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“O Haver”
vinicius de MOraes
“O Haver”

Vinicius percebia que a noite estava chegando e tratava
  então de fazer um balanço de tudo o que fora feito e
                  do que sobrara disso.




                  Assim, as estrofes começam todas com
                       uma mesma palavra, “Resta...”
                            – foi isso que sobrou.
Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura,essa
          intimidade perfeita com o silêncio.

   Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
    - Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido...
Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar
baixo,essa mão que tateia antes de ter, esse medo
    de ferir tocando, essa forte mão de homem
   cheia de mansidão para com tudo que existe.
Resta essa imobilidade, essa
      economia de gestos,

essa inércia cada vez maior diante
             do Infinito.
Essa gagueira infantil de quem quer
        balbuciar o inexprimível.

Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
Resta essa comunhão com os sons,
 esse sentimento da matéria em repouso,
essa angústia da simultaneidade do tempo,
     essa lenta decomposição poética

 em busca de uma só vida, uma só morte,
             um só Vinicius.
Resta essa faculdade incoercível
de sonhar,de transfigurar a realidade,
    dentro dessa incapacidade de
       aceitá-la tal como é (...)
E essa pequenina luz indecifrável
 a que às vezes os poetas dão o
       nome de esperança
Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente,
e essa coragem indizível diante do grande
medo e ao mesmo tempo esse terrível medo
        de renascer dentro da treva.
Resta esse desejo de sentir-se igual a todos,
de refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história.
Resta essa pobreza intrínseca,
   esse orgulho, essa vaidade
de não querer ser príncipe senão
          do seu reino.
Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento,
esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
Resta esse eterno morrer na
    cruz de seus braços
 e esse eterno ressuscitar
   para ser recrucificado.
Resta esse diálogo cotidiano com a morte,
      esse fascínio pelo momento a vir,
 quando, emocionada ela virá me abrir a porta
          como uma velha amante,
sem saber que é a minha mais nova namorada.


                    Vinicius de Moraes
Formatação
Christina Meirelles Neves

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O Haver

  • 2. “O Haver” Vinicius percebia que a noite estava chegando e tratava então de fazer um balanço de tudo o que fora feito e do que sobrara disso. Assim, as estrofes começam todas com uma mesma palavra, “Resta...” – foi isso que sobrou.
  • 3. Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura,essa intimidade perfeita com o silêncio. Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo: - Perdoai! eles não têm culpa de ter nascido...
  • 4. Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo,essa mão que tateia antes de ter, esse medo de ferir tocando, essa forte mão de homem cheia de mansidão para com tudo que existe.
  • 5. Resta essa imobilidade, essa economia de gestos, essa inércia cada vez maior diante do Infinito.
  • 6. Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível. Essa irredutível recusa à poesia não vivida.
  • 7. Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade do tempo, essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.
  • 8. Resta essa faculdade incoercível de sonhar,de transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é (...)
  • 9. E essa pequenina luz indecifrável a que às vezes os poetas dão o nome de esperança
  • 10. Resta essa obstinação em não fugir do labirinto na busca desesperada de uma porta quem sabe inexistente,
  • 11. e essa coragem indizível diante do grande medo e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.
  • 12. Resta esse desejo de sentir-se igual a todos, de refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história.
  • 13. Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.
  • 14. Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento, esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.
  • 15. Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.
  • 16. Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada ela virá me abrir a porta como uma velha amante, sem saber que é a minha mais nova namorada. Vinicius de Moraes