1. Discriminação - uma face da violência nas escolas
Miriam Abramovay1
Anna Lúcia Cunha2
Um raio-x da convivência nas escolas do Distrito Federal pode ser o primeiro
passo para a solução de um problema de todo o Brasil. A Rede de Informação
Tecnológica Latino-Americana (RITLA), em parceria com a Secretaria de Educação do
Distrito Federal (SEDF-GDF), lançou, no mês de maio em Brasília, a pesquisa
Revelando Tramas, Descobrindo Segredos: violência e convivência nas escolas. O
estudo é um dos resultados dessa parceria que executa atualmente o Plano de
Convivência Escolar na Rede Pública de Ensino, e corresponde a um diagnóstico
aprofundado das relações sociais travadas nas escolas: os conflitos latentes e expressos,
as percepções de alunos, professores e equipe de direção sobre as escolas, os conflitos e
as violências. Foi possível, desta maneira, mapear o que se pensa e o que acontece em
relação à violência e à convivência nas escolas do DF.
A iniciativa de desenvolver uma pesquisa sobre convivência escolar e violência
nas escolas com a finalidade de embasar ações concretas, levada a cabo pela SEDF, é
um empreendimento pioneiro no Brasil, demonstrando o real interesse em conhecer o
que se passa nas escolas, para então agir com propriedade para conter as violências.
A pesquisa conjugou metodologias quantitativas e qualitativas para a coleta de
dados. O esforço de trabalhar com as duas abordagens partiu do pressuposto de que a
realidade social deve ser analisada em sua complexidade, o que fez com que a
combinação de técnicas e análises emergissem como opção mais viável. As falas dos
próprios sujeitos possibilitaram, por exemplo, a compreensão da importância dada às
relações sociais (e seus significados) e a identificação das contradições nelas existentes,
enquanto os números coletados permitiram analisar a amplitude dos fenômenos
ocorridos dentro das escolas.
Para a pesquisa quantitativa, foram selecionadas aleatoriamente 84 escolas
públicas de Ensino Regular com mais de 500 alunos. Para a pesquisa qualitativa, foram
selecionadas 16 escolas. De junho a setembro de 2008 foram aplicados cerca de 10 mil
questionários para alunos (do 6º ano do ensino fundamental à 3ª série do ensino médio)
e 1300 para professores e membros da direção. De junho a dezembro de 2008 foram
realizados 62 grupos focais e 9 entrevistas com alunos, professores, equipes de direção,
além de policiais e seguranças privados das escolas. Foram feitas, também, observações
de campo por todos os pesquisadores envolvidos na investigação. Ainda, os alunos das
escolas pesquisadas escreveram redações sobre suas vivências diárias.
O estudo adotou uma noção abrangente de violência, procurando identificar não
apenas manifestações da chamada violência “dura”, mas também mapear manifestações
de violência simbólica e microviolências. Dessa forma, além de ações como furtos,
agressões físicas, ameaças, comércio ou tráfico de drogas, porte de armas e violências
de cunho sexual, foram apontadas também agressões verbais, humilhações e, sobretudo,
as diversas formas de discriminação. É justamente sobre essa última que se dedica este
artigo, tendo em vista que a discriminação corresponde, de fato, a uma violência
bastante expressiva no cotidiano das escolas, com impacto na construção da identidade
de adolescentes e jovens, e que não tem recebido a devida atenção – em grande medida
1
Miriam Abramovay, Socióloga, Coordenadora de Pesquisa da RITLA e Pesquisadora do Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Juventudes, Identidades e Cidadania.
2
Anna Lucia Cunha, Antropóloga e Pesquisada da RITLA
2. pela dificuldade de ser realmente tratada como violência. As demais ações violentas,
também de peso considerável, poderão ser apresentadas em outra oportunidade.
Discriminação nas escolas
Discriminações são violências cometidas contra alunos, professores, membros
da direção, funcionários e demais indivíduos presentes no ambiente escolar, e que traz
consigo um tratamento diferencial de pessoas, geralmente em decorrência de crenças
preconcebidas acerca de atributos e qualidades de indivíduos a partir de características
especificas. A discriminação pode apresentar um forte componente de violência
simbólica3
, entendida como uma “violência que se exerce também pelo poder das
palavras que negam, oprimem ou destroem psicologicamente o outro”4
. Nesse sentido, é
notável o poder da discriminação sofrida, de influência na conformação das identidades
individuais, especialmente quando se trata de alunos, em sua grande maioria crianças,
adolescentes e jovens.
O preconceito e a discriminação estão intimamente ligados à dificuldade de se
lidar com o tido como diferente da norma construída socialmente. Nesse sentido, vale
observar que a “norma”, na sociedade brasileira contemporânea, é personificada pelo
masculino, as classes privilegiadas economicamente, os “brancos”, heterossexuais e
católicos. Afastar-se dela, pois, não é algo de rara ocorrência, ao contrário, como
demonstra a categoria criada por uma aluna: discriminação por ser gente. É imperioso
apontar também que as discriminações, muitas vezes, não aparecem de maneira isolada,
podendo se entrelaçar, coexistir e influenciar-se mutuamente, dentro do emaranhado de
relações e dinâmicas sociais. A discriminação religiosa, por exemplo, tende a se
vincular com o preconceito pela pobreza e com o preconceito racial (especialmente no
tocante às religiões afro-brasileiras), enquanto a homofobia pode relacionar-se com
questões de filiação religiosa.
Os percentuais de discriminação nas escolas são bastante expressivos. Os tipos
de discriminação mais relatados foram a homofobia, apontada por 63,1% dos alunos e
56,5% dos professores, e o racismo, identificado por 55,7% dos alunos e 41,2% dos
professores. Nota-se que os dados de alunos e professores são bastante parecidos quanto
à ordenação das discriminações. No entanto, são os alunos os que relatam ter
presenciado mais discriminações. Mesmo a discriminação religiosa, preconceito com
menores índices de apontamento, apresenta níveis de respostas elevados: 30,9% entre
alunos e 21,9% entre professores.
3
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
4
ZALUAR, A. & LEAL, M.C. Violência extra e intramuros. In: Revista brasileira de Ciências. Sociais.
Vol. 16, nº. 45, 2001.
3. Tipos de discriminação - Alunos
63,1
55,7 54,2
42,3 38,3
30,9
0
10
20
30
40
50
60
70
Discriminação
por a pessoa
ser ou parecer
homossexual
Discriminação
pela raça/cor
Discriminação
pelas roupas
usadas
Discriminação
por a pessoa
ser pobre
Discriminação
pela região de
onde a pessoa
veio
Discriminação
pela religião
Tipos de discriminação - Professores
56,5
41,2 38,4 35,9 33,7
21,9
0
10
20
30
40
50
60
Discriminação
por a pessoa
ser ou parecer
homossexual
Discriminação
pela raça/cor
Discriminação
pelas roupas
usadas
Discriminação
pela região de
onde a pessoa
veio
Discriminação
por a pessoa
ser pobre
Discriminação
pela religião
A homofobia, ou o tratamento discriminatório sofrido por jovens de ambos os
sexos tidos como homossexuais, é um tema até então pouco abordado quando
correlacionado à escola5
. Fora de seus muros, estudos sugerem que os homossexuais
podem ser considerados o grupo minoritário “mais odiado dentre todas as minorias”6
,
sendo inúmeras as violências contra homossexuais no Brasil. A justificativa para
violências contra gays, lésbicas, travestis e transexuais se pauta em uma longa história
ocidental de repressão da afetividade homossexual7
. Em nome de uma sexualidade dita
5
CASTRO, M. ABRAMOVAY, M. & SILVA, L. Juventudes e sexualidade. Brasília: UNESCO, 2004.
6
MOTT, L. Por que os homossexuais são os mais odiados dentre todas as minorias? In: Seminário
Gênero & Cidadania: Tolerância e Distribuição de Justiça (Palestra proferida). Núcleo de Estudos de
Gênero – Pagu, Unicamp, 2000.
7
MOTT, 2000, op. cit; CARRARA, S. & VIANNA, A. A Violência Letal contra Homossexuais no
Município do Rio de Janeiro: características Gerais. In: Publiciones sexualidades, salud y derechos
humanos em America Latina, 2002. Disponível em: <www.ciudadaniasexual.org/publicaciones/1b.pdf>.
Acesso em: janeiro/2009.
4. correta ou normal, a homofobia é legitimada por padrões culturais que condenam
práticas não-heterossexuais.
A porcentagem de rejeição de colegas homossexuais é alarmante: cerca de 27,8%
dos estudantes declararam que não gostariam de ter homossexuais como colegas de
classe. Esse dado é, contudo, bastante sensível ao gênero do respondente. Quando
considerados somente os respondentes do sexo masculino, esse número sobe para 44,%,
ao passo que foi verificado entre os respondentes do sexo feminino um contingente
bastante menor, 14,9%. As falas dos estudantes confirmam essa discrepância entre
meninas e meninos no que se refere ao preconceito: os alunos debocham de quem
parece ser homossexual; Os homens, na maioria, agem de uma maneira quase
homofóbica. Com efeito, em uma cultura machista, a homossexualidade representa uma
afronta à masculinidade/virilidade.
Para profissionais e estudantes da escola, as roupas, assim como o jeito ou a forma
de se comportar, fornecem indicadores da homossexualidade: meu amigo sempre era
chamado de gay pelo estilo dele; Aqui, se a pessoa tiver um jeito estranho para muitos
essa pessoa já é gay. Portanto, não é preciso se assumir homossexual publicamente para
que a discriminação aconteça: o aparentar já é motivo para chacotas, insultos e
humilhações.
Diversas situações causam constrangimento, magoam, ferem a dignidade e geram
baixa autoestima dos estudantes afetados pela homofobia. Podem causar, ainda,
constantes trocas de estudantes de sala, mudanças de escola, abandono e reprovações,
com impacto direto no fracasso escolar. Além das ofensas sofridas, muitos estudantes
identificados como homossexuais são vítimas de agressões físicas: bateram em um
aluno porque ele era homossexual assumido.
A homofobia é pouco trabalhada em salas de aula, tendo a pesquisa identificado
discriminações também de autoria de docentes, que nem sempre adotam uma
perspectiva tolerante quanto ao exercício da sexualidade. Várias escolas não dispõem de
mecanismos que amparam as queixas e denúncias dos alunos, imperando a “lei do
armário”: homossexuais são tidos como aceitos desde que não demonstrem a
homossexualidade.
Outra forma bastante aludida por alunos e professores refere-se à discriminação
por raça/cor. Mais da metade dos estudantes (55,7%), já viu alguma forma de
manifestação da discriminação racial dentro dos colégios: aqui na escola eu vi várias
pessoas discriminando pela cor de outra pessoa. A pesquisa apontou que as relações
raciais assimétricas, que atravessam a sociedade brasileira, são (re)produzidas nas
escolas, gerando conflitos diversos. Múltiplas vivências de situações de racismo foram
relatadas por todas as categorias de pessoas entrevistadas: professores, estudantes e
equipe da direção. Ao contemplar como as relações raciais se estabelecem dentro dos
colégios, pode-se questionar até que ponto a escola está sendo coerente com sua função
social quando se propõe a ser um espaço de preservação e incentivo da diversidade.
Nas últimas duas décadas, os critérios de raça/cor têm sido considerados
essenciais nas pesquisas oficiais brasileiras para se analisar a população em sua
heterogeneidade social, cultural e histórica. O uso desta variável não está vinculado a
uma tentativa de quantificar características biológicas da população, mas está
diretamente relacionado ao reconhecimento de que raça e cor, como categorias sociais,
5. causam impactos importantes nas condições de vida e oportunidades das populações8
. A
raça deve ser compreendida, assim, como signo9
.
Os apelidos atribuídos a pessoas identificadas como negras, por exemplo,
tendem a ser diversos e bastante pejorativos. A ofensa racial cria uma identidade social
estigmatizada, negativa, com profundos impactos na subjetividade. O quadro seguinte
agrupa uma série de apelidos constatados durante a pesquisa, que demonstram a
extremada falta de respeito com a qual os negros podem ser tratados nas escolas.
Apelidos usados em insultos contra pessoas negras
Assolan
Africano
Amendoim
Beiçuda
Cabelo de Bombril/Cabelo ruim
Chiclete de mecânico
Chocolate podre
Churrasquinho
Galinha preta de macumba
Cola de asfalto
Neguinho da favela
Negro safado
Pneu/suco de pneu
Picolé de asfalto
Preta fedida
Gorila
Saci-Pererê
Toalha de mecânico
Zé Pequeno
Torrada queimada
Nota: Os apelidos são provenientes de questões abertas de questionário, entrevistas e grupos focais das pesquisas Revelando tramas,
descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas, 2009.
A simples existência da diversidade racial/cor, ou a pretensa promulgação da
miscigenação como valor, não é suficiente para barrar a existência de preconceito,
também verificada em outras pesquisas. Muitos profissionais responsabilizam a família
do estudante ao explicar as causas do comportamento racista. Essa atitude cria entraves
para perceber que as escolas também apresentam a responsabilidade de trabalhar a
questão do racismo e traçar ações interventivas.
Outra manifestações verificadas nas escolas são as discriminações relacionadas
às desigualdades econômicas. O preconceito contra a pobreza, manifestado de forma
bastante patente na cultura brasileira, hierárquica e classista, é também reproduzido nos
estabelecimentos de ensino. Na discriminação pela pobreza, uma ampla gama de signos
de distinção é acionada em processos de estigmatização/marginalização de indivíduos
ou grupos, criando-se um sistema classificatório a partir do qual determinados hábitos e
bens de consumo podem ser valorizados ou desvalorizados. A discriminação a que são
submetidas as pessoas em situação de maior pobreza compromete a construção de um
sistema educacional igualitário no sentido amplo e, em grande medida, “contribui para a
marginalidade social” ao alimentar o chamado “círculo vicioso” da pobreza10
.
No estudo, a incidência desse tipo discriminação, sobretudo pela perpetuação de
estereótipos sociais, foi reconhecida tanto por alunos quanto por professores e equipe de
direção: cerca de 42,3% dos alunos e 33,7% dos docentes declararam já terem
testemunhado esse tipo de violência na sua escola. Aspectos como o material escolar
utilizado, a ocupação profissional dos pais ou dos próprios alunos (status familiar) e o
8
SCHWARTZMAN, S. Fora de foco: diversidade e identidades étnicas no Brasil. In: Novos Estudos
CEBRAP. Vol. 55. São Paulo, 1999.
9
SEGATO, R. Raça é signo. In: Série Antropologia, no 372. Brasília: Departamento de Antropologia,
Universidade de Brasília, 2005.
10
SALMÓN G., E. O longo caminho da luta contra a pobreza e seu alentador encontro com os direitos
humanos. In: Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos. Vol.4, nº 7. São Paulo, 2007
6. local de moradia destacam-se nas dinâmicas de estigmatização. Uma aluna declarou,
por exemplo, que: onde eu moro tem muita poeira, então todos me discriminam porque
meus pés e minhas unhas são um pouco empoeiradas. Segundo uma professora, não é
difícil notar em sala de aula falas de alunos como: a mãe do fulano é carroceira, a mãe
do fulano cata latinha. Não raros são os apelidos endereçados àqueles considerados os
mais pobres, inseridos em relações que reatualizam uma óptica elitista através da qual o
outro é apreendido.
Os seguintes comentários são ilustrativos de situações problemáticas
encontradas no dia-a-dia da escola.
Fui humilhada por ser uma garota pobre e humilde.
As pessoas que são melhores de situação geralmente não querem se misturar com aqueles
que são ruins de situação.
Todos os dias eu vejo alguns alunos zoando os mais pobres.
Fui humilhada muitas vezes na escola por ser uma garota pobre e humilde.
Eu já sofri por ser de baixa renda, mas eu não me importo, eu sou do jeito que eu sou.
Só tenho a dizer que eles zombam de mim só porque eu moro na central e meu barraco é
pequeno, mas se Deus quiser vou trabalhar e ajudar minha mãe.
Fonte: RITLA, Pesquisa “Revelando tramas, descobrindo segredos: violência e convivência nas escolas”, 2008.
Nota: Depoimentos retirados das perguntas abertas do questionário.
A discriminação pelas roupas usadas estão profundamente entrelaçadas com a
discriminação pela pobreza. Se a questão da aparência tem grande valor na sociedade
atual, atravessando regiões e espaços diversos, ela talvez tenda a ganhar saliência
especial no ambiente das escolas, uma vez que as culturas juvenis são informadas
sobremaneira pelos signos de moda e consumo, os quais seguem uma lógica de
distinção (e claramente de inserção) que imputa aos artigos de vestuário uma dimensão
fundamental. De acordo com uma estudante, eles [os alunos] olham muito pela
aparência física... Se a pessoa é humilde, se tem um grande caráter, não importa. Só
aparência física: se está mal vestido, se está bem vestido, entendeu?
Utilizar uma mesma roupa repetidamente ou vestir-se com indumentárias que
não estejam em um bom estado de conservação são ações pouco toleradas entre os
alunos. Agressões verbais em forma de piadinhas e palavras de baixo calão são
marcantes quando se tratam desses dois tipos de situação. Uma aluna afirmou que tem
um menino lá na sala que parece que ele sempre vai com a mesma roupa. Aí os
meninos ficam mangando dele, ficam desenhando ele no quadro. Também um docente
disse que um aluno que não tinha roupas em bom estado, vinha sujo, era vítima de
brincadeira dos demais. Apesar do uso obrigatório de uniforme na rede pública de
ensino, as demais peças e assessórios vestidos são muito reparados, e seus portadores
comumente podem não escapar do olhar preconceituoso. As roupas e outros itens
relacionados à aparência são referidos, assim, como determinando status aos seus
proprietários.
Outro preconceito associado à questão da pobreza é o de origem regional. O
preconceito com “aquele que não é daqui” se enquadra na falta de respeito por “aquilo
que não é parecido comigo”: as pessoas aqui acham que só porque viemos de outro
estado somos diferentes delas. A intolerância relaciona-se com o que não faz parte do
universo de sentidos familiares, sofrendo preconceito quem tem o sotaque diferente e
7. comporta-se de maneira diversa: as pessoas me discriminam por onde eu vim, ou pelo
modo de vestir ou falar coisas erradas.
O preconceito de origem regional parece recair majoritariamente na relação com
os sujeitos identificados como nordestinos. Os casos percebidos nesta pesquisa não
fogem muito desse padrão: as pessoas que vieram do nordeste sempre ouvem piadinhas
desagradáveis, alguns engraçadinhos já picharam as paredes das salas e escreveram
nos banheiros. O preconceito com respeito à origem regional não é uma questão
simples. Não são todos os alunos de fora que sofrem com ele, e sim aqueles que vieram
de locais estigmatizados, seja porque são considerados locais de pobreza ou do interior.
Como muitas das outras discriminações, está associada a outras, como a de classe.
Outra questão importante é a discriminação religiosa. A escola é o espaço onde
se encontram crianças, adolescentes e jovens de diferentes níveis e grupos sociais.
Assim, indivíduos com diferentes crenças e identidades, inclusive religiosas, convivem
e se relacionam cotidianamente. A discriminação religiosa foi testemunhada por 30,9%
dos estudantes e 21,9% dos professores, índice bastante alto para um país de Estado
laico e liberdade religiosa. Segundo depoimentos de alunos, as pessoas discriminam
outras pela religião, debocham, não respeitam por achar que a religião deles que está
certa; há pessoas que não aceitam a religião dos outros. Eu acho isso o cúmulo, porque
a pessoa tem seus direitos.
Cerca de 45% dos batistas, presbiterianos e metodistas afirmam existir
preconceito religioso no ambiente escolar, proporção bastante próxima àquela registrada
entre os adeptos do candomblé – 42,9%. Entre os que menos apontam tal tipo de
discriminação estão os católicos (27%) e os budistas (26,9%). Talvez as distâncias entre
os índices se relacionem com as posições diferenciadas dos sujeitos na categorização e
legitimação da própria religião: os católicos são não apenas maioria entre os alunos,
como a Igreja Católica é detentora de forte legitimidade e poder político e religioso. Se
é verdade que o Estado brasileiro é laico, também o é que são os crucifixos católicos a
ocuparem posição de destaque em vários lugares públicos e estatais.
A discriminação contra adeptos de religiões protestantes, pentecostais e
neopentecostais é bastante reportada por professores e alunos. A partir das respostas às
questões abertas dos questionários e das transcrições dos grupos focais, podem-se
reconhecer três eixos principais de discriminação sofrida por parte de protestantes e
evangélicos: (1) o estigma de asceta: me discriminam porque acham que eu quero ser
santinha; (2) as críticas concernentes às relações monetárias existentes com relação às
igrejas: um professor chegou a dizer que os evangélicos são um bando de ladrões; e (3)
a maneira de se vestir decorrente da religião: eu sou evangélica e só posso usar saia, e
alguns alunos se afastam de mim por este motivo.
Nas escolas do DF, também são muitos os casos de preconceito e discriminação
contra religiões afro-brasileiras. Diferentes alunos afirmaram: me xingam de
macumbeiro por causa da minha religião; falam que eu adoro o diabo, e isso não tem
nada ver com a minha religião; tem vezes que eu falo que sou da umbanda, e aí meus
colegas falam que é religião de macumbeiros. Mas eu não ligo, falo que macumbeiro
não existe, são as pessoas que inventam. A categoria macumbeiro é o xingamento ao
qual correspondem seguidores das religiões afro-brasileiras, e está sempre relacionada
ao mal e ao errado.
Outra discriminação verificada pelos instrumentos qualitativos foi aquela
relacionada às pessoas com deficiência física. As políticas de inclusão social de
pessoas com deficiência física ou intelectual trouxeram para a escola pessoas que antes
eram excluídas de sua sociabilidade e construção de conhecimento. Porém isso não quer
8. dizer que as escolas, na prática, estejam preparadas para receber pessoas com
deficiência e criar condições propícias para a convivência delas no ambiente escolar.
Ao responderem as questões abertas dos questionários, os estudantes escreveram
que já viram essa forma de discriminação: por uma pessoa ter um tipo de doença, que o
corpo fica manchado, contra pessoas de cadeira de rodas, por a pessoa ser doente, pela
pessoa ter problema de visão, ter problemas mentais. Estas respostas demonstram a
diversidade de condições corporais interpretadas de modo a permitir a discriminação.
Como visto, não é necessário que grandes alterações físicas ou mentais sejam realidade
para que o preconceito e as agressões existam. Pequenos marcadores de dificuldades
provenientes do corpo são o suficiente para gerar situações interpretadas como
discriminação.
Os insultos são constantes, independente do tipo de lesão: sempre me xingaram de
aleijado e deficiente e um certo dia: um garoto de outra turma ficou zoando o menino
porque ele é doente mental. Porém, são os processos de exclusão das atividades
escolares e do convívio social que demonstram com mais clareza qual a situação dos
estudantes com deficiência nas escolas: na minha sala existe uma pessoa com
deficiência mental, ele é discriminado, não de um jeito agressivo, mas é excluído. Como
em outras pesquisas11
, geralmente os alunos com alguma deficiência são desprezados
nas brincadeiras, esportes, e nos trabalhos em sala de aula: já vi alunos serem preteridos
em grupos de trabalho.
A intolerância à deficiência, em algumas situações específicas, se confunde com
uma intolerância estética, em que o corpo lesionado é visto como feio, e por isto se
torna indesejável, não amável e rejeitado. Ainda, é esperado que as particularidades
individuais pensadas como deformidades ou defeitos sejam apagadas, inclusive por
procedimentos clínicos ou cirúrgicos: Eu tenho estrabismo e aí as pessoas da escola me
xingam de zaroia, sou doida para arrumar uma cirurgia.
As questões de discriminação pela estética foram amplamente observadas..
Diversas falas de professores e alunos versavam sobre situações de preconceito e
rechaço a corpos diferentes do considerado “belo”, “normal” e “desejável” pelo senso
comum. Como apontam alunos e professores: as humilhações ocorrem na maioria das
vezes pelo aspecto físico - ser gordo, magro, baixo, orelha de abano, ser feio etc.; aqui
tem discriminação se as pessoas são gordas, cabeçudas e etc.; discriminação pela
gordura tem muito; desqualifica o outro pelo fato do outro ser gordo, ser magro, ser
feio. É mister desconstruir a categoria de “feio” como algo inexorável e absoluto. É
preciso que não mais se ouçam, pelos corredores das escolas, frases como me
discriminam porque sou feio, mas que aconteçam cada vez mais processos pedagógicos
de desconstrução da estreiteza estética, acarretando uma pluralização das formas
possíveis de beleza e de corpos.
Ser motivo de chacota e discriminação faz parte da realidade dos alunos, não
somente nas escolas do DF. E esse tipo de dinâmica é determinante de uma série de
conformações nas identidades dos estudantes, que ficam marcados pelo estigma e
muitas vezes sofrem as consequências para além da discriminação em si. Muitos dos
que sofrem com o preconceito e com humilhações se tornam cada vez mais
desmotivadas para ir à escola. O quadro delineado ao longo do estudo mostra que as
instituições educacionais vêm sofrendo com as dificuldades em prevenir e solucionar
discriminações de diversos tipos que ameaçam a convivência no cotidiano escolar.
Se a escola pública e gratuita é considerada uma instituição fundamental na
construção de uma sociedade mais igualitária, democrática e justa, supostamente
11
BATISTA, M. & EUNUMO, S. Inclusão escolar e deficiência mental: análise da interação entre
companheiros. In: Revista Estudos de Psicologia. Vol. 9, nº 1, 2004.
9. operando como fator de mobilidade social aos mais diversos grupos, inclusive aos
menos favorecidos, a escola pode ser também um espaço reprodutor de desigualdades
sociais e de exclusões.
Indagar sobre questões relacionadas à violência e à convivência suscita, nos
sujeitos pesquisados, atitudes e reações que revelam a profunda centralidade do tema
em suas vidas. De fato, estas questões não são de menor importância para os atores
envolvidos nas escolas, e nem devem sê-lo quando se trata da formulação de políticas
públicas. O entendimento da realidade existente é primordial quando o intento é
aprimorá-la. É neste âmbito que se enquadra a centralidade da realização de
diagnósticos para a construção de projetos de intervenção e convivência, que sirvam de
instrumentos de gestão. Nesse sentido, a procura por identificar o quadro no qual se dão
as relações sociais é um passo importante para o empreendimento de políticas públicas
cada vez mais eficientes, tornando de fato visíveis os pontos a serem trabalhados e que
nem sempre podem ser acessados com facilidade.
Diante da seriedade dos problemas associados ao preconceito e à discriminação no
cotidiano das escolas, identificados no referido diagnóstico, percebeu-se a necessidade
de articular intervenções para melhor enfrentar essa realidade. Um dos desdobramentos
da pesquisa corresponde ao curso Juventude, diversidade e convivência escolar,
abrangendo 640 professores das escolas do DF e instigando-os à reflexão aprofundada
sobre o tema. O curso foi elaborado de forma a promover o repensar das relações
pedagógicas que tomam parte nas escolas, desconstruindo práticas e percepções
arraigadas e substituindo-as por novas formas de pensar as interações no ambiente
escolar. Visa possibilitar a construção de novas percepções embasadas em reflexões
teóricas sobre juventude e seus papéis na sociedade, além da conceitualização e
caracterização das diversas violências que ocorrem no ambiente escolar, embasando
discussões sobre temas como violência física, agressão verbal, ameaças, armas,
microviolências, racismo, homofobia e tráfico, e trazendo exemplos de pesquisas já
realizadas em âmbito nacional. A discriminação é um dos temas chaves desse curso,
permeando várias discussões e fortalecendo ações preventivas, levando em conta as
linguagens juvenis e considerando crianças, adolescentes e jovens, além de professores
e membros da equipe de direção, como sujeitos das políticas públicas em educação.