o mais novo e foi até a entrada do velório. Ninguém. Absolutamente ninguém. - Podia ter um barzinho aqui por perto, nem isso. A irmã suspirou, trazendo-o de volta. Olhou para o pai, ali no caixão. Acendeu o cigarro. Estava parando de fumar, mas não hoje. Voltou a se sentar com o irmão. Repararam na irmã. O olhar perdido. De vez em quando um suspiro. Invejavam a sua integridade naquele momento desconfortável. Os amigos com desculpas esfarrapadas abandonaram o velório. E ela suportando tudo, firme. Certo, o pai já vinha doente. Já estavam conformados há tempos. Mas nada que desculpasse estarem alheios ao momento fúnebre. A irmã não. Ela demonstrava sua dor. De vez em quando, lágrimas rolavam de seus olhos. E suspiros. Passaram-se mais alguns incontáveis minutos e um senhor, velho amigo de seu pai, entra pela porta do velório. Os três, quase que surpresos, encaram o homem. Ele se dirige à moça. A abraça e lhe dá os pêsames. Depois vem em direção a eles. - Pergunta para ele, o mais novo fala, ao ouvido do irmão. - Pergunta o quê? - Quanto está o jogo, ué...O que é que você acha? - Pergunta você... Onde é que já se viu? Nenhum dos dois perguntou. O velho ficou mais alguns momentos, rezou um pouco. Ou, pelo menos, fez o sinal da cruz. E saiu. Os dois se enervaram um com o outro. O mais velho sentou-se do outro lado da sala. - Perguntar quanto está o jogo... Com o pai ali, morto... Uma hora ou duas depois, os amigos começaram a voltar. O jogo tinha terminado. Eles aguentaram até agora. Não perguntariam para ninguém, até enterrarem o pai. Agora era questão de honra. Pai enterrado, se despediram de todos. Subiram no carro. O irmão mais velho de motorista, a irmã ao lado, o mais novo atrás. - O que é isso na sua orelha? - o mais novo perguntou para a irmã, apontado um pequeno volume que lhe saltava do ouvido. - O quê? Isso? É...É...para surdez. Eu não ando escutando muito bem... O irmão puxou da orelha dela: um radinho AM/FM. Do Paraguai. A luta continua 02 de julho de 1998 Ela começou a falar e falar. Falar que as coisas não podiam ficar do jeito que estão. - Você entende?, ela perguntava. Eu com a cabeça dizia que sim. Ela continuava. Dizia
  • 27. que seria muito mais fácil se as pessoas dividissem as coisas, se houvesse uma espécie de teto para os salários. - Por que a gente precisa tanto do lixeiro quanto do médico, não precisa? Eu respondia que sim. É claro. Tanto do médico quanto do lixeiro. - Ou dos advogados, eu disse. - É isso. Você está pegando a idéia. E dizia que ninguém podia viver assim, fingindo que não via. Que era hora de se unir. As pessoas precisam de mais espírito de luta. Os estudantes têm esse espírito de luta. - E os intelectuais têm o respeito da sociedade... Têm que se unir, criar um movimento, sei lá... Eu me levantei e fui tomar um café. Falei para ela esperar um pouco, eu ia até ali fora, fumar um cigarro. Eu não gostava de fumar em ambientes fechados. Ainda mais com uma criança de dezesseis anos por perto. Ela me disse que podia fumar. Ela mesma já havia dado uns tragos. Não achou graça, mas cada um podia fazer o que bem entendesse na vida. Era mais uma coisa que ficava martelando a cabeça dela. Por que é que as pessoas interferiam tanto na vida umas das outras. Será que não podiam tomar conta das próprias vidas? Por ela, liberavam tudo. - Drogas, tudo... Ela vinha me seguindo, lá para fora. Chegamos na varanda e eu acendi meu cigarro. Dei um trago comprido, tentando parecer pensativo. Olhei para ela e perguntei: - E de que maneira você pretende implantar essas suas idéias? Ela me disse que já tinha uma porção de amigos, que se reuniam toda semana. Que eles faziam até planos. Precisavam fazer panfletos, espalhar a idéia. Por que não era uma idéia regional. Era uma coisa que poderia se transformar numa bola de neve. - Quem é que não quer igualdade? Todo mundo quer igualdade. Até as religiões querem a igualdade. Embora as religiões também sirvam para amansar a população, mas essa é outra história. O que estou querendo dizer é que para difundir as idéias é preciso dinheiro. Para tudo precisa dinheiro. E dinheiro só os que não querem mudanças têm. Então (nesse ponto ela olhou em volta e abaixou o tom de voz) nós achamos que devemos tirar dinheiro na marra. Sequestros, sei lá. Mas só de banqueiros, esses caras. Tipos Robin Hood, entende? - Entendo, eu disse, dando outro trago no cigarro e soltando a fumaça pelo nariz. Ela continuou dizendo que tinha uns amigos que entendiam demais de computador. Eram hacker's. Explicou que hacker's são caras que entram em outros computadores pela internet e fazem o que querem. Perguntou se eu nunca tinha ouvido falar neles, já tinham entrado até nos computadores da CIA. Eu já tinha ouvido falar. - E o que é que tem os hacher's?, perguntei. Ela respondeu que os amigos dela poderiam entrar nos computadores do governo, desativar cobranças de impostos, trocar números de contas bancárias. Instalar o caos. E aí eles se aproveitariam e...tomariam o poder!!! - Tomariam o quê? - O poder! Tomaríamos o poder! Fundaríamos uma sociedade mais justa, onde a riqueza do país fosse dividida igualitáriamente. Logo outros países veriam que esse é o único modo possível de viver. Se aliariam a nós, num imenso bloco. Seríamos a outra face do neo-liberalismo. Você não entende? Eu estou falando do futuro. Um futuro que, queiramos ou não, vai acontecer. O homem evolui para isso. Seria a sociedade perfeita! Eu acabei meu cigarro. Joguei no chão e pisei, esmagando os últimos sinais de brasa com a ponta do sapato. Sorri. Ela tinha acabado de inventar o comunismo.
  • 28. Uma gata 14 de julho de 1998 Era noite e ela ainda não havia voltado. Fez de conta que não estava ligando, continuou assistindo TV como se não estivesse acontecendo nada. Olhava pela janela de vez em quando. Voltava para a frente da TV, controle remoto na mão. Ficava olhando a telinha azul despencando imagens sem sentido. O controle remoto criou uma nova programação. São programas onde imagens aleatórias de desenhos animados e de comentaristas políticos se intercalam, numa corrida sem sentido. São programas diferentes todos os dias, mas iguais em sua falta de objetividade. Desligou a TV, ligou o aparelho de som. Sintonizou uma rádio, para não precisar ficar trocando de CD. A música sertaneja invadiu as FM’s. Ele era do tempo em que as FM’s só tocavam música americana. Ou MPB. Não faz muito tempo não, até você deve se lembrar. E agora...só sertaneja. Ou pagode, essas coisas. Levantou e olhou pela janela de novo. O relógio. Ela devia ter chegado há mais de três horas. Deveria haver uma explicação lógica. Começou a tocar outra do Leandro e Leonardo. Resolveu colocar um CD. Aquela casa estava uma confusão. Procurou. Entre suas coisas tinha um CD com a trilha sonora do "Blade Runner", não achava. Desistiu de procurar. Devia estar perdido debaixo de alguma dessas almofadas. Ela gosta de almofadas. Tinha tantas por causa dela. Primeiro gostava daquelas menores, depois ele começou a trazer para casa aqueles almofadões. Deitavam e ficavam assistindo TV. Eles nem sentavam mais no sofá. Com o tempo, dispensou os dois módulos, um com três lugares, outro com dois. A sala ficou maior, arrumou mais almofadas. A sala estava lotada. Tropeçava nelas quando entrava em casa, no escuro. De vez em quando ela estava ali, enroscada com as almofadas, dormindo. Tropeçava nela também. Às vezes se agarrava em suas pernas e o fazia cair. Ele ria, se abraçava a ela e fazia cócegas na sua barriga. Ela não aguentava cócegas na barriga. Se davam bem. Resolveu comer um pouco. Foi até a cozinha e esquentou um pouco de leite. Um pouco de leite quente o acalmava. Fez uma gemada. Bateu as gemas com açúcar e colocou no leite. Ficou mexendo com a colher de pau, até dissolver bem. Ela adorava gemada. Deixou um pouco na caneca, no caso dela voltar. Abriu a geladeira e tinha uma bolachas de maizena no pacote aberto. Pegou algumas. Gemada e bolachas maizena. É o que há. Agora sim, havia ficado bem tarde. Novamente se aproximou da janela, a xícara com a gemada na mão, deu uma última expiada. Talvez não volte hoje. Já havia feito isso muitas vezes. Acabava voltando. Voltava com o rabo entre as pernas, como que a pedir perdão. Ele sorria e sempre a desculpava. Não era de guardar rancores. Mais uma hora ou duas se passaram, percebeu que iria dormir sozinho aquela noite. Ligou a TV novamente. Deixou na Globo mesmo, a transmissão não se interrompia. Sempre acordava quando deixava em outros canais, a programação acabava, acordava com o chiado da TV fora do ar. A Globo ficava a noite inteira. Arrumou umas almofadas, se deitou. Estava passando um filme de adolescentes de férias, seios, garotas loiras de biquini. Os olhos começaram a piscar. Fechou os olhos. Ainda ouvia o filme, depois nem isso. Dormiu. Acordou com o hálito quente e forte dela. Era um cheiro conhecido. Depois de um tempo a gente se acostuma com os cheiros. Ela tinha um hálito diferente, adocicado. Sentia até saudades daquele cheiro. Ela se acomodou ao seu lado, buscando o calor de seu corpo. Ele a abraçou e sorriu. Ela sempre voltava.
  • 29. Atenção dona de casa 01 de agosto de 1998 "Caminhão carregado com galinhas "Cross" de 2,3 kg está com problemas mecânicos em frente ao Posto do Villar. Sendo a carga composta de animais vivos, precisamos vendê-la urgentemente. Os preços estão pela metade do custo...São 5 galinhas "Cross" por R$5,00 ou 12 por R$10,00 e você ainda leva ovos de brinde. Favor levar sacos ou sacolas. Somente hoje..." O rádio estava insistente. Perguntei para a cozinheira, lá do serviço, se era um bom preço. - Ótimo preço, sim senhor. Para estar vendendo assim, o dono deve estar em apuros. Cocei a cabeça. Galinhas vivas. Mas, segundo ela, estava mesmo valendo a pena. (pena?). O problema seria matá-las. Por que uma coisa é você tirar um frango de dentro de um saco plástico, destrinchar e colocar dentro de uma panela de pressão e outra, bem diferente, é você olhar para a cara de uma galinha, e ela ali, olhando para você. Ela deve olhar para gente, não deve? E aí a gente pah! corta a cabeça dela. Sangue. Sangra, não sangra? - Sangra, confirmou a cozinheira. E bastante. Então. Não sei se eu dou conta. Um amigo um dia viu uma galinha botar um ovo. Nunca mais comeu nem omelete. - Faz o seguinte. O senhor vai lá, compra e trás aqui. Eu mato para o senhor. E limpo. - Por que limpa? Ela vem suja? - As penas. Tem que tirar as penas... Ah é. As penas. Tinha me esquecido das penas. Combinei lá, com ela. Depois do almoço eu traria as galinhas. - E você limpa as cinco? - Doze. Se o senhor não se incomodar, pode trazer doze que eu vou levar umas para casa, para criar no quintal...São doze por dez, não é? Era. Doze galinhas por dez reais. E não eram galinhas quaisquer. Galinhas Cross. - Como é que são as Galinhas Cross? - São galinhas, como as outras, só que de marca. De raça, ela devia estar querendo dizer. Quase hora do almoço. Comecei a procurar por lá uns sacos, ou sacolas. O rapaz pedia no rádio: levar sacos. Entrei na cozinha do emprego e dei uma procurada. Dentro de um armarinho encontrei um pacote de Sanito, desses pretos, grandes. Achei que dava. Em vez de ir para casa, almoçar, fui para o Posto do Villar. Comprar galinhas. Uma fila enorme. Não deu nem para almoçar. Paguei primeiro e disse que vinha com o carro até ali. A gente já joga as galinhas para dentro. Melhor, não é? - É, não se preocupe. E elas estão com as pernas amarradas. Não vão sair por aí, correndo. Encostei o carro ao lado do caminhão. O rapaz veio com as galinhas. Peguei os sacos e comecei a abrir. Cabiam umas três galinhas em cada um. Fomos ajeitando aqui e ali. - Amarra bem a boca do saco. O rapaz ria e falava que não era bom, elas poderiam morrer sufocadas. É mesmo. Galinha respira. Deixamos as bocas dos sacos meio abertas. Paguei os dez reais. Dei uma última olhada para o caminhão e para as galinhas. O rapaz não ia ter muito prejuízo. Pelo jeito, ia vender tudo até a tarde. Cheiro forte. De ração, de galinha, sei lá. Abri as janelas do carro, para ventilar. As galinhas começaram a cacarejar. Penas começaram a fazer redemoinhos. O carpete, os bancos, meu cabelo, tudo coberto de penas. Uma delas, acho que com o bico, rasgou o saco. Começou a bater as asas, achei que ia sair voando. Galinhas voam? Fechei as janelas.