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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO

ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS
TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

JOÃO PESSOA - PB
2006
ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS
TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa
de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da
Universidade Federal da Paraíba, Campus I, como requisito
parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação.
Área de concentração: Educação Popular, Comunicação e
Cultura.
Linha de Pesquisa: Estudos Culturais e Tecnologias da
Informação e Comunicação.
Orientador: Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior.

JOÃO PESSOA - PB
2006
ROSEMARY RAMOS RODRIGUES

A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS
TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA

Aprovada em: 10 de Novembro de 2006

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior – UFPB
Orientador

___________________________________________________
Profª. Drª. Ana Maria Coutinho de Sales – UFPB
Examinadora

___________________________________________________
Prof. Dr. Severino Bezerra da Silva – UFPB
Examinador
Dedico este trabalho e todo o meu amor a você, que sempre dedicou seu
amor a mim e a todos ao seu redor. Agora me pego pensando e até me admiro na
dimensão que um amor pode alcançar. É naquele sorriso largo e franco que cura,
no Hello, what’s your name? My name is Mary Help, nas explosões de carinho,
no abraço que caímos na cama, nos conselhos preocupados, mas não
castradores, e na forma livre de criar que te amo cada vez mais, mais e mais.
Você sempre me deu asas para sonhar e voar em busca do que quero, mas
sempre volto porque é em você que encontro uma felicidade singela, meiga e
plena. Você é a minha Helena, a minha heroína da vida real, a mulher que,
depois de uma vida inteira dando asas a quem ama, aprendeu a voar. E porque
depois de tanto tempo?
Na infância, você foi a minha primeira semente de contestação e de não
aceitação dos lugares construídos para nós, mulheres. Por que, mainha, o seu
silêncio? Chegou um dia que seus gritos, antes silenciosos, machucaram os
ouvidos de todos nós. Foi nesse momento que você quebrou aquela identidade
fixa. Por isso e por tudo que você é, te dedico amor, prazer intelectual e carinho.

Eu te amo, minha mãe, minha amiga, minha pescadora de sonhos.
AGRADECIMENTOS

À força inexplicável que, particularmente, chamo de vida;
A mim, por amar, sonhar, gritar, lutar, sofrer, querer, roubar, buscar, abraçar, detestar,
desejar, desistir, dançar, chorar, pular, chocar, enfrentar, gargalhar, sentir, escrever, bater,
levar, fraquejar, trair, levantar, sorrir, brincar, beijar, correr, ficar, quebrar, gozar ... viver,
viver intensamente;
Aos meus pais, pelo carinho, luta, força e determinação. Sou feliz por sentir o amor
vindo de vocês em todos os momentos da minha vida. Obrigada!
Aos meus irmãos, Cleide e Daniel, por uma história cheia de vida, cores e alegrias,
construída de sorrisos, brigas, brincadeiras e cumplicidade;
A minha irmã, Bruna, e aos meus sobrinhos, Gabriel e Rafael, pela beleza de sorrir, de
correr, de pular e de abraçar. Vocês são vida!;
Aos meus avós. Em especial à vovó Alzira, por embarcar comigo nas brincadeiras de
menina e me fazer sentir criança até hoje. Lembra, vovó, quando eu dizia uma palavra e a
senhora cantava uma música? Eu acho que a senhora inventava umas músicas para me
enrolar. Obrigada por me deixar sonhar;
Às minhas tias e tios, primas e primos, por fazerem parte da minha vida e me
apresentarem várias trajetórias marcantes de vida;
Ao meu carinho, que em todos os momentos desse mestrado esteve comigo,
acompanhando as minhas vitórias e decepções. Você me deu força, sempre me dizendo Você
vai vencer, você pode e, às vezes, me perturbando. Mas sempre me elogiando, impulsionandome e me adorando. Mais uma vez te agradeço pela amizade, dedicação, gentileza, atenção,
incentivo e companheirismo;
À Campina Grande, por ser a minha referência de vida, felicidade, amizade, amor,
emoção...
Ao meu orientador, Luiz Júnior, pela amizade, dedicação, incentivo e, sobretudo, pela
aceitação das minhas colocações e escolhas;
A Nilda, minha orientadora da graduação, por ter me apresentado uma outra forma de
fazer História e de viver. Obrigada!;
A Élson, Walber e Kyara, pela amizade, loucuras, gargalhadas, histórias sem pé nem
cabeça, pelas conversas acadêmicas e o que vier nas nossas vidas.
A Maria Isabel, pela lealdade, cumplicidade e amizade; e a Herry, pela amizade.
Espero que possamos continuar sonhando com dias melhores;
À minha turma de História da Universidade Federal de Campina Grande – Renata,
Valéria, Maizona, Fátima, Uelba, Daniele, Verônica, Gracinha, Adriana, entre outros – por
uma história tão linda e marcante na minha vida;
Aos professores de História, em especial Sandrinha, Nilda, Fabinho G., Clarindo e
Silêde, pelas farras e por me apresentarem várias faces da História e da vida, com teorias e
metodologias diferentes;
À minha turma de mestrado, em especial Cidoca, Saula, Stella, Norma, Lebiam,
Walberto, Cláudia e Keila, pela nossa força, persistência e dedicação;
Aos professores do PPGE. Em especial a Ana Dorziat, pela dedicação aos alunos,
gentileza e educação;
À minha banca de defesa, Ana Coutinho e Severino Bezerra da Silva, e a Marcello
Bulhões, pelas sugestões e delicadeza;
A Izabel, pela ajuda nas tão odiadas regras da ABNT;
Aos funcionários do PPGE, coordenação e secretaria, por nos ajudar, tentar nos ajudar
e, às vezes, atrapalhar nas questões burocráticas e dúvidas pendentes;
À CAPES, por ter me concedido bolsa de estudo.
À Rede Globo, pela autorização da utilização das imagens que fazem parte do CD
anexado à minha dissertação, e a Manoel Carlos, autor de Laços de Família.
RESUMO

Esta pesquisa objetiva analisar a construção das identidades femininas presentes nas práticas
culturais e sociais, particularmente da mídia moderna/televisiva que constrói modelos de
identidades duráveis, partindo da apreensão dos discursos da telenovela Laços de Família.
Nesta direção, discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais;
situo a construção das identidades femininas no bojo do discurso científico; cartografo as
identidades femininas nos discursos da telenovela Laços de Família. A hipótese parte da idéia
que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas culturais e sociais, de
práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de poder/saber. Estas relações
criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma feminina com base em
normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das identidades femininas
e penso na emergência das identidades em fluxo, uma vez que a telenovela constrói
identidades duráveis. A pesquisa mostrou que, apesar das identidades viverem em fluxo, estas
são construídas na moldura moderna.

Palavras-chave: identidades femininas, telenovela.
ABSTRACT

This research intends to analyze the feminine identities construction presented on cultural and
social customs, particularly at the modern/televising media, which constructs durable
identities models, starting from the speeches apprehension of the soap opera Laços de
Família. In this way, I discuss the identities appearance at the foundation of cultural and
social customs; I point out the feminine identities construction at the core of scientific speech;
I map the feminine identities in Laços de Família speeches. The supposition starts from the
idea that feminine identities are constructed based on cultural and social practices, on
discursive and non-discursive customs, on the development of power/knowledge relations.
These relations create, naturally, processes of body and feminine soul discipline, based on
rules and regulations. In this manner, I emphasize a (de)construction of feminine identities
and I think about the manifestation of current identities, once the soap opera constructs
durable identities. The research showed that, despite the fact that the identities are mutable,
they are constructed in the modern frame.

Keywords: feminine identities, soap opera.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09

2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO
E A AFIRMAÇÃO DO EU .................................................................................................... 19
2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES .............................................................. 23
2.2 IDENTIDADES EM FLUXO ............................................................................................ 30

3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO ............................. 38
3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 40
3.2 DOS DISCURSOS CIENTÍFICOS À CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 45

4 LAÇOS DE FAMÍLIA: AS TRAMAS DE UMA TELENOVELA
CONSTRUINDO E DISCIPLINANDO AS IDENTIDADES FEMININAS .................... 56
4.1 EU EM FRENTE À TELEVISÃO E UM MUNDO DE MAGIAS E ILUSÕES .............. 58
4.2 CENAS DE VIDAS CONSTRUÍDAS E DISCIPLINADAS EM
LAÇOS DE FAMÍLIA ............................................................................................................. 66

5 IMAGENS RECORRENTES ............................................................................................. 82

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88

ANEXO – CD Room com as cenas referentes aos hiperlinks da dissertação ................... 91
9

1 INTRODUÇÃO

No ano de 2003 concluí o curso de graduação em História e iniciei a minha
monografia da mesma forma que inicio a minha dissertação:

Gostaria que você, antes de ler o meu trabalho, se propusesse a ser uma folha em
branco, não no sentido de discordar e questionar do que escrevo, mas no sentido de
permitir que esta leitura possa lhe transpassar, lhe penetrar, lhe desnudar, lhe tocar,
lhe emocionar e, até mesmo, lhe modificar. Espero que no final você possa queimar
a concepção de que exista uma identidade feminina natural e terminal
(RODRIGUES, 2003, p. 2).

Durante a minha vida acadêmica, sempre estive ligada aos estudos relacionados à
temática mulher. Uma das minhas preocupações iniciais era compreender a trajetória das
mulheres ao longo da história. Marcada, ainda, por uma visão positivista, procurava pelos
seus feitos e vitórias e, como toda pesquisadora desta temática é uma contestadora, ou seja,
não aceita os lugares construídos para si, eu tinha como preocupação resgatar a minha própria
história como mulher.
Posteriormente, comecei a questionar os lugares que foram e são construídos para nós,
mulheres, tentando mostrar que não nos enquadramos tão facilmente aos estereótipos
cristalizados na cabeça e no discurso das pessoas, principalmente dos homens. No ano de
2001, passei a fazer parte do projeto Cidades, Cultura e Modernidade – Campina Grande e
João Pessoa (1900-1950), que estudava os discursos de letrados de Campina Grande e João
Pessoa, das décadas de 20 a 50 do século XX, que criavam lugares para as mulheres e como
estas no seu cotidiano quebravam, burlavam as regras vigentes.
Meu projeto era intitulado Mulheres em territórios (des)regrados – Campina Grande e
João Pessoa (1920-1950), tendo como minha grande busca as mulheres transgressoras. Desta
forma, eu não entendia que além de nomeá-las e classificá-las de transgressoras, assim, eu
estava naturalizando o lugar de submissão, fragilidade e inferioridade delas, pois, para o meu
estudo, as transgressoras eram o outro da identidade normal de mulher, as que quebravam
com os códigos vigentes dessa época.
No mesmo ano, ingressei no grupo de estudo O Pensamento Pós-Moderno e a
Educação, no qual comecei a fazer leituras pós-estruturalistas. Neste grupo, tínhamos como
objetivo estudar as possibilidades que o Pensamento Pós-Moderno aponta para se pensar a
educação. Estudamos como foi construído o pensamento moderno e quais as suas implicações
10

para a educação atual. Foi um estudo gratificante, que me levou a uma maior reflexão acerca
do poder do discurso.
No ano de 2002, passei a fazer parte da linha de pesquisa Estudos Culturais e
Educação. Nesta linha, fiz leituras pós-estruturalistas que envolviam estudos sobre
subjetividades, identidades, diferença, poder e representações.
Pela primeira vez fui me sentindo tocada, desnudada, penetrada e totalmente
emocionada. A leitura pós-estruturalista começou a mexer com os meus valores, quebrando as
concepções antes imutáveis que existiam em mim. Foi o encontro intelectual mais intenso e
prazeroso que tive na vida.
Este foi um momento de questionamentos, pois vi cair por terra muitas concepções,
baseadas no pensamento moderno, inerentes a mim. Porém, meu interesse com a temática
mulher continuou, só que desta vez acrescido da preocupação com a educação.
A posição do homem como superior é fortemente evidenciada na utilização do termo
homem – Humanidade – para designar homens e mulheres, ou seja, para designar uma
espécie. Buscando uma resposta para essa inquietação, sempre questionava meus professores
acerca do porquê da não utilização do termo mulher no lugar do termo homem para essa
generalização. As respostas dadas nunca eram satisfatórias, apresentavam-se como algo
natural é porque é.
Eu não compreendia que essa prática cultural e social, assim como outras, foi
elaborada por discursos interessados; neste caso, a partir do discurso da ciência.
Desta forma, partindo de uma preocupação pessoal, o porquê de as mulheres serem
diferentes culturalmente dos homens, na minha monografia de fim de curso, Mulher: A
Imagem Invertida de um Espelho Discursivo, discuti a construção das identidades1 femininas
e como a cultura escolar reforça essas identidades, tendo como referência o livro didático.
Trabalhei com o livro didático de história, enquanto artefato cultural, por compreendêlo como um grande subjetivador de identidades, visualizado nos sujeitos históricos2 e como
um instrumento propagador de verdades. Salientando que o livro didático é muito marcante
na cultura escolar, por ser o principal instrumento de estudo e pesquisa de alunas e alunos.

1

Compreendo as identidades como o resultado da relação poder/saber que pretendem nos definir enquanto
sujeitos possuidores de certos atributos psicológicos, sociais e culturais. Porém, não as vejo como uma
radiografia fixa dos corpos, das mentes e das almas das pessoas, ou seja, não acredito que as identidades sejam
únicas e imutáveis, pois acredito em movimento de transgressão, de fluxo, o próprio movimento de vida e de
ação.
2
Os sujeitos são considerados históricos nos livros didáticos não porque possuem historicidade, mas porque,
ocupando o lugar do outro, lutaram e enfrentaram o eu. Os sujeitos históricos sacramentados pela historiografia
positivista são: os negros, os patrícios, as cortesãs, os filósofos, os reis, os guerreiros, o proletariado, etc.
11

Este trabalho, que envolveu estudos sobre subjetividades, diferença, poder e
representações; teve como objetivo desnaturalizar o lugar da mulher como inferior, frágil,
submissa, etc. Desnaturalizar no sentido de apontar as identidades como uma construção
discursiva, não no sentido de afirmar que são ou não são isso ou aquilo.
Agora, no mestrado, procuro analisar a construção das identidades femininas presentes
nas práticas culturais e sociais, particularmente na mídia moderna/televisiva, que constrói
modelos de identidades duráveis, partindo dos discursos da telenovela Laços de Família3.
Sendo assim, observarei os discursos que construíram e constroem as identidades
femininas, tanto no período moderno, com iluministas; como na contemporaneidade, com o
discurso midiático.
Escolho a mídia e, mais especificamente a novela Laços de Família, como o artefato
cultural de análise porque as novelas brasileiras sempre fizeram parte do meu cotidiano,
embalaram os meus sonhos e me apresentaram modelos de beleza, de boa e má conduta, de
amor, de vida, ou seja, modelos de comportamento nos quais as minhas subjetividades4 eram
povoadas de identidades.
Vários personagens, principalmente os femininos, me causavam sentimentos intensos
e diferenciados. As protagonistas me causavam sentimento de admiração e, às vezes, de
identificação; e as vilãs, sentimentos de repúdio e desprezo. As Helenas5, mulheres que
sofrem, lutam e vencem, sempre foram modelos de identidade interessantes para inúmeras
mulheres.
Desde criança assisto às novelas globais e, na minha imaginação, já fui muitas
mulheres. Lembro que nas brincadeiras infantis, aos cinco anos, fui à dançarina de bordel
Ninon6, uma contestadora da moral e dos valores das famílias de Asa Branca. Já fui muitas
outras mulheres, mas tenho uma lembrança viva dessa personagem pelo fato da novela Roque
Santeiro ter sido marcante na minha infância.

3

A novela Laços de Família é de autoria de Manoel Carlos, exibida na Rede Globo de 05/06/2000 a 03/02/2001.
Porém, deixo claro que as minhas referências capitulares são originárias da gravação da reprise, no Vale a Pena
Ver de Novo, de 28/02/2005 a 23/09/2005. Portanto, devido aos cortes efetuados pela emissora, pode ser que as
minhas referências não sejam compatíveis com os capítulos da primeira exibição.
4
As subjetividades são as sensações, o entendimento das pessoas e das coisas, ou seja, são os significados que
damos ao mundo desde o momento em que a vida nos apresenta situações e emoções. Porém, as subjetividades
são mutáveis, pois somos atravessados constantemente por discursos, pessoas, situações e sentimentos que nos
resignificam.
5
São tipos construídos por Manoel Carlos,.autor de telenovelas da emissora Rede Globo de Televisão.
6
Personagem interpretada por Cláudia Raia na novela Roque Santeiro, de autoria de Dias Gomes.
12

Engraçado, nunca imaginei que um dia utilizaria uma novela para escrever a minha
dissertação, pois, de fonte de entretenimento, de sonho, de imaginação, a novela, hoje, é fonte
de análise.
Com o tempo, percebi que essa relação de proximidade e intimidade com os
personagens das novelas não é apenas minha, pois a televisão brasileira é um dos veículos de
maior popularidade que possuímos, no qual os nossos folhetins são líderes de audiência. Ao
acompanharmos uma novela, temos a sensação de estar participando da sua trama,
vivenciando, naquele momento, a felicidade e a tristeza dos nossos protagonistas, como se
estes fossem pessoas do nosso cotidiano, ou seja, uma vizinha, uma amiga ou até mesmo uma
inimiga.
Parto do pressuposto que a mídia, principalmente a televisão, tem projetos explícitos e
implícitos. Esta está envolta pelo discurso do controle. Na sociedade de controle, as
modulações, teias de controle, são empregadas de formas fluidas, mutantes. Sendo assim,
saem do esquema da sociedade disciplinar em que os confinamentos são os moldes. Portanto,
Deleuze (1992, p. 222) aponta que “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de
confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle”.
Logo, a sociedade de controle se torna atraente. Desta forma, a mídia visa ao
adestramento das identidades femininas e masculinas, ou seja, pretende apreender mulheres e
homens dentro de certos padrões de normalidade. Vale salientar que as novelas e suas
subjetividades estão presentes em toda a sociedade. Logo, não se pode negar o seu poder em
influenciar e criar novos hábitos e comportamentos.
Tenho necessidade de deixar bem claro que a mídia não é o meu objeto de estudo. Esta
é o artefato que elejo para compreender os discursos que constroem as identidades femininas,
pois os artefatos culturais – livros didáticos, revistas, charges, mídia, etc. – possuem o poder
de (re)criar, reforçar e até quebrar as identidades fixas.
Outro motivo, além da proximidade que tenho com as novelas, e que me levou a
escolher a mídia como foco de discussão, é o fato de que constantemente estamos sendo
bombardeados pelos seus discursos, seja o da informação, o da imagem, o da comunicação, o
do entretenimento ou o da ficção.
Não podemos negar a presença intensa da televisão, principalmente das novelas, na
vida de muitas pessoas no nosso país. Assim, observo essa influência na forma de as pessoas
se vestir, de falar e de agir, ou seja, na educação do povo brasileiro, principalmente na
educação dos jovens, que passam muito tempo em frente à televisão.
13

Sendo assim, a televisão tem também uma função pedagógica informal. Uma das
preocupações em relação a essa função dos meios de comunicação e informação, entre elas a
televisão, é pensar uma forma de como transformar informação em conhecimento, pois a
mídia nos apresenta um mundo difuso e calcado no consumo.
Educadores e pais estão preocupados com a forma com que a televisão vem
apresentando e, até mesmo, ensinando às crianças e aos jovens sobre a vida, principalmente
no que diz respeito a aspectos morais, como gravidez na adolescência, drogas, doenças
sexualmente transmissíveis, casamento, traição, separação, entre outros.
Embora percebam os acontecimentos descritos acima, os pais e as mães põem na
televisão uma grande responsabilidade: a de educar e formar seus filhos para serem cidadãos
responsáveis. E também uma grande culpa: a de que os seus filhos são influenciados através
da violência exposta na TV. A suposta liberação sexual e a emancipação social e cultural
pregadas pela televisão, na visão dos pais, podem corromper a estrutura familiar.
As subjetividades produzidas pelos discursos da mídia, principalmente das novelas
brasileiras, e, possivelmente, reforçadas pelas nossas práticas culturais e sociais, devem ser
estudadas; tentando-se entender como são veiculadas as imagens de mulher mais recorrentes,
ou seja, como as novelas trabalham com as identidades femininas e como pretendem fixar
modelos de comportamento e formas de viver nas pessoas.
Não tenho como objetivo apenas discutir como as novelas constroem identidades
femininas, mas como discursivamente constroem modelos certos e errados de conduta, de
amor, de desejo, de obediência, etc., ou seja, como domam e adestram corpos e almas. Como
tenho uma preocupação filosófica no que diz respeito à filosofia da diferença, pretendo
discutir como os binarismos, principalmente de homem/mulher, circulam na sociedade.
Escolho a novela Laços de Família para análise porque esta apresenta claramente
algumas identidades femininas, posto seus personagens principais serem mulheres. Algo
interessante de se observar é que nas tramas de Manoel Carlos o nome Helena é recorrente
para as suas protagonistas e, como o próprio autor define, essas são as suas heroínas da classe
média.
A primeira Helena de Manoel Carlos foi Lilian Lemmertz em Baila Comigo (1981).
Desde então, com exceção de Sol de Verão (1982), todas as suas novelas possuem uma
Helena.
Porém, só a partir da novela Felicidade (1991), Helena é a protagonista das suas
tramas. Nesta, Manoel Carlos constrói um enredo centrado numa mulher interpretada por
14

Maitê Proença, mãe solteira em busca da tão sonhada felicidade ao lado do seu amor, Álvaro
– Tony Ramos. Todavia, antes de alcançar seus objetivos, ela passa por vários problemas,
como um casamento fracassado com Mário – Herson Capri –, uma mãe conservadora – Ariclê
Perez –, uma inimiga de arrepiar os cabelos – Vivianne Pasmanter –, como também ter que
sustentar uma filha sem a presença de um pai, falta de dinheiro, etc.
A sua segunda Helena protagonista, interpretada por Regina Duarte, desfila em Uma
História de Amor (1995). Helena é uma mulher comum que luta pela sobrevivência, agüenta
desaforos de uma filha grávida, abandonada pelo namorado e rebelde, e, mais uma vez, tem
um segredo que envolve amor e mentira. Joyce – Carla Marins – não é sua filha legítima, mas
filha da sua irmã que, antes de morrer, pede para Helena criá-la como filha e nunca lhe contar
a verdade. Helena é separada e depois de vários relacionamentos se apaixona por Carlos –
José Mayer –, que é casado com uma mulher mimada – Carolina Ferraz – e tem uma exnamorada – Lília Cabral – que não larga do seu pé.
Mais uma vez, Regina Duarte é uma Helena de Manoel Carlos em Por Amor (1997).
Desta vez, a tão devotada mãe abre mão do seu segundo filho em nome do amor pela filha,
Maria Eduarda – Gabriela Duarte – e, de quebra, perde o homem que ama, Otílio – Antonio
Fagundes. Helena e Maria Eduarda engravidam no mesmo período e ganham bebês na mesma
noite. Devido a complicações no parto, sua filha não poderá engravidar novamente e, para
completar, seu filho morre. Helena se vê enlouquecida com a possibilidade de Maria Eduarda
não suportar a dor da dupla perda, já que a considera indefesa e frágil. E, num arroubo de mãe
heroína, troca os bebês. Este é mais um segredo das Helenas, que envolve filhos, abdicação,
amor e mentira.
Em Laços de família (2000-2001), Helena – Vera Fisher – abre mão duas vezes dos
homens que ama pela filha Camila – Carolina Dieckmann. Primeiro, quando Camila se
apaixona por seu namorado, Edu – Reynaldo Gianecchini –, então Helena decide sair de cena
para os dois viverem esse amor. Pela segunda vez, quando Helena engravida de Pedro – José
Mayer –, na tentativa de gerar um filho compatível com Camila, para salvá-la da leucemia, e
abre mão do seu amor Miguel – Tony Ramos. Outro segredo ronda a trama, Camila é filha de
Pedro, que só fica sabendo da verdade devido a sua doença e da tentativa de Helena salvá-la.
Em Mulheres Apaixonadas (2003), Helena – Christiane Torloni – não pode ter filhos,
mas adota Lucas – Victor Curgula – e vive uma vida estável com Téo – Tony Ramos.
Cansada do seu casamento sem grandes emoções, resolve deixar tudo para viver um amor do
passado – José Mayer. No desenrolar da trama, Helena descobre que Lucas é filho legítimo de
Téo com outra mulher – Vanessa Gerbelli. Na trama, há várias identidades femininas em
15

ação, como a ciumenta Heloísa – Giulia Gam –, a professora alcoólatra – Vera Holtz –, uma
mulher atormentada pela violência doméstica – Helena Ranaldi –, a pulsante Lorena – Suzana
Vieira –, uma neta cruel – Regiane Alves –, etc.
Por último, em Páginas da Vida (atualmente em exibição), Helena – pela terceira vez
Regina Duarte – é uma obstetra que descobre a traição do marido – José Mayer – e o expulsa
de casa. Vivendo há vinte anos a angústia de ter perdido uma filha de quatro anos, Helena faz
o parto de Nanda – Fernanda Vasconcellos – que, após ter um casal de gêmeos, sendo a
menina portadora de Síndrome de Down, morre. Helena se depara com o drama de uma
criança portadora de Síndrome de down e rejeitada pela avó. Decide, então, adotar a menina,
mas, para tanto, é conivente com a mentira de Marta – Lília Cabral –, mãe de Nanda, que diz
a todos que a menina morreu. Após cinco anos, Léo, o pai dos gêmeos – Thiago Rodrigues –
volta ao Brasil. Então, ela trava uma grande batalha pela guarda da menina.
Nessas seis tramas, o grande carro-chefe é a maternidade, através do qual as Helenas
são capazes de tudo por suas filhas ou filhos, até matar, morrer, mentir, abrir mão de tudo,
brigar, etc. Essa devoção é resumida na fala da Helena, de Laços de Família, no momento em
que ela justifica a Miguel a sua gravidez e a renúncia do seu amor.

[...] fiquei pensando em tudo que eu já fiz pela felicidade dos meus filhos e em tudo
que ainda sou capaz de fazer. Não existem limites, não existem barreiras no meu
amor por eles. Pra muita gente, eu tô errada, eu sei! Pode se dar tudo aos filhos,
menos a nossa própria felicidade. Mas, como uma mãe pode ser feliz se a felicidade
dos filhos não tá incluída nessa felicidade? A minha mãe era assim! Por amor a
mim, ela me acompanhou, ela deixou a fazenda para vir comigo pro Rio, ela abriu
mão de tudo e acabou perdendo o meu pai. Acho que essa renúncia pelos filhos é
um mal de família. Na minha vida tem sido assim! Eu abri mão do Edu pela Camila
e, pela Camila, abri mão de você7 (Cap. 141).

As Helenas do autor não são apenas mães exemplares, elas traem e abandonam um
homem apaixonado – Mulheres Apaixonadas; provocam abortos e são amantes – Uma
História de Amor; inventam gravidez e casam por interesse – Felicidade; matam um filho
vivo e tiram a possibilidade de um homem ser pai pela primeira vez – Por Amor; escondem a
verdadeira paternidade da filha e se dispõem dos sentimentos dos outros como bem querem –
Laços de Família; e concordam com a mentira de uma avó fria e traem o homem que amam –
Páginas da Vida. Ao mesmo tempo, são trabalhadoras, donas de casa, amantes, rivais de outra
mulher, amigas, pai e mãe ao mesmo tempo, etc.

7

Ao longo da dissertação, serão encontrados os trechos das falas dos e das personagens de Manoel Carlos
destacadas na cor azul. Isso significa que são hiperlinks, ou seja, no CD, que vem em anexo, estão contidas essas
cenas. Basta clicar no texto azul e assisti-las.
16

Mesmo as novelas nos apresentando modelos corretos e incorretos de identidades, ou
seja, educando os corpos e almas femininas, acredito que as identidades estão em fluxo8 e que
não são naturais.
Parto do pressuposto que as identidades femininas foram construídas pelo discurso
moderno, que tem como base a ciência, sendo legitimada pela concepção de diferença. O ideal
de identidade feminina vem fracassando, pois esta não é fixa, imutável e homogênea como o
discurso normativo pretende. Além disso, a identidade feminina compartimenta várias outras
identidades, como a identidade de ser negra, de ser prostituta, de ser empresária, de ser
desocupada, de ser desempregada, de ser amante, de ser adúltera, de ser analfabeta, etc. Essas
outras identidades quebram com a imagem fixa da identidade feminina.
As novas identidades são construídas constantemente, através das subjetividades
produzidas por dispositivos culturais e sociais; sendo um desses a mídia, que possui o poder
de construir modelos de identidade a serem seguidos ou repelidos, principalmente nas
propagandas e nas novelas. Nas propagandas são apresentados produtos a serem consumidos
em nome da beleza, seus garotos e garotas propaganda são sempre jovens, saudáveis e
bonitos.
Já as novelas nos apresentam modelos de beleza, de educação, de comportamento, de
moda, etc, apontando que estes são os modelos ideais a serem subjetivados. Os personagens
de bom caráter são sempre bonitos, elegantes, bondosos, educados e portadores de uma moral
incontestável; em contraposição ao seu outro, os vilões, portadores de um caráter duvidoso.
Estes, sempre ao final da novela, se dão mal, pois são castigados por possuírem uma má
conduta9.
Desta forma, as novelas nos apontam o caminho a ser seguido e os modelos a serem
subjetivados, criando novas identidades, que se apresentam como passageiras. Essas novas
identidades são revestidas de novas roupagens e sempre são reatualizadas. Porém, reforçam os
velhos estereótipos de mulher. Sendo assim, em geral, os autores das novelas não se
preocupam em questionar as identidades e diferenças, pelo contrário, reforçam as
desigualdades culturais e sociais.
Essas novas identidades são ditadas pelo consumo – da beleza, do bem-estar, do
modelo de namoro, da moda, do entretenimento, etc. –, ou seja, são construídas a partir dos
modelos de subjetividade apresentados pela mídia. Todavia, mesmo estando calcadas nas
8

Identidade em fluxo é vida, é prática, é transgressão. Sendo assim, não podemos afirmar que essa é fixas e
durável.
9
Temos como exemplo de novelas feitas nesses moldes as da Rede Globo, nas quais os heróis e as heroínas
terminam felizes com o seu amor; e os vilões e as vilãs morrem, ficam loucos, paralíticos ou são abandonados.
17

identidades duráveis, se apresentam como passageiras porque a mídia está em constante
mudança.
Em um mês está em ascensão um determinado grupo de pagode que valoriza os
atributos físicos femininos, como a bunda; no outro, já estão na moda grupos de funk que
desvalorizam a imagem feminina, comparando-a a cachorras. Apesar dessas novas
identidades, forjadas pelo discurso musical de pagodeiros e funkeiros, apresentarem-se como
algo novo, essas imagens femininas reforçam a secular concepção de mulher-objeto.
Essas subjetividades circulam na sociedade, onde as práticas culturais e sociais
reforçam as identidades ditas passageiras, porém duráveis, e os binarismos. Os binarismos já
são uma marca do nosso ensino, principalmente no de história, pois são nas narrativas
históricas que os personagens de diferentes identidades – os negros, os brancos, o
proletariado, os judeus, as prostitutas, etc. – são apresentados com maior evidência. Porém, as
subjetividades produzidas pelas narrativas, não só históricas, circulam em toda a escola.
No binarismo homem/mulher, suas subjetividades circulam através de diferenças
salariais, da fixação de trabalhos distintos, de brincadeiras, de piadas, de comentários, etc. em
todos os âmbitos sociais, como em casa, na sala de aula, no emprego, na rua, etc. Nesse
sentido, a identidade feminina é diferente e desigual da identidade masculina, pois foi
construída pelo eu10 como o outro11. Porém, as identidades femininas passaram e passam por
constantes reelaborações.
Minha hipótese é que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas
culturais e sociais, de práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de
poder/saber. Essas relações criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma
feminina com base em normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das
identidades femininas e penso na emergência de identidades em fluxo, uma vez que a
telenovela constrói identidades duráveis.
Porém, não é pelo fato das novelas construírem identidades que essas devam ser vistas
como modelos ou obrigatoriamente constituídas de personagens representantes de uma
identidade única ou correta. Um exemplo é a identidade das pessoas que desejam pessoas do
mesmo sexo. Organizações, nomeados de movimentos gays, cobram dos autores das novelas a
veiculação de homossexuais sempre bem resolvidos, pois alegam que essa imagem ajuda em
uma visão menos preconceituosa da população com relação aos mesmos.
10

O sujeito construído na relação binária como superior: o homem, o branco, o cristão, o racional, o bonito, o
rico, etc.
11
O sujeito construído na relação binária como inferior: a mulher, o negro, o judeu, o irracional, o feio, o pobre,
etc.
18

Também não é interessante o inverso, ou seja, ser veiculada apenas a imagem
estereotipada desses corpos livres, ou seja, a biba louca e a mulher machão. Na vida, temos
uma variada gama de identidades homossexuais. Nem todo homem e nem toda mulher que
não se adequa ao padrão heterossexual é bem resolvido, possui um bom emprego ou é vulgar
e promíscuo.
No momento em que as novelas nos apresentam apenas exemplos de gays bem
resolvidos, estão criando um modelo de como se deve ser homossexual, ou seja, cria uma
identidade fixa, na qual só há espaço para um corpo padronizado, educado pela mídia. Desta
forma, os que não se enquadrarem nesse padrão serão vistos como o outro de uma identidade
já estabelecida.
Outro ponto importante que deixo claro é que não tenho a preocupação em discutir se
as novelas são influências negativas ou positivas na vida das pessoas, ou seja, não endeuso e
nem demonizo a imagem da mídia e da televisão brasileira. Acredito que estas possuem
aspectos positivos e negativos nos seus discursos e programações. Não me detenho no debate
se a televisão dissemina a violência ou se é propulsora de alienação.
Neste percurso, farei uma análise dos discursos da telenovela Laços de Família, a
partir da narrativa, enredo, diálogos, etc., tentando situar como foram construídos
discursivamente os personagens femininos – Helena, Alma, Capitu, Íris e Camila – e como
esses personagens reforçam a regra do normal, ou seja, como legitimam alguns estereótipos
femininos, como a imagem da mãe perfeita, a da filha ingrata, a da doidivanas, etc.
Sob a égide da análise em tela, divido o texto da seguinte forma:
No capítulo I – Identidade e Diferença: a doma(dana)ção do outro e a afirmação do eu
– discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais;
No capítulo II – Identidade Feminina: cria do discurso científico – situo a construção
das identidades femininas no bojo do discurso científico;
No capítulo III – Laços de Família: as tramas de uma novela construindo e
disciplinando as identidades femininas – cartografo as identidades nos discursos da telenovela
Laços de Família.
Por fim, vislumbro fluxos de identidades efêmeras frente às identidades duráveis.
19

2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO E A
AFIRMAÇÃO DO EU

Você não ficou surpresa com a nossa diferença de
idade. Você ficou chocada. Num foi? Não precisa
ficar tímida, minha filha. Você não me magoa com
isso! Teu irmão ficou, as pessoas em geral ficam.
As pessoas do prédio, os amigos, os conhecidos. Em
qualquer lugar que a gente vá e quando a gente se
beija no meio da rua, as pessoas olham feio pra
gente. Querem agredir a gente (Helena, cap.11).

Neste capítulo, faço uma discussão sobre a construção das identidades e a filosofia da
diferença. Tenho como preocupação tentar compreender como as identidades foram
construídas e subjetivadas como naturais.
Os significantes identidade e diferença são conceitos carregados de significados, a
partir das subjetividades. No Novo Dicionário Aurélio (1975) encontramos as seguintes
definições:

Identidade. [Do lat. Escolástico identitate] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre
as concepções dos dois perfeita identidade. 2. Conjunto de características próprios e
exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos,
impressões digitais, etc. 3. Reconhecimento de que um indivíduo morto ou vivo é o
próprio. 4. Carteira de identidade. 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos os
valores das variáveis envolvidas (FERREIRA, 1975, p. 743, grifos do autor).
Diferença. [Do lat. differentia]. S. f. 1. Qualidade de diferente. 2. Falta de
semelhança ou igualdade; dessemelhança; dissilimitude: Não há diferença entre os
gêmeos. 3. Alteração, modificação: Nota-se diferença na cor do leite. 4.
Diversidade, disparidade, variedade: Grande era a diferença das cores. 5.
Desconformidade, divergência, desarmonia: Notava-se no grupo uma viva diferença
de opiniões. 6. Transtorno, prejuízo: É claro que o resultado me faz diferença. 7.
Distinção (1): Não faz diferença entre os amigos: a todos trata muito bem. 8.
Desproporção, desigualdade: Era sensível a diferença no tratamento dispensado às
filhas. 9. Mat. Resultado da subtração de duas quantidades. 10. Mat. Conjunto de
elementos que pertencem a um conjunto, mas não pertencem a outro nele contido. ~
V. diferenças. ◊ Diferença de potencial. Eletr. Trabalho necessário para levar de
um ponto a outro (no espaço ou num circuito elétrico) uma unidade de carga
elétrica. [Abrev.: d.d.p] (FERREIRA, 1975, p. 476, grifos do autor).

Esses conceitos atestam legitimidade de classificação e exprimem definições com dois
sentidos opostos, porém relacionais. Nesse sentido, a identidade atesta igualdade e
semelhança e a diferença, o seu oposto. São relacionais no sentido que as classificações são
20

construídas e se legitimam a partir dos parâmetros de semelhança ou não. Sendo assim, as
pessoas são enquadradas a estereótipos da igualdade ou da diferença, ou se é igual ou se é
diferente de certos modelos de normalidade.
O ato de conceituar e classificar é perpassado por relações de saber/poder, ou seja,
envolve o ato de proferir um discurso. O discurso, segundo Foucault (2004, p. 10),

[...] não é aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o
objeto do desejo; é visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas
aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.

Porém, o próprio significado de conceito é discutível, pois este pode ser concebido
como algo que exprime uma verdade científica ou como uma elaboração de discursos
baseados na ciência, ou seja, há uma relação direta entre conceito e ciência e conceito e
verdade.
Para o discurso científico, a história das ciências é antes de tudo uma história
conceitual, pois a formação dos conceitos define uma racionalidade, ou seja, o conceito
exprime a normatividade desse discurso. Nesse sentido, um conceito atesta uma verdade que é
o propósito final da ciência.
Mesmo a ciência tendo esse propósito, o de afirmar uma verdade, segundo Machado
(1981, p. 20):

[...] a ciência não pode ser encarada como um fenômeno natural nem mesmo como
um fenômeno cultural como os outros. A ciência não é um objeto natural, um objeto
dado; é uma produção cultural, um objeto construído, produzido. Também não pode
ser ‘naturalizada’ por uma redução a seu aspecto institucional. Naturalizar a ciência
é confundi-la com seus resultados e, pior ainda, com os cientistas. [...] A ciência é
essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente.
Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: é um discurso que tem a
pretensão de verdade.

A ciência é um discurso que constrói identidades e diferenças e legitima desigualdades
e exclusões, tendo sempre a pretensão de criar lugares a partir dos seus procedimentos de
verdade. Assim, o próprio conceito de verdade passa a ser questionável, pois também passa a
ser visto como um lugar construído, elaborado, produzido pelo discurso da ciência.
21

O discurso científico constrói identidades baseado numa ontologia12, numa essência,
tendo como pressuposto a existência de diferenças, sejam elas étnicas, sexuais, raciais, etc. As
identidades, assim, tendem a se fixar a partir das subjetividades e das práticas culturais e
sociais.
Extrapolando esse tipo de perspectiva, podemos dizer que as identidades só adquirem
sentido a partir do momento em que a linguagem passa a instituí-las como verdadeiras e
distintas, demarcando territórios de desigualdade e exclusão. Portanto, as identidades são
entendidas como construções discursivas que seguem uma série de procedimentos a partir das
intencionalidades de quem as constroem. Esses procedimentos podem ser de exclusão,
classificação, nomeação, etc.
Você já parou para pensar no poder do discurso?
Estamos sempre em busca de afirmar uma verdade e acreditamos que estamos sempre
representando essa verdade, através dos signos. Entretanto, essa representação13 se concebe a
partir de um discurso que possui intencionalidades, que nunca é inocente, aleatório ou
desinteressado. Logo, Foucault (2004, p. 8-9) diz:

[...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento
aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Este excerto mostra que o próprio discurso possui procedimentos de exclusão e que
segue uma ordem certa de acontecimento, ou seja, todos precisam se enquadrar à ordem do
discurso. Esse ritual da palavra vai além do ofício do falar, extrapolando os muros da simples
comunicação para se transformar numa máquina de poder.
Nessa relação de poder, o mais importante não é em si o falso ou o verdadeiro, mas
sim a política da verdade. Esse movimento pode ser observado na evolução científica do saber
médico-jurídico-psiquiátrico.
Entre o final do século XIX e início do XX, psiquiatras, detentores da verdade sobre a
mente humana, prescreviam a lobotomia14, entre várias outras técnicas, como forma de
diminuição ou, até mesmo, como cura dos males da mente. Na atualidade, essa prática não é
12

Pensamento que tem a concepção de que exista uma natureza comum a todos e a cada um dos seres, ou seja,
acredita na existência de uma essência.
13
Entendo como representação não um atestado ou radiografia do que chamamos de realidade, mas como algo
que dá sentido, a partir das narrativas, aos fatos, aos acontecimentos, às identidades, às diferenças, etc.
14
Psicocirurgia, comumente praticada entre o final do século XIX e início do XX, que retirava parte do cérebro
do paciente considerado possuidor de algum distúrbio mental.
22

mais utilizada. Porém, a lobotomia não é considerada como um erro da ciência médica, mas
como um estágio evolutivo para se chegar ao que hoje consideram como verdade no
tratamento da loucura.
Na política da verdade, a instituição médica prescreve nos corpos dos monstros
humanos15 um discurso marcado por práticas violentas, que instaura a verdade médicojurídica e, assim, uma realidade construída e vivenciada em clínicas e hospitais psiquiátricos
por pessoas enquadradas como possuidoras de distúrbios ou anomalias mentais.
Desse ponto de vista, o discurso possui o poder de instituir o real. A linguagem não é
mais vista como uma disciplina do currículo escolar ou apenas como uma forma de
comunicação entre homens e mulheres. Com a virada lingüística16, a linguagem deixou de ser
vista como uma representação ou reflexo da realidade, passando a ser vista, a partir do seu
caráter construcionista, como um signo que produz significantes e significados.
Os significantes são todas as nomeações e classificações que fazemos sobre as pessoas
e as coisas. Na medida em que criamos subjetividades para os significantes, podendo ser de
formas distintas, estamos dando-lhes significados. Portanto, quando produzimos uma
narrativa sobre as pessoas e as coisas, estamos instituindo uma realidade.
A linguagem possui o poder de nomear e classificar, separando e ordenando os
opostos,

construindo

os

heterossexual/homossexual,

binarismos

homem/mulher,

normal/anormal,

bonito/feio,

rico/pobre,

branco/negro,

eficiente/deficiente,

colonizador/colonizado, trabalhador/vagabundo, inteligente/ignorante, civilizado/ bárbaro,
entre outros.
Baseados na tradição do pensamento moderno, o que encontramos nos artefatos
culturais (livros didáticos, revistas, mídia, imagens, etc) são representações do real. Esses
artefatos culturais sempre nos apresentam identidades fixas, homogêneas e imutáveis,
demarcando lugares hierárquicos a partir de um discurso pautado na diferença. Essas imagens
reforçam o lugar de superioridade do primeiro termo em detrimento do segundo, que possui o
lugar de inferioridade.
Nos dois pontos a seguir, venho discutindo o que denomino de identidades duráveis e
identidades em fluxo.

15

Primeira figura apresentada por Foucault na constituição da anomalia humana.
A virada lingüística passou a ser processada no início do século XX com Ferdinand Saussure, o qual concebia
a linguagem como um sistema de significação, vendo seus elementos (signo, significante e significado) de uma
forma relacional.

16
23

2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES

Discutirei a emergência das identidades duráveis e como os discursos pretendem
prender as identidades a lugares fixos.
Pensar nas identidades na atualidade e todas as suas imagens recorrentes é nos remeter
a um projeto pensado por iluministas e suas mutações ao longo da nossa história, ou seja, a
construção das identidades está intimamente ligada ao nascimento do sujeito moderno17.
A partir do período nomeado como moderno, a noção de sujeito passa a ser constituída
através do discurso moderno, que coloca o homem no centro do universo, deslocando o poder
que antes era divino para o humano. Este seria o sujeito construído pelo discurso Iluminista,
ou seja, o sujeito moderno.
Segundo os discursos modernos, o homem deveria se afastar de todos os dogmas e das
superstições existentes, passando a fazer uso da razão. O uso da razão teria como função dar
subsídios ao homem para este alcançar sua liberdade e autonomia e chegar ao ideal de
civilização. Quanto maior o uso da razão, maior seria o nível de civilização. O ideal de
civilização estaria pautado no progresso e na evolução humana, ou seja, o homem deveria ser
um indivíduo livre e autônomo, consciente, capaz de se auto-determinar e transformar o
mundo.
O próprio termo Iluminismo18 surgiu em oposição às trevas, às superstições e aos
dogmas, referente à concepção dos modernos em relação à Idade Média, indicando um
período de luz e claridade, que seria alcançado através do uso da razão, que proporcionaria a
conscientização.
Com base nesse discurso, o homem já nasceria com uma consciência adormecida, que
seria libertada pelo conhecimento, pela ciência e pela educação, ou seja, já teria inerente na
sua natureza a racionalidade, em outras palavras, a capacidade de aprender, de ser autônomo e
de conhecer a realidade. Desta forma, só o que lhe faltaria seria o despertar em vista ao
progresso humano, ocorrendo, a partir daí, o seu enriquecimento intelectual e
desenvolvimento do coletivo, ou seja, da sociedade e da nação.
17

O sujeito moderno é uma construção discursiva que passou a ser constituída a partir do século XVI pelos
pensadores modernos como Descartes, Hegel, Rosseau, etc. Este seria um sujeito dotado de razão, consciência,
livre e com capacidade de se auto-determinar e, tendo em vista o progresso, transformar o mundo.
18
O Iluminismo é consagrado pela historiografia como um movimento cultural, artístico e filosófico europeu dos
séculos XVII e, principalmente, XVIII. O pensamento Iluminista é caracterizado pela ênfase colocada na razão e
na experiência, pela desconfiança em relação à religião e às autoridades tradicionais e no ideal de sociedade
liberal e democrática.
24

A preocupação com a educação e a sua supervalorização vem acompanhando ao longo
da história a noção de civilização e progresso humano. Sendo assim, o discurso iluminista
vem se atualizando e não cessa de se renovar com os discursos da modernidade.
A educação é vista como a salvadora de todos os males sociais e culturais. Porém,
Foucault (2004, p. 44-45) aponta que todo o sistema de educação possui procedimentos de
manutenção e apropriação dos discursos.

[...] O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão
uma qualificação da palavra e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam;
senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma
distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?

Sendo a educação uma modalidade política carregada de poderes e saberes, possui o
poder de disciplinar e de controlar, formando corpos dóceis e adequados a regras e a normas.
São rituais que se materializam na hora de entrar e sair da escola, cadeiras enfileiradas, ter
boas notas escolares, ter bom comportamento, ter que usar uma farda, etc. O não
cumprimento das regras resulta em punição: castigo, diminuição das notas, expulsão de sala
de aula ou da escola, reprovação do ano letivo, etc.
Concomitantemente à noção de educação, o Iluminismo teria como função a formação
do homem enquanto sujeito, sendo contra qualquer tipo de autoridade que não fosse pautada
na racionalidade e na experiência. A religião configurava-se como um empecilho para o
progresso e a evolução humana, já que, nessa concepção, o homem estaria subordinado a
crenças irracionais e a uma autoridade baseada em dogmas e superstições. Levando-se em
consideração que a existência de Deus não pode ser provada pela ciência como algo material,
o homem não deveria se submeter a essa força.
O período moderno é um momento não só calcado numa razão absoluta e
inquestionável, mas também na experiência19 e na prova. Um fato para ser considerado como
verdadeiro teria que ser experimentado e provado cientificamente. O pensamento moderno
não concebe a verdade como uma construção discursiva interessada, mas como um dado da
realidade.
A noção de sujeito iluminista, segundo Hall (2001, p. 10) diz que: “O sujeito do
Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação,
cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior [...]”.
19

Os maiores defensores do método experimental foram René Descartes e Francis Bacon, os quais objetivavam
um método que evitasse o erro e colocasse o homem no caminho do conhecimento correto e verdadeiro.
25

Contrapondo-se ao projeto iluminista, este se constituía como uma invenção histórica,
pois havia, durante o período moderno, todo um discurso que o elaborava como sujeito.
A noção de sujeito moderno nos remete a uma identidade fixa, homogênea, imutável,
ou seja, fechada em si; haja vista não permitir a emergência de outras formas de identidade.
Então, uma questão vem à tona: a partir de que as identidades duráveis são
construídas? A partir de discursos pautados na diferença, ou seja, o eu pontua o que o outro
tem de diferente de si a fim de construir e naturalizar seu lugar de superioridade. Na leitura
dialética de Hegel20, o eu é definido como a negação do outro.
Hegel faz uma análise, em Fenomenologia do Espírito (1807), sobre a autoconsciência ou consciência de si, mostrando que o eu só pode ser construído a partir do outro.
Para tanto, ele utiliza a metáfora do Senhor e do Escravo, apontando para uma identidade
relacional na qual o Senhor reconhece o seu inferior, dependendo também do reconhecimento
do Escravo, ou seja, o Senhor tem que ser reconhecido como superior.
Um exemplo de como a identidade é construída como relacional é a identidade negra,
ela é o outro da identidade branca. A identidade negra só existe a partir de algo exterior a si,
portanto, depende e difere da identidade branca. Da mesma forma ocorre com a identidade
branca, que depende e difere da identidade negra. Como podemos constatar, as identidades
são marcadas pela diferença e sustentadas pela exclusão, ou seja, se você é negro, não pode
ser branco, e vice-versa. Essa exclusão é acompanhada das desigualdades sociais e culturais,
pois temos várias práticas cotidianas que demarcam os territórios de exclusão.
As diferenças não são um dado da natureza, ou seja, algo natural e que possui uma
essência, mas sim uma construção discursiva e histórica, pois se localiza num momento
específico no tempo. Como o essencialismo21 fundamenta-se na história e na biologia, as
identidades podem ser criadas baseadas num determinado passado – identidades nacionais,
étnicas e religiosas – ; e também na biologia – identidades de gênero e de raça.
Mas, quais as intencionalidades do discurso moderno em construir discursivamente as
diferenças?

20

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) – pensador que influenciou o desenvolvimento do pensamento
ocidental do século XIX no que diz respeito á filosofia, à teoria social e política. Hegel criou o conceito de
dialética, cujo raciocínio parte do pressuposto de que um conceito e o seu oposto, em conjunto, originam uma
idéia posterior que representa o que é essencial em ambos. Mas esta, por sua vez, gera o seu oposto, e, assim,
recomeça o processo de transição dialético.
21
Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade de uma substância primeira, a essência.
Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo, permanece
imutável e estática.
26

No discurso científico, o outro é visto como a fonte de todo o mal, ou seja, o exterior
ao ideal de sujeito Iluminista. Segundo Duschatzky e Skliar (2001, p. 123):

A modernidade inventou e se serviu de uma lógica binária, a partir do qual
denominou de diferentes modos o componente negativo da relação cultural:
marginal, indigente, louco, deficiente, drogadinho, homossexual, estrangeiro, etc.
Essas oposições binárias sugerem sempre o privilégio do primeiro termo, e o outro,
secundário nessa dependência hierárquica, não existe fora do primeiro, mas dentro
dele, como imagem velada, como sua inversão negativa.

As diferenças causam-nos mal-estar e nos subjetivam uma identidade normal, pois os
apontados como diferentes são caracterizados pelo espelhismo da normalidade, ou seja, se
caracterizam como o oposto da identidade normal; sendo estes agrupados a partir de critérios
estabelecidos pela ciência moderna. O outro seria o perigo e o mal a serem domados e
enquadrados aos lugares construídos para si, sendo nomeados e classificados como diferentes.
Através dos binarismos, o outro tem a função de mostrar quem somos, apresentando o
nosso lado negativo, ou seja, o pobre confirma nossa riqueza; o louco, nossa razão; o velho,
nossa juventude; etc. Duschatzky e Skliar (2001, p. 124, grifos do autor) apontam:

O outro diferente funciona como depósito de todos os males, como o portador das
falhas sociais. Este tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência,
do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; e a
exclusão, do excluído.

O discurso sobre os nomeados e classificados como louco, que é o outro da nossa
razão, serenidade e sanidade, reforça a concepção de que somos portadores de uma identidade
normal. A identidade normal existe em contraposição á identidade do louco, que, segundo o
discurso científico, não tem capacidade de viver no mundo real.
No final do século XIX e início do XX, momento de medicalização da loucura, o
discurso médico-científico patologiza o louco e a loucura, criando um discurso que inventa
um lugar para este, apresentando-o como o outro que deve ser tratado e excluído da
sociedade. Para aplacar o medo e a perturbação que o louco nos causa, foram criadas casas de
reclusão que têm a função de controlar o seu corpo e a sua mente.
No caso da figura feminina, o saber médico não apenas patologizou as nomeadas e
classificadas como loucas, mas também criou um distúrbio mental praticamente exclusivo
27

para as mulheres: a histeria, que possuía uma íntima relação com a madre22. Para médicos e
legistas, o corpo feminino, com os seus fenômenos naturais como a menstruação, a gravidez,
o parto e o pós-parto, estava fisiologicamente predisposto a doenças mentais. Para Engel
(2002, p. 343):

A visibilidade e os significados da concepção segundo a qual a histeria seria em sua
própria essência uma doença feminina encontram-se profundamente vinculados à
tradição que – presente na medicina hipocrática, passando pelos médicos medievais
– identificava o ‘mal histérico’ à ‘sufocação da madre’.

Nesse período, a madre era a chave de todos os males. Foram lançadas várias teses
negando o prazer sexual feminino. A mulher que sentisse prazer sexual era tida como
ninfomaníaca, porém não podia repudiar a ato em detrimento da maternidade, que poderia
salvá-la da doença mental. Outras teses foram lançadas, porém mais escassas, reconhecendo o
prazer sexual da mulher e a necessidade de realizá-lo, já que a sua falta ou ineficiência
poderia causar a prática da masturbação e, conseqüentemente, a histeria.
Os alienistas acreditavam que a maternidade seria capaz de curar distúrbios psíquicos
relacionados à sexualidade, assim como intervenções cirúrgicas ginecológicas, pois havia uma
grande associação entre a loucura e o útero (mater). Nessa concepção, o útero definia a
mulher e determinava seu comportamento emocional e moral. O discurso médico apreendia a
identidade feminina a um corpo estranho, perigoso e labiríntico, sendo, assim, passível de se
explorar, domar e disciplinar.
As mulheres classificadas e nomeadas como loucas ou histéricas eram tidas como
diferentes. Porém, as identidades não são construídas apenas como diferentes, mas também
como desiguais, pois o discurso moderno encontrou no saber científico o lugar da experiência
e da prova para justificar as diferenças e, desta forma, legitimar as desigualdades.
As identidades são diferentes apenas em si, pois foram construídas, discursivamente e
culturalmente, ao longo do tempo como diferentes e desiguais. Para esse discurso, o outro não
é apenas diferente, mas também desigual. A desigualdade só existe a partir do discurso da
diferença.
As marcas do discurso da diferença são a desigualdade e a exclusão. Uma pessoa vista
como diferente nunca é aceita com igualdade pelo normal. O pobre é excluído de boas
escolas, de uma boa alimentação, de atendimento médico e de lugares, pois este já possui o
22

A madre era entendida como a geradora de todo o bem feminino, maternidade e todos os males como a
perversão moral e social e os distúrbios mentais. Em síntese, a madre era o órgão sexual e reprodutor feminino.
Porém, definia ou carregava em si as marcas de normalidade ou anormalidade das mulheres.
28

seu lugar pré-estabelecido a partir de discursos, que pretendem mostrar seu lugar de
inferioridade em contraponto ao rico.
Segundo Woodward (2000, p. 14), “a marcação simbólica é o meio pelo qual damos
sentido às práticas e as relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é
incluído”.
As práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder,
pois determinam lugares para as identidades.
Temos também como exemplo a identidade do oriental, o outro da identidade do
ocidental, no qual o Oriente configura-se como um corpo escrito e construído. Said (1990)
discute como o Oriente foi construído pelo Ocidente e quais as intencionalidades do discurso
ocidental em falar do e pelo outro, apontando que o Oriente, de início, era o desconhecido
ameaçador, que, numa relação de poder e saber, deveria ser controlado.
Desta forma, baseado na tradição ocidental em construir a história do outro a partir de
suas verdades, o Oriente foi descrito como irracional, estranho, anormal, etc. em contraponto
a um Ocidente racional, conhecido, progressista, virtuoso, maduro, etc. O Ocidente se
autodenomina como lugar da superioridade, da dominação e da autoridade; opondo-se a um
Oriente inferior, submisso e incapaz. O Ocidente nomeia e classifica o Oriente a partir de si,
criando a identidade deste outro como uma imagem invertida.
Calcado numa noção de identidade relacional, Said (1990, p. 14) aponta:

[...] O Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem, idéia,
personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente
imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da
Europa. O Oriente expressa e representa esse papel cultural e até mesmo
ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de instituições,
vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais.

Além desse discurso baseado numa diferença cultural, temos o discurso que é marcado
pelo corpo, ou seja, as deficiências humanas, no qual todo um saber científico e técnico
define, nomeia, classifica e cria identidades para os deficientes; dando-lhes características
específicas, as redes de significação vão se multiplicando, criando e recriando a cada dia
novas identidades.
Paulo, filho de Miguel, possui no corpo as marcas da exclusão e da desigualdade.
Quando adolescente, sofreu um grave acidente de carro que vitimou a sua mãe e lhe trouxe
várias seqüelas, como problemas de locomoção e de dicção. Ao longo dos anos, com muito
trabalho e determinação, foi conseguindo melhoras, porém não se livrou dos preconceitos.
29

Paulo: Eu só queria saber uma coisa, mas que você me falasse a verdade.
Miguel: O que que é, meu filho? Diz.
Paulo: Se é verdade que as pessoas têm pena de mim.
Miguel: Meu filho, de onde é que você tirou isso?
Paulo: A Ciça fala isso muitas vezes e falou hoje na frente de uma moça.
Miguel: E aí?
Paulo: A moça olhou pra mim e falou ‘coitado’.
Miguel: Aí, meu filho, você nunca ligou pra nada que a que a sua irmã fala e você
sabe muito bem que lá em casa ninguém dá a menor importância pras implicâncias
da Ciça. É ou não é?
Paulo: Mas, eu também percebo as pessoas comentando.
Miguel: Mas, comentam o que, meu filho? Que você tem limitações, que você tem
problemas? Mas, você tem mesmo, meu filho. Tem e você sabe disso antes e melhor
que qualquer um (Cap. 43).

Paulo, enquanto um homem que carrega deficiências físicas, se configura como um
anormal; nesse caso, um anormal aceitável, mas, na concepção de Ciça, incapaz de se
relacionar com Capitu, pois “ela é muita areia pra o seu caminhãozinho” (Cap. 45). Nesse
sentido, os relacionamentos devem ocorrer com os seus devidos pares: se Capitu é normal
fisicamente, deve amar um igual a ela.
Nesse discurso, o diferente configura-se como alguém a ser tolerado, o que mascara as
desigualdades, mas não coloca em questão as exclusões. O discurso da tolerância e do
respeito se esconde atrás de um véu lingüístico, constituído de palavras mais brandas e
suaves. Contudo, esses discursos apenas reforçam as diferenças, pois não põem em xeque as
identidades, ou seja, estas continuam sendo vistas como naturais, não como uma construção
discursiva localizada num determinado tempo.
Entre os sujeitos envolvidos na relação identitária há o que quer ditar o certo e o
errado. No exemplo a seguir, Ciça quer ditar ao pai o caminho que ele deve seguir, pois ela
não considera adequado ele ser educado, passivo e compreensivo demais. Porém, Miguel
possui o poder de pai e, assim, o direito de encaminhá-la á obediência e à aceitação das suas
decisões.
Ciça não se conforma por Helena não ter aceitado o pedido de casamento do seu pai e
ter terminado o relacionamento sem explicações convincentes. No dia do aniversário de
Miguel, Helena vai à livraria para parabenizá-lo, porém não o encontra e é expulsa por Ciça.
Miguel fica sabendo que Helena foi lá e pede explicações a sua filha.

Ciça: Eu num consigo, pai, eu num consigo ver tudo isso sem fazer nada, eu num
consigo. Você é compreensivo demais, você é passivo demais, você é educado
demais, gentil demais. Não se deve ser assim, pai. Eu amo você demais pra ver você
sofrer sem fazer nada.
Miguel: Olha, minha filha, uma vez eu te disse. Lembra-se? Quando a gente ama,
quando a gente ama uma pessoa, a gente aceita essa pessoa do jeitinho que ela é,
com todos os seus defeitos, diferenças, maneiras de ser, com tudo isso. Porque esse
30

é o verdadeiro amor. Já te falei isso. Só que eu e você somos diferentes. Não queira
que eu haja, que eu pense, que eu faça tudo, todas as coisas que você imaginar na
tua vida, segundo a sua visão, de acordo com aquilo que você quer. Não, porque nós
somos diferentes, diferentes. Olha, minha filha, eu acho que é até bom, já que você
não consegue conviver com as nossas diferenças, é bom a gente dá um tempo pra
você. Você sair um pouquinho do Rio, ficar um pouco longe de mim. Quem sabe
viajar. Nova Iorque, por exemplo, lá na casa do Nelson. Pronto!
[...]
Ciça: Não, você não tá falando sério?
Miguel: Tô sim, minha filha, muito sério. Eu acho que é bom sim. Já que você não
consegue conviver tanto com as nossas diferenças. Seria importante isso, você dá
um tempo. Tempo do seu pai, tempo pra você, inclusive, tempo do Rio de Janeiro.
Você queria tanto viajar, talvez seja a hora agora. Viajar, sair um pouco. Quem sabe
até você passa, vai passar a aceitar um pouco melhor o seu pai. Né? Vai aceitar do
jeitinho que eu sou, vai aceitar com as minhas manias, com as nossas diferenças, os
meus defeitos. Quem sabe você depois que voltar vai passar a encarar o teu pai de
uma outra maneira. Ham? Agora desce, desce. Vai trabalhar, vai ocupar a sua
mente. Faz bem trabalhar, faz bem. Vai. Mais tarde nós conversamos (Cap. 137).

Miguel carrega a noção de que as pessoas não são iguais, mas que devem se respeitar
mutuamente. Nesse caso, a diferença é assumida como algo natural, aceitável e tolerável.
Ciça, nesse momento, se transforma num corpo a ser disciplinado. A viagem é uma forma de
castigo: excluí-la do seu convívio é discipliná-la a aceitar e a tolerar as diferenças.
Todavia, as identidades não são tão fixas, homogêneas, imutáveis e incontestáveis
como o discurso moderno pretende, pois as identidades vivem em fluxo e são constantemente
reelaboradas. Debruçar-me-ei, portanto, sobre as identidades em fluxo.

2.2 IDENTIDADES EM FLUXO

Apresentarei os fluxos de identidades e os movimentos de deslocamento dos corpos
femininos e masculinos.
Como já vimos anteriormente, um dos projetos do Iluminismo era formar um sujeito
composto de atributos emancipatórios, ou seja, o sujeito, através do uso da razão, alcançaria o
progresso e a evolução e, desta forma, a felicidade humana. Porém, apesar do progresso
material que temos, criado pela ciência e pela tecnologia, temos uma má qualidade de vida.
Contrariando a noção do sujeito iluminista, Alma, após o acidente que Edu sofre23,
chega à conclusão que o ser humano não possui o comando da sua vida como supunha ter e

23

Edu, após um longo período sem treinar saltos, monta e resolve saltar. Ao se distrair com a chegada de Helena,
sofre um acidente. Edu é submetido a uma cirurgia bem sucedida, porém passa um bom tempo sem os
movimentos dos braços e das pernas.
31

que somos constantemente pegos de surpresa por alguns acontecimentos que não podemos
prever ou evitar.

Quando acontece uma coisa assim, eu fico pensando na fragilidade do ser humano,
na nossa precariedade. Nós levantamos todo dia da cama cheios de planos, muitas
vezes cheios de empáfia, de orgulho, sem saber o que nos aguarda antes mesmo do
café da manhã (Cap. 28).

As próprias metanarrativas24 não foram alcançadas, pois as promessas do Iluminismo
vêm se distanciando cada vez mais da sua concretização. É em nome da racionalidade
científica que o homem tornou-se mais egoísta e autoritário, se auto-destruindo. A ação
humana destrói a natureza e constrói bombas atômicas e armas nucleares, o que coloca em
risco a sua própria existência. Temos um mundo mais conturbado e à beira de um colapso, o
que coloca em questão a Razão Transcendental.
Para o discurso moderno, o homem seria libertado pelo conhecimento, pela ciência e
pela educação. Porém, segundo Veiga-Neto (1995, p. 09):

Atravessando tudo isso, está a sensação de que as instituições – tais como os vários
aparelhos estatais, a pesquisa científica e a educação escolarizada – estão cada vez
mais limitadas para dar soluções a médio e longo prazos para esses problemas.

A crise na escola moderna e na educação se localiza no não acompanhamento dos
fluxos de desejos e necessidades das pessoas envolvidas na educação.
A linguagem da escola moderna fala através do seu currículo, da sua metodologia, do
seu prédio, da sua organização em sala de aula, e, principalmente, a partir do discurso do
professor ou da professora e do livro didático. A linguagem da escola não é inocente,
desinteressada, possui intencionalidades explícitas e implícitas.
Um dos seus objetivos é formar e preparar o homem para a vida. Numa visão liberal,
preparar o homem para o mercado de trabalho, no qual, durante toda a sua vida, adquire
aptidões, competências, capacidades e habilidades. Desta forma, a escola molda o homem e a
mulher a partir de dispositivos de poder-saber.
A escola moderna vigia, pune e pretende controlar os gostos, os gestos, os
sentimentos, as vontades, os passos, os horários, o comportamento, ou seja, pretende controlar
a vida dos alunos e alunas.
Veiga-Neto (1995, p. 26) afirma que na escola há mecanismos de controle que operam
de forma sutil e contínua:
24

As metanarrativas são as promessas do Iluminismo para um futuro mais próspero.
32

[...] No caso das disciplinas, são as determinações e delimitações dadas pela
disposição dos saberes que constroem os critérios de verdade/falsidade e
normalidades a que submetem os enunciados. Além disso, a organização
institucional do conhecimento opera em todos os processos [...] no sentido de
rarefazer e hierarquizar os locutores com direito a enunciar o discurso e dele
usufruir.

Além de a escola moderna possuir esse lugar de autoridade, as oposições binárias são
uma marca do seu ensino. O nosso currículo está sempre reforçando e subjetivando as
diferenças e que devemos tolerá-las e respeitá-las.
Assim, a escola não alcança o grande objetivo do projeto Iluminista, o de formar
cidadãos livres e autônomos, pois vem cada vez mais aumentando as desigualdades e
exclusões,

reforçando,

portanto,

as

diferenças,

apresentando-as

como

naturais

e

incontestáveis.
A crise da escola moderna é apontada tanto por grupos intitulados de direita quanto
por grupos de esquerda. Os primeiros apontam que a escola não está preparando cidadãos
competentes para o mercado de trabalho. Já os segundos afirmam que a escola está cada vez
mais aumentando as desigualdades e legitimando as exclusões sociais e culturais. Portanto, a
escola se insere no contexto geral dessa crise.
Juntamente com uma crise globalizada, temos uma crise de identidade causada pela
sensação de desalento e insegurança, na qual as identidades passam a ser contestadas. Estas
são contestadas a partir do momento em que é verificado que as identidades não são estáticas
e imutáveis como se imaginava, assim como também é verificado que o homem não exerce
mais o papel central que o sujeito Iluminista exercia, pois as suas identidades passam a viver
em fluxo e são constantemente reelaboradas e reinventadas.
Alguns teóricos, como Kathryn Woodward (2000), falam de uma crise de identidade e
outros, como Stuart Hall (2001), falam de um sujeito pós-moderno, ambos movimentos
característicos das sociedades contemporâneas ou da modernidade tardia25.
Woodward (2000) trabalha com a noção de crise de identidade, na qual tem como
pressuposto que essa crise é ocasionada pelas mudanças constantes no cenário da
globalização, que ora produz novas identidades, baseadas nos deslocamentos; ora reforça
identidades locais e nacionais, sendo abaladas quando é constatado que as identidades vivem
em fluxo.
Essa autora aponta, ainda, três pontos para se pensar sobre as crises de identidade: a
história, as mudanças sociais e os novos movimentos sociais.
25

Nesta concepção, a modernidade tardia exprime um novo período histórico característico da sociedade
globalizada.
33

A busca por uma verdade histórica ou um passado autêntico está na base da
legitimação das identidades nacionais e étnicas. Essa concepção nos remete a uma história
estática e com uma verdade cristalizada. Nesse sentido, a crise se localiza na perda de uma
identidade legítima, pois, a partir da interação entre o passado, geralmente glorioso, com o
presente modificado, vão se formando novas e fragmentadas identidades.
No cenário global e local têm-se mudanças em todos os âmbitos sociais, que vão de
mudanças econômicas e de mercado de trabalho a mudanças familiares e sexuais; o que
corresponde a novos posicionamentos das pessoas na sociedade e a uma nova relação com as
várias situações cambiantes. Para Woodword (2000, p. 29), a crise surge de um mundo difuso,
ou seja:

As crises globais de identidade têm a ver com aquilo que Ernest Laclau chamou de
deslocamentos. As sociedades modernas, ele argumenta, não têm qualquer núcleo ou
centro determinado que produza identidades, em vez disso, uma pluralidade de
centros.

Nos novos movimentos sociais, o que se tem é uma política de identidade, ou seja, são
transpostas as barreiras entre o pessoal e o político. Os movimentos como o feminista, o
racial, o sexual, etc, a partir da década de 60, passaram a reivindicar mudanças sociais que
implicam mudanças culturais, a partir do âmbito local.
Os movimentos sociais se dividem em duas categorias. O primeiro grupo são
movimentos que se valem de certezas essenciais, como a biologia, afirmando que há um
apanhado de características que os definem enquanto tal. O segundo grupo são movimentos
que vão de encontro às concepções essencialistas, ou seja, não compreendem as identidades
como fixas e imutáveis.
Nesse caso, a crise se localiza no questionamento do sentimento e estrutura de
pertencimento a um grupo ou a uma única identidade. Se um sujeito possui várias identidades,
como ele pode pertencer a um único grupo? Um exemplo são as mulheres negras que
transitam, entre várias outras, entre a identidade racial e a identidade de gênero.
Focaliza Hall (2001) três tipos de sujeitos pertencentes à modernidade tardia: o Sujeito
Iluminista, já discutido anteriormente, o Sujeito Sociológico e o Sujeito Pós-moderno.
O Sujeito Sociológico26 se constitui como sujeito a partir da relação entre o seu
interior e seu exterior, ou seja, a partir da sua interação com a sociedade. Nessa concepção, o
sujeito não é mais autônomo e auto-suficiente, pois sua identidade só existe a partir do
26

Nesta visão, o sujeito não é visto como uma construção discursiva, mas como uma construção social.
34

diálogo com os mundos culturais, seguindo modelos de conduta que condizem com os seus
ideais e os ideais de conduta e de moral da sociedade.
Mas, essa noção de sujeito ainda possui um cunho essencialista27, pois, apesar de o
sujeito estar em transitoriedade a partir das experiências, das vivências e de outros modos de
ser, ele não perde a sua essência originária. Essas experiências, vivências e modos de ser se
incorporam a uma forma progressiva de identidade, ou seja, o diálogo com o exterior constitui
um eu real.
O Sujeito Pós-moderno se constitui como um corpo fragmentado, no qual o sujeito não
é mais único e centrado, pois a sua identidade vive em fluxo, sendo atravessada por várias
outras identidades. Desta forma, passa a possuir várias identidades, às vezes contraditórias,
pois os deslocamentos identitários são constantes.
Argumenta Hall (2001, p. 87) que essa mudança na concepção de sujeito e,
conseqüentemente, de identidade, foi ocasionada pelas rupturas, na modernidade tardia, dos
discursos do pensamento moderno.

Ela (a globalização) tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma
variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as
identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas,
unificadas ou trans-históricas.

Para o referido autor, os postulados do pensamento moderno passam por um
movimento de deslocamento, no qual o homem deixa de ser um sujeito centrado, universal e
essencial; sua identidade não é mais concebida como algo fixo e inato desde o nascimento,
quando as redes de significações, simbólicas e de identificação, passam a ter um papel
importante; a linguagem passa a ser entendida como um sistema que cria significados
mutáveis nos nossos sistemas culturais, não mais um sistema individual.
As identidades posicionais28 se inscrevem no momento em que o sujeito assume
diferentes posições de identidade de acordo com a necessidade do momento. A identidade
feminina carrega em si uma série de significações e papéis culturais e sociais a desempenhar.
Porém, essa mesma mulher no seu dia-a-dia apresenta uma identidade posicional no sentido

27

Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade a partir de uma substância primeira, a
essência. Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo,
permanece imutável e estática.
28
Eve Sedgwick (1993, p. 253, apud Louro, 2004, p.54, grifos de Louro) exemplifica muito bem as contradições
das identidades e dos seus marcadores simbólicos: “O uso do nome de casada por uma mulher torna evidente, ao
mesmo tempo, tanto sua subordinação como mulher quanto seu privilégio como uma presumida heterossexual”.
Nesse sentido, o marcador simbólico – nome de casada – assume significados diferentes em dados momentos.
Esses deslocamentos se inscrevem cotidianamente na vida das pessoas.
35

que pode ser mãe, profissional, amante, gostar de mulheres, filha, etc. Essas múltiplas
identidades serão vivenciadas de formas diferentes para cada momento.
O conceito de deslocamento é muito interessante para se pensar sobre as identidades
em fluxo ou fragmentadas, em parte proporcionadas pela abertura e inovações das tecnologias
da informação e comunicação, como a mídia televisiva e a Internet, ou as chamadas
ciberidentidades29.
Para Woodward (2000, p. 17-18), o processo-chave para essas identidades em fluxo ou
fragmentadas é o discurso da mídia, que se utiliza dos sistemas simbólicos e das redes de
significação para criar modelos a serem subjetivados e seguidos. Essa autora afirma:

A mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular – o
adolescente ‘esperto’, o trabalhador em ascensão ou a mãe sensível. Os anúncios só
serão ‘eficazes’ no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para os
consumidores e se fornecerem imagens com as quais eles possam se identificar.

Douglas Kellner (2001, p. 303) também acredita que as identidades estão em
constantes mudanças, onde podemos observar modelos cambiantes ditados pela mídia. O
discurso da mídia, através de suas imagens, sons, enredos, histórias e narrativas, possui
ideologias e significados variados, exercendo a televisão um grande fascínio nos
telespectadores.

As pessoas assistem com regularidade a certos programas e eventos; há fãs das
várias séries e estrelas com um grau incrível de informação e conhecimento sobre o
objeto de sua fascinação; as pessoas realmente modelam comportamentos, estilos e
atitudes pelas imagens da televisão[...].

Para esse autor, a televisão tem uma importância inegável na reestruturação das
identidades e exerce a função de um espelho de identificação. Isto ocorre devido à
proximidade das pessoas com esse objeto, criando as mesmas um vínculo afetivo com esse
meio de comunicação.
Apesar de a televisão apresentar-se como um meio de entretenimento, ela vai além
desse ofício, pois molda gostos, sentimentos e atitudes. Esse ofício de moldar não é encarado
pela televisão de uma forma inocente e despretensiosa. Programas e novelas são direcionados
a grupos específicos de sexo, de idade e de condição social na intenção de educar e adestrar os

29

Saliento que a ciberidentidade não é a identidade do mundo tecnológico, mas apenas mais uma possibilidade
entre os vários fragmentos e deslocamentos.
36

corpos e as almas dos telespectadores, criando uma dinâmica de mundo. Logo, a sua
dimensão educativa se concentra no controle e na disciplina.
Para Deleuze (1992, p. 221-222):

Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da
caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a
empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma
mesma modulação, como de um deformador universal.

A televisão, enquanto um modulador universal do mundo ocidental, nunca cessa de se
revestir de um discurso atraente. A atração que o discurso televisivo propaga tenta se
aproximar do sentimento de proximidade e de identificação das pessoas que estão do outro
lado da tela. A televisão é um mecanismo de controle contínuo, ou seja, os deslocamentos
circulam em prol da manutenção do controle.
No caso dos deslocamentos pensados a partir do mundo virtual, em especial a Internet,
temos as ciberidentidades, em que essas identidades são forjadas pela rapidez das mudanças
no ciberespaço30 e pela abertura que proporciona para as pessoas se posicionarem de
diferentes formas e, conseqüentemente, se posicionarem enquanto pessoas possuidoras de
múltiplas identidades.
No discurso das tecnologias da informação e comunicação, o ser é moldado a partir de
dispositivos técnicos, como os computadores e as telecomunicações, e passa a viver, pensar e
agir a partir da dinâmica do ciberespaço, que lhe proporciona um mundo de imagens, sons,
simulações e possibilidades para a construção de várias identidades.
As pessoas conectadas podem criar outras identidades para si na Internet. Nas salas de
bate-papo, pessoas de todas as idades – crianças, jovens, adultos e idosos – falam de si e de
atributos físicos que podem ser desejados como algo interessante. O adolescente que se sente
feio pode se transformar em um homem alto, moreno e sensual; a mulher madura pode criar
para si a identidade de uma jovem de seios fartos; meninas podem ser meninos e vice-versa;
etc.
Nas salas de bate-papo são criadas novas linguagens e dinâmicas. São ativados e
desativados namoros, amizades e são criadas comunidades em torno de interesses comuns,
como esporte, sexo31, música, baladas, etc.

30

Termo utilizado pela primeira vez em 1984 por William Gibson. Ciberespaço é definido como o espaço
virtual, ou seja, o conjunto dos elementos contidos na rede e o resultado da interconexão dos computadores e dos
seus usuários.
31
Percebo que este assunto é de interesse de grande parte dos usuários das salas de bate-papo.
37

Um dos grandes fenômenos da internet é o orkut32. Os seus membros criam redes de
amigos que se multiplicam a partir de convites de amizade. Cada participante pode deixar o
seu recado e ler os dos demais. O dono da conta pode colocar fotos e participar de várias
comunidades33. O espaço fica aberto para o relacionamento hipertextual.
Outro fenômeno são os blogs, que são diários que retratam o cotidiano do blogueiro ou
este aborda assuntos específicos ou variados, que quebram com a dimensão do privado e de
intimidade que os convencionais diários possuíam, pois os blogs são abertos a quem quiser
visitá-los e com possibilidade de envio de comentários. Segundo Marthe (2005, p. 88):

Os blogs levam as últimas conseqüências dois princípios da Internet. Um deles é a
interatividade. Cada texto postado num blog vem acompanhado de uma janela para
que os leitores façam comentários, o que torna essas páginas espaço de debate por
excelência. O outro é a formação de comunidades que vão se ampliando e se
sobrepondo.

O orkut e os blogs são locais de circulação de subjetividades e identidades, pois as
pessoas se relacionam diretamente, eliminando as barreiras de espaço. Pessoas do mundo
inteiro se relacionam através do hipertexto e se apresentam enquanto consumidores das
tecnologias de informação e comunicação, tendo a liberdade de criar para si várias
identidades.
Depois de pensar um pouco sobre a construção das identidades, no próximo capítulo
ater-me-ei mais especificamente à identidade feminina, tentando compreender como os
discursos pretendem prender as identidades femininas, assim como as demais, a lugares fixos
e homogêneos.

32

Orkut é uma rede de interatividade na internet que interliga pessoas de distantes localidades e em blocos de
amizade. No geral, já se conhecem as pessoas que são seus amigos dessa rede, mas também pode fazer amigos
virtuais. Essa rede possui restrições impostas pelo dono da conta, como excluir pessoas ou negar convites de
amizade. Mas, em contraponto, qualquer pessoa que possui uma conta no orkut pode ver o seu perfil, seu álbum
de fotos, suas comunidades e seus recados recebidos ou enviados, pois nessa página o diálogo é aberto.
Recentemente o Ministério Público vem tentando excluir o orkut da internet, por alegar que nessa rede há
comunidades que veiculam conteúdos de pedofilia e que o seu trabalho vem sendo prejudicado pelo seu
gerenciador, o Google, que não fornece informações dos autores.
33
As comunidades têm uma variedade enorme no seu tema e conteúdo, vão da cultura ao entretenimento, lazer,
culinária, política, racismo, futilidades, moda, relacionamento amoroso ou sexual, etc.
38

3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO

Eu espero que você não se arrependa do que você
tá fazendo. Uma mulher pode significar a salvação
ou perdição, dependendo de você escolher a que é
certa pra uma coisa ou pra outra. E você tá
escolhendo a que acaba com a vida de um homem
(Alma, cap. 5).

Discutirei como a identidade feminina foi construída. Pensarei como o discurso
moderno construiu a identidade feminina como o lugar da inferioridade, fragilidade,
submissão e emoção em contraponto com a identidade masculina, como o lugar da
superioridade, força, independência e razão.
A construção da identidade feminina está intimamente ligada ao nascimento do sujeito
iluminista, pois a mulher era compreendida como o inverso da identidade masculina. Sendo
assim, o sujeito iluminista é antes de tudo masculino, pois o discurso moderno só dá conta da
formação do sujeito enquanto homem, excluindo a mulher desse ideal de sujeito, mas
construindo outros modelos de identidade a serem subjetivados por esta a partir dos seus
valores e pretensões.
De que forma, portanto, o discurso da ciência construiu a identidade feminina?
A partir do século XIX, momento de organização do pensamento ocidental e
fragmentação dos saberes, o discurso científico foi construindo, através da linearidade, a
história da humanidade. Colocando à experiência e à prova as descobertas ocorridas,
elaboraram a história de seus antepassados, nomeando e classificando o primeiro período
histórico de pré-história e seus antepassados de hominídeos, no qual estudavam a evolução
humana ao longo do tempo. Os termos hominídeo, humano e humanidade derivam do
significante homem, que passou a designar homens e mulheres, ou seja, passou a designar a
espécie humana, homogeneizando os lugares que deveriam ser diferentes.
Essa construção apresenta-se como natural e não como uma elaboração discursiva
localizada no século XIX. Essa generalização aponta, nessa relação binária, a superioridade
masculina em detrimento à inferioridade feminina. A partir das experiências cotidianas, essa
generalização foi se naturalizando e sacralizando-se como verdadeira e incontestável, pois o
próprio discurso já havia criado um lugar hierárquico para essa construção. Portanto, definiuse quem possui o poder e quem deve obedecer.
39

Baseada na concepção de que os discursos possuem intencionalidades, Costa (2001, p.
33) aponta:

[...] Quando se descrevem, explicam, desenham ou contam coisas, quando variadas
contextualidades falam sobre pessoas, lugares ou práticas, estes estão sendo
inventados conforme a lógica, o léxico e a semântica vigentes no domínio que
produz o discurso.

Desta forma, foi a partir da linguagem que a mulher foi nomeada e classificada como
diferente. O discurso da ciência elaborou e elabora várias imagens de mulher, distintas das do
homem, a partir das diferenças biológicas, e acredita numa diferença de racionalidade, de
sentimentos, de moral, de sabedoria e de desejos perante as distinções sexuais.
O discurso de ser masculino34, em uma relação alteritária, pontuou e pontua o que o
seu outro tem de diferente, a fim de naturalizar seu lugar de superioridade em contraponto ao
lugar de ser mulher como inferior, frágil, submissa e, sobretudo, mais emocional que racional.
Nessa perspectiva, instaurou-se uma relação de poder35 tanto do ponto de vista discursivo
quanto cultural.
Observo que as identidades, seja qual for o binarismo, são construções discursivas que
denotam uma relação de poder entre o eu e o outro, que não pode ser dissociada da política de
verdade. Sendo assim, Foucault (2005, p. 179-180) afirma:

[...] em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem
relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo
social e que não podem se dissociar, se estabelecer sem uma produção, uma
circulação e um funcionamento do discurso. Não há possibilidade de exercício do
poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a
partir desta dupla exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e
só podemos exercê-lo através da produção da verdade.

A partir das verdades científicas e sacralizadas, foram e são criadas estratégias de
regulação e de contenção da alteridade na tentativa de enquadrar esses outros às identidades
fixas, homogêneas, ontológicas, imutáveis, etc, pois o outro, seja a mulher, o negro, o
homossexual, o drogado, o idoso, o índio, o pobre, o marginal, o aleijado, etc., é sempre visto
como o que causa a perturbação, o que foge à regra do normal.
Pensando no poder do discurso e nas formas de adequação às identidades, discutirei
como os discursos mitológico e religioso construíram a identidade feminina baseada na
34

Estou me referindo ao que Michel Foucault chama de História dos Saberes.
Estou trabalhando com a noção de poder na perspectiva genealógica de Michel Foucault, na qual este analisa o
poder e como ele atua no campo da moral, da política, do conhecimento, do desejo, etc.

35
40

contradição entre o bem e o mal; como o discurso moderno construiu a identidade feminina
baseada na fragilidade e inferioridade e como esses discursos circulam na sociedade.

3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
FEMININA NORMAL

Para se pensar na construção da identidade feminina, é necessário atentar para vários
discursos que ora se entrecruzam e ora se distanciam. O fato de as mulheres serem vista, ao
longo da história, como seres de cabelos longos e idéias curtas36, um ser incompleto e
mutilado37, um ser de mente e alma confusas, incompreensível e inconstante38, etc., não
significa que assim sejam por natureza ou por essência.
Essas colocações não são dados da natureza e nem devem ser vistas como algo posto
do nada. Ao longo da nossa história, os discursos moldaram um corpo a ser vigiado e
disciplinado, pois o feminino, nessa trajetória, sempre simbolizou o medo e a perturbação.
Para o discurso mitológico, a perturbação vinda de uma figura feminina é
personificada por Pandora e, para o discurso religioso, essa figura é personificada por Eva.
Ambas simbolizam a desobediência, a curiosidade, a sedução, a fraqueza por terem caído em
tentação, etc.
Fundamentado no mito da criação do mal no mundo grego, Pandora se inscreve como
uma identidade reveladora da negatividade, pois foi criada por Zeus39 como um castigo a
Prometeu40 e aos homens.
Depois que Prometeu desafiou Zeus, dando-lhe os ossos cobertos de gordura do
sacrifício de animais, o ser humano foi privado do fogo, que simboliza a sabedoria. Porém,
Prometeu mais uma vez engana Zeus e rouba o fogo sagrado para o homem. Como forma de
castigo, Zeus cria a mulher, símbolo do mal. Segundo Hesíodo, no século VIII a.C. (apud
LAURIOLA, 2005):

36

Frase do filósofo alemão Arthur Schopenhauer.
Idéia do século XVIII, que afirmava que a mulher é um homem invertido. Porém, inferior anatomicamente.
38
Idéia que circula nas subjetividades e discursos, principalmente, masculinos.
39
Divindade suprema do Olimpo, era conhecida como o deus dos deuses e dos homens.
40
Titã que simbolizava a humanidade e a sua vontade por conhecimento. A palavra Prometeu significa em
grego “previdente” ou “prudência”, mas também possui um sentido de enganador, embusteiro.
37
41

Ele [Zeus] fez este lindo mal para equilibrar o bem,
Então ele a levou aos outros deuses e aos homens
... eles ficaram boquiabertos,
deuses imortais e homens mortais, quando eles viram
A arte de seduzir, irresistível aos homens.
Da sua raça vem a raça das mulheres fêmeas,
Esta raça mortífica e população de mulheres,
Uma grande infestação entre os homens mortais,
Que vivia com riqueza e sem pobreza.
Acontece o mesmo com as abelhas nas suas colméias
Alimentando os zangões, conspiradores maus.
As abelhas trabalham todo dia até o pôr do sol,
Ocupadas o dia inteiro fazendo pálidos favos,
Enquanto os zangões ficam dentro [da colméia] nos favos vazios,
Enchendo o estômago com o trabalho dos outros.
Foi assim como Zeus, o alto senhor do trovão,
Fez as mulheres como uma maldição para os homens mortais,
Conspiradoras do mal. E ele juntou outro mal
Para contrabalançar o bem. Qualquer um que escape ao casamento
E à maldade das mulheres, chega à velhice
Sem um filho que o mantenha. Ele não precisa de nada
Enquanto viver, mas quando ele morre, parentes distantes
Dividem seus bens. Por outro lado, quem se casa
Como é mandado, e tem uma boa esposa, compatível,
Tem uma vida equilibrada entre o mal e o bem,
Uma luta constante. Mas se ele se casa com uma mulher abusiva
Ele vive com dores no seu coração o tempo todo,
Dores no espírito e na mente, o mal incurável.

Porém, o advento do mal no mundo grego não se dá apenas com a criação de Pandora,
mas também com a sua atitude de abrir a caixa ou jarra que carregava todos os males do
mundo. Pandora, num ato de curiosidade, abre a caixa e deixa sair todas as desgraças que
vieram abater o homem: a doença, o trabalho, o sofrimento, o egoísmo, etc. Ao perceber que
cometera um erro, Pandora fecha a caixa, mas o que resta é a esperança.
O discurso mitológico inscreveu no corpo da que possui todos os dons a contradição.
Ao mesmo tempo que é portadora do mal inevitável, ela conserva na sua caixa a esperança.
Até hoje circula nas nossas subjetividades, principalmente masculina, a alma feminina como o
desconhecido, pois carrega em si o inesperado e o contraditório.
Na tradição judaico-cristã, temos a imagem de Eva, que já denota um sentido de
inferioridade no momento da sua criação, pois foi criada da costela de Adão. Assim, não
representaria a imagem divina como Adão, mas sim a semelhança divina. Eva surgiu no
mundo para ser a companheira de Adão, porém se revelou como o mal pela sua
desobediência, curiosidade e ao se entregar às tentações.
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A (des)construção das identidades femininas

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO ROSEMARY RAMOS RODRIGUES A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA JOÃO PESSOA - PB 2006
  • 2. ROSEMARY RAMOS RODRIGUES A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal da Paraíba, Campus I, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Educação. Área de concentração: Educação Popular, Comunicação e Cultura. Linha de Pesquisa: Estudos Culturais e Tecnologias da Informação e Comunicação. Orientador: Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior. JOÃO PESSOA - PB 2006
  • 3. ROSEMARY RAMOS RODRIGUES A (DES)CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES FEMININAS NAS TRAMAS DA TELENOVELA LAÇOS DE FAMÍLIA Aprovada em: 10 de Novembro de 2006 BANCA EXAMINADORA ___________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Pereira de Lima Júnior – UFPB Orientador ___________________________________________________ Profª. Drª. Ana Maria Coutinho de Sales – UFPB Examinadora ___________________________________________________ Prof. Dr. Severino Bezerra da Silva – UFPB Examinador
  • 4. Dedico este trabalho e todo o meu amor a você, que sempre dedicou seu amor a mim e a todos ao seu redor. Agora me pego pensando e até me admiro na dimensão que um amor pode alcançar. É naquele sorriso largo e franco que cura, no Hello, what’s your name? My name is Mary Help, nas explosões de carinho, no abraço que caímos na cama, nos conselhos preocupados, mas não castradores, e na forma livre de criar que te amo cada vez mais, mais e mais. Você sempre me deu asas para sonhar e voar em busca do que quero, mas sempre volto porque é em você que encontro uma felicidade singela, meiga e plena. Você é a minha Helena, a minha heroína da vida real, a mulher que, depois de uma vida inteira dando asas a quem ama, aprendeu a voar. E porque depois de tanto tempo? Na infância, você foi a minha primeira semente de contestação e de não aceitação dos lugares construídos para nós, mulheres. Por que, mainha, o seu silêncio? Chegou um dia que seus gritos, antes silenciosos, machucaram os ouvidos de todos nós. Foi nesse momento que você quebrou aquela identidade fixa. Por isso e por tudo que você é, te dedico amor, prazer intelectual e carinho. Eu te amo, minha mãe, minha amiga, minha pescadora de sonhos.
  • 5. AGRADECIMENTOS À força inexplicável que, particularmente, chamo de vida; A mim, por amar, sonhar, gritar, lutar, sofrer, querer, roubar, buscar, abraçar, detestar, desejar, desistir, dançar, chorar, pular, chocar, enfrentar, gargalhar, sentir, escrever, bater, levar, fraquejar, trair, levantar, sorrir, brincar, beijar, correr, ficar, quebrar, gozar ... viver, viver intensamente; Aos meus pais, pelo carinho, luta, força e determinação. Sou feliz por sentir o amor vindo de vocês em todos os momentos da minha vida. Obrigada! Aos meus irmãos, Cleide e Daniel, por uma história cheia de vida, cores e alegrias, construída de sorrisos, brigas, brincadeiras e cumplicidade; A minha irmã, Bruna, e aos meus sobrinhos, Gabriel e Rafael, pela beleza de sorrir, de correr, de pular e de abraçar. Vocês são vida!; Aos meus avós. Em especial à vovó Alzira, por embarcar comigo nas brincadeiras de menina e me fazer sentir criança até hoje. Lembra, vovó, quando eu dizia uma palavra e a senhora cantava uma música? Eu acho que a senhora inventava umas músicas para me enrolar. Obrigada por me deixar sonhar; Às minhas tias e tios, primas e primos, por fazerem parte da minha vida e me apresentarem várias trajetórias marcantes de vida; Ao meu carinho, que em todos os momentos desse mestrado esteve comigo, acompanhando as minhas vitórias e decepções. Você me deu força, sempre me dizendo Você vai vencer, você pode e, às vezes, me perturbando. Mas sempre me elogiando, impulsionandome e me adorando. Mais uma vez te agradeço pela amizade, dedicação, gentileza, atenção, incentivo e companheirismo; À Campina Grande, por ser a minha referência de vida, felicidade, amizade, amor, emoção... Ao meu orientador, Luiz Júnior, pela amizade, dedicação, incentivo e, sobretudo, pela aceitação das minhas colocações e escolhas; A Nilda, minha orientadora da graduação, por ter me apresentado uma outra forma de fazer História e de viver. Obrigada!; A Élson, Walber e Kyara, pela amizade, loucuras, gargalhadas, histórias sem pé nem cabeça, pelas conversas acadêmicas e o que vier nas nossas vidas.
  • 6. A Maria Isabel, pela lealdade, cumplicidade e amizade; e a Herry, pela amizade. Espero que possamos continuar sonhando com dias melhores; À minha turma de História da Universidade Federal de Campina Grande – Renata, Valéria, Maizona, Fátima, Uelba, Daniele, Verônica, Gracinha, Adriana, entre outros – por uma história tão linda e marcante na minha vida; Aos professores de História, em especial Sandrinha, Nilda, Fabinho G., Clarindo e Silêde, pelas farras e por me apresentarem várias faces da História e da vida, com teorias e metodologias diferentes; À minha turma de mestrado, em especial Cidoca, Saula, Stella, Norma, Lebiam, Walberto, Cláudia e Keila, pela nossa força, persistência e dedicação; Aos professores do PPGE. Em especial a Ana Dorziat, pela dedicação aos alunos, gentileza e educação; À minha banca de defesa, Ana Coutinho e Severino Bezerra da Silva, e a Marcello Bulhões, pelas sugestões e delicadeza; A Izabel, pela ajuda nas tão odiadas regras da ABNT; Aos funcionários do PPGE, coordenação e secretaria, por nos ajudar, tentar nos ajudar e, às vezes, atrapalhar nas questões burocráticas e dúvidas pendentes; À CAPES, por ter me concedido bolsa de estudo. À Rede Globo, pela autorização da utilização das imagens que fazem parte do CD anexado à minha dissertação, e a Manoel Carlos, autor de Laços de Família.
  • 7. RESUMO Esta pesquisa objetiva analisar a construção das identidades femininas presentes nas práticas culturais e sociais, particularmente da mídia moderna/televisiva que constrói modelos de identidades duráveis, partindo da apreensão dos discursos da telenovela Laços de Família. Nesta direção, discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais; situo a construção das identidades femininas no bojo do discurso científico; cartografo as identidades femininas nos discursos da telenovela Laços de Família. A hipótese parte da idéia que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas culturais e sociais, de práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de poder/saber. Estas relações criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma feminina com base em normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das identidades femininas e penso na emergência das identidades em fluxo, uma vez que a telenovela constrói identidades duráveis. A pesquisa mostrou que, apesar das identidades viverem em fluxo, estas são construídas na moldura moderna. Palavras-chave: identidades femininas, telenovela.
  • 8. ABSTRACT This research intends to analyze the feminine identities construction presented on cultural and social customs, particularly at the modern/televising media, which constructs durable identities models, starting from the speeches apprehension of the soap opera Laços de Família. In this way, I discuss the identities appearance at the foundation of cultural and social customs; I point out the feminine identities construction at the core of scientific speech; I map the feminine identities in Laços de Família speeches. The supposition starts from the idea that feminine identities are constructed based on cultural and social practices, on discursive and non-discursive customs, on the development of power/knowledge relations. These relations create, naturally, processes of body and feminine soul discipline, based on rules and regulations. In this manner, I emphasize a (de)construction of feminine identities and I think about the manifestation of current identities, once the soap opera constructs durable identities. The research showed that, despite the fact that the identities are mutable, they are constructed in the modern frame. Keywords: feminine identities, soap opera.
  • 9. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 09 2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO E A AFIRMAÇÃO DO EU .................................................................................................... 19 2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES .............................................................. 23 2.2 IDENTIDADES EM FLUXO ............................................................................................ 30 3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO ............................. 38 3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 40 3.2 DOS DISCURSOS CIENTÍFICOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE FEMININA NORMAL ................................................................................... 45 4 LAÇOS DE FAMÍLIA: AS TRAMAS DE UMA TELENOVELA CONSTRUINDO E DISCIPLINANDO AS IDENTIDADES FEMININAS .................... 56 4.1 EU EM FRENTE À TELEVISÃO E UM MUNDO DE MAGIAS E ILUSÕES .............. 58 4.2 CENAS DE VIDAS CONSTRUÍDAS E DISCIPLINADAS EM LAÇOS DE FAMÍLIA ............................................................................................................. 66 5 IMAGENS RECORRENTES ............................................................................................. 82 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 88 ANEXO – CD Room com as cenas referentes aos hiperlinks da dissertação ................... 91
  • 10. 9 1 INTRODUÇÃO No ano de 2003 concluí o curso de graduação em História e iniciei a minha monografia da mesma forma que inicio a minha dissertação: Gostaria que você, antes de ler o meu trabalho, se propusesse a ser uma folha em branco, não no sentido de discordar e questionar do que escrevo, mas no sentido de permitir que esta leitura possa lhe transpassar, lhe penetrar, lhe desnudar, lhe tocar, lhe emocionar e, até mesmo, lhe modificar. Espero que no final você possa queimar a concepção de que exista uma identidade feminina natural e terminal (RODRIGUES, 2003, p. 2). Durante a minha vida acadêmica, sempre estive ligada aos estudos relacionados à temática mulher. Uma das minhas preocupações iniciais era compreender a trajetória das mulheres ao longo da história. Marcada, ainda, por uma visão positivista, procurava pelos seus feitos e vitórias e, como toda pesquisadora desta temática é uma contestadora, ou seja, não aceita os lugares construídos para si, eu tinha como preocupação resgatar a minha própria história como mulher. Posteriormente, comecei a questionar os lugares que foram e são construídos para nós, mulheres, tentando mostrar que não nos enquadramos tão facilmente aos estereótipos cristalizados na cabeça e no discurso das pessoas, principalmente dos homens. No ano de 2001, passei a fazer parte do projeto Cidades, Cultura e Modernidade – Campina Grande e João Pessoa (1900-1950), que estudava os discursos de letrados de Campina Grande e João Pessoa, das décadas de 20 a 50 do século XX, que criavam lugares para as mulheres e como estas no seu cotidiano quebravam, burlavam as regras vigentes. Meu projeto era intitulado Mulheres em territórios (des)regrados – Campina Grande e João Pessoa (1920-1950), tendo como minha grande busca as mulheres transgressoras. Desta forma, eu não entendia que além de nomeá-las e classificá-las de transgressoras, assim, eu estava naturalizando o lugar de submissão, fragilidade e inferioridade delas, pois, para o meu estudo, as transgressoras eram o outro da identidade normal de mulher, as que quebravam com os códigos vigentes dessa época. No mesmo ano, ingressei no grupo de estudo O Pensamento Pós-Moderno e a Educação, no qual comecei a fazer leituras pós-estruturalistas. Neste grupo, tínhamos como objetivo estudar as possibilidades que o Pensamento Pós-Moderno aponta para se pensar a educação. Estudamos como foi construído o pensamento moderno e quais as suas implicações
  • 11. 10 para a educação atual. Foi um estudo gratificante, que me levou a uma maior reflexão acerca do poder do discurso. No ano de 2002, passei a fazer parte da linha de pesquisa Estudos Culturais e Educação. Nesta linha, fiz leituras pós-estruturalistas que envolviam estudos sobre subjetividades, identidades, diferença, poder e representações. Pela primeira vez fui me sentindo tocada, desnudada, penetrada e totalmente emocionada. A leitura pós-estruturalista começou a mexer com os meus valores, quebrando as concepções antes imutáveis que existiam em mim. Foi o encontro intelectual mais intenso e prazeroso que tive na vida. Este foi um momento de questionamentos, pois vi cair por terra muitas concepções, baseadas no pensamento moderno, inerentes a mim. Porém, meu interesse com a temática mulher continuou, só que desta vez acrescido da preocupação com a educação. A posição do homem como superior é fortemente evidenciada na utilização do termo homem – Humanidade – para designar homens e mulheres, ou seja, para designar uma espécie. Buscando uma resposta para essa inquietação, sempre questionava meus professores acerca do porquê da não utilização do termo mulher no lugar do termo homem para essa generalização. As respostas dadas nunca eram satisfatórias, apresentavam-se como algo natural é porque é. Eu não compreendia que essa prática cultural e social, assim como outras, foi elaborada por discursos interessados; neste caso, a partir do discurso da ciência. Desta forma, partindo de uma preocupação pessoal, o porquê de as mulheres serem diferentes culturalmente dos homens, na minha monografia de fim de curso, Mulher: A Imagem Invertida de um Espelho Discursivo, discuti a construção das identidades1 femininas e como a cultura escolar reforça essas identidades, tendo como referência o livro didático. Trabalhei com o livro didático de história, enquanto artefato cultural, por compreendêlo como um grande subjetivador de identidades, visualizado nos sujeitos históricos2 e como um instrumento propagador de verdades. Salientando que o livro didático é muito marcante na cultura escolar, por ser o principal instrumento de estudo e pesquisa de alunas e alunos. 1 Compreendo as identidades como o resultado da relação poder/saber que pretendem nos definir enquanto sujeitos possuidores de certos atributos psicológicos, sociais e culturais. Porém, não as vejo como uma radiografia fixa dos corpos, das mentes e das almas das pessoas, ou seja, não acredito que as identidades sejam únicas e imutáveis, pois acredito em movimento de transgressão, de fluxo, o próprio movimento de vida e de ação. 2 Os sujeitos são considerados históricos nos livros didáticos não porque possuem historicidade, mas porque, ocupando o lugar do outro, lutaram e enfrentaram o eu. Os sujeitos históricos sacramentados pela historiografia positivista são: os negros, os patrícios, as cortesãs, os filósofos, os reis, os guerreiros, o proletariado, etc.
  • 12. 11 Este trabalho, que envolveu estudos sobre subjetividades, diferença, poder e representações; teve como objetivo desnaturalizar o lugar da mulher como inferior, frágil, submissa, etc. Desnaturalizar no sentido de apontar as identidades como uma construção discursiva, não no sentido de afirmar que são ou não são isso ou aquilo. Agora, no mestrado, procuro analisar a construção das identidades femininas presentes nas práticas culturais e sociais, particularmente na mídia moderna/televisiva, que constrói modelos de identidades duráveis, partindo dos discursos da telenovela Laços de Família3. Sendo assim, observarei os discursos que construíram e constroem as identidades femininas, tanto no período moderno, com iluministas; como na contemporaneidade, com o discurso midiático. Escolho a mídia e, mais especificamente a novela Laços de Família, como o artefato cultural de análise porque as novelas brasileiras sempre fizeram parte do meu cotidiano, embalaram os meus sonhos e me apresentaram modelos de beleza, de boa e má conduta, de amor, de vida, ou seja, modelos de comportamento nos quais as minhas subjetividades4 eram povoadas de identidades. Vários personagens, principalmente os femininos, me causavam sentimentos intensos e diferenciados. As protagonistas me causavam sentimento de admiração e, às vezes, de identificação; e as vilãs, sentimentos de repúdio e desprezo. As Helenas5, mulheres que sofrem, lutam e vencem, sempre foram modelos de identidade interessantes para inúmeras mulheres. Desde criança assisto às novelas globais e, na minha imaginação, já fui muitas mulheres. Lembro que nas brincadeiras infantis, aos cinco anos, fui à dançarina de bordel Ninon6, uma contestadora da moral e dos valores das famílias de Asa Branca. Já fui muitas outras mulheres, mas tenho uma lembrança viva dessa personagem pelo fato da novela Roque Santeiro ter sido marcante na minha infância. 3 A novela Laços de Família é de autoria de Manoel Carlos, exibida na Rede Globo de 05/06/2000 a 03/02/2001. Porém, deixo claro que as minhas referências capitulares são originárias da gravação da reprise, no Vale a Pena Ver de Novo, de 28/02/2005 a 23/09/2005. Portanto, devido aos cortes efetuados pela emissora, pode ser que as minhas referências não sejam compatíveis com os capítulos da primeira exibição. 4 As subjetividades são as sensações, o entendimento das pessoas e das coisas, ou seja, são os significados que damos ao mundo desde o momento em que a vida nos apresenta situações e emoções. Porém, as subjetividades são mutáveis, pois somos atravessados constantemente por discursos, pessoas, situações e sentimentos que nos resignificam. 5 São tipos construídos por Manoel Carlos,.autor de telenovelas da emissora Rede Globo de Televisão. 6 Personagem interpretada por Cláudia Raia na novela Roque Santeiro, de autoria de Dias Gomes.
  • 13. 12 Engraçado, nunca imaginei que um dia utilizaria uma novela para escrever a minha dissertação, pois, de fonte de entretenimento, de sonho, de imaginação, a novela, hoje, é fonte de análise. Com o tempo, percebi que essa relação de proximidade e intimidade com os personagens das novelas não é apenas minha, pois a televisão brasileira é um dos veículos de maior popularidade que possuímos, no qual os nossos folhetins são líderes de audiência. Ao acompanharmos uma novela, temos a sensação de estar participando da sua trama, vivenciando, naquele momento, a felicidade e a tristeza dos nossos protagonistas, como se estes fossem pessoas do nosso cotidiano, ou seja, uma vizinha, uma amiga ou até mesmo uma inimiga. Parto do pressuposto que a mídia, principalmente a televisão, tem projetos explícitos e implícitos. Esta está envolta pelo discurso do controle. Na sociedade de controle, as modulações, teias de controle, são empregadas de formas fluidas, mutantes. Sendo assim, saem do esquema da sociedade disciplinar em que os confinamentos são os moldes. Portanto, Deleuze (1992, p. 222) aponta que “A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente o é das sociedades de controle”. Logo, a sociedade de controle se torna atraente. Desta forma, a mídia visa ao adestramento das identidades femininas e masculinas, ou seja, pretende apreender mulheres e homens dentro de certos padrões de normalidade. Vale salientar que as novelas e suas subjetividades estão presentes em toda a sociedade. Logo, não se pode negar o seu poder em influenciar e criar novos hábitos e comportamentos. Tenho necessidade de deixar bem claro que a mídia não é o meu objeto de estudo. Esta é o artefato que elejo para compreender os discursos que constroem as identidades femininas, pois os artefatos culturais – livros didáticos, revistas, charges, mídia, etc. – possuem o poder de (re)criar, reforçar e até quebrar as identidades fixas. Outro motivo, além da proximidade que tenho com as novelas, e que me levou a escolher a mídia como foco de discussão, é o fato de que constantemente estamos sendo bombardeados pelos seus discursos, seja o da informação, o da imagem, o da comunicação, o do entretenimento ou o da ficção. Não podemos negar a presença intensa da televisão, principalmente das novelas, na vida de muitas pessoas no nosso país. Assim, observo essa influência na forma de as pessoas se vestir, de falar e de agir, ou seja, na educação do povo brasileiro, principalmente na educação dos jovens, que passam muito tempo em frente à televisão.
  • 14. 13 Sendo assim, a televisão tem também uma função pedagógica informal. Uma das preocupações em relação a essa função dos meios de comunicação e informação, entre elas a televisão, é pensar uma forma de como transformar informação em conhecimento, pois a mídia nos apresenta um mundo difuso e calcado no consumo. Educadores e pais estão preocupados com a forma com que a televisão vem apresentando e, até mesmo, ensinando às crianças e aos jovens sobre a vida, principalmente no que diz respeito a aspectos morais, como gravidez na adolescência, drogas, doenças sexualmente transmissíveis, casamento, traição, separação, entre outros. Embora percebam os acontecimentos descritos acima, os pais e as mães põem na televisão uma grande responsabilidade: a de educar e formar seus filhos para serem cidadãos responsáveis. E também uma grande culpa: a de que os seus filhos são influenciados através da violência exposta na TV. A suposta liberação sexual e a emancipação social e cultural pregadas pela televisão, na visão dos pais, podem corromper a estrutura familiar. As subjetividades produzidas pelos discursos da mídia, principalmente das novelas brasileiras, e, possivelmente, reforçadas pelas nossas práticas culturais e sociais, devem ser estudadas; tentando-se entender como são veiculadas as imagens de mulher mais recorrentes, ou seja, como as novelas trabalham com as identidades femininas e como pretendem fixar modelos de comportamento e formas de viver nas pessoas. Não tenho como objetivo apenas discutir como as novelas constroem identidades femininas, mas como discursivamente constroem modelos certos e errados de conduta, de amor, de desejo, de obediência, etc., ou seja, como domam e adestram corpos e almas. Como tenho uma preocupação filosófica no que diz respeito à filosofia da diferença, pretendo discutir como os binarismos, principalmente de homem/mulher, circulam na sociedade. Escolho a novela Laços de Família para análise porque esta apresenta claramente algumas identidades femininas, posto seus personagens principais serem mulheres. Algo interessante de se observar é que nas tramas de Manoel Carlos o nome Helena é recorrente para as suas protagonistas e, como o próprio autor define, essas são as suas heroínas da classe média. A primeira Helena de Manoel Carlos foi Lilian Lemmertz em Baila Comigo (1981). Desde então, com exceção de Sol de Verão (1982), todas as suas novelas possuem uma Helena. Porém, só a partir da novela Felicidade (1991), Helena é a protagonista das suas tramas. Nesta, Manoel Carlos constrói um enredo centrado numa mulher interpretada por
  • 15. 14 Maitê Proença, mãe solteira em busca da tão sonhada felicidade ao lado do seu amor, Álvaro – Tony Ramos. Todavia, antes de alcançar seus objetivos, ela passa por vários problemas, como um casamento fracassado com Mário – Herson Capri –, uma mãe conservadora – Ariclê Perez –, uma inimiga de arrepiar os cabelos – Vivianne Pasmanter –, como também ter que sustentar uma filha sem a presença de um pai, falta de dinheiro, etc. A sua segunda Helena protagonista, interpretada por Regina Duarte, desfila em Uma História de Amor (1995). Helena é uma mulher comum que luta pela sobrevivência, agüenta desaforos de uma filha grávida, abandonada pelo namorado e rebelde, e, mais uma vez, tem um segredo que envolve amor e mentira. Joyce – Carla Marins – não é sua filha legítima, mas filha da sua irmã que, antes de morrer, pede para Helena criá-la como filha e nunca lhe contar a verdade. Helena é separada e depois de vários relacionamentos se apaixona por Carlos – José Mayer –, que é casado com uma mulher mimada – Carolina Ferraz – e tem uma exnamorada – Lília Cabral – que não larga do seu pé. Mais uma vez, Regina Duarte é uma Helena de Manoel Carlos em Por Amor (1997). Desta vez, a tão devotada mãe abre mão do seu segundo filho em nome do amor pela filha, Maria Eduarda – Gabriela Duarte – e, de quebra, perde o homem que ama, Otílio – Antonio Fagundes. Helena e Maria Eduarda engravidam no mesmo período e ganham bebês na mesma noite. Devido a complicações no parto, sua filha não poderá engravidar novamente e, para completar, seu filho morre. Helena se vê enlouquecida com a possibilidade de Maria Eduarda não suportar a dor da dupla perda, já que a considera indefesa e frágil. E, num arroubo de mãe heroína, troca os bebês. Este é mais um segredo das Helenas, que envolve filhos, abdicação, amor e mentira. Em Laços de família (2000-2001), Helena – Vera Fisher – abre mão duas vezes dos homens que ama pela filha Camila – Carolina Dieckmann. Primeiro, quando Camila se apaixona por seu namorado, Edu – Reynaldo Gianecchini –, então Helena decide sair de cena para os dois viverem esse amor. Pela segunda vez, quando Helena engravida de Pedro – José Mayer –, na tentativa de gerar um filho compatível com Camila, para salvá-la da leucemia, e abre mão do seu amor Miguel – Tony Ramos. Outro segredo ronda a trama, Camila é filha de Pedro, que só fica sabendo da verdade devido a sua doença e da tentativa de Helena salvá-la. Em Mulheres Apaixonadas (2003), Helena – Christiane Torloni – não pode ter filhos, mas adota Lucas – Victor Curgula – e vive uma vida estável com Téo – Tony Ramos. Cansada do seu casamento sem grandes emoções, resolve deixar tudo para viver um amor do passado – José Mayer. No desenrolar da trama, Helena descobre que Lucas é filho legítimo de Téo com outra mulher – Vanessa Gerbelli. Na trama, há várias identidades femininas em
  • 16. 15 ação, como a ciumenta Heloísa – Giulia Gam –, a professora alcoólatra – Vera Holtz –, uma mulher atormentada pela violência doméstica – Helena Ranaldi –, a pulsante Lorena – Suzana Vieira –, uma neta cruel – Regiane Alves –, etc. Por último, em Páginas da Vida (atualmente em exibição), Helena – pela terceira vez Regina Duarte – é uma obstetra que descobre a traição do marido – José Mayer – e o expulsa de casa. Vivendo há vinte anos a angústia de ter perdido uma filha de quatro anos, Helena faz o parto de Nanda – Fernanda Vasconcellos – que, após ter um casal de gêmeos, sendo a menina portadora de Síndrome de Down, morre. Helena se depara com o drama de uma criança portadora de Síndrome de down e rejeitada pela avó. Decide, então, adotar a menina, mas, para tanto, é conivente com a mentira de Marta – Lília Cabral –, mãe de Nanda, que diz a todos que a menina morreu. Após cinco anos, Léo, o pai dos gêmeos – Thiago Rodrigues – volta ao Brasil. Então, ela trava uma grande batalha pela guarda da menina. Nessas seis tramas, o grande carro-chefe é a maternidade, através do qual as Helenas são capazes de tudo por suas filhas ou filhos, até matar, morrer, mentir, abrir mão de tudo, brigar, etc. Essa devoção é resumida na fala da Helena, de Laços de Família, no momento em que ela justifica a Miguel a sua gravidez e a renúncia do seu amor. [...] fiquei pensando em tudo que eu já fiz pela felicidade dos meus filhos e em tudo que ainda sou capaz de fazer. Não existem limites, não existem barreiras no meu amor por eles. Pra muita gente, eu tô errada, eu sei! Pode se dar tudo aos filhos, menos a nossa própria felicidade. Mas, como uma mãe pode ser feliz se a felicidade dos filhos não tá incluída nessa felicidade? A minha mãe era assim! Por amor a mim, ela me acompanhou, ela deixou a fazenda para vir comigo pro Rio, ela abriu mão de tudo e acabou perdendo o meu pai. Acho que essa renúncia pelos filhos é um mal de família. Na minha vida tem sido assim! Eu abri mão do Edu pela Camila e, pela Camila, abri mão de você7 (Cap. 141). As Helenas do autor não são apenas mães exemplares, elas traem e abandonam um homem apaixonado – Mulheres Apaixonadas; provocam abortos e são amantes – Uma História de Amor; inventam gravidez e casam por interesse – Felicidade; matam um filho vivo e tiram a possibilidade de um homem ser pai pela primeira vez – Por Amor; escondem a verdadeira paternidade da filha e se dispõem dos sentimentos dos outros como bem querem – Laços de Família; e concordam com a mentira de uma avó fria e traem o homem que amam – Páginas da Vida. Ao mesmo tempo, são trabalhadoras, donas de casa, amantes, rivais de outra mulher, amigas, pai e mãe ao mesmo tempo, etc. 7 Ao longo da dissertação, serão encontrados os trechos das falas dos e das personagens de Manoel Carlos destacadas na cor azul. Isso significa que são hiperlinks, ou seja, no CD, que vem em anexo, estão contidas essas cenas. Basta clicar no texto azul e assisti-las.
  • 17. 16 Mesmo as novelas nos apresentando modelos corretos e incorretos de identidades, ou seja, educando os corpos e almas femininas, acredito que as identidades estão em fluxo8 e que não são naturais. Parto do pressuposto que as identidades femininas foram construídas pelo discurso moderno, que tem como base a ciência, sendo legitimada pela concepção de diferença. O ideal de identidade feminina vem fracassando, pois esta não é fixa, imutável e homogênea como o discurso normativo pretende. Além disso, a identidade feminina compartimenta várias outras identidades, como a identidade de ser negra, de ser prostituta, de ser empresária, de ser desocupada, de ser desempregada, de ser amante, de ser adúltera, de ser analfabeta, etc. Essas outras identidades quebram com a imagem fixa da identidade feminina. As novas identidades são construídas constantemente, através das subjetividades produzidas por dispositivos culturais e sociais; sendo um desses a mídia, que possui o poder de construir modelos de identidade a serem seguidos ou repelidos, principalmente nas propagandas e nas novelas. Nas propagandas são apresentados produtos a serem consumidos em nome da beleza, seus garotos e garotas propaganda são sempre jovens, saudáveis e bonitos. Já as novelas nos apresentam modelos de beleza, de educação, de comportamento, de moda, etc, apontando que estes são os modelos ideais a serem subjetivados. Os personagens de bom caráter são sempre bonitos, elegantes, bondosos, educados e portadores de uma moral incontestável; em contraposição ao seu outro, os vilões, portadores de um caráter duvidoso. Estes, sempre ao final da novela, se dão mal, pois são castigados por possuírem uma má conduta9. Desta forma, as novelas nos apontam o caminho a ser seguido e os modelos a serem subjetivados, criando novas identidades, que se apresentam como passageiras. Essas novas identidades são revestidas de novas roupagens e sempre são reatualizadas. Porém, reforçam os velhos estereótipos de mulher. Sendo assim, em geral, os autores das novelas não se preocupam em questionar as identidades e diferenças, pelo contrário, reforçam as desigualdades culturais e sociais. Essas novas identidades são ditadas pelo consumo – da beleza, do bem-estar, do modelo de namoro, da moda, do entretenimento, etc. –, ou seja, são construídas a partir dos modelos de subjetividade apresentados pela mídia. Todavia, mesmo estando calcadas nas 8 Identidade em fluxo é vida, é prática, é transgressão. Sendo assim, não podemos afirmar que essa é fixas e durável. 9 Temos como exemplo de novelas feitas nesses moldes as da Rede Globo, nas quais os heróis e as heroínas terminam felizes com o seu amor; e os vilões e as vilãs morrem, ficam loucos, paralíticos ou são abandonados.
  • 18. 17 identidades duráveis, se apresentam como passageiras porque a mídia está em constante mudança. Em um mês está em ascensão um determinado grupo de pagode que valoriza os atributos físicos femininos, como a bunda; no outro, já estão na moda grupos de funk que desvalorizam a imagem feminina, comparando-a a cachorras. Apesar dessas novas identidades, forjadas pelo discurso musical de pagodeiros e funkeiros, apresentarem-se como algo novo, essas imagens femininas reforçam a secular concepção de mulher-objeto. Essas subjetividades circulam na sociedade, onde as práticas culturais e sociais reforçam as identidades ditas passageiras, porém duráveis, e os binarismos. Os binarismos já são uma marca do nosso ensino, principalmente no de história, pois são nas narrativas históricas que os personagens de diferentes identidades – os negros, os brancos, o proletariado, os judeus, as prostitutas, etc. – são apresentados com maior evidência. Porém, as subjetividades produzidas pelas narrativas, não só históricas, circulam em toda a escola. No binarismo homem/mulher, suas subjetividades circulam através de diferenças salariais, da fixação de trabalhos distintos, de brincadeiras, de piadas, de comentários, etc. em todos os âmbitos sociais, como em casa, na sala de aula, no emprego, na rua, etc. Nesse sentido, a identidade feminina é diferente e desigual da identidade masculina, pois foi construída pelo eu10 como o outro11. Porém, as identidades femininas passaram e passam por constantes reelaborações. Minha hipótese é que as identidades femininas são construídas no lastro das práticas culturais e sociais, de práticas discursivas e não discursivas, no evolver de relações de poder/saber. Essas relações criam processos de naturalização da disciplina do corpo e da alma feminina com base em normas e regulamentações. Desta forma, saliento a (des)construção das identidades femininas e penso na emergência de identidades em fluxo, uma vez que a telenovela constrói identidades duráveis. Porém, não é pelo fato das novelas construírem identidades que essas devam ser vistas como modelos ou obrigatoriamente constituídas de personagens representantes de uma identidade única ou correta. Um exemplo é a identidade das pessoas que desejam pessoas do mesmo sexo. Organizações, nomeados de movimentos gays, cobram dos autores das novelas a veiculação de homossexuais sempre bem resolvidos, pois alegam que essa imagem ajuda em uma visão menos preconceituosa da população com relação aos mesmos. 10 O sujeito construído na relação binária como superior: o homem, o branco, o cristão, o racional, o bonito, o rico, etc. 11 O sujeito construído na relação binária como inferior: a mulher, o negro, o judeu, o irracional, o feio, o pobre, etc.
  • 19. 18 Também não é interessante o inverso, ou seja, ser veiculada apenas a imagem estereotipada desses corpos livres, ou seja, a biba louca e a mulher machão. Na vida, temos uma variada gama de identidades homossexuais. Nem todo homem e nem toda mulher que não se adequa ao padrão heterossexual é bem resolvido, possui um bom emprego ou é vulgar e promíscuo. No momento em que as novelas nos apresentam apenas exemplos de gays bem resolvidos, estão criando um modelo de como se deve ser homossexual, ou seja, cria uma identidade fixa, na qual só há espaço para um corpo padronizado, educado pela mídia. Desta forma, os que não se enquadrarem nesse padrão serão vistos como o outro de uma identidade já estabelecida. Outro ponto importante que deixo claro é que não tenho a preocupação em discutir se as novelas são influências negativas ou positivas na vida das pessoas, ou seja, não endeuso e nem demonizo a imagem da mídia e da televisão brasileira. Acredito que estas possuem aspectos positivos e negativos nos seus discursos e programações. Não me detenho no debate se a televisão dissemina a violência ou se é propulsora de alienação. Neste percurso, farei uma análise dos discursos da telenovela Laços de Família, a partir da narrativa, enredo, diálogos, etc., tentando situar como foram construídos discursivamente os personagens femininos – Helena, Alma, Capitu, Íris e Camila – e como esses personagens reforçam a regra do normal, ou seja, como legitimam alguns estereótipos femininos, como a imagem da mãe perfeita, a da filha ingrata, a da doidivanas, etc. Sob a égide da análise em tela, divido o texto da seguinte forma: No capítulo I – Identidade e Diferença: a doma(dana)ção do outro e a afirmação do eu – discuto a emergência das identidades no lastro das práticas culturais e sociais; No capítulo II – Identidade Feminina: cria do discurso científico – situo a construção das identidades femininas no bojo do discurso científico; No capítulo III – Laços de Família: as tramas de uma novela construindo e disciplinando as identidades femininas – cartografo as identidades nos discursos da telenovela Laços de Família. Por fim, vislumbro fluxos de identidades efêmeras frente às identidades duráveis.
  • 20. 19 2 IDENTIDADE E DIFERENÇA: A DOMA(DANA)ÇÃO DO OUTRO E A AFIRMAÇÃO DO EU Você não ficou surpresa com a nossa diferença de idade. Você ficou chocada. Num foi? Não precisa ficar tímida, minha filha. Você não me magoa com isso! Teu irmão ficou, as pessoas em geral ficam. As pessoas do prédio, os amigos, os conhecidos. Em qualquer lugar que a gente vá e quando a gente se beija no meio da rua, as pessoas olham feio pra gente. Querem agredir a gente (Helena, cap.11). Neste capítulo, faço uma discussão sobre a construção das identidades e a filosofia da diferença. Tenho como preocupação tentar compreender como as identidades foram construídas e subjetivadas como naturais. Os significantes identidade e diferença são conceitos carregados de significados, a partir das subjetividades. No Novo Dicionário Aurélio (1975) encontramos as seguintes definições: Identidade. [Do lat. Escolástico identitate] S. f. 1. Qualidade de idêntico: Há entre as concepções dos dois perfeita identidade. 2. Conjunto de características próprios e exclusivos de uma pessoa: nome, idade, estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc. 3. Reconhecimento de que um indivíduo morto ou vivo é o próprio. 4. Carteira de identidade. 5. Mat. Relação de igualdade válida para todos os valores das variáveis envolvidas (FERREIRA, 1975, p. 743, grifos do autor). Diferença. [Do lat. differentia]. S. f. 1. Qualidade de diferente. 2. Falta de semelhança ou igualdade; dessemelhança; dissilimitude: Não há diferença entre os gêmeos. 3. Alteração, modificação: Nota-se diferença na cor do leite. 4. Diversidade, disparidade, variedade: Grande era a diferença das cores. 5. Desconformidade, divergência, desarmonia: Notava-se no grupo uma viva diferença de opiniões. 6. Transtorno, prejuízo: É claro que o resultado me faz diferença. 7. Distinção (1): Não faz diferença entre os amigos: a todos trata muito bem. 8. Desproporção, desigualdade: Era sensível a diferença no tratamento dispensado às filhas. 9. Mat. Resultado da subtração de duas quantidades. 10. Mat. Conjunto de elementos que pertencem a um conjunto, mas não pertencem a outro nele contido. ~ V. diferenças. ◊ Diferença de potencial. Eletr. Trabalho necessário para levar de um ponto a outro (no espaço ou num circuito elétrico) uma unidade de carga elétrica. [Abrev.: d.d.p] (FERREIRA, 1975, p. 476, grifos do autor). Esses conceitos atestam legitimidade de classificação e exprimem definições com dois sentidos opostos, porém relacionais. Nesse sentido, a identidade atesta igualdade e semelhança e a diferença, o seu oposto. São relacionais no sentido que as classificações são
  • 21. 20 construídas e se legitimam a partir dos parâmetros de semelhança ou não. Sendo assim, as pessoas são enquadradas a estereótipos da igualdade ou da diferença, ou se é igual ou se é diferente de certos modelos de normalidade. O ato de conceituar e classificar é perpassado por relações de saber/poder, ou seja, envolve o ato de proferir um discurso. O discurso, segundo Foucault (2004, p. 10), [...] não é aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do desejo; é visto que – isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. Porém, o próprio significado de conceito é discutível, pois este pode ser concebido como algo que exprime uma verdade científica ou como uma elaboração de discursos baseados na ciência, ou seja, há uma relação direta entre conceito e ciência e conceito e verdade. Para o discurso científico, a história das ciências é antes de tudo uma história conceitual, pois a formação dos conceitos define uma racionalidade, ou seja, o conceito exprime a normatividade desse discurso. Nesse sentido, um conceito atesta uma verdade que é o propósito final da ciência. Mesmo a ciência tendo esse propósito, o de afirmar uma verdade, segundo Machado (1981, p. 20): [...] a ciência não pode ser encarada como um fenômeno natural nem mesmo como um fenômeno cultural como os outros. A ciência não é um objeto natural, um objeto dado; é uma produção cultural, um objeto construído, produzido. Também não pode ser ‘naturalizada’ por uma redução a seu aspecto institucional. Naturalizar a ciência é confundi-la com seus resultados e, pior ainda, com os cientistas. [...] A ciência é essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente. Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: é um discurso que tem a pretensão de verdade. A ciência é um discurso que constrói identidades e diferenças e legitima desigualdades e exclusões, tendo sempre a pretensão de criar lugares a partir dos seus procedimentos de verdade. Assim, o próprio conceito de verdade passa a ser questionável, pois também passa a ser visto como um lugar construído, elaborado, produzido pelo discurso da ciência.
  • 22. 21 O discurso científico constrói identidades baseado numa ontologia12, numa essência, tendo como pressuposto a existência de diferenças, sejam elas étnicas, sexuais, raciais, etc. As identidades, assim, tendem a se fixar a partir das subjetividades e das práticas culturais e sociais. Extrapolando esse tipo de perspectiva, podemos dizer que as identidades só adquirem sentido a partir do momento em que a linguagem passa a instituí-las como verdadeiras e distintas, demarcando territórios de desigualdade e exclusão. Portanto, as identidades são entendidas como construções discursivas que seguem uma série de procedimentos a partir das intencionalidades de quem as constroem. Esses procedimentos podem ser de exclusão, classificação, nomeação, etc. Você já parou para pensar no poder do discurso? Estamos sempre em busca de afirmar uma verdade e acreditamos que estamos sempre representando essa verdade, através dos signos. Entretanto, essa representação13 se concebe a partir de um discurso que possui intencionalidades, que nunca é inocente, aleatório ou desinteressado. Logo, Foucault (2004, p. 8-9) diz: [...] em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. Este excerto mostra que o próprio discurso possui procedimentos de exclusão e que segue uma ordem certa de acontecimento, ou seja, todos precisam se enquadrar à ordem do discurso. Esse ritual da palavra vai além do ofício do falar, extrapolando os muros da simples comunicação para se transformar numa máquina de poder. Nessa relação de poder, o mais importante não é em si o falso ou o verdadeiro, mas sim a política da verdade. Esse movimento pode ser observado na evolução científica do saber médico-jurídico-psiquiátrico. Entre o final do século XIX e início do XX, psiquiatras, detentores da verdade sobre a mente humana, prescreviam a lobotomia14, entre várias outras técnicas, como forma de diminuição ou, até mesmo, como cura dos males da mente. Na atualidade, essa prática não é 12 Pensamento que tem a concepção de que exista uma natureza comum a todos e a cada um dos seres, ou seja, acredita na existência de uma essência. 13 Entendo como representação não um atestado ou radiografia do que chamamos de realidade, mas como algo que dá sentido, a partir das narrativas, aos fatos, aos acontecimentos, às identidades, às diferenças, etc. 14 Psicocirurgia, comumente praticada entre o final do século XIX e início do XX, que retirava parte do cérebro do paciente considerado possuidor de algum distúrbio mental.
  • 23. 22 mais utilizada. Porém, a lobotomia não é considerada como um erro da ciência médica, mas como um estágio evolutivo para se chegar ao que hoje consideram como verdade no tratamento da loucura. Na política da verdade, a instituição médica prescreve nos corpos dos monstros humanos15 um discurso marcado por práticas violentas, que instaura a verdade médicojurídica e, assim, uma realidade construída e vivenciada em clínicas e hospitais psiquiátricos por pessoas enquadradas como possuidoras de distúrbios ou anomalias mentais. Desse ponto de vista, o discurso possui o poder de instituir o real. A linguagem não é mais vista como uma disciplina do currículo escolar ou apenas como uma forma de comunicação entre homens e mulheres. Com a virada lingüística16, a linguagem deixou de ser vista como uma representação ou reflexo da realidade, passando a ser vista, a partir do seu caráter construcionista, como um signo que produz significantes e significados. Os significantes são todas as nomeações e classificações que fazemos sobre as pessoas e as coisas. Na medida em que criamos subjetividades para os significantes, podendo ser de formas distintas, estamos dando-lhes significados. Portanto, quando produzimos uma narrativa sobre as pessoas e as coisas, estamos instituindo uma realidade. A linguagem possui o poder de nomear e classificar, separando e ordenando os opostos, construindo os heterossexual/homossexual, binarismos homem/mulher, normal/anormal, bonito/feio, rico/pobre, branco/negro, eficiente/deficiente, colonizador/colonizado, trabalhador/vagabundo, inteligente/ignorante, civilizado/ bárbaro, entre outros. Baseados na tradição do pensamento moderno, o que encontramos nos artefatos culturais (livros didáticos, revistas, mídia, imagens, etc) são representações do real. Esses artefatos culturais sempre nos apresentam identidades fixas, homogêneas e imutáveis, demarcando lugares hierárquicos a partir de um discurso pautado na diferença. Essas imagens reforçam o lugar de superioridade do primeiro termo em detrimento do segundo, que possui o lugar de inferioridade. Nos dois pontos a seguir, venho discutindo o que denomino de identidades duráveis e identidades em fluxo. 15 Primeira figura apresentada por Foucault na constituição da anomalia humana. A virada lingüística passou a ser processada no início do século XX com Ferdinand Saussure, o qual concebia a linguagem como um sistema de significação, vendo seus elementos (signo, significante e significado) de uma forma relacional. 16
  • 24. 23 2.1 IDENTIDADES DURÁVEIS OU SECULARES Discutirei a emergência das identidades duráveis e como os discursos pretendem prender as identidades a lugares fixos. Pensar nas identidades na atualidade e todas as suas imagens recorrentes é nos remeter a um projeto pensado por iluministas e suas mutações ao longo da nossa história, ou seja, a construção das identidades está intimamente ligada ao nascimento do sujeito moderno17. A partir do período nomeado como moderno, a noção de sujeito passa a ser constituída através do discurso moderno, que coloca o homem no centro do universo, deslocando o poder que antes era divino para o humano. Este seria o sujeito construído pelo discurso Iluminista, ou seja, o sujeito moderno. Segundo os discursos modernos, o homem deveria se afastar de todos os dogmas e das superstições existentes, passando a fazer uso da razão. O uso da razão teria como função dar subsídios ao homem para este alcançar sua liberdade e autonomia e chegar ao ideal de civilização. Quanto maior o uso da razão, maior seria o nível de civilização. O ideal de civilização estaria pautado no progresso e na evolução humana, ou seja, o homem deveria ser um indivíduo livre e autônomo, consciente, capaz de se auto-determinar e transformar o mundo. O próprio termo Iluminismo18 surgiu em oposição às trevas, às superstições e aos dogmas, referente à concepção dos modernos em relação à Idade Média, indicando um período de luz e claridade, que seria alcançado através do uso da razão, que proporcionaria a conscientização. Com base nesse discurso, o homem já nasceria com uma consciência adormecida, que seria libertada pelo conhecimento, pela ciência e pela educação, ou seja, já teria inerente na sua natureza a racionalidade, em outras palavras, a capacidade de aprender, de ser autônomo e de conhecer a realidade. Desta forma, só o que lhe faltaria seria o despertar em vista ao progresso humano, ocorrendo, a partir daí, o seu enriquecimento intelectual e desenvolvimento do coletivo, ou seja, da sociedade e da nação. 17 O sujeito moderno é uma construção discursiva que passou a ser constituída a partir do século XVI pelos pensadores modernos como Descartes, Hegel, Rosseau, etc. Este seria um sujeito dotado de razão, consciência, livre e com capacidade de se auto-determinar e, tendo em vista o progresso, transformar o mundo. 18 O Iluminismo é consagrado pela historiografia como um movimento cultural, artístico e filosófico europeu dos séculos XVII e, principalmente, XVIII. O pensamento Iluminista é caracterizado pela ênfase colocada na razão e na experiência, pela desconfiança em relação à religião e às autoridades tradicionais e no ideal de sociedade liberal e democrática.
  • 25. 24 A preocupação com a educação e a sua supervalorização vem acompanhando ao longo da história a noção de civilização e progresso humano. Sendo assim, o discurso iluminista vem se atualizando e não cessa de se renovar com os discursos da modernidade. A educação é vista como a salvadora de todos os males sociais e culturais. Porém, Foucault (2004, p. 44-45) aponta que todo o sistema de educação possui procedimentos de manutenção e apropriação dos discursos. [...] O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação da palavra e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes? Sendo a educação uma modalidade política carregada de poderes e saberes, possui o poder de disciplinar e de controlar, formando corpos dóceis e adequados a regras e a normas. São rituais que se materializam na hora de entrar e sair da escola, cadeiras enfileiradas, ter boas notas escolares, ter bom comportamento, ter que usar uma farda, etc. O não cumprimento das regras resulta em punição: castigo, diminuição das notas, expulsão de sala de aula ou da escola, reprovação do ano letivo, etc. Concomitantemente à noção de educação, o Iluminismo teria como função a formação do homem enquanto sujeito, sendo contra qualquer tipo de autoridade que não fosse pautada na racionalidade e na experiência. A religião configurava-se como um empecilho para o progresso e a evolução humana, já que, nessa concepção, o homem estaria subordinado a crenças irracionais e a uma autoridade baseada em dogmas e superstições. Levando-se em consideração que a existência de Deus não pode ser provada pela ciência como algo material, o homem não deveria se submeter a essa força. O período moderno é um momento não só calcado numa razão absoluta e inquestionável, mas também na experiência19 e na prova. Um fato para ser considerado como verdadeiro teria que ser experimentado e provado cientificamente. O pensamento moderno não concebe a verdade como uma construção discursiva interessada, mas como um dado da realidade. A noção de sujeito iluminista, segundo Hall (2001, p. 10) diz que: “O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação, cujo ‘centro’ consistia num núcleo interior [...]”. 19 Os maiores defensores do método experimental foram René Descartes e Francis Bacon, os quais objetivavam um método que evitasse o erro e colocasse o homem no caminho do conhecimento correto e verdadeiro.
  • 26. 25 Contrapondo-se ao projeto iluminista, este se constituía como uma invenção histórica, pois havia, durante o período moderno, todo um discurso que o elaborava como sujeito. A noção de sujeito moderno nos remete a uma identidade fixa, homogênea, imutável, ou seja, fechada em si; haja vista não permitir a emergência de outras formas de identidade. Então, uma questão vem à tona: a partir de que as identidades duráveis são construídas? A partir de discursos pautados na diferença, ou seja, o eu pontua o que o outro tem de diferente de si a fim de construir e naturalizar seu lugar de superioridade. Na leitura dialética de Hegel20, o eu é definido como a negação do outro. Hegel faz uma análise, em Fenomenologia do Espírito (1807), sobre a autoconsciência ou consciência de si, mostrando que o eu só pode ser construído a partir do outro. Para tanto, ele utiliza a metáfora do Senhor e do Escravo, apontando para uma identidade relacional na qual o Senhor reconhece o seu inferior, dependendo também do reconhecimento do Escravo, ou seja, o Senhor tem que ser reconhecido como superior. Um exemplo de como a identidade é construída como relacional é a identidade negra, ela é o outro da identidade branca. A identidade negra só existe a partir de algo exterior a si, portanto, depende e difere da identidade branca. Da mesma forma ocorre com a identidade branca, que depende e difere da identidade negra. Como podemos constatar, as identidades são marcadas pela diferença e sustentadas pela exclusão, ou seja, se você é negro, não pode ser branco, e vice-versa. Essa exclusão é acompanhada das desigualdades sociais e culturais, pois temos várias práticas cotidianas que demarcam os territórios de exclusão. As diferenças não são um dado da natureza, ou seja, algo natural e que possui uma essência, mas sim uma construção discursiva e histórica, pois se localiza num momento específico no tempo. Como o essencialismo21 fundamenta-se na história e na biologia, as identidades podem ser criadas baseadas num determinado passado – identidades nacionais, étnicas e religiosas – ; e também na biologia – identidades de gênero e de raça. Mas, quais as intencionalidades do discurso moderno em construir discursivamente as diferenças? 20 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) – pensador que influenciou o desenvolvimento do pensamento ocidental do século XIX no que diz respeito á filosofia, à teoria social e política. Hegel criou o conceito de dialética, cujo raciocínio parte do pressuposto de que um conceito e o seu oposto, em conjunto, originam uma idéia posterior que representa o que é essencial em ambos. Mas esta, por sua vez, gera o seu oposto, e, assim, recomeça o processo de transição dialético. 21 Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade de uma substância primeira, a essência. Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo, permanece imutável e estática.
  • 27. 26 No discurso científico, o outro é visto como a fonte de todo o mal, ou seja, o exterior ao ideal de sujeito Iluminista. Segundo Duschatzky e Skliar (2001, p. 123): A modernidade inventou e se serviu de uma lógica binária, a partir do qual denominou de diferentes modos o componente negativo da relação cultural: marginal, indigente, louco, deficiente, drogadinho, homossexual, estrangeiro, etc. Essas oposições binárias sugerem sempre o privilégio do primeiro termo, e o outro, secundário nessa dependência hierárquica, não existe fora do primeiro, mas dentro dele, como imagem velada, como sua inversão negativa. As diferenças causam-nos mal-estar e nos subjetivam uma identidade normal, pois os apontados como diferentes são caracterizados pelo espelhismo da normalidade, ou seja, se caracterizam como o oposto da identidade normal; sendo estes agrupados a partir de critérios estabelecidos pela ciência moderna. O outro seria o perigo e o mal a serem domados e enquadrados aos lugares construídos para si, sendo nomeados e classificados como diferentes. Através dos binarismos, o outro tem a função de mostrar quem somos, apresentando o nosso lado negativo, ou seja, o pobre confirma nossa riqueza; o louco, nossa razão; o velho, nossa juventude; etc. Duschatzky e Skliar (2001, p. 124, grifos do autor) apontam: O outro diferente funciona como depósito de todos os males, como o portador das falhas sociais. Este tipo de pensamento supõe que a pobreza é do pobre; a violência, do violento; o problema de aprendizagem, do aluno; a deficiência, do deficiente; e a exclusão, do excluído. O discurso sobre os nomeados e classificados como louco, que é o outro da nossa razão, serenidade e sanidade, reforça a concepção de que somos portadores de uma identidade normal. A identidade normal existe em contraposição á identidade do louco, que, segundo o discurso científico, não tem capacidade de viver no mundo real. No final do século XIX e início do XX, momento de medicalização da loucura, o discurso médico-científico patologiza o louco e a loucura, criando um discurso que inventa um lugar para este, apresentando-o como o outro que deve ser tratado e excluído da sociedade. Para aplacar o medo e a perturbação que o louco nos causa, foram criadas casas de reclusão que têm a função de controlar o seu corpo e a sua mente. No caso da figura feminina, o saber médico não apenas patologizou as nomeadas e classificadas como loucas, mas também criou um distúrbio mental praticamente exclusivo
  • 28. 27 para as mulheres: a histeria, que possuía uma íntima relação com a madre22. Para médicos e legistas, o corpo feminino, com os seus fenômenos naturais como a menstruação, a gravidez, o parto e o pós-parto, estava fisiologicamente predisposto a doenças mentais. Para Engel (2002, p. 343): A visibilidade e os significados da concepção segundo a qual a histeria seria em sua própria essência uma doença feminina encontram-se profundamente vinculados à tradição que – presente na medicina hipocrática, passando pelos médicos medievais – identificava o ‘mal histérico’ à ‘sufocação da madre’. Nesse período, a madre era a chave de todos os males. Foram lançadas várias teses negando o prazer sexual feminino. A mulher que sentisse prazer sexual era tida como ninfomaníaca, porém não podia repudiar a ato em detrimento da maternidade, que poderia salvá-la da doença mental. Outras teses foram lançadas, porém mais escassas, reconhecendo o prazer sexual da mulher e a necessidade de realizá-lo, já que a sua falta ou ineficiência poderia causar a prática da masturbação e, conseqüentemente, a histeria. Os alienistas acreditavam que a maternidade seria capaz de curar distúrbios psíquicos relacionados à sexualidade, assim como intervenções cirúrgicas ginecológicas, pois havia uma grande associação entre a loucura e o útero (mater). Nessa concepção, o útero definia a mulher e determinava seu comportamento emocional e moral. O discurso médico apreendia a identidade feminina a um corpo estranho, perigoso e labiríntico, sendo, assim, passível de se explorar, domar e disciplinar. As mulheres classificadas e nomeadas como loucas ou histéricas eram tidas como diferentes. Porém, as identidades não são construídas apenas como diferentes, mas também como desiguais, pois o discurso moderno encontrou no saber científico o lugar da experiência e da prova para justificar as diferenças e, desta forma, legitimar as desigualdades. As identidades são diferentes apenas em si, pois foram construídas, discursivamente e culturalmente, ao longo do tempo como diferentes e desiguais. Para esse discurso, o outro não é apenas diferente, mas também desigual. A desigualdade só existe a partir do discurso da diferença. As marcas do discurso da diferença são a desigualdade e a exclusão. Uma pessoa vista como diferente nunca é aceita com igualdade pelo normal. O pobre é excluído de boas escolas, de uma boa alimentação, de atendimento médico e de lugares, pois este já possui o 22 A madre era entendida como a geradora de todo o bem feminino, maternidade e todos os males como a perversão moral e social e os distúrbios mentais. Em síntese, a madre era o órgão sexual e reprodutor feminino. Porém, definia ou carregava em si as marcas de normalidade ou anormalidade das mulheres.
  • 29. 28 seu lugar pré-estabelecido a partir de discursos, que pretendem mostrar seu lugar de inferioridade em contraponto ao rico. Segundo Woodward (2000, p. 14), “a marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido às práticas e as relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído”. As práticas de significação que produzem significados envolvem relações de poder, pois determinam lugares para as identidades. Temos também como exemplo a identidade do oriental, o outro da identidade do ocidental, no qual o Oriente configura-se como um corpo escrito e construído. Said (1990) discute como o Oriente foi construído pelo Ocidente e quais as intencionalidades do discurso ocidental em falar do e pelo outro, apontando que o Oriente, de início, era o desconhecido ameaçador, que, numa relação de poder e saber, deveria ser controlado. Desta forma, baseado na tradição ocidental em construir a história do outro a partir de suas verdades, o Oriente foi descrito como irracional, estranho, anormal, etc. em contraponto a um Ocidente racional, conhecido, progressista, virtuoso, maduro, etc. O Ocidente se autodenomina como lugar da superioridade, da dominação e da autoridade; opondo-se a um Oriente inferior, submisso e incapaz. O Ocidente nomeia e classifica o Oriente a partir de si, criando a identidade deste outro como uma imagem invertida. Calcado numa noção de identidade relacional, Said (1990, p. 14) aponta: [...] O Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) como sua imagem, idéia, personalidade e experiência de contraste. Contudo, nada desse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa. O Oriente expressa e representa esse papel cultural e até mesmo ideologicamente como um modo de discurso com o apoio de instituições, vocabulário, erudição, imagística, doutrina e até burocracias e estilos coloniais. Além desse discurso baseado numa diferença cultural, temos o discurso que é marcado pelo corpo, ou seja, as deficiências humanas, no qual todo um saber científico e técnico define, nomeia, classifica e cria identidades para os deficientes; dando-lhes características específicas, as redes de significação vão se multiplicando, criando e recriando a cada dia novas identidades. Paulo, filho de Miguel, possui no corpo as marcas da exclusão e da desigualdade. Quando adolescente, sofreu um grave acidente de carro que vitimou a sua mãe e lhe trouxe várias seqüelas, como problemas de locomoção e de dicção. Ao longo dos anos, com muito trabalho e determinação, foi conseguindo melhoras, porém não se livrou dos preconceitos.
  • 30. 29 Paulo: Eu só queria saber uma coisa, mas que você me falasse a verdade. Miguel: O que que é, meu filho? Diz. Paulo: Se é verdade que as pessoas têm pena de mim. Miguel: Meu filho, de onde é que você tirou isso? Paulo: A Ciça fala isso muitas vezes e falou hoje na frente de uma moça. Miguel: E aí? Paulo: A moça olhou pra mim e falou ‘coitado’. Miguel: Aí, meu filho, você nunca ligou pra nada que a que a sua irmã fala e você sabe muito bem que lá em casa ninguém dá a menor importância pras implicâncias da Ciça. É ou não é? Paulo: Mas, eu também percebo as pessoas comentando. Miguel: Mas, comentam o que, meu filho? Que você tem limitações, que você tem problemas? Mas, você tem mesmo, meu filho. Tem e você sabe disso antes e melhor que qualquer um (Cap. 43). Paulo, enquanto um homem que carrega deficiências físicas, se configura como um anormal; nesse caso, um anormal aceitável, mas, na concepção de Ciça, incapaz de se relacionar com Capitu, pois “ela é muita areia pra o seu caminhãozinho” (Cap. 45). Nesse sentido, os relacionamentos devem ocorrer com os seus devidos pares: se Capitu é normal fisicamente, deve amar um igual a ela. Nesse discurso, o diferente configura-se como alguém a ser tolerado, o que mascara as desigualdades, mas não coloca em questão as exclusões. O discurso da tolerância e do respeito se esconde atrás de um véu lingüístico, constituído de palavras mais brandas e suaves. Contudo, esses discursos apenas reforçam as diferenças, pois não põem em xeque as identidades, ou seja, estas continuam sendo vistas como naturais, não como uma construção discursiva localizada num determinado tempo. Entre os sujeitos envolvidos na relação identitária há o que quer ditar o certo e o errado. No exemplo a seguir, Ciça quer ditar ao pai o caminho que ele deve seguir, pois ela não considera adequado ele ser educado, passivo e compreensivo demais. Porém, Miguel possui o poder de pai e, assim, o direito de encaminhá-la á obediência e à aceitação das suas decisões. Ciça não se conforma por Helena não ter aceitado o pedido de casamento do seu pai e ter terminado o relacionamento sem explicações convincentes. No dia do aniversário de Miguel, Helena vai à livraria para parabenizá-lo, porém não o encontra e é expulsa por Ciça. Miguel fica sabendo que Helena foi lá e pede explicações a sua filha. Ciça: Eu num consigo, pai, eu num consigo ver tudo isso sem fazer nada, eu num consigo. Você é compreensivo demais, você é passivo demais, você é educado demais, gentil demais. Não se deve ser assim, pai. Eu amo você demais pra ver você sofrer sem fazer nada. Miguel: Olha, minha filha, uma vez eu te disse. Lembra-se? Quando a gente ama, quando a gente ama uma pessoa, a gente aceita essa pessoa do jeitinho que ela é, com todos os seus defeitos, diferenças, maneiras de ser, com tudo isso. Porque esse
  • 31. 30 é o verdadeiro amor. Já te falei isso. Só que eu e você somos diferentes. Não queira que eu haja, que eu pense, que eu faça tudo, todas as coisas que você imaginar na tua vida, segundo a sua visão, de acordo com aquilo que você quer. Não, porque nós somos diferentes, diferentes. Olha, minha filha, eu acho que é até bom, já que você não consegue conviver com as nossas diferenças, é bom a gente dá um tempo pra você. Você sair um pouquinho do Rio, ficar um pouco longe de mim. Quem sabe viajar. Nova Iorque, por exemplo, lá na casa do Nelson. Pronto! [...] Ciça: Não, você não tá falando sério? Miguel: Tô sim, minha filha, muito sério. Eu acho que é bom sim. Já que você não consegue conviver tanto com as nossas diferenças. Seria importante isso, você dá um tempo. Tempo do seu pai, tempo pra você, inclusive, tempo do Rio de Janeiro. Você queria tanto viajar, talvez seja a hora agora. Viajar, sair um pouco. Quem sabe até você passa, vai passar a aceitar um pouco melhor o seu pai. Né? Vai aceitar do jeitinho que eu sou, vai aceitar com as minhas manias, com as nossas diferenças, os meus defeitos. Quem sabe você depois que voltar vai passar a encarar o teu pai de uma outra maneira. Ham? Agora desce, desce. Vai trabalhar, vai ocupar a sua mente. Faz bem trabalhar, faz bem. Vai. Mais tarde nós conversamos (Cap. 137). Miguel carrega a noção de que as pessoas não são iguais, mas que devem se respeitar mutuamente. Nesse caso, a diferença é assumida como algo natural, aceitável e tolerável. Ciça, nesse momento, se transforma num corpo a ser disciplinado. A viagem é uma forma de castigo: excluí-la do seu convívio é discipliná-la a aceitar e a tolerar as diferenças. Todavia, as identidades não são tão fixas, homogêneas, imutáveis e incontestáveis como o discurso moderno pretende, pois as identidades vivem em fluxo e são constantemente reelaboradas. Debruçar-me-ei, portanto, sobre as identidades em fluxo. 2.2 IDENTIDADES EM FLUXO Apresentarei os fluxos de identidades e os movimentos de deslocamento dos corpos femininos e masculinos. Como já vimos anteriormente, um dos projetos do Iluminismo era formar um sujeito composto de atributos emancipatórios, ou seja, o sujeito, através do uso da razão, alcançaria o progresso e a evolução e, desta forma, a felicidade humana. Porém, apesar do progresso material que temos, criado pela ciência e pela tecnologia, temos uma má qualidade de vida. Contrariando a noção do sujeito iluminista, Alma, após o acidente que Edu sofre23, chega à conclusão que o ser humano não possui o comando da sua vida como supunha ter e 23 Edu, após um longo período sem treinar saltos, monta e resolve saltar. Ao se distrair com a chegada de Helena, sofre um acidente. Edu é submetido a uma cirurgia bem sucedida, porém passa um bom tempo sem os movimentos dos braços e das pernas.
  • 32. 31 que somos constantemente pegos de surpresa por alguns acontecimentos que não podemos prever ou evitar. Quando acontece uma coisa assim, eu fico pensando na fragilidade do ser humano, na nossa precariedade. Nós levantamos todo dia da cama cheios de planos, muitas vezes cheios de empáfia, de orgulho, sem saber o que nos aguarda antes mesmo do café da manhã (Cap. 28). As próprias metanarrativas24 não foram alcançadas, pois as promessas do Iluminismo vêm se distanciando cada vez mais da sua concretização. É em nome da racionalidade científica que o homem tornou-se mais egoísta e autoritário, se auto-destruindo. A ação humana destrói a natureza e constrói bombas atômicas e armas nucleares, o que coloca em risco a sua própria existência. Temos um mundo mais conturbado e à beira de um colapso, o que coloca em questão a Razão Transcendental. Para o discurso moderno, o homem seria libertado pelo conhecimento, pela ciência e pela educação. Porém, segundo Veiga-Neto (1995, p. 09): Atravessando tudo isso, está a sensação de que as instituições – tais como os vários aparelhos estatais, a pesquisa científica e a educação escolarizada – estão cada vez mais limitadas para dar soluções a médio e longo prazos para esses problemas. A crise na escola moderna e na educação se localiza no não acompanhamento dos fluxos de desejos e necessidades das pessoas envolvidas na educação. A linguagem da escola moderna fala através do seu currículo, da sua metodologia, do seu prédio, da sua organização em sala de aula, e, principalmente, a partir do discurso do professor ou da professora e do livro didático. A linguagem da escola não é inocente, desinteressada, possui intencionalidades explícitas e implícitas. Um dos seus objetivos é formar e preparar o homem para a vida. Numa visão liberal, preparar o homem para o mercado de trabalho, no qual, durante toda a sua vida, adquire aptidões, competências, capacidades e habilidades. Desta forma, a escola molda o homem e a mulher a partir de dispositivos de poder-saber. A escola moderna vigia, pune e pretende controlar os gostos, os gestos, os sentimentos, as vontades, os passos, os horários, o comportamento, ou seja, pretende controlar a vida dos alunos e alunas. Veiga-Neto (1995, p. 26) afirma que na escola há mecanismos de controle que operam de forma sutil e contínua: 24 As metanarrativas são as promessas do Iluminismo para um futuro mais próspero.
  • 33. 32 [...] No caso das disciplinas, são as determinações e delimitações dadas pela disposição dos saberes que constroem os critérios de verdade/falsidade e normalidades a que submetem os enunciados. Além disso, a organização institucional do conhecimento opera em todos os processos [...] no sentido de rarefazer e hierarquizar os locutores com direito a enunciar o discurso e dele usufruir. Além de a escola moderna possuir esse lugar de autoridade, as oposições binárias são uma marca do seu ensino. O nosso currículo está sempre reforçando e subjetivando as diferenças e que devemos tolerá-las e respeitá-las. Assim, a escola não alcança o grande objetivo do projeto Iluminista, o de formar cidadãos livres e autônomos, pois vem cada vez mais aumentando as desigualdades e exclusões, reforçando, portanto, as diferenças, apresentando-as como naturais e incontestáveis. A crise da escola moderna é apontada tanto por grupos intitulados de direita quanto por grupos de esquerda. Os primeiros apontam que a escola não está preparando cidadãos competentes para o mercado de trabalho. Já os segundos afirmam que a escola está cada vez mais aumentando as desigualdades e legitimando as exclusões sociais e culturais. Portanto, a escola se insere no contexto geral dessa crise. Juntamente com uma crise globalizada, temos uma crise de identidade causada pela sensação de desalento e insegurança, na qual as identidades passam a ser contestadas. Estas são contestadas a partir do momento em que é verificado que as identidades não são estáticas e imutáveis como se imaginava, assim como também é verificado que o homem não exerce mais o papel central que o sujeito Iluminista exercia, pois as suas identidades passam a viver em fluxo e são constantemente reelaboradas e reinventadas. Alguns teóricos, como Kathryn Woodward (2000), falam de uma crise de identidade e outros, como Stuart Hall (2001), falam de um sujeito pós-moderno, ambos movimentos característicos das sociedades contemporâneas ou da modernidade tardia25. Woodward (2000) trabalha com a noção de crise de identidade, na qual tem como pressuposto que essa crise é ocasionada pelas mudanças constantes no cenário da globalização, que ora produz novas identidades, baseadas nos deslocamentos; ora reforça identidades locais e nacionais, sendo abaladas quando é constatado que as identidades vivem em fluxo. Essa autora aponta, ainda, três pontos para se pensar sobre as crises de identidade: a história, as mudanças sociais e os novos movimentos sociais. 25 Nesta concepção, a modernidade tardia exprime um novo período histórico característico da sociedade globalizada.
  • 34. 33 A busca por uma verdade histórica ou um passado autêntico está na base da legitimação das identidades nacionais e étnicas. Essa concepção nos remete a uma história estática e com uma verdade cristalizada. Nesse sentido, a crise se localiza na perda de uma identidade legítima, pois, a partir da interação entre o passado, geralmente glorioso, com o presente modificado, vão se formando novas e fragmentadas identidades. No cenário global e local têm-se mudanças em todos os âmbitos sociais, que vão de mudanças econômicas e de mercado de trabalho a mudanças familiares e sexuais; o que corresponde a novos posicionamentos das pessoas na sociedade e a uma nova relação com as várias situações cambiantes. Para Woodword (2000, p. 29), a crise surge de um mundo difuso, ou seja: As crises globais de identidade têm a ver com aquilo que Ernest Laclau chamou de deslocamentos. As sociedades modernas, ele argumenta, não têm qualquer núcleo ou centro determinado que produza identidades, em vez disso, uma pluralidade de centros. Nos novos movimentos sociais, o que se tem é uma política de identidade, ou seja, são transpostas as barreiras entre o pessoal e o político. Os movimentos como o feminista, o racial, o sexual, etc, a partir da década de 60, passaram a reivindicar mudanças sociais que implicam mudanças culturais, a partir do âmbito local. Os movimentos sociais se dividem em duas categorias. O primeiro grupo são movimentos que se valem de certezas essenciais, como a biologia, afirmando que há um apanhado de características que os definem enquanto tal. O segundo grupo são movimentos que vão de encontro às concepções essencialistas, ou seja, não compreendem as identidades como fixas e imutáveis. Nesse caso, a crise se localiza no questionamento do sentimento e estrutura de pertencimento a um grupo ou a uma única identidade. Se um sujeito possui várias identidades, como ele pode pertencer a um único grupo? Um exemplo são as mulheres negras que transitam, entre várias outras, entre a identidade racial e a identidade de gênero. Focaliza Hall (2001) três tipos de sujeitos pertencentes à modernidade tardia: o Sujeito Iluminista, já discutido anteriormente, o Sujeito Sociológico e o Sujeito Pós-moderno. O Sujeito Sociológico26 se constitui como sujeito a partir da relação entre o seu interior e seu exterior, ou seja, a partir da sua interação com a sociedade. Nessa concepção, o sujeito não é mais autônomo e auto-suficiente, pois sua identidade só existe a partir do 26 Nesta visão, o sujeito não é visto como uma construção discursiva, mas como uma construção social.
  • 35. 34 diálogo com os mundos culturais, seguindo modelos de conduta que condizem com os seus ideais e os ideais de conduta e de moral da sociedade. Mas, essa noção de sujeito ainda possui um cunho essencialista27, pois, apesar de o sujeito estar em transitoriedade a partir das experiências, das vivências e de outros modos de ser, ele não perde a sua essência originária. Essas experiências, vivências e modos de ser se incorporam a uma forma progressiva de identidade, ou seja, o diálogo com o exterior constitui um eu real. O Sujeito Pós-moderno se constitui como um corpo fragmentado, no qual o sujeito não é mais único e centrado, pois a sua identidade vive em fluxo, sendo atravessada por várias outras identidades. Desta forma, passa a possuir várias identidades, às vezes contraditórias, pois os deslocamentos identitários são constantes. Argumenta Hall (2001, p. 87) que essa mudança na concepção de sujeito e, conseqüentemente, de identidade, foi ocasionada pelas rupturas, na modernidade tardia, dos discursos do pensamento moderno. Ela (a globalização) tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Para o referido autor, os postulados do pensamento moderno passam por um movimento de deslocamento, no qual o homem deixa de ser um sujeito centrado, universal e essencial; sua identidade não é mais concebida como algo fixo e inato desde o nascimento, quando as redes de significações, simbólicas e de identificação, passam a ter um papel importante; a linguagem passa a ser entendida como um sistema que cria significados mutáveis nos nossos sistemas culturais, não mais um sistema individual. As identidades posicionais28 se inscrevem no momento em que o sujeito assume diferentes posições de identidade de acordo com a necessidade do momento. A identidade feminina carrega em si uma série de significações e papéis culturais e sociais a desempenhar. Porém, essa mesma mulher no seu dia-a-dia apresenta uma identidade posicional no sentido 27 Pensamento que busca compreender o fundamento da realidade a partir de uma substância primeira, a essência. Segundo o essencialismo, a essência, seja individual ou coletiva, não se altera ao longo do tempo, permanece imutável e estática. 28 Eve Sedgwick (1993, p. 253, apud Louro, 2004, p.54, grifos de Louro) exemplifica muito bem as contradições das identidades e dos seus marcadores simbólicos: “O uso do nome de casada por uma mulher torna evidente, ao mesmo tempo, tanto sua subordinação como mulher quanto seu privilégio como uma presumida heterossexual”. Nesse sentido, o marcador simbólico – nome de casada – assume significados diferentes em dados momentos. Esses deslocamentos se inscrevem cotidianamente na vida das pessoas.
  • 36. 35 que pode ser mãe, profissional, amante, gostar de mulheres, filha, etc. Essas múltiplas identidades serão vivenciadas de formas diferentes para cada momento. O conceito de deslocamento é muito interessante para se pensar sobre as identidades em fluxo ou fragmentadas, em parte proporcionadas pela abertura e inovações das tecnologias da informação e comunicação, como a mídia televisiva e a Internet, ou as chamadas ciberidentidades29. Para Woodward (2000, p. 17-18), o processo-chave para essas identidades em fluxo ou fragmentadas é o discurso da mídia, que se utiliza dos sistemas simbólicos e das redes de significação para criar modelos a serem subjetivados e seguidos. Essa autora afirma: A mídia nos diz como devemos ocupar uma posição-de-sujeito particular – o adolescente ‘esperto’, o trabalhador em ascensão ou a mãe sensível. Os anúncios só serão ‘eficazes’ no seu objetivo de nos vender coisas se tiverem apelo para os consumidores e se fornecerem imagens com as quais eles possam se identificar. Douglas Kellner (2001, p. 303) também acredita que as identidades estão em constantes mudanças, onde podemos observar modelos cambiantes ditados pela mídia. O discurso da mídia, através de suas imagens, sons, enredos, histórias e narrativas, possui ideologias e significados variados, exercendo a televisão um grande fascínio nos telespectadores. As pessoas assistem com regularidade a certos programas e eventos; há fãs das várias séries e estrelas com um grau incrível de informação e conhecimento sobre o objeto de sua fascinação; as pessoas realmente modelam comportamentos, estilos e atitudes pelas imagens da televisão[...]. Para esse autor, a televisão tem uma importância inegável na reestruturação das identidades e exerce a função de um espelho de identificação. Isto ocorre devido à proximidade das pessoas com esse objeto, criando as mesmas um vínculo afetivo com esse meio de comunicação. Apesar de a televisão apresentar-se como um meio de entretenimento, ela vai além desse ofício, pois molda gostos, sentimentos e atitudes. Esse ofício de moldar não é encarado pela televisão de uma forma inocente e despretensiosa. Programas e novelas são direcionados a grupos específicos de sexo, de idade e de condição social na intenção de educar e adestrar os 29 Saliento que a ciberidentidade não é a identidade do mundo tecnológico, mas apenas mais uma possibilidade entre os vários fragmentos e deslocamentos.
  • 37. 36 corpos e as almas dos telespectadores, criando uma dinâmica de mundo. Logo, a sua dimensão educativa se concentra no controle e na disciplina. Para Deleuze (1992, p. 221-222): Nas sociedades de disciplina não se parava de recomeçar (da escola à caserna, da caserna à fábrica), enquanto nas sociedades de controle nunca se termina nada, a empresa, a formação, o serviço sendo os estados metaestáveis e coexistentes de uma mesma modulação, como de um deformador universal. A televisão, enquanto um modulador universal do mundo ocidental, nunca cessa de se revestir de um discurso atraente. A atração que o discurso televisivo propaga tenta se aproximar do sentimento de proximidade e de identificação das pessoas que estão do outro lado da tela. A televisão é um mecanismo de controle contínuo, ou seja, os deslocamentos circulam em prol da manutenção do controle. No caso dos deslocamentos pensados a partir do mundo virtual, em especial a Internet, temos as ciberidentidades, em que essas identidades são forjadas pela rapidez das mudanças no ciberespaço30 e pela abertura que proporciona para as pessoas se posicionarem de diferentes formas e, conseqüentemente, se posicionarem enquanto pessoas possuidoras de múltiplas identidades. No discurso das tecnologias da informação e comunicação, o ser é moldado a partir de dispositivos técnicos, como os computadores e as telecomunicações, e passa a viver, pensar e agir a partir da dinâmica do ciberespaço, que lhe proporciona um mundo de imagens, sons, simulações e possibilidades para a construção de várias identidades. As pessoas conectadas podem criar outras identidades para si na Internet. Nas salas de bate-papo, pessoas de todas as idades – crianças, jovens, adultos e idosos – falam de si e de atributos físicos que podem ser desejados como algo interessante. O adolescente que se sente feio pode se transformar em um homem alto, moreno e sensual; a mulher madura pode criar para si a identidade de uma jovem de seios fartos; meninas podem ser meninos e vice-versa; etc. Nas salas de bate-papo são criadas novas linguagens e dinâmicas. São ativados e desativados namoros, amizades e são criadas comunidades em torno de interesses comuns, como esporte, sexo31, música, baladas, etc. 30 Termo utilizado pela primeira vez em 1984 por William Gibson. Ciberespaço é definido como o espaço virtual, ou seja, o conjunto dos elementos contidos na rede e o resultado da interconexão dos computadores e dos seus usuários. 31 Percebo que este assunto é de interesse de grande parte dos usuários das salas de bate-papo.
  • 38. 37 Um dos grandes fenômenos da internet é o orkut32. Os seus membros criam redes de amigos que se multiplicam a partir de convites de amizade. Cada participante pode deixar o seu recado e ler os dos demais. O dono da conta pode colocar fotos e participar de várias comunidades33. O espaço fica aberto para o relacionamento hipertextual. Outro fenômeno são os blogs, que são diários que retratam o cotidiano do blogueiro ou este aborda assuntos específicos ou variados, que quebram com a dimensão do privado e de intimidade que os convencionais diários possuíam, pois os blogs são abertos a quem quiser visitá-los e com possibilidade de envio de comentários. Segundo Marthe (2005, p. 88): Os blogs levam as últimas conseqüências dois princípios da Internet. Um deles é a interatividade. Cada texto postado num blog vem acompanhado de uma janela para que os leitores façam comentários, o que torna essas páginas espaço de debate por excelência. O outro é a formação de comunidades que vão se ampliando e se sobrepondo. O orkut e os blogs são locais de circulação de subjetividades e identidades, pois as pessoas se relacionam diretamente, eliminando as barreiras de espaço. Pessoas do mundo inteiro se relacionam através do hipertexto e se apresentam enquanto consumidores das tecnologias de informação e comunicação, tendo a liberdade de criar para si várias identidades. Depois de pensar um pouco sobre a construção das identidades, no próximo capítulo ater-me-ei mais especificamente à identidade feminina, tentando compreender como os discursos pretendem prender as identidades femininas, assim como as demais, a lugares fixos e homogêneos. 32 Orkut é uma rede de interatividade na internet que interliga pessoas de distantes localidades e em blocos de amizade. No geral, já se conhecem as pessoas que são seus amigos dessa rede, mas também pode fazer amigos virtuais. Essa rede possui restrições impostas pelo dono da conta, como excluir pessoas ou negar convites de amizade. Mas, em contraponto, qualquer pessoa que possui uma conta no orkut pode ver o seu perfil, seu álbum de fotos, suas comunidades e seus recados recebidos ou enviados, pois nessa página o diálogo é aberto. Recentemente o Ministério Público vem tentando excluir o orkut da internet, por alegar que nessa rede há comunidades que veiculam conteúdos de pedofilia e que o seu trabalho vem sendo prejudicado pelo seu gerenciador, o Google, que não fornece informações dos autores. 33 As comunidades têm uma variedade enorme no seu tema e conteúdo, vão da cultura ao entretenimento, lazer, culinária, política, racismo, futilidades, moda, relacionamento amoroso ou sexual, etc.
  • 39. 38 3 IDENTIDADE FEMININA: CRIA DO DISCURSO CIENTÍFICO Eu espero que você não se arrependa do que você tá fazendo. Uma mulher pode significar a salvação ou perdição, dependendo de você escolher a que é certa pra uma coisa ou pra outra. E você tá escolhendo a que acaba com a vida de um homem (Alma, cap. 5). Discutirei como a identidade feminina foi construída. Pensarei como o discurso moderno construiu a identidade feminina como o lugar da inferioridade, fragilidade, submissão e emoção em contraponto com a identidade masculina, como o lugar da superioridade, força, independência e razão. A construção da identidade feminina está intimamente ligada ao nascimento do sujeito iluminista, pois a mulher era compreendida como o inverso da identidade masculina. Sendo assim, o sujeito iluminista é antes de tudo masculino, pois o discurso moderno só dá conta da formação do sujeito enquanto homem, excluindo a mulher desse ideal de sujeito, mas construindo outros modelos de identidade a serem subjetivados por esta a partir dos seus valores e pretensões. De que forma, portanto, o discurso da ciência construiu a identidade feminina? A partir do século XIX, momento de organização do pensamento ocidental e fragmentação dos saberes, o discurso científico foi construindo, através da linearidade, a história da humanidade. Colocando à experiência e à prova as descobertas ocorridas, elaboraram a história de seus antepassados, nomeando e classificando o primeiro período histórico de pré-história e seus antepassados de hominídeos, no qual estudavam a evolução humana ao longo do tempo. Os termos hominídeo, humano e humanidade derivam do significante homem, que passou a designar homens e mulheres, ou seja, passou a designar a espécie humana, homogeneizando os lugares que deveriam ser diferentes. Essa construção apresenta-se como natural e não como uma elaboração discursiva localizada no século XIX. Essa generalização aponta, nessa relação binária, a superioridade masculina em detrimento à inferioridade feminina. A partir das experiências cotidianas, essa generalização foi se naturalizando e sacralizando-se como verdadeira e incontestável, pois o próprio discurso já havia criado um lugar hierárquico para essa construção. Portanto, definiuse quem possui o poder e quem deve obedecer.
  • 40. 39 Baseada na concepção de que os discursos possuem intencionalidades, Costa (2001, p. 33) aponta: [...] Quando se descrevem, explicam, desenham ou contam coisas, quando variadas contextualidades falam sobre pessoas, lugares ou práticas, estes estão sendo inventados conforme a lógica, o léxico e a semântica vigentes no domínio que produz o discurso. Desta forma, foi a partir da linguagem que a mulher foi nomeada e classificada como diferente. O discurso da ciência elaborou e elabora várias imagens de mulher, distintas das do homem, a partir das diferenças biológicas, e acredita numa diferença de racionalidade, de sentimentos, de moral, de sabedoria e de desejos perante as distinções sexuais. O discurso de ser masculino34, em uma relação alteritária, pontuou e pontua o que o seu outro tem de diferente, a fim de naturalizar seu lugar de superioridade em contraponto ao lugar de ser mulher como inferior, frágil, submissa e, sobretudo, mais emocional que racional. Nessa perspectiva, instaurou-se uma relação de poder35 tanto do ponto de vista discursivo quanto cultural. Observo que as identidades, seja qual for o binarismo, são construções discursivas que denotam uma relação de poder entre o eu e o outro, que não pode ser dissociada da política de verdade. Sendo assim, Foucault (2005, p. 179-180) afirma: [...] em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que não podem se dissociar, se estabelecer sem uma produção, uma circulação e um funcionamento do discurso. Não há possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta dupla exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade. A partir das verdades científicas e sacralizadas, foram e são criadas estratégias de regulação e de contenção da alteridade na tentativa de enquadrar esses outros às identidades fixas, homogêneas, ontológicas, imutáveis, etc, pois o outro, seja a mulher, o negro, o homossexual, o drogado, o idoso, o índio, o pobre, o marginal, o aleijado, etc., é sempre visto como o que causa a perturbação, o que foge à regra do normal. Pensando no poder do discurso e nas formas de adequação às identidades, discutirei como os discursos mitológico e religioso construíram a identidade feminina baseada na 34 Estou me referindo ao que Michel Foucault chama de História dos Saberes. Estou trabalhando com a noção de poder na perspectiva genealógica de Michel Foucault, na qual este analisa o poder e como ele atua no campo da moral, da política, do conhecimento, do desejo, etc. 35
  • 41. 40 contradição entre o bem e o mal; como o discurso moderno construiu a identidade feminina baseada na fragilidade e inferioridade e como esses discursos circulam na sociedade. 3.1 DOS DISCURSOS RELIGIOSOS À CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE FEMININA NORMAL Para se pensar na construção da identidade feminina, é necessário atentar para vários discursos que ora se entrecruzam e ora se distanciam. O fato de as mulheres serem vista, ao longo da história, como seres de cabelos longos e idéias curtas36, um ser incompleto e mutilado37, um ser de mente e alma confusas, incompreensível e inconstante38, etc., não significa que assim sejam por natureza ou por essência. Essas colocações não são dados da natureza e nem devem ser vistas como algo posto do nada. Ao longo da nossa história, os discursos moldaram um corpo a ser vigiado e disciplinado, pois o feminino, nessa trajetória, sempre simbolizou o medo e a perturbação. Para o discurso mitológico, a perturbação vinda de uma figura feminina é personificada por Pandora e, para o discurso religioso, essa figura é personificada por Eva. Ambas simbolizam a desobediência, a curiosidade, a sedução, a fraqueza por terem caído em tentação, etc. Fundamentado no mito da criação do mal no mundo grego, Pandora se inscreve como uma identidade reveladora da negatividade, pois foi criada por Zeus39 como um castigo a Prometeu40 e aos homens. Depois que Prometeu desafiou Zeus, dando-lhe os ossos cobertos de gordura do sacrifício de animais, o ser humano foi privado do fogo, que simboliza a sabedoria. Porém, Prometeu mais uma vez engana Zeus e rouba o fogo sagrado para o homem. Como forma de castigo, Zeus cria a mulher, símbolo do mal. Segundo Hesíodo, no século VIII a.C. (apud LAURIOLA, 2005): 36 Frase do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Idéia do século XVIII, que afirmava que a mulher é um homem invertido. Porém, inferior anatomicamente. 38 Idéia que circula nas subjetividades e discursos, principalmente, masculinos. 39 Divindade suprema do Olimpo, era conhecida como o deus dos deuses e dos homens. 40 Titã que simbolizava a humanidade e a sua vontade por conhecimento. A palavra Prometeu significa em grego “previdente” ou “prudência”, mas também possui um sentido de enganador, embusteiro. 37
  • 42. 41 Ele [Zeus] fez este lindo mal para equilibrar o bem, Então ele a levou aos outros deuses e aos homens ... eles ficaram boquiabertos, deuses imortais e homens mortais, quando eles viram A arte de seduzir, irresistível aos homens. Da sua raça vem a raça das mulheres fêmeas, Esta raça mortífica e população de mulheres, Uma grande infestação entre os homens mortais, Que vivia com riqueza e sem pobreza. Acontece o mesmo com as abelhas nas suas colméias Alimentando os zangões, conspiradores maus. As abelhas trabalham todo dia até o pôr do sol, Ocupadas o dia inteiro fazendo pálidos favos, Enquanto os zangões ficam dentro [da colméia] nos favos vazios, Enchendo o estômago com o trabalho dos outros. Foi assim como Zeus, o alto senhor do trovão, Fez as mulheres como uma maldição para os homens mortais, Conspiradoras do mal. E ele juntou outro mal Para contrabalançar o bem. Qualquer um que escape ao casamento E à maldade das mulheres, chega à velhice Sem um filho que o mantenha. Ele não precisa de nada Enquanto viver, mas quando ele morre, parentes distantes Dividem seus bens. Por outro lado, quem se casa Como é mandado, e tem uma boa esposa, compatível, Tem uma vida equilibrada entre o mal e o bem, Uma luta constante. Mas se ele se casa com uma mulher abusiva Ele vive com dores no seu coração o tempo todo, Dores no espírito e na mente, o mal incurável. Porém, o advento do mal no mundo grego não se dá apenas com a criação de Pandora, mas também com a sua atitude de abrir a caixa ou jarra que carregava todos os males do mundo. Pandora, num ato de curiosidade, abre a caixa e deixa sair todas as desgraças que vieram abater o homem: a doença, o trabalho, o sofrimento, o egoísmo, etc. Ao perceber que cometera um erro, Pandora fecha a caixa, mas o que resta é a esperança. O discurso mitológico inscreveu no corpo da que possui todos os dons a contradição. Ao mesmo tempo que é portadora do mal inevitável, ela conserva na sua caixa a esperança. Até hoje circula nas nossas subjetividades, principalmente masculina, a alma feminina como o desconhecido, pois carrega em si o inesperado e o contraditório. Na tradição judaico-cristã, temos a imagem de Eva, que já denota um sentido de inferioridade no momento da sua criação, pois foi criada da costela de Adão. Assim, não representaria a imagem divina como Adão, mas sim a semelhança divina. Eva surgiu no mundo para ser a companheira de Adão, porém se revelou como o mal pela sua desobediência, curiosidade e ao se entregar às tentações. A simbologia do ato de comer o fruto proibido não se apresentou apenas como mera curiosidade, mas como uma vontade de saber. Ao comer o fruto proibido, o mundo do bem e