Bloqueio plexo braquial e intoxicação por anestésico local
1. Capítulo de Anestésicos Locais
Manejo de Problemas Orientados
Paciente feminina, 74 anos, ASA 3 PS , 49 kg ,agendada para correção de fratura da
extremidade distal do rádio sob bloqueio do plexo braquial.Portadora de hipertensão
arterial sistêmica e insuficiência renal crônica compensada.Foi prémedicada com
midazolam 7.5 mg por via oral 30 min antes da anestesia. Após monitorização e acesso
venoso periférico, realizado bloqueio do plexo braquial via interescalênica usando
estimulador de nervo periférico. Equivocadamente, o anestesiologista administrou 20 ml de
lidocaína 2% com adrenalina 1:200.000 associado á 20 ml de bupivacaina 0.75 % após
testes de aspiração negativos. Passados 15 min, a paciente queixouse de tontura e
sonolência, perdeu a consciência e evoluiu para uma crise convulsiva tônicoclônica
generalizada. A frequência cardíaca aumentou para 130 bpm, mantendo a pressão arterial
inalterada. Imediatamente foi administrado midazolam 10 mg e instituida ventilação sob
máscara facial com oxigênio á 100%.Cerca de 5min após, a paciente desenvolveu
extrasístoles ventriculares, seguidas por bradicardia e assistolia. Foi iniciada
ressuscitação cardiopulmonar . A paciente recebeu 3 mg de epinefrina em doses
fracionadas.Após 10 min de ressuscitação cardiopulmonar, 100 ml de Intralipid 20% foi
injetado em bolus seguido por uma infusão contínua de 10 mL.min. Após a dose total de 200
ml (4 ml.kg) ser administrada, a atividade elétrica sob a forma de um taquiarritmia foi
observada.Compressões torácicas foram interrompidas. Os pulsos eram palpáveis. A
paciente foi transferida para a UTI e extubada após 4 h, recuperandose completamente e
recebendo alta após 4 dias”
A.1.1.Quais são as características gerais da toxicidade sistêmica por
anestésicos locais ?
A toxicidade sistêmica por anestésicos locais (LAST), pode ocorrer após a
administração de uma dose excessiva, rápida absorção, ou por injeção intravenosa acidental.
O manejo da toxicidade por anestésico local pode ser um desafio,e em caso de toxicidade
cardíaca, podem ser necessários esforços de ressuscitação prolongados. A toxicidade
sistêmica geralmente se manifesta por sintomas de neurotoxicidade (gosto metálico, tontura,
zumbido, desorientação e convulsões) ou cardiotoxicidade (hipotensão, arritmias e parada
cardíaca).Usualmente, os anestésicos locais só induzem toxicidade cardiovascular em doses
superiores àquelas que determinam toxicidade ao sistema nervoso central(SNC). No entanto,
a toxicidade da bupivacaína pode não aderir a esta sequência, e a cardiotoxicidade pode
2. preceder os sintomas neurológicos. Apesar de menos comum, a toxicidade cardiovascular é
mais grave e de mais difícil manejo.
Weinberg GL. Current concepts in resuscitation of patients with local anesthetic cardiac
toxicity. Reg Anesth Pain Med. 2002;27:568–575.
A.1.2.Fatores que influenciam a toxicidade?
A concentração plasmática do anestésico local e o desenvolvimento de LAST depende
de inúmeros fatores; dose, potência e lipossolubilidade do anestésico local, velocidade de
injeção, vascularização da área envolvida, presença de vasoconstrictor na solução de
anestésico local, injeção arterial ou intravenosa, PaCO2 e pH (a acidose diminui o limiar de
convulsões), interações com outros fármacos, gravidez, fatores genéticos, idade e doença
cardíaca.
A taxa de absorção sofre grande influencia do local de administração do
anestésico(da absorção mais rápida para a mais lenta) intravenosa> traqueal> intercostal>
caudal> epidural> plexo braquial> ciático ou femoral> subaracnóide.Embora a taxa de
absorção e por conseguinte o risco de LAST seja maior em anestesia epidural, a maioria dos
casos descritos na literatura de cárdio e neurotoxicidade correspondem aos bloqueios
periféricos, pois não raramente as doses tóxicas são negligenciadas, tal como em nosso caso
clínico.
Sarah Ciechanowicz and Vinod Patil, “Lipid Emulsion for Local Anesthetic Systemic
Toxicity,” Anesthesiology Research and Practice, vol. 2012, Article ID 131784, 11 pages,
2012. doi:10.1155/2012/131784
A.1.3 Quais são os efeitos Cardiovasculares?
Os anestésicos locais em baixas concentrações e pequenas doses pouco interfere nas
propriedades elétricas e inotrópicas cardíacas. Porém, em concentrações mais elevadas,
assumem importância, deprimindo a condução do estímulo (retardando a despolarização,
reduzindo a velocidade de condução e elevando o limiar de excitabilidade) e reduzindo a ação
de bomba do coração (inotropismo). A atuação sobre a excitabilidade é, às vezes, até
desejada (ação antiarrítmica), entretanto, a inibição do inotropismo é danosa e, por vezes,
fatal.
Os anestésicos locais mais potentes, possuem maior efeito na eletrofisiologia cardíaca.
Prévios estudos examinaram lidocaína, bupivacaína e ropivacaína em ratos, e tem
3. demonstrado efeitos depressores equivalentes na contratilidade miocárdica, no entanto os
efeitos sobre a eletrofisiologia (prolongamento do QRS) com a bupivacaína e ropivacaína são
mais pronunciados, quando comparado a lidocaína. Embora todos os anestésicos locais
bloqueiem o sistema de condução cardíaco através do bloqueio dose dependente dos canais
de sódio, algumas particularidades do canal de sódio e da bupivacaína podem aumentar a sua
cardiotoxicidade: a bupivacaína apresenta uma afinidade de ligação mais forte em canais de
sódio abertos e inativados, efeitos depressores maiores em concentrações mais baixas e mais
arritmogênica quando comparado a lidocaína.Além disso, a bupivacaína bloqueia o nó
sinoatrial (SA); prolonga o intervalo PR e induz mais fenômenos de reentrada. Isto é devido
ao fato de que a bupivacaína está ligada mais fortemente ao sítio do receptor dentro dos
canais de sódio (fast in, slow out) do que a lidocaína (fast in, fast out); especialmente quando
observamos o músculo cardíaco.
Blair MR (1975) Cardiovascular pharmacology of local anaesthetics. Br J Anaesth
47:247–252
Covino B Anestésicos Locais, Mecanismos de Ação e Uso Clínico. São Paulo, Colina
Editora, 1985;19.
A.1.4 Quais são os efeitos Neurofisiológicos?
Os anestésicos locais bloqueiam seletivamente vias inibitórias no córtex cerebral,
resultando na fase excitatória da toxicidade ao SNC. Como resultado, os sintomas iniciais de
toxicidade incluem sinais de excitação, como tontura, vertigem, zumbido, confusão mental e
dormência perioral.O aumento do nível sérico do anestésico local, pode levar a convulsões
tônicoclônicas e os sintomas de excitação do SNC normalmente são seguidas por sinais de
depressão levando a bradipnéia e parada cardiorespiratória.
A neurotoxicidade está diretamente relacionada com potência do anestésico local.Existe uma
relação inversa entre a toxicidade por anestésicos locais e a velocidade a que os agentes são
injetados: aumentar a velocidade de injeção, irá diminuir o limiar na corrente sanguínea para
que os sintomas apareçam.
Scott DB, Lee A, Fagan D, Bowler GM, Bloomfield P, Lundh R. Acute toxicity of
ropivacaine compared with that of bupivacaine. Anesth Analg 1989;78:112530
Rutten AJ, Nancarrow C, Mather LE, Ilsley AH, Runciman WB, Upton RN. Hemodynamic
and central nervous system effects of intravenous bolus doses of lidocaine, bupivacaine, and
ropivacaine. Anesth Analg 1989;69:2919.
4.
A.2 Como prevenir a Intoxicação?
O melhor método para tratar toxicidade dos anestésicos locais é a prevenção baseada
na estratégia anestésica segura. Esta, tem seu inicio no ambiente de trabalho otimizado para a
realização da anestesia regional. Devem estar prontamente disponíveis e em funcionamento,
os equipamentos para o manejo das vias aéreas, bem como, o material para reanimação
cardiopulmonar. A seleção do anestésico local, dose, concentração, volume e estado físico
do paciente deve ser judiciosa. Os efeitos do prétratamento com benzodiazepinicos é
frequentemente debatido, mas quase rotineiramente utilizado em nossa prática devido a
capacidade de diminuir a probabilidade de convulsões, entretanto, este pode, com frequência,
mascarar os primeiros sinais de toxicidade.O propofol pode ser usado para controlar as crises,
mas pode potenciaçozar a toxicidade cardiovascular. Crises refratárias podem exigir
bloqueio neuromuscular (por exemplo, com succinilcolina).
Independentemente da adição de epinefrina, que é utilizada como um marcador de injeção
intravenosa, é de extrema importância que a administracao do anestésico local seja feita
lentamente, bem como aspirações frequentes (a cada 35 ml) entre injeções, monitorizando
atentamente os sinais de toxicidade. Se a injeção for rápida as convulsões podem ocorrer pelo
aumento rápido da concentração sérica, pois não haverá tempo para distribuição da droga.
É prudente reduzir a dose de anestésico local em pacientes idosos ou debilitados. No entanto, não
há recomendações concretas sobre essa prática.
Neal JM, Bernards CM, Butterworth JF, et al.. ASRA practice advisory on local anesthetic
systemic toxicity. Reg Anesth Pain Med. 2010; 35: 152–161.
De Jong RH, Bonin JD. Benzodiazepines protect mice from local anesthetic convulsions and
death. Anesth Analg. 1981;60:385–389
A.2.1 Qual o objetivo de se adicionar vasoconstrictor aos sais de anestésicos
locais?
O uso da adrenalina, tem o intuito de promover vasoconstricção tecidual local, limitando
a recaptação do anestésico para a grande vascularização, prolongando seu efeito e reduzindo
dramaticamente seu potencial de toxicidade.A adição de epinefrina pode ajudar na
identificação de injeção intravascular acidental, quando ocorre taquicardia durante sua
administração. A adição de vasoconstritores é desaconselhável em pacientes coronariopatas,
arritmia sintomática e lesões de extremidades (dedos dos pés, mãos e pênis) bem como em
áreas com fluxo sanguíneo colateral precário. A dose máxima de adrenalina não deve
ultrapassar 10 mcg/kg em crianças e 250 mcg em adultos.
5.
A.2.2 Os anestésicos locais diferem na toxicidade?
O uso de anestésicos locais aminoamidas Lenantiómeros, parecem ser menos tóxicos
do que as misturas racêmicas, e a utilização de ropivacaína ou levobupivacaína pode
transmitir uma adicional margem de segurança em comparação com a bupivacaína racêmica
quando grandes quantidades de anestésico local são usados.
Feldman H, Toxicity of local anesthetic agents. In, Rice RA and Fish KJ, eds, Anesthetic
Toxicity. Raven Press, New York, 1994, pp 10733.
A.2.3Quais são as doses máximas recomendadas dos anestésicos locais?
As recomendações atuais sobre as doses máximas de anestésicos locais descritas em
livro texto ou recomendadas pela indústria farmacêutica, não possuem evidências científicas
determinadas por estudos randomizados e controlados. Pelo contrário, tais recomendações
foram feitas em parte por extrapolações a partir de experiências com animais ou mesmo por
experiências clínicas utilizando diversas doses correlacionandoas com a concentração
plasmática. A ocorrência comum de toxicidade ao sistema nervoso central por altas doses de
lidocaína utilizada em anestesia infiltrativa levou à recomendação de apenas 200 mg como
dose máxima durante mais de 50 anos. Na maioria dos casos, não há nenhuma justificativa
científica para a apresentação de doses em mg / kg. A epinefrina em concentrações de 2,5 a 5
microg / mL deve ser adicionada à solução anestésica local quando grandes doses são
administradas, desde que não exista contraindicações para o uso desta substância.
De forma geral, é fundamental respeitar a reserva de cada paciente, pois gravidez,idade
avancada , pacientes urêmicos, entre outros podem levar a um aumento na taxa de absorção
inicial do anestésico local em comparação com pacientes jovens saudáveis, devendo assim
sempre adequar a dose.
A tabela a seguir nos informa as doses em mg/kg comumente recomendadas.
Sem adrenalina Com adrenalina
Lidocaína 5mg/kg 7mg/kg
Bupivacaína 2mg/kg 3mg/kg
Levobupivacaína 3mg/kg 3mg/kg
Ropivacaína 3mg/kg
6.
Rosenberg PH, Veering BT, Urmey WF. Maximum recommended doses of local anesthetics:
a multifactorial concept. Reg Anesth Pain Med. 2004;29
A.2.4 O uso rotineiro de ultrassonografia pode reduzir a incidência de
intoxicacao por anestésicos locais?
Na prática atual da anestesia regional, as reduções do volume e da dose do anestésico
local tornaramse estratégias importantes para prevenir a LAST. Para isso, o uso do ultrassom
para guiar com precisão o local de injeção do anestésico local em bloqueios de nervos
periféricos tem se tornado cada vez mais frequente.O avanço nos equipamentos e métodos de
ultrassom possibilitou identificar com alta precisão estruturas vasculares e neurais, com
benefícios em relação às técnicas clássicas com menor incidência de falhas e diminuição da
dose do anestésico local
Em 2009, Abrahams e colaboradores publicaram uma metaanálise, descrevendo que
o uso da ultrasonografia em anestesia regional foi claramente associada a uma redução de
punções vasculares não intencionais durante realização de bloqueios periféricos,mas não
conseguiram provar diferença significativa de LAST. Mais recentemente, um estudo da
Austrália e Nova Zelândia sobre Anestesia Regional demonstrou que os bloqueios de nervos
periféricos guiados por ultrasom foi associado a um risco reduzido de LAST comparação
com as técnicas não utilizando a tecnologia de ultrasom.
M. S. Abrahams, M. F. Aziz, R. F. Fu, and J.L. Horn
Ultrasound guidance compared with electrical neurostimulation for peripheral nerve block: a
systematic review and metaanalysis of randomized controlled trials
Br. J. Anaesth. (2009) 102 (3): 408417 first published online January 26, 2009
Barrington MJ, Kluger R. Ultrasound guidance reduces the risk of local anesthetic systemic toxicity
following peripheral nerve blockade. Reg Anesth Pain Med. 2013;38:289–297
A3.1 Qual o manejo da LAST ?
O reconhecimento precoce da toxicidade e interrupção da administração é de importância
crucial. O paciente deve ser devidamente monitorado, permeabilidade das vias aéreas deve
7. ser assegurada fornecendo oxigênio suplementar. Parâmetros neurológicos e cardiovascular
devem ser acompanhados até que o paciente esteja completamente assintomático e estável.
A administração de benzodiazepinicos pode atenuar sintomas neurológicos excitatórios e
prevenir uma potencial crise convulsiva. A recuperação da parada cardíaca induzida por
anestésico local pode necessitar de esforços de ressuscitação maiores do que o habitual, no
mínimo 60 minutos. Até recentemente um bypass cardiopulmonar(ECMOmembrana de
oxigenção extracorporea) era o único método reconhecidamente efetivo no tratamento das
paradas cardíacas refratárias pela intoxicação por anestésicos locais; procedimento
considerado heróico.
A.3.2Quais são as justificativas para usar a solução lipídica?
Felizmente, hoje a eficácia da terapia lipídica nas intoxicações por anestésicos locais
já está bem documentada. Seu emprego e interesse, mesmo nas intoxicações por inúmeras
outras drogas, têm sido demonstrados tanto em animais como em humanos. Os anestésicos
locais são moléculas hidrofóbicas e sua lipossolubilidade tem relação com a potência e
toxicidade; quanto mais lipossolúvel for o agente mais facilmente transporá a membrana
celular atingindo seu sítio de ação.
A hipótese mais aceita do mecanismo de ação das emulsões lipídicas é da expansão de uma
fase lipídica plasmática que através de mecanismo de quelação das moléculas lipossolúveis
dos anestésicos locais as fixaria reduzindo a concentração da porção livre, tornandoas assim
indisponíveis para os tecidos e, consequentemente, diminuindo a toxicidade. Essa teoria é
denominada “lipid sink”! Este esquema simplista se baseia em três constatações: a rapidez da
recuperação funcional do tecido cardíaco após o uso de emulsões lipídicas é importante e
condiz com um fenômeno físico; os anestésicos locais são fixados invitro pelos lipídeos e
isso tanto mais quanto maior for sua lipossolubilidade, e por fim, em preparação de coração
isolado submetido a concentrações tóxicas de anestésicos locais, os lipídeos aceleram a
eliminação desses agentes .
Guidelines for the Management of Severe Local Anaesthetic Toxicity. London: AAGBI, 2007.
Feldman HS, Arthur GR, Pitkanen M, Hurley R, Doucette AM, Covino BG. Treatment of
acute systemic toxicity after the rapid intravenous injection of ropivacaine and bupivacaine in
the unconscious dog. Anesthesia and Analgesia 1991; 73: 373384.