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Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio




                              68
                (Corresponde ao sexto tópico do Capítulo 8,
               intitulado Os mantenedores do velho mundo)




                     Fabricantes de guerras

O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos

Fabricantes de guerras são, stricto sensu, os chefes militares e, lato sensu,
os que pervertem a política como arte da guerra e os que se entregam à
competição adversarial tendo como objetivo destruir seus concorrentes.
São, todos, predadores. O predador (humano) é uma máquina de converter
o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar que não existem
inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é circunstancial e pode
ser desconstituída pela aceitação do outro no próprio espaço de vida, pelo
acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação. Assim, o (único) inimigo que
existe mesmo é o fazedor de inimigos.
Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente. O
predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte
(que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda porque
quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual antropofágico
em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo, para usar a
expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à guerra do
bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é que “o
recurso da guerra é em si o mal” (16).

Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate,
derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas,
hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de
guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito, como
uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra. Estrategistas de
qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços – chamem-se
Winston Churchill ou Michel Porter – são fabricantes de guerras. Boa parte
dos incensados consultores de empresas da atualidade são fabricantes de
guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra para as estratégias
empresariais que transformam o concorrente em inimigo.

É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é
sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra
declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte
da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro
como inimigo.




                                     2
Nota

(16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão interior” in
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra: o potencial
oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994.




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  • 1. Em pílulas Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 68 (Corresponde ao sexto tópico do Capítulo 8, intitulado Os mantenedores do velho mundo) Fabricantes de guerras O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos Fabricantes de guerras são, stricto sensu, os chefes militares e, lato sensu, os que pervertem a política como arte da guerra e os que se entregam à competição adversarial tendo como objetivo destruir seus concorrentes. São, todos, predadores. O predador (humano) é uma máquina de converter o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar que não existem inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é circunstancial e pode ser desconstituída pela aceitação do outro no próprio espaço de vida, pelo acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação. Assim, o (único) inimigo que existe mesmo é o fazedor de inimigos.
  • 2. Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente. O predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte (que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda porque quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual antropofágico em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo, para usar a expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à guerra do bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é que “o recurso da guerra é em si o mal” (16). Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate, derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas, hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito, como uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra. Estrategistas de qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços – chamem-se Winston Churchill ou Michel Porter – são fabricantes de guerras. Boa parte dos incensados consultores de empresas da atualidade são fabricantes de guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra para as estratégias empresariais que transformam o concorrente em inimigo. É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro como inimigo. 2
  • 3. Nota (16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão interior” in ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São Paulo: Cultrix, 1994. 3