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Chicos
N. 38
Julho 2013
e-zine de literatura e ideias
de Cataguases – MG
Capa
Detalhe doAzulejo As Fiandeiras de Portinari - fotode Vicente Costa
Editores
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores desta edição
Adelto Gonçalves
Alberto Acosta
Antônio Jaime
Antônio Perin
Eltãnia André
Emanuel Medeiros
Flausina Márcia da Silva
Ronaldo Cagiano
Ronaldo Brito Roque
Sebastião Nozza Bielli Lotti
Fale conosco em:
cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
http://chicoscataletras.blogspot.com/
Um dedo de prosa
Esta é a edição número 38 de 31 de julho de 2013.
Estamos em festa. José Antonio Pereira, um dos nossos editores lança no dia 10
de agosto de 2013 seu livro de crônicas Fantasias de Meia Pataca. Algumas de suas
crônicas apareceram em primeira mão aqui no Chicos.
Abrimos a edição com Kajal Ahmad, uma interessante poeta curda, um dos povos que
também perdeu seu território. Outra poeta presente é a nossa amiga Flau.
Ronaldo Cagiano, em seu incrível trabalho de mapeamento da poesia contemporânea
argentina, nos presenteia com a tradução de César Cantoni.
A poesia cabo-verdiana se apresenta com Corsino Forte, como também “Funchal” do
poeta sueco Tomas Tranströmer.
Numa tradução de Alberto Acosta publicamos em espanhol o poema Cataguases do
Ascânio Lopes.
Adelto Gonçalves apresenta um magnifico texto sobre a poesia de Claudio Sesín, grande
amigo, divulgador da poesia brasileira na Argentina e colaborador aqui no Chicos.
Eltânia André em seu caminhar pela Itália nos fala de Dante e sua Divina Comédia.
Antônio Jaime em O nome da Rosa em JF, nos fala das peripécias nada ortodoxa dele e
da sua trupe teatral em um seminário em Juiz de Fora; mais adiante, noutro texto fala
do belo livro de Fernando Abritta recentemente lançado.
Ronaldo Brito Roque em Zoom passeia pelas artes em Cataguases.
A última entrevista de Manuel Bandeira, concedida a Pedro Bloch, é incrível e bela,
compartilhamos com vocês.
Em setembro a peça A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt inicia carreira em
Cataguases.
E muito mais vocês encontrarão por aqui. Desfrutem!
Uma boa leitura para todos.
Os Chicos
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Cataguases,
Biblioteca Ascânio Lopes e a Livraria Casa do Livro
convidam para o lançamento do livro
Fantasias de Meia Pataca
de José Antonio Pereira
Dia - 10.08.2013 às 19.30hs
Sumário
KAJAL AHMAD
Direções e outros poemas 03
FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA
Feliz Ano Treze 10
CÉSAR CANTONI
Jantávamos esta noite e outros poemas 11
CORSINO FORTES
Emigrante 13
EMANUEL MEDEIROS
Inventar 16
ANTÔNIO PERIN
As reticências do tempo e outro poema 17
ASCÂNIO LOPES
Cataguases 19
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
Poema que não realizei 21
TOMAS TRANSTRöMER
Funchal 22
ANTONIO JAIME
Nome da Rosa em JF 23
JOSÉ ANTONIO PEREIRA
Uma carta e seus destinos 24
ELTÂNIA ANDRÉ
Antes de ler “Divina Commedia” 25
ADELTO GONÇALVES
Claudio Sesín O poeta dos ocasos catamarquenhos 27
EMERSON TEIXEIRA CARDOSO
Carteira de cronista 29
ANTONIO JAIME
Sobre O Caso da Menina que perdeu a voz 30
RONALDO BRITO ROQUE
Zoom em Cataguases 31
SEBASTIÃO NOZZA BIELLI LOTTI
Propriedade particular 33
UMA ENTREVISTA
A última entrevista de Manuel Bandeira 34
TEATRO EM CATAGUASES
A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt 38
Fotos de Vicente Costa
As Fiandeiras – Candido Portinari
Painel em azulejos
Kajal Ahmad
É uma poeta que escreve em curdo.
Nascida em Kirkuk, no Curdistão iraquiano em 1967,
Kajal Ahmad começou a publicar sua poesia na idade de
21 anos. Ela já publicou quatro livros: Benderî Bermoda
(1999), Wutekanî Wutin (1999), Qaweyek le gel ev da,
(2001) e Awênem şikand , (2004). Kajal ganhou uma
considerável reputação pelo seu trabalho admirável,
comovente e desafiador em todo o universo da língua
curda. Seus poemas foram traduzidos para o árabe,
turco, norueguês e inglês.
Direções
Sempre que ele estava nas montanhas,
onde quer que ele tirasse os sapatos,
eles sempre apontavam para sua cidade
mas nunca pensou que isso significasse
que sua terra natal seria liberada.
Agora que ele está na sua cidade,
onde quer que ele deixe os sapatos,
eles apontam para terras além da sua
mas nunca ele sonha que um dia
poderá vir quando, sem ver
a miragem de que no exílio sempre vê,
sem qualquer direção dos sapatos,
ele viajará através do coração de seu país,
a loja o mito na caixa de madeira de sua avó
e, no porão de uma casa feliz,
fechar muitas portas coloridas sobre ele
como as portas de suas histórias de infância.
Pássaros
De acordo com a mais recente classificação, curdos
agora pertencem a uma espécie de ave
é por isso que, ao longo das rasgadas, páginas amareladas
da história, eles são nômades marcados por suas caravanas.
Sim, os curdos são pássaros! E mesmo quando
não há nenhum lugar à esquerda, não há refúgio para a sua dor,
voltam-se para a ilusão de viajar
entre o calor e o frio
de sua terra natal. Então, naturalmente,
eu não acho estranho que os curdos possam voar.
Eles vão de país para país
e não podem realizar seus sonhos de sedimentação,
de formar uma colónia. Eles não constroem ninhos
nem mesmo em seu pouso final
eles visitam Mewlana para consultar a sua saúde,
ou curvar à poeira no vento suave, como Nali. *
* Refere-se a uma famosa linha de Nali, poeta do século 17:
Eu sacrifico-me a sua poeira - você vento suave!
Mensageiro familiarizado com toda a Sharazoor!
Gravidez
Ao contrário de seus amigos,
ela não pode se gabar de uma cintura fina.
Seus quadris não balançam e balançam.
Ela não se atreve
a montar a roda
e o navio de Serchnar
como fazia quando ela estava noiva.
Ela está grávida
por isso que ela é mais bonita do que as meninas a sua volta,
mais bonita do que os homens que, à tarde
passar por seu lamento.
Entre as mulheres do bairro,
ela parece mais o amor-golpeado
e mais animados.
Olhando para ela
faz muito tempo para melancia.
E você aprende a sonhar
do choro de um bebê ou o riso
como você tricotar um meia
ou jumper um pouco.
Sua cintura não é tão fina
como uma harmônica mais.
O tempo para saias
se expande
e para jeans
desaparece.
Batom está agora ignorada
juntamente com saltos altos e espelhos.
Seus tempos áureos por usar
vestidos de baile e maiôs é longo.
Agora ela conversa
ao seu próprio ventre.
Sem saber de nós ou de si mesma.
Que Deus torne-o bom,
esta busca de nove meses
nas estradas da vida e da morte.
Que Deus faça-o bom,
este destino que as mulheres enfrentam.
Mais generosa do que Miriam
Marias do meu país! Quando a morte se torna uma necessidade,
Vamos enfrentá-lo primeiro mães e não os nossos filhos.
Nossa nação está tão solitária
como o pai Adão foi
antes da fértil
chegada de Eva a mãe.
Nossa nação está solitária
e eu sou solitária.
O tédio cresceu
como fungo no meu coração
mas eu não estou cansada.
Meu sorriso, algumas vezes foi
como pão quente na boca,
agora ele enrola nas bordas.
Ah, os poetas, eu tenho sido
como uma mulher grávida
mas eu não aborto meus poemas
nem tem poesia abortada de mim.
Jesus, quando é que você vem?
Eu estou em pé no Sirat,
a ponto de cair da ponte.
Eu chorei tanto
na casa do amor e da poesia
que o conjunto de minhas lágrimas
é coberto de algas.
Com ou sem poesia, eu estou esperando.
Esperando para atravessar, esperando por você.
Falando em vão e quem sabe
se é tudo sobre mim ou sobre a terra?
Depois de uma onda de náusea,
Você caiu da ferida de minha boca.
Você era uma folha de luz.
Após seu nascimento
palavras sangraram e nunca mais pararam.
Sangue fez de mim uma poeta,
a louca poeta Miriam.
Antes de você nascer, eu vim
e construí em mim uma ponte
entre a terra do meu coração
e o céu do seu crânio.
(O sangramento ainda continua -
será que para sempre?) Naquele tempo,
a cruz não o tinha encontrado ainda.
Ela procurou por toda parte.
Se eu soubesse que seria indelicado,
ali mesmo em seu nascimento,
Eu teria lhe dito para voltar
para o útero seguro de sua mãe.
Se eu soubesse que iriam chamá-lo
o Filho de Deus, eu nunca
teria deixado você vir em primeiro lugar.
Como Deus pode ser o pai do meu filho
se eu nunca passei uma única noite
em seus braços? E se eu tiver,
por que me chamar a Virgem Mãe?
*
Diga-me, luz dos meus olhos!
quem você acha que é a mais pura,
eu ou Miriam?
Quem é mais no amor?
É a ferida no meu coração
mais profunda do que a dela?
Não é para eu dizer
mas você, a luz dos meus olhos,
ama a cantora, Jesus, me diga!
Não me chame de Miriam
você vai machucar o meu orgulho
e meu coração vai quebrar.
Certamente, como uma mãe, eu sou gentil.
Miriam e eu diferimos no seguinte:
se eu fosse incapaz de comprar
sua vida com a minha.
Eu preferiria ficar cega a manter
meus olhos eternamente abertos.
Se eu não podia ser crucificada
em seu lugar, como eu poderia sentar-me,
complacentemente em um canto?
E nisto, também, que diferimos:
ao contrário dela, eu não poderia desistir de você,
não para ninguém, nem mesmo a Deus -
o meu coração não me deixaria.
Deus não é a mãe cujo coração
queima com piedade e que se aflige
com a perda de um filho.
A maternidade é uma triste sepultura
me tornando uma mãe
enquanto eu ainda era virgem.
Desde que dei à luz Cristo
você duvida de minha virgindade,
eleva suas facas, eu não me importo.
Jesus de areia ... Jesus, pai ...
O que estou fazendo aqui,
se não para expor as mentiras do mundo?
Eu não vou esperar por você para morrer.
Só desta vez, meu único filho,
em vez de manter sua cinza
e guitarra de luto,
abraçadas ao cadáver de sua mãe.
Eu vou morrer primeiro, eu vou ter certeza disso.
Eu não vou viver para ver o dia
que a sua morte estará no meu colo.
Versão Antônio Perin
Flausina Márcia
Flausina Márcia da Silva poeta nascida em
Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na
Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros
livros: Vagalume e Sua Casa Minha Cruz.
Feliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano Treze
Esse ano, que a chuva não recebeu,
entrado seco, vai querer lágrimas.
Esse ano, ai, que não amadureceu,
sofre verde de desencanto amarelo.
Esse ano joga pedras, búzios, cartas,
embaralha presságios, confunde a razão.
Esse ano, bem que o calendário podia
passar sem ele,
dar a volta nele,
desmenti-lo.
Esse ano, que eu não pedi aos deuses,
chega pagão, deve tudo pra todo mundo.
Esse ano, ai, com essa terminação,
é sem reticências, é tresandado.
Esse ano, bem que vou gostar de
passar sem ele,
dar a volta nele,
desmenti-lo.
César Cantoni
Nasceu em La Plata (1951), Argentina, onde vive. É
autor, dentre outros, de Confluências (1978), Linaje humano
(1984), Continuidad de la noche (1993), La salud de los
condenados (2004), Intemperie e otros poemas (2006) e El fin
ya tuvo lugar (2012). Seus poemas foram traduzidos para o
inglês, francês, italiano e catalão. Para o professor, escritor e
ensaísta Osvaldo Picardo, em César Cantoni “o poema desata a
consciência dos fenômenos da contemporaneidade que, em sua
manifestação concreta, contradizem os grandes relatos da
história e da metafísica.” Segundo Luis Benítez, “ao ler Cantoni,
as velhas e usadas palavras catellhanas parecem renovadas, mais
vigorosas, mais significantes que quando estão inseridas em
outros discursos.” Trata-se de um poeta cuja proposta estética
é ressonância de uma visão aguçada da realidade de seu país,
em cuja arte uma visão crítica (sem engajamento ou
sectarismo) não se afasta de uma pulsão lírica nem de uma
inquietação existencial e metafísica. Eis uma poesia de forte
conteúdo reflexivo e profunda imersão nos dilemas humanos,
pois como já reconheceu José Di Marco, “o realismo em
perspectiva faz da poesia de Cantoni um ato político. Poesia
política, mas não panfletária, pedagógica ou moralizante.”
Jantávamos esta noite
a Néstor Mux
Jantávamos esta noite em uma taberna
quando uma ratazana desceu do teto,
atravessou rapidamente o salão
e fugiu pela porta da cozinha.
“É só uma entre tantas”, disse o poeta Néstor Mux,
enquanto a menina da mesa vizinha
saltava e gritava horrorizada
em um surto de histeria.
Quem sentia mais pavor? A menina
ou a ratazana em sua fuga desesperada?
Pouco acrescenta saber. Vivemos em um mundo estranho,
envolvido pela desconfiança coletiva.
Veterano das Malvinas
a Gustavo Caso Rosendi
e Martín Raninqueo
Não é estranho que uma bomba inimiga
me desperte no meio da noite,
enchendo de fragmentos minha lembrança.
Felizmente, a mulher que dorme comigo
tem um ar sereno e protetor
e seu contato liberta-me do pesadelo.
Entrincheirado nos lençóis
Afundo, então, meu rosto, no sulco de seus peitos
e novamente durmo como um menino.
Até que outra bomba venha despertar-me.
No dia de São Patrício
No Dia de São Patrício,
enquanto bebo com os irmãos irlandeses
que habitam este solo – mulheres e homens
convocados pelo padroeiro da ilha –,
e brindo em honra dos poetas caídos
nas cruzadas de libertação,
começando pelo bravo Pádraig Pearse,
eu te declaro minha guerra sem quartel e para sempre,
Inglaterra.
Às vezes me pergunto
Às vezes me pergunto
se de tanto ler Williams
não acabarei escrevendo como Williams.
A mim, no fundo,
gostaria escrever de um modo pueril,
e inocente como Cummings.
Quanto ao resto, não se incomodaria
que alguém dissesse alguma vez
que escrevo como Sandburg;
Tradução Ronaldo Cagiano
Corsino Fortes
Corsino António Fortes (São Vicente, 1933) é
um escritor e político cabo-verdiano.
É licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa (1966).
Integrou vários governos na república de Cabo Verde, país de que
foi Embaixador em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores
de Cabo Verde (2003/06). Autor de obras como Pão e Fonema
(1974) ou Árvore e Tambor (1986), a sua obra expressa uma nova
consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da
tradição cultural daquele arquipélago.
Emigrante
Todas as tardes o poente dobra
o teu polegar sobre a ilha
E do poente ao polegar
cresce
um progresso de pedra morta
Que a Península
Ainda bebe
Pela taça da colónia
Todo o sangue do teu corpo peregrino
Mas quando a tua voz
for onda no violão da praia
E a terra do rosto E o rosto da terra
Estender-te a palma da mão
Da oral maritima di ilha
De pão & pão feita
Ajunturás a última fome
à tua fome primeira
Do alto virão
rostos-e-proas-da-não-viagem
Assim erva assim mercuro
Arrancar-te as cruzes do corpo
O grito das mães leva-te
agora
À sétima esquina
onde a ilha naufraga
onde a ilha festaja
A sua dor de filha
E a tua dor de parturiente
Que toda a partida É potência na morte
todo o regresso É infância que soletra
Já não esperamos o metabolismo
Polme de boa fruta fruta de boa polpa
A terra
aspira
teu falo verde
E antes que teu pé
seja
árvore na colina
E tua mão
cante
lua nova em meu ventre
Vai E planta
na boca d’Amílcar morto
Este punhado de agrião
E solver golo a golo
uma fonética de frescura
E com as vírgulas da rua
com as sílabas de porta em porta
Varrerás antes da noite
Os caminhos que vão
até às escolas nocturnas
Que toda a partida é alfabeto que nasce
todo o regresso é nação que soletra
Aguardam-te
os cães e os leitões
da casa de Chota
que no quintal emagrecem de morabeza
Aguardam-te
os copos E a semântica das tabernas
Aguardem-te
as alimárias
amordaçadas de aplauso e cana-de-açúcar
Aguardam-te
os rostos que explodem
no sangue das formigas
novos campos de pastorícia
Mas
quando o teu corpo
sangue & lenhite de puro cio
Erguer
Sobre a seara
A tua dor
E o teu orgasmo
Quem não soube
Quem não sabe
Emigrante
Que toda a partida É potência na morte
E todo o regresso É infância que soletra
Emanuel Medeiros
Emanuel Medeiros Vieira nasceu em Florianópolis, SC, em
1945. Formado em Direito pela UFRGS (1969), foi
cineclubista, professor, crítico de cinema, editor, vendedor de
livros, jornalista e funcionário público. Ativo militante da
política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião da
Fundação Pedroso Horta.
Redator de discursos parlamentares, foi membro do conselho
editorial do jornal “Movimento”, e correspondente em SC do
semanário “Opinião”. É detentor de diversos prêmios
literários nacionais. Tem 17 livros publicados.
Inventar
Para Eduardo Dutra Aydos
“Escrevemos/Porque sabemos/que vamos morrer.//Escrevemos/porque não sabemos por quê.”
(“Pedra” – Francisco Marcelo Cabral)
Quisera inventar o tempo
seremos todos esquecidos –
o oblívio no final da estrada.
Distraímos-nos comprando coisas.
Mal fechamos os olhos
funda-se o esquecimento?
Sumimos do mundo.
(Antes: volúpia para ser celebridade, sonhando com vidas napoleônicas.)
Ai dos danados que resistem aos apelos e rompem com o dogma.
Quisera inventar o tempo.
Desterro!
“Vida é o que está acontecendo enquanto você está ocupado em fazer grandes planos”
(“Life is what happens to you while you’re busy making other plans” – John Lennon
(em tradução livre)
Ele – o Tempo –
Senhor do Destino – nos engole.
Não: desisti de inventar o tempo.
Basta o dia – levando à eternidade.
Mas faça sempre com Fé.
Antônio Perin
Nascido em Itaobim, Vale do Jequitinhonha,
migrou para Cataguases, onde virou baiano, viveu alguns anos
no Rio, morou um bom tempo em São Paulo, e, voltou para
Cataguases, onde vive e escreve. Com sua poesia, colabora e
participa de nossas publicações aqui no Chicos.
As reticências do tempo
Pendurado na parede
a presença física
das horas solidifica
o silêncio do tempo.
Em seu repetitivo
e metálico ruído
transforma o tempo
em algo circular.
Dita o ritmo da vida
lembrando
a cada tic e a cada tac
o princípio do fim.
Ave Rosália
Rosália
lia
lia
e relia
lia orações de fé
num rosário ao santo
Antônio
esquecendo que santo
é o Lucas.
Ave Rosaria!
Quem cantaria
uma rosa
numa ária?
Só
em transe
numa fuga de Além
lá da Viçosa feito rosa ria.
Acorda Rosália
antes do último
acorde da cantoria.
Ascânio Lopes
Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá
MG) em 1906, vindo com cinco meses para Cataguases. Em
1925 foi para Belo Horizonte, onde estudou Direito. Morreu em
1929, aos 22 anos, o que decretou o fim da revista Verde.
Publicou apenas Poemas cronológicos (ao lado de Enrique de
Resende e Rosário Fusco). Em 1967, sua obra foi organizada
por Delson Gonçalves Ferreira no livro Ascânio Lopes: vida e
poesia. Também foi publicada em 1998 a antologia Ascânio, o
poeta da Verde, organizada por Joaquim Branco. Em 2005, Luis
Ruffato organizou e publicou Ascânio Lopes, todos os
caminhos possíveis onde incluiu poemas, ficção, artigos,
comentários, resenhas, além de fotos do poeta.
Cataguases
Ni Belo Horizonte, colcha de retazos iguales,
ciudad europea de calles rectas, árboles correctos,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, siempre bonitos;
Ni Juiz de Fora. Ruido. Rumor.
Pitos. Klaxons.
Ciudad inglesa de cielo humoso, lleno de chimeneas negras;
Ni Ouro Prêto, ciudad muerta,
Bruges sin Rodenbach,
donde estudiantes pasatistas continúan la tradición de las cosas
[ que ya olvidamos;
Ni Sabará, ciudad reliquia,
donde no se puede tocar, para no derrumbar el pasado
[ ordenadito;
Ni Estrêla do Sul, que sueña con tesoros,
tesoros en los cascajos extintos de su río barroso;
Ni Uberaba, ni, ni, ciudades arribistas de gente que no
[ pretende quedarse.
No-o! Cataguazes... Hay cosas más bellas y serenas ocultas
[ en tus flancos.
En tus calles juega la inconciencia de las ciudades
que nunca fueron, que no piensan ser.
No sabes, no sé, nadie comprenderá jamás lo que
[ deseas, lo que serás.
No eres del pasado, no eres del futuro; no tienes edad...
Sólo se que eres
la más minera ciudad de Minas Gerais...
Ni geometría, ni estilo europeo, ni invasión americana
[ de bungalós modernos.
Derniecri
Tus casas son largas casas mineras hechas en previsión de
muchos huéspedes.
No hay en ti el terror de las ciudades plantadas en la selva virgen.
Ni el rugir de los ómnibus atrasados, llenos de gente con prisa.
Ni los dísticos de aquí estuvo, aquí sucedió.
Ni el tintín áspero de los panaderos.
Ni la bocina incómoda de los tintoreros.
Tus lecheros aún llevan la leche en borricos,
los panaderos dejan el pan en la ventana (ciudad minera).
Tu amanecer es suave.
Qué alegría tener sólo gente conocida, hace que tu habitante se vuelva
[ a saludar a todos los que pasan.
Delicia de no encontrar extranjeros de mirada aguda, experta
[ mano, que sospechan riquezas en las tierras.
Alegía de los Fordes jugando (son dos) en la plaza.
(Después dormirán juntos en un mismo garaje).
Jacaré !
João Arara!
João Gostoso !
tus tipos populares.
La muchachada les tira piedras y ellos se vuelven imprecando.
Rondas alegres de niñas en las calles, por las tardes, sin peligro
[ de vehículos,
papagayos que se estorban en los cables de luz, globos que suben,
fogatas obligatorias en las fiestas de llegada del jefe político.
Jardines donde niñas ariscas pasean media hora sólo antes
[ en el cine.
Aire tibio y sensual de voluptuosidad hermosa que vibra
en tus tardes lluviosas, cuando las goteras mojan a los
[ transeúntes
y golpean isócronas en los paseos frustrados.
Hay en ti la delicia de la vida que pasa porque vale la pena pasar,
que pasa sin darse cuenta, sin suponer que se va transformando.
En ti se duerme tranquilo sin guardias nocturnos.
Mas con el cricri de los grillos,
el ranran de los sapos,
el sueño es tranquilo como el de un niño de pecho.
Vale la pena vivir en ti.
Ni inquietud,
ni peso inútil de recuerdos
Mas confianza que nace de las cosas que no cambian bruscamente,
ni permanecen eternas.
Tradução para o espanhol de Alberto Acosta
Emerson Teixeira Cardoso
Poema que não realizei
Poema não realizado
É um caso de polícia
Interrogar a palavra
e encontrar uma pista
É caso que se resolva?
Contanto que se desista
contanto que se decida.
Pois é descendo no poço
No fundo do poço/vida
Poema que que já não se faz
menos que se investiga
e a dor é malograda
os poetas que o digam
pois quando vai poetar
na rima que o bendiga
vá o poeta buscar
a frase na sua escrita
o poema não achado
na alma que investiga
Tomas Tranströmer
Tomas Tranströmer é um poeta, tradutor e psicólogo sueco nascido em
Estocolmo em 15.04.1931.
Sua poesia tem uma grande influência na Suécia e em todo o mundo, sendo
ele o poeta sueco mais traduzido: os seus poemas estão traduzidos em mais
de trinta línguas. Recebeu numerosos prémios literários, como por exemplo
o Prémio Literário do Conselho Nórdico em 1990 e o Prémio Nobel da
Literatura em 2011.
Tranströmer iniciou-se na poesia aos 23 anos de idade. O seu primeiro livro
intitulava-se 17 dikter (17 poemas).
A maior parte da sua obra é escrita em verso livre, embora também tenha
feito experiências com linguagem métrica.
Foi psicólogo de profissão até 1990. Redigiu cerca de uma quinzena de obras
numa longa carreira dedicada à escrita.
Em 1990 foi vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou em
parte afásico e hemiplégico. Continuou a escrever e publicou três obras, como
O Grande Enigma: 45 Haikus.
Funchal
Na praia, o restaurante, qual simples cabana
levantada por náufragos. Muitos dão meia-volta ao
chegar à porta, mas não os pés de vento vindos do
mar. Num compartimento fumegante, um vulto, de
pé, frita dois peixes segundo uma antiga receita do
Atlântico: pequenas explosões de alho, azeite que
ensopa rodelas de tomate. Cada garfada diz-nos que o
oceano nos quer bem, é um canto a meia voz vindo do
profundo. Olhamos um para o outro, ela e eu. É como
subir por aquelas encostas acima, cobertas de flores
silvestres, sem acusar o menor sinal de fadiga. Já
vivemos tantas experiências juntos, recordamos nós,
até momentos de que não éramos especialmente
merecedores (como quando nos pusemos na fila para
dar sangue ao gigante do bem-estar — ele tinha
ordenado transfusões), acontecimentos que nos
teriam separados se não nos tivessem unido, e
recordámos casos que esquecemos juntos — mas que
não se esqueceram de nós! Foram pedras, umas
escuras, outras claras, pedras de um mosaico
delapidado. E agora sucede isto: os cacos que
esvoaçaram reúnem-se, o mosaico fica restaurado.
Fica à nossa espera. Da parede do hotel refulge um
design violento e terno, talvez seja até um rosto, não
conseguimos aperceber-nos tal a pressa com que nos
livrámos das roupas. À tardinha, saímos. A pata
enorme, de um azul-escuro, que é o cabo, parece ter
sido atirada assim para o mar. Entramos no
redemoinho de gente: encontrões amistosos, suaves
controles, toda a gente a falar com vivacidade o
idioma estrangeiro. “Ninguém é uma ilha.”
Fortalecemo-nos com os outros, mas também com
nós próprios. Com aquilo que, dentro de nós, o outro
não vê. Aquilo que tem o seu igual só em si mesmo. O
paradoxo mais profundo, a flor que brota do chão da
garagem, o ventilador voltado para o negrume
benéfico. Uma bebida efervescente num copo vazio.
Um altifalante que emite silêncio. Um atalho que fica
intransitável à medida que por ele avançamos. Um
livro que só pode ser lido nas trevas.
Antônio Jaime
Nome da Rosa em JF
Fosse eu um bom menino, teria ido estudar “pra padre”,
como diziam na roça. Mamãe e outras mulheres viviam
insistindo. Uma freira chegou a fazer uma apologia da
vida monástica, mostrando, ao final, uma foto de Pio XII
e dizendo que eu poderia chegar lá. Já padre Ernesto,
que, entre outras, me batizou, sequer tocava no assunto,
dizia que vocação tem que brotar da pessoa. O diabo é
que eu não sabia o que significa vocação, e tome culpa.
Em retrospecto, poderia ter sido proveitoso, no
mínimo, eu teria uma cultura clássica, que tanta falta
me faz. Feito um primo que chegou a usar batina, mas,
na Hora H, trocou-a por uma moça bonita e traz seu
grego, latim e outras sabenças na língua e na cabeça. É
juiz de direito e deu aos filhos a melhor educação,
maneira mais eficaz de resolver os problemas terrenos.
Estes, por sinal, são prioridade entre os protestantes,
cujos países são os mais eficientes, a começar pela
erradicação do analfabetismo, para todos lerem a Bíblia.
De forma que meu único contato com Seminário
foi quando passamos uma semana naquele que fica à
entrada de Juiz de Fora. Exibimos para os padres o
filme Francisco, arauto de Deus, de Roberto Rosselini e
umas coisas que fazíamos, inclusive um tal Romance
Louco, do qual não faço mais a menor idéia. Encenado
no morro atrás do prédio, onde mulher não podia
entrar, mas Dodoca, então futura senhora Paulo
Martins, líder do grupo, deu um jeitinho e participou.
Lugar de mulher, lá, era na cozinha. Também deram
uma namoradinha, morro acima, por entre as árvores e
houve outras heresias. Coisas de jovens, Deus perdoa.
Da parte deles, padre Lara tocava órgão e disse que este
antes fora metodista, mas se converteu. Uns noviços
tocavam numa bandinha, pintavam quadros sacros e
havia um poeta, de olhar beatifico. “A floresta é linda/ao
amanhecer”, um de seus versos. Um deles me deu uma
carona em sua lambreta e esta não queria pegar. Depois
de várias tentativas, soltou um sonoro “Merda!”, mas
bateu incontinenti na boca e corrigiu: “Jesus!”. E a
lambreta pegou.
No vigor da juventude, e rigor do inverno,
mergulhávamos às seis da manhã numa piscina natural,
água da montanha, estupidamente gelada. Já a cerveja,
feita lá mesmo, segundo receita holandesa, era sem
gelo. Fumavam cigarros de palha e mantinham um
viveiro de cobras que pegavam para enviar ao Butantan.
Não participamos de ofícios religiosos e depois
soubemos que o da lambreta também trocou a batina
por uma mulher.
O mais impressionante, lá, mistério dos mistérios
era o fruto proibido da biblioteca deles, um livro da
Idade Média, envelopado e costurado em couro, só
poderia ser aberto com o nihil obstat do Vaticano. O que
poderia inspirar a Umberto Eco um novo O Nome da
Rosa. A mim, lembrou “... et antiquum documentum...”,
verso de Tantum Ergo, o cântico dos cânticos
gregorianos, creio que anterior ao ano 1000. Era o hino
que mais me aproximava de um estado de espírito, por
assim dizer, elevado, o que só se sente diante da grande
arte.
Daí, concluo: a Igreja teve grandes artistas a seu
serviço, em música e artes visuais, e os dispensou. A
liturgia virou pagode, azar da humanidade.
José Antonio Pereira
Uma carta e seus destinos
Atravessou a praça,
absorto, cabeça no desastre da
véspera. Tudo errado.
Planejara detalhe a detalhe.
Comprara até um botão de
rosa. A rosa, como ele, sofreu
com a cena. Foi esmagada pela
mão esquerda. Seus espinhos,
reagindo à violência,
sangraram-na em vários
pontos.
Uma buzina, um palavrão, vê-se
no meio da rua. Volta, senta-se
em um banco da praça vazia.
Uma folha de amendoeira, ao
vento, cai aos seus pés, olha-a
detidamente. Forma, cor,
volume, se soubesse desenhar?
No banco uma folha de papel
contida em suas dobras,
vincadas com esmero. Abre-a.
É uma carta. Linhas de uma
escrita suave, letra de calígrafo.
Percorre-a, linha a linha, sem
se atinar ao texto. Quem seria o
autor? Como seria o dono de tal
mão? Mão hábil, grande
desenhista, não seria um
oriental?
O gosto pela delicadeza da
escrita japonesa o leva a
imaginar o nanquim secando
no papel arroz. Dobra a carta
novamente, coloca-a no mesmo
lugar. Volta ao seu infortúnio.
Não relevaria mais uma
traição...
Não era a primeira vez que a via
no portão aos beijos com outro.
A paixão toma o outro rumo.
Chegara a hora de um ponto
final. Mas como? Nunca teve
coragem de encara-la olho no
olho.
Volta o olhar à carta, ela
permanece ali. Sedutora,
acaba o atraindo
definitivamente. Com medo
põem-se a ler. Seu rosto
avermelha-se a medida que
avança pelo texto. Tudo que
queria dizer estava ali. Escrito
com elegância e refinamento.
Sente-se fortalecido e toma a
decisão. E sai rumo ao seu
destino, sugerido pela carta.
Na capela mortuária dois
corpos são velados. Todos sem
entender, se indagavam sobre o
porquê de dois suicídios no
mesmo dia. De um lado, uma
mulher, tendo ao teu lado, de
pé, um choroso enamorado que
lamenta ter perdido a última
carta de sua amada. Doutro um
homem, em sua solidão
mortuária, tem sentada a certa
distância uma jovem que o
excomunga sem parar.
– Babaca, aquela carta foi
escrita por uma mulher. Ele
com certeza me traía com ela.
Covardão deve ter pedido a ela
para escrever a carta. Ainda
teve a petulância de dizer que
me amava e era fiel. Foi tão
covarde que sem coragem de
me encarar preferiu suicidar-
se.
Eltânia André
É uma escritora cataguasense, residente em São
Paulo SP. Autora dos livros de contos Meu nome agora é
Jaque (contos, Ed. Rona, BH, 2007) e Manhãs Adiadas (Prêmio
ProAC da Sec. de Cultura de SP 2011, Dobra Editora, SP, 2012).
Manhãs Adiadas, está entre os trabalhos selecionados pelo
prêmio Portugal Telecom 2013.
Antes de ler “Divina Commedia”
Fui a Florença não apenas pelo prazer
turístico ou gastronômico, mas como se houvesse uma
cisão entre passado e presente e eu pudesse separá-
los. Adentrar o mundo medieval, apesar dos entraves
psicológicos das grifes e dos casacos de peles que
abrigavam os corpos das turistas contra o frio intenso.
Um grito vindo de Trieste: “o presente imperioso
ressurge e ofusca o passado. Salve, Svevo! Eu queria
sentir talvez um cheiro, uma sensação, a magia de dar
de cara com o mundo dantesco. Estávamos, diziam: no
berço do Renascimento, eram os guias com suas
sombrinhas-tochas marcando o seu gado. Embutida
na experiência metafísica, o futuro da leitora: aquecia-
me mergulhar nas páginas da Divina Comédia. Eu e
ele, a sós. Florença, a capital da Toscana; Firenze, a
pátria de Dante.
Construíram o túmulo do poeta, mas ele não
retornou nem mesmo depois de morto, seus restos
mortais estão em Ravena. Na Basílica Santa Cruz, a
inscrição: “Onarate l’altissimo poeta” – “Honra ao
poeta mais exaltado”. A cidade surpreende, emociona.
Nas constantes idas e vindas para o Hotel Regina,
acomodação humilde, perdia-me pelas ruas da cidade;
andava sem rumo, buscando conhecê-la sem
estratégias, livre. Cadê Dante? Imaginava-me
tangenciando seus passos. Um dia, passei num
supermercado e comprei uma caixa de morangos,
poucos metros e estava novamente na Ponte Vecchio, o
rio Arno em sua imponência milenar, imaginei: o
encontro fugaz de Dante e Beatrice Portinari. Ela
acena a cabeça, os lábios escondem o sorriso aberto,
passos lentos; ele não reconhece-a de imediato, tão
miúda; tumulto de vozes e máquinas fotográficas; eu a
chamo, mas vã tentativa, logo perdem-se no espaço.
Dante, comprometido desde os doze anos com Gemma
Donati, viriam os filhos Pietro, Jacopo e Antônia, o
amor mítico destinado a eternizar-se nas palavras, no
livro, no Paraíso. Não adiantaria o reencontro naquela
tarde. Às vezes, parada para um chocolate quente ou
um bom vinho, sonhar, ver a orquestra de Toscana e o
Nanni Moretti com seu discurso em favor de si mesmo,
viagens de trem, Bolonha e tantas outras viagens
rápidas, neve em Siena. Ah, Siena! Mas, tinha que
voltar. Aqui estou!
Com o livro em minhas mãos, tradução de Italo
Eugenio Mauro, editora 34. Cheira a novo. Desafia-me.
Entretanto, Carpeaux diz-me com convicção: esta não
é como as outras epopeias, você lerá como se fosse
obra de hoje, não se intimide. Animo-me mais. Detive-
me, basicamente, nas orientações de Otto Maria
Carpeaux, e aula introdutória do professor Giuseppe
Mazzota da universidade Yale. Muitos já sabem que a o
nome original da obra era Comédia, o adjetivo
“divina” foi acrescentado posteriormente. No título já
está implícito que a viagem poderá ser permeada de
obstáculos, mas terá um final feliz. Pode-se considerar
que além de épico é também uma obra autobiográfica.
Mazzota sugere que pensemos no grande poema como
uma enciclopédia, como um círculo de conhecimento
que é estruturada para educar.
Autobiográfica, porque também diz do processo pelo
qual Dante passou para conhecer o mundo; o
significado de ética como a visão de si mesmo e do
mundo ao redor. É Dante que narra todo o
percurso, Paraíso, Purgatório e Paraíso, guiado pelo
poeta romano. Ele, homem político, imagina uma
viagem imaginária pelo território de Deus e se
propõe a falar sobre o percurso; a política e a
retórica, problemas vistos como de fala, de
argumentação.
Há contradições na biografia de Dante, vou
considerar a que mais me surpreendeu. Nasceu em
Florença em 1265, apesar de ter alegado nobreza, ele
era de família humilde. Envergonhava-se de seu pai,
que vivia constantemente envolvido com
empréstimos a juros, era um agiota daquela época,
por isso não citava o pai. Quando tinha oito anos de
idade, morre sua mãe e aos nove conhece Beatrice,
mulher que nunca mais esqueceu. Numa análise
psicológica, o seu amor pela vizinha tem o DNA do
amor maternal, o amor generoso; a protetora que
recorre a Virgílio para guiá-lo em sua viagem e a
representação do próprio Paraíso. Outro encontro
importante na história de Dante foi seu ingresso na
Escola de Florença. Foi lá que ele conheceu seu
inesquecível professor: Brunetto Latini; dele vai
falar para sempre, apesar de mandá-lo para o
Inferno – lugar onde revê o mestre querido.
Brunetto civilizou a cidade de Florença com a arte da
retórica, persuadia o Parlamento, um rétor, grande
orador, estudioso de Cícero e considerado um
Embaixador para Florença. Com sua morte, Dante
segue seus passos e entra para a política. Mazzota
considera esse o grande erro de Dante. Erro porque
ele tem que enfrentar duras batalhas partidárias
entre os Guelfos com total lealdade à Igreja –
divididos em duas facções: os brancos e os negros; e
os Gibelinos leais ao Império. Dante, a exemplo de
Brunetto, torna-se Embaixador para Florença.
Durante conflitos políticos, em 1302 vai ao encontro
do Papa em uma embaixada e numa mais volta à sua
terra natal. Exílio. Armações políticas levaram-no
ao exílio, banido da cidade pela qual tinha tanto
afeto, suas propriedades confiscadas, advertido que
seria condenado à morte, caso retornasse a
Florença. Na era medieval, o exílio era recebido
como uma punição extrema, severa, pois se
considerava que o valor da pessoa era proporcional
à posição que ocupava dentro da cidade. Se expulsa,
a pessoa não valia nada. Ele vaga de uma cidade a
outra. Apesar do sofrimento, o afastamento
compulsório também é seu renascimento. Longe de
sua cidade, ele defendia mais lealdade aos interesses
e filosofias partidárias. Não precisava mais ser um
Guelfo ou um Gibelino, podia ser o peregrino do
poema. Livre dos entraves internos dos partidos
políticos, podia almejar uma reflexão transcendente
sobre o mundo, sobre a política, sobre os problemas
da cidade. O exílio é a história do poema, o homem é
removido da sua cidade; em conseqüência passa a
enxergá-la melhor. A Divina Comédia é também um
projeto ousado de linguagem, numa época em que
tradicionalmente só se escrevia em latim, Dante
compõe sua obra em italiano, renovando a
literatura, impondo sua língua pátria. A esperança
de Dante de ver as portas de Florença abertas para
ele, novamente não se concretizou nem mesmo
quando concluiu a sua Comédia. Ele morre em
Ravena, sem conseguir retornar a Florença.
Agora, posso sentar-me na cadeira e seguir a partir
da página 29. A primeira palavra em letras
maiúsculas: I N F E R N O.
Adelto Gonçalves
Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e
Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, umGonzaga, umGonzaga, umGonzaga, um
Poeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999),
Barcelona BrasileiraBarcelona BrasileiraBarcelona BrasileiraBarcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo,
Publisher Brasil, 2002) e BocageBocageBocageBocage –––– o Perfil Perdidoo Perfil Perdidoo Perfil Perdidoo Perfil Perdido (Lisboa,
Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Claudio Sesín:
o poeta dos ocasos catamarquenhos
I
Quem estuda as letras hispano-americanas nas
universidades brasileiras, dificilmente, entra em
contato com a literatura contemporânea dos países
vizinhos. É o que se dá com a literatura argentina, da
qual se conhece Jorge Luis Borges (1899-1986), Adolfo
Bioy Casares (1914-1999), Julio Cortázar (1914-1984),
Roberto Arlt (1900-1942), Horacio Quiroga (1879-
1937), Oliverio Girondo (1891-1967), Juan José Saer
(1937-2005), Alfonsina Storni (1892-1938), Juan
Guelman (1930), Rodolfo Alonso (1934) e outros, mas
quase nada da geração mais recente. E não se diga que
seja uma geração muito jovem porque a maioria já
passou dos cinqüenta anos de idade.
Não se pode jogar a culpa sobre os professores. Se
hoje este articulista conhece uma boa parte de autores
argentinos só tem a agradecer ao seu orientador no
mestrado, o professor Mario Miguel González (1938-
2013), nascido em Alta Gracia, Córdoba, que sempre se
preocupou em falar dos poetas que apareciam na
Argentina, ainda que estivesse radicado no Brasil desde
que fora contratado pela Universidade de São Paulo
(USP) em 1968 e fosse brasileiro naturalizado. Com o
desaparecimento de González em fevereiro último,
perderam a literatura argentina e a hispano-americana
talvez o seu maior divulgador no Brasil.
Esse desconhecimento pode ser atribuído à
devastação cultural promovida pelas ditaduras
militares de direita que
infelicitaram tanto Brasil como Argentina e à crise
econômica que levou ao fechamento de vários
suplementos e revistas culturais tanto lá como aqui,
resultado talvez do empobrecimento intelectual das
classes médias. Na segunda metade da década de 1970,
o Versus, de São Paulo, jornal-tablóide cultural criado
pelo jornalista Marcos Faerman (1943-1999), era uma
espécie de filhote da revista de crítica cultural Crisis,
que circulou em Buenos Aires de 1973 a 1976 e teve em
sua direção, primeiro, Ernesto Sábato (1911-2011) e,
depois, o uruguaio Eduardo Galeano (1940), que, em
1976, acossado pelo regime do general Jorge Rafael
Videla, transferiu-se para Barcelona e de lá enviava
colaborações para o Versus.
Àquela época, diga-se de passagem, havia na
Argentina, ao contrário do Brasil, pelo menos alguns
empresários que tinham preocupações culturais e
praticavam o mecenato. Era o caso do empresário,
advogado e engenheiro-agrônomo Federico Vogelius
(1920-1986), que fundou a Crisis à época do retorno do
peronismo ao poder e a manteve até que a ditadura
militar o atirou ao cárcere por três anos, período em
que passou por várias sessões de tortura. Em 1986,
Crisis voltaria a circular, também por empenho de
Vogelius, mas por poucos meses. Já as despesas de
Versus saíam das economias domésticas de Faerman e
do seu salário como repórter do Jornal da Tarde, de
São Paulo.
II
Mas a que vêm estas reminiscências? Vêm a
propósito de dizer que, tal como no Brasil de hoje, há
uma poesia em grande efervescência na Argentina e que,
da mesma forma, é pouco conhecida porque,
decididamente, houve em ambos os países um
empobrecimento cultural avassalador. Entre os nomes
que constituem a nova poesia argentina, pode-se citar
Claudio Sesín, Eduardo Dalter, Arturo Herrera, José
Emílio Talarico, Sofía Vivo, Alejandro Acosta, Mirta
Popesciel, Daniel Chirom, Ricardo Ruiz, Elizabeth
Molner, Gisele Rodríguez e outros.
Um poeta que constitui um exemplo dessa nova
poesia argentina é Claudio Sesín (1959), praticante de
“uma poética renovadora, que retoma o projeto lírico,
sem abandonar o compromisso com a crítica social”, na
definição do poeta e crítico Ronaldo Cagiano, um dos
poucos que têm tido a preocupação de reconstruir as
pontes culturais com a Argentina e outros países latino-
americanos.
Poeta de Catamarca, região noroeste da Argentina,
vizinha a Oeste do Chile, de paisagens montanhosas e
crepúsculos deslumbrantes, cuja capital San Fernando
del Valle de Catamarca fica a mais de mil quilômetros de
Buenos Aires, Sesín sempre foi um poeta cercado pelos
cumes nevados da cordilheira e isolado em sua
província. Como se tivesse optado por viver um desterro
permanente e que, por isso, reluta em largá-lo. Até
mesmo quando sai de sua terra, a viagem é parte do seu
exílio. É o que diz no poema “El árbol” que faz parte de
seu livro El Signo del Crepúsculo (Buenos Aires,
Editorial Dunken, 2006):
Cuando uno se dirige a la frontera,
el viaje es una parte del exilio. (....)
(....) Sentir y hasta querer este destierro.
El hombre se acostumbra a la tristeza.
Um árbol infinito con ramas de tinieblas
ensombrece la ausencia, la apacienta.
Donde voy a llorar, entre qué brazos?
Siempre es llorar por uno,
este viajar en sombras por la niebla.
III
Como observa o poeta Arturo Herrera no prólogo
que escreveu para este livro, a poesia de Sesín é
exatamente oposta à retórica e contorções lingüísticas
que se vê em demasia na poesia pós-moderna. Para ele,
este livro deveria ter como título Libro de la
Permanencia ou apenas Permanencia porque “a
maioria das composições sustenta este conceito como
uma solitária pedra na
palma da mão aberta e ao seu redor se modulam as
distintas sensações do tempo”. O título do livro, no
entanto, provém do poema “El signo del crepúsculo”
que fecha a obra e que, em sua estrofe final, diz:
(...) Hoy me dejo llevar a la extensión del tiempo
y voy, un peregrino de mi suerte,
buscando qué lugar, qué detalle en penumbras
en quién sabe qué imagen, qué piel o qué tristeza,
esta felicidad por los ocasos.
De fato, a passagem do tempo parece fascinar o
poeta e constitui palavra-chave de El Signo del
Crepúsculo, ao lado do sentimento de perda que
acompanha o homem quando encara o ocaso de sua
vida e a inutilidade de acumular tesouros na terra,
como se pode ler também no poema “Los comediantes”:
(...) A veces creo que el tiempo que nos lleva
es un viejo gitano en sus caprichos,
que nos compra y nos vende con sus dichos,
y tan sólo nos deja en nuestras manos,
un sueño sin edad de algún verano
y el volver a vibrar del precipicio. (...)
IV
Claudio Sesín nasceu em Villa Dolores, Valle
Viejo, mas passou toda a sua infância em Pomán,
província de Catamarca. Foi em 1983 que começou a
publicar seus escritos em jornais de Catamarca,
especialmente poesia, prosa poética e relatos breves.
Desde 1986, integra o Movimento de Escritores pela
Liberação (MEL), de Córdoba, e em 1987 passou a fazer
parte da redação do periódico cultural El Cronopio,
daquela instituição. De 1996 a 1997, colaborou com as
revistas Cain e Gaia, de Catamarca, e Cultura Abierta,
de Buenos Aires.
Em 1993, publicou o seu primeiro livro de poesia,
La Barbarie, edição de autor. Em 1997, publicou o seu
segundo livro, El Círculo de Fuego, também edição de
autor. Em 2008, lançou El Libro de los Poemas
Casuales/O Livro dos Poemas Casuais (Buenos Aires:
Editorial Dunken) em edição bilíngüe com traduções
para o português por Anderson Braga Horta e Antonio
Miranda.
EL SIGNO DEL CREPÚSCULO, de Claudio Sesín. Buenos Aires: Editorial
Dunken, 80 págs., 2006. E-mail: info@dunken.com.ar Site:
www.dunken.com.ar
Emerson Teixeira Cardoso
Carteira de cronista
Em uma linguagem que remete ao
Salinger de O apanhador do campo de centeio,
José Antonio busca num tempo perdido (e no
agora) da mítica infância/adolescência o
assunto de suas deliciosas crônicas. E aí está a
sua maior qualidade: técnica sui generis aliada
à memória cinematográfica. Mas é ele um autor
inédito? Mais ou menos: José Antonio integrou
o quarteto que veio a se chamar “Os cronistas
da rua Alferes”, em referência ao livro que
publicou com Vanderlei Pequeno, Emerson
Teixeira Cardoso e José Vecchi. Portanto, é
quase inédito, exceto pelos artigos e contos
publicados na e-zine Chicos, alguns constando
deste Fantasias de Meia Pataca. José Antonio
escreve e consegue o que é indispensável na boa
prosa: unir o sentimento à arte, pois o
sentimento é arte, e ambos são expressão. O
livro, quando nos leva à representação da
infância, evoca nomes, lugares, firmas
comerciais, acontecimentos políticos, festas
populares, como as quermesses da igrejinha do
Rosário, o carnaval, de onde resgata a gostosa
marchinha Citran de Cataguarino: “Citran de
Cataguarino chegô...ô...ô...ô... Trouxe um
varau de galinha... uma cestinha de ovos...
Citran de Cataguarino chegô”. O lado
Macunaíma é revelado na ironia existente em
outras faces de seu estilo: Milagres de
economistas; O meu mil novecentos e sessenta
e oito; Primeiro de abril de 1964; e Não é
minha culpa. Pedi a um jovem que desse uma
olhada nos originais de Fantasias de Meia
Pataca e depois perguntei o que havia achado
do livro. E ele: “Na crônica A vila, depois de
dizer o que essa vila era para ele em sua
infância, José Antonio completou: ‘Notei que
meus amigos estavam engrenados num papo
sobre futebol. Acho que até o leitor me
abandonou’. Pelo contrário, o meu interesse no
livro ali apenas começou” – emendou o rapaz.
Seu lado cinematográfico nos leva a
perambular pelo Bixiga dos anos 80, sua Roma
paulista. Somente mesmo um cinéfilo de
carteirinha para nos guiar pelo felliniano
bairro, estabelecendo correspondência com a
emblemática capital italiana, com direito à
Fonte de Trevi e Anita Elkberg em La Dolce
Vita. Entre mentiras, verdades e fantasias
rolavam muito papo e cerveja. Pelas mãos de
Ady Resende, é singela homenagem que nos
remete ao início dos anos 70, quando tivemos
as primeiras impressões do colégio de
Niemeyer. Para chegar ao artesanato popular, o
mestre nos guiava pelas barras gregas, o
desenho geométrico, o artístico, com sombras e
perspectivas, e a pintura propriamente dita,
com o necessário aprendizado das cores
básicas. Apenas depois de passar pelos clássicos
Rembrant, Matisse, Van Gogh, Toulose Lautrec
e Portinari, que ainda estava ali, na nossa cara,
causando estranhamento. Para terminar estas
já longas considerações acerca do belo livro de
crônicas do José Antonio, destacarei o
Barbastião, os dois, o bar e dono. Infelizmente
já extintos, ressurgem nas figuras do Cossaco,
Rubão e outros bebuns anônimos e
incorrigíveis, onde, nas sextas-feiras, como nas
outras também, era servido regiamente o
tradicional café dos três efes: frio, fraco e
fodido. Entra Vasco era a senha para voltarem
os olhos para a calçada quando mulher bonita
passava pela porta do boteco. Quem se arvorar
à leitura deste Fantasias de Meia Pataca não se
arrependerá da empreitada. O José Antonio
tem bala.
Antônio Jaime
Sobre: O Caso da Menina que perdeu a voz
Fernando Abritta estreou em livro com
'umÁrvore', viagem poético-ecológica pelo que se pode
chamar o Brasil profundo, o das riquezas naturais, seu
povo e costumes. Depois, ilustrou com desenhos o livro
'Uma verde História', escrito por Joaquim Branco.
Também, com desenhos seus, finalizados sobre tecido,
em ponto-cruz, numa caprichadíssima edição, ele agora
está todo prosa, no livro 'O Caso da Menina que Perdeu a
Voz'. Neste, Fernando descreve uma aventura
empreendida por Menino, Moleque, Gavião, Curicaca e
BeijaFlor , numa expedição do balacobaco, em meio a
incontáveis contratempos, na missão, para eles, sagrada,
de resgatar a vozque Menina perdeu.
Pelo caminho, enfrentam perigos e mais perigos, sem
falar de pedras que conversam, criaturas assombrosas,
os CruzCredo, os CredoemCruz, o Gigante misterioso, a
beldade com um estranho colar que tem vida própria, o
escambau a quatro. Extensa galeria de personagens que
mantêm o leitor aceso, ligado, grudado na história,
sentindo-se parte dela.
Livro conduzido numa escrita simples, ágil e sem
gramatiquices, feito o vocabulário de seus pequenos
personagens. Pé no chão e cabeça lá nas grimpas dos
morros de Cataguarino, onde nasceu Fernando, em
1950, neto de Boaventura Abritta, educador respeitável,
a ponto de ter impedido uma briga de foice, com um
simples raspar de garganta.
Esta e outras façanhas, que incluem histórias pitorescas
de valentões, jagunços, almas penadas, típicas do meio
rural, alimentaram a imaginação de Fernando e
incutiram em sua personalidade o gosto, verdadeiro
amor , pela natureza. Imaginação que não para de dar
frutos, tanto que já tem mais um livro pronto, chamado
'MulaSemCabeça', outro mergulho desenfreado em
situações absurdas, encantatórias, ainda em fase de
edição.
Pronto para ser lido, está este 'O Caso da Menina que
Perdeu a Voz'. Lido e ouvido, pois vem acompanhado de
um CD em que atores narram a trama, interpretando os
personagens, todos os ingredientes para fazer do livro
um clássico, no gênero. E tem cacife para inspirar uma
boa peça de teatro, filme, história em quadrinhos, até
seriado de TV .
Curicaca neles, Fernando.
Ronaldo Brito Roque
Zoom em Cataguases
Nasci em Cataguases e não
pude evitar a infância do
cataguasense típico. Joguei bola ao
lado de um mural de Portinari,
estudei num colégio projetado por
Oscar Niemeyer, dei meus
primeiros beijinhos em frente a
uma igreja exótica, de arquitetura
sui generis, quase surreal (não digo
que fosse surreal porque estava de
pé). Mas, como qualquer criança de
dez anos, eu não fazia a menor idéia
de como essas coisas eram raras e
valiosas. Minha cabeça infantil
imaginava que qualquer cidade
brasileira tinha seus murais
cubistas, suas igrejas extravagantes
e seus colégios longilíneos, com
rampas e corredores intermináveis.
Só comecei a perceber que
Cataguases tinha algo de especial
quando conheci cidades vizinhas,
como Leopoldina, Astolfo Dutra,
Barbacena e similares. Então
compreendi que o cataguasense
desfruta de uma posição
privilegiada. Temos, na esquina ao
lado, um acervo artístico que outras
cidades de mesmo porte não
possuem nem em seus museus.
Essa experiência bastaria para
despertar definitivamente minha
curiosidade e meu gosto pela arte.
Mas, no meu caso, o destino quis ser
ainda mais generoso. Por uma série
de golpes da sorte, vim a conhecer
certas figuras cataguasenses que
estiveram visceralmente ligadas à
história da cidade. Washington
Magalhães morava perto do
escritório dos meus pais, e me
emprestou exemplares da famosa
revista Verde. Emerson Teixeira
Cardoso me emprestou livros de
Rosário Fusco e Chico Peixoto, e
publicou, na extinta Trem Azul,
alguns dos meus inevitáveis versos
de juventude. Antonio Jaime e
Fábio de Paula (nosso querido
Fabinho) me falaram dos festivais
de música popular, me mostraram,
às vezes recitando de cor, poemas e
canções de Carlos Moura, Ronaldo
Werneck, Joaquim Branco. E assim
fui descobrindo que a história
artística de Cataguases não se
limitava à materialidade das artes
plásticas. Tivemos poetas e
escritores que influenciaram o resto
do Brasil e gravaram
definitivamente o nome da cidade
na história nacional. E tive a sorte
de conhecer o trabalho deles, não
em salas de aula, diante de
professores indiferentes e mal
pagos, mas em mesas de bar,
bebendo com pessoas que
realmente gostavam do que estavam
falando. Algumas cervejas ao lado
de Emerson, Antonio Jaime e
Fabinho, me desculpem a
franqueza, valeram dez vezes mais
que uma palestra sobre
modernismo brasileiro numa
universidade federal qualquer.
Quem duvidar que os convide para
uma noitada e comprove pela
própria experiência.
Mas, se por um lado fui brindado
com esses depoimentos vívidos e
saborosos, por outro fiquei com a
impressão de que a vida cultural de
Cataguases era um fato que
pertencia ao passado. Todas aquelas
coisas memoráveis de que Emerson
e Antonio Jaime me falavam, o
festival de música, o sucesso de
Maria Alcina, as aventuras d’O
Anunciador, tudo isso tinha
acontecido vinte ou trinta anos
atrás. Eu tinha a sensação de que
meus próprios amigos não
tardariam a se tornar peças de
algum museu municipal e a história
da cidade morreria com seus
últimos suspiros.
Essa sensação se intensificava
quando eu percebia que os
jovens da minha idade nem
sequer sabiam quem fora
Rosário Fusco ou Ascânio
Lopes. Recitar de cor um poema
de Ronaldo Werneck ou
Joaquim Branco, infelizmente,
era coisa de velhos excêntricos
que não aumentava em nada a
minha popularidade com as
garotas. O presente da própria
cidade parecia estar relegando
sua história a uma espécie de
porão sombrio onde
esquecemos os brinquedos e as
quinquilharias inúteis.
Foi então que o destino
providenciou uma nova série de
coincidências que me
mostraram que a vida cultural
de Cataguases estava bem viva e
ainda por cima disposta a
interagir comigo.
Um dia presenteei meu pai com
um CD de Césaria Évora, e, ao
ver a gorda zarolha na capa, ele
exclamou, surpreso: “Já vi esta
senhora aqui em Cataguases.”
Mais surpreso fiquei eu,
pensando que ele tivesse
abusado do café ou de bebidas
mais fortes. Mais tarde descobri
que ele não havia alucinado.
Cesária Évora estivera mesmo
em Cataguases, para nada
menos que um festival
internacional de cinema!
Poucos anos depois Geraldo
Filho me convidou a participar
de um festival nacional de
literatura, o surpreendente
Felica. Tive a chance de falar
um pouco sobre meus
primeiros passos como escritor,
e ainda o prazer memorável de
palestrar na mesma noite que
Emerson Teixeira Cardoso, que
fora, como mencionei, meu
professor informal e uma
personalidade marcante da
minha juventude. Foi sem
dúvida uma noite que não
esquecerei.
Mais tarde tomei
conhecimento, na Casa de
Leitura de Cataguases, do
trabalho encantador do grupo
GPTO, cuja qualidade é
evidentemente de nível
internacional. Na mesma tarde,
quando fui agendar o
lançamento do meu livro,
descobri, atônito, que a cidade
lança quase um escritor por
mês, uma média muito acima
das outras cidades brasileiras.
Na semana do meu lançamento,
resolvi passar uns dias na
cidade e fui brindado com mais
surpresas positivas. Descobri,
por exemplo, a Revista Tic-Tac,
periódico independente que
funciona há anos sem nenhuma
ajuda da administração pública
local. Flanando pelas ruas do
centro, fui dar numa espécie de
casarão antigo que funciona
como teatro amador. A peça que
estavam levando era divertida e
bem escrita, e tive a impressão
de que falta pouco para o teatro
infantil de Cataguases chegar ao
nível de qualidade das nossas
capitais.
E já que comecei a fazer,
inadvertidamente, essa espécie
de lista de realizações culturais
recentes, não posso deixar de
mencionar duas outras
publicações que me chamaram
a atenção. O livro “Alma de
Brinquedo”, de Leonardo
Campos, que deveria ser
publicado e distribuído por uma
editora de abrangência
nacional; e a revista literária
amadora “Chicos”, que não raro
traz textos de uma qualidade
excepcional e, na minha
modesta opinião, também
merece ser conhecida num
âmbito maior que o interior de
Minas. Pelas minhas parcas
informações, essa é outra
publicação que não conta com
nenhum tipo de apoio da
administração municipal, sendo
tocada exclusivamente pela
iniciativa e boa vontade do seus
editores. Claro que essa
condição, aos meus olhos, só a
torna ainda mais meritória.
Resumindo minhas descobertas
dos últimos anos, só posso dizer
que a vida cultural de
Cataguases continua rica e
variada como sempre foi. Os
cataguasenses continuam um
povo privilegiado frente a seus
vizinhos mineiros. Quantas
outras cidades, com menos de
cem mil habitantes, contam
com periódicos independentes,
com teatro infantil de
qualidade, com livros lançados
à proporção de um por mês, e
escritores dignos de visibilidade
nacional? Vendo tudo isso
de longe só posso dizer que a
cidade merece sua fama de jóia
mineira, e o povo cataguasense
deve fazer o que estiver a seu
alcance para conservar e
renovar incessantemente a
riqueza e a variedade da sua
vida cultural.
Chicos
Sebastião Nozza Bielli Lotti
Propriedade particular
A cidade vai fechando os
horizontes. O descampado onde os
parques e os circos são armados
– também onde, pela manhã, faço
alguns exercícios –, um dos
elementos que compõem a vista
relativamente aprazível que
observo da minha janela, com o
Cristo no morro do BNH (raquítico,
ao lado da torre de TV), as árvores
e as palmeiras, agora é uma
propriedade privada. Colocaram a
placa e alguns operários já estão
terminando a cerca de arame
farpado.
Luiz Antônio, “o homem dos
cachorros”, como ficou conhecido
pela turma que faz caminhada pela
alameda das palmeiras,
continuando até a entrada da Vila
Reis, me fala não saber se vai ser
um condomínio. Ele construiu uma
barraca de plástico preto onde
passa a maior parte do tempo,
apesar de ter uma quitinete
alugada, e improvisou, com refugos
de madeira e outros
materiais,pequenos abrigos
individuais para os seus
acompanhantes. Todos pretos e
saudáveis.
Ele diz que não está muito
preocupado, porque ganhou um
terreno, lá pros lados da Taquara
Preta, onde pretende alojá-los em
melhores condições. Comentou
sobre a época em que os recolhiam
pelas ruas, levando-os a Viçosa
para serem exterminados.
Chegamos também a comentar que
a plataforma de um vereador
recém-eleito, o Aquiles Branco
(cuidado com o calcanhar!), inclui
o projeto para esterilizá-los, o que,
em minha opinião, é mais louvável.
A lembrança dos cachorros que
passaram pela minha vida, vez por
outra aparece. Os “bebuns” da
venda no Corgo da Posse, área
rural de Ubá, riam da minha
cachorrinha magrela que eu
batizei de Baleia – depois de Vidas
Secas, filme do Nelson Pereira dos
Santos, todas as minhas cachorras
homenageavam a heroína do
Graciliano Ramos. A única que
fugiu à regra foi Suzana, a última,
já aqui em Cataguases.
Maísa havia lhe dado esse nome
desde novinha, pois era sua. Ela me
aparecera pedindo socorro porque
as crianças cismaram de adestrá-la
para participar do circo que
organizavam no porão da minha
irmã e, daí em diante. ficou sendo
minha. Foi a mais bela – a cauda
emplumada –, a mais doce e
inteligente. Era uma amiga que me
ouvia e parecia entender.
Beethoven talvez a perturbasse um
pouco, mas curtia Bach e Mozart.
Outra Baleia, a da Praia de
Mauá, que o vizinho deixou comigo
ao se mudar, porque ela passava a
maior parte do tempo na minha
varanda, ficou por lá mesmo
quando voltei pra Copacabana, e
algumas outras – mais públicas –,
apenas foram passando pelas
minhas andanças.
Sempre gostei mais dos vira-latas,
mas convivi por muito tempo com o
Barão, um buldogue assustador,
num sobrado da Rua Correia
Dutra, no Flamengo que, apesar de
tudo – eu vivi o momento preciso
em que ele abocanhou um gato
vacilante em cima do muro – era
gente fina.
Do Saddam Hussein do meu
irmão, enorme, eu sempre quis
distância, mas gostava da Meir, que
o antecedeu. Certa tarde, há
bastante tempo, eu levei o Perrito,
um poodle cinza mestiço que
morreu atropelado, para beber
cerveja com sorvete de tangerina
(na época, eu achava que a
combinação era sublime) no Bar
Elite. Saímos meio altos para o
ponto do ônibus com destino à
Pampulha, em frente à Nacional,
num horário de pique, e acabou
acontecendo uma baita confusão
com a negativa do motorista em
transportar o animal e a torcida
dos passageiros, que gritavam:
– Deixa! Deixa!
Felizmente, ele acabou
permitindo e a viagem virou uma
festa. Desejo boa sorte ao Luiz
Antônio, que prefere a companhia
dos bichos.
A última entrevista de Manuel Bandeira
Numa tarde de março de 1964, três
décadas depois de ter publicado o
poema que lhe consagraria: “Vou-
me embora pra Pasárgada”, o
poeta Manuel Bandeira fala ao
jornalista Pedro Bloch, em sua
última longa entrevista
Ninguém sabe explicar como aquele
homem, castigado, tantos anos, pela
doença, não amargou. Disse Mário de
Andrade: “Eu fico espantado de como há
certos homens no mundo! Tu, por
exemplo. Essa sublime bondade
inconsciente, bem no íntimo, de quem
nem sabe que é bom”. Vou além. Acho
que Manuel Bandeira nem tem plena
consciência de sua imensa envergadura
de gente e poeta. Acho que, talvez, os
quatro anos que viveu em sua terra,
Recife, é que explicam, mais que os
males, o homem de hoje. Diante de mim
está o gigante de nossa poesia: Manuel
Bandeira, em seu modesto apartamento,
atulhado de livros e calor humano, na
Avenida Beira-Mar, no Rio. Do bem que
lhe querem todos, da ternura que
desperta em quem dele se aproxima,
basta dizer que Mário de Andrade só o
tratava de Manu ou Manuelucho;
Rodrigo Melo Franco de Andrade lhe
deu o nome de Manula; Madame Blank,
sua amiga de almoço de todo o dia, o
trata de Mané. Creio que nunca ninguém
teve tanto apelido, tanta gente
querendo chegá-lo à sua amizade.
(Edição e seleção de poemas Carlos
Willian Leite).
Manuel Bandeira: Do Recife tenho quatro anos de
existência consciente, mas ali está a raiz de toda a
minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de
minha meninice a quaisquer outros quatro anos de
minha vida é que vejo o vazio dos últimos.
Rua da União…
Como eram lindos os montes
das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame
de dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade…
Manuel Bandeira: Meu nome todo é Manuel Carneiro
de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com
mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no
resto sou como meu pai
Que importa a paisagem,
a Glória,
a baía,
a linha do horizonte?
— O que eu vejo é o beco
Manuel Bandeira: Sabe, que meu avô reprovou Castro
Alves num exame? Erámos três irmãos. Os mais
velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem. Saí
do Recife com 2 anos. Deles nada recordo. Viemos pro
Sul e com 6 (quando da revolta da Esquadra, em 1892)
meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui
com 6 e voltei ao Rio com 10. Mas esses quatros anos…
Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois,
ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da
gente.
Hoje não ouço mais as vozes
daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
Manuel Bandeira: Papai, no Rio, não teve sorte. Aos 40
anos passou por crise religiosa. Dele recordo com
intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim,
menino de 6 anos: “É impossível que este menino não
saiba ler”. Trancou-se comigo na biblioteca, por duas
horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo
foi ouvi-lo exclamar ao morrer: “Meu Jesus Cristinho!”
E eu conto no poema: “Mas Jesus Cristo nem se
‘incomodou!’”
Vai por cinquenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.
Manuel Bandeira: Foi o livro de D’Amicis [Edmondo De
Amicis, escritor italiano] uma das coisas que mais me
marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no
Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para
o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras,
onde morávamos, nunca faltou pão; mas a luta era dura.
Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei
do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.)
Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos.
Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram
sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino
ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a
meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que
não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava
certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente
e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que
traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de
raridade, senão de uma espécie de resolução musical.
Como nas “Pombas” [poema de Raimundo Correia]:
“Raia, sanguínea e fresca, a madrugada”. Entre outros
eu tinha como colegas do Pedro II o professor [Antenor]
Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da
Costa. Acabei bacharel em Letras.
Ó caro ruído embalador,
Terno como a canção das amas!
Canta as baladas que mais amas,
Para embalar a minha dor
Manuel Bandeira: Como ainda não havia um bom curso
de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui
estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano
para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante
muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse,
febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia,
homeopatia, e em junho de 1913 segui para um
sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e
novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil
réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil réis que
valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de
1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude
continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer:
“Quanto tempo de vida o senhor me dá?” A resposta: “O
senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a
vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns
cinco… dez anos”. Calcule! (“Então, doutor!, não é
possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a
fazer é tocar um tango argentino.”)
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Manuel Bandeira: Na Suíça, conheci, como
companheiro de sanatório, o poeta Paul Éluard e Gala
[Gala Dalí], que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a
mulher de Salvador Dalí.
Não quero mais saber
do lirismo
que não é libertação.
Manuel Bandeira: Voltei. Mal tinha dado pra conhecer
Paris. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no
Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme,
diante das recriminações de todos. Em 1917 publiquei
meu primeiro livro, “A Cinza das Horas”, 200
exemplares me custaram 300 mil réis. Em “Carnaval”
(publicado em 1919), depois, eu dizia: “Quero beber!
Cantar asneiras!”. Pois um crítico observou: “Conseguiu
plenamente o que queria”. Nestes dois volumes e em
“Ritmo Dissoluto” estão poemas feitos em estado de
lucidez. A partir de “Libertinagem” é que me resignei à
condição de poeta.
Tomei cedo consciência de que era um poeta menor,
consciência de minhas limitações. Devo dizer que
aprendi muito com os maus poetas: o que devemos
evitar.
Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.
No entanto há seguramente por ela
uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.
Manuel Bandeira: Ao voltar da Suíça eu era um inválido.
Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de
500 mil réis. Depois dos 50 é que eu pude começar a
trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino.
Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San
Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para
ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de
Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz
muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas,
durante a minha doença, dependi de meu pai (até que
morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica
musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao
desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não
sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo
conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da
nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald,
Álvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de
Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua “Pauliceia
Desvairada”. Foi a última influência que recebi. O que
veio depois me encontrou calcificado. Também não quis
participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve
o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava
de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha
entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo
era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos
sãos, porque a doença gerara em mim um
sentimentalão.
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha,
minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Manuel Bandeira: Não. Nunca fui um antiacadêmico. O
problema é que eu gostava de tomar minhas licenças
com a língua. Não aceito que não se possa dizer “me dê
isso”, “me dê aquilo” se até o Laet [Carlos de Laet] dizia.
Nada mais gostoso que: “pra mim brincar”. Todos os
brasileiros deviam querer falar como os cariocas que
não sabem gramática. “Ele já mo deu”… é horrível!
Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo
me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os
moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A
mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.
Meu coração está sedento
De tão ardido pelo pranto.
Dai um brando acompanhamento
À canção do meu desencanto.
Manuel Bandeira: Em 1921, papai morto, continuei
vivendo com 500 mil réis. Outro dia, fui comprar um
queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia,
Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino,
tinha perdido o montepio: — os 500 mil réis exatos com
que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de
segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de
conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde
só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para
a Rádio Ministério da Educação.)
É que na tua voz selvagem,
Voz de cortante, álgida mágoa,
Aprendi na cidade a ouvir
Como um eco que vem na aragem
A estrugir, rugir e mugir,
O lamento das quedas-d’água!
Manuel Bandeira: Um dos mais chegados é o Rodrigo
Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma
cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao
Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei
na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos
admiramos muito, mas não temos convivência
doméstica.
Se queres sentir a felicidade de amar,
esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Manuel Bandeira: A minha poesia tem tomado um
aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com
77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me
sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no
chão da poesia piso com alguma segurança. Estou
perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar.
Do que imaginei ver só “Ronda Noturna”, de
Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de
arte, “Vênus de Milo” e o resto, de tão divulgadas, já
não constituem mais surpresa. Não tenho a menor
curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento
Ocidental.
Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província.
Manuel Bandeira: Posso dizer que pouco se me dá,
quando morrer, morrer completamente para
sempre na minha carne e na minha poesia.
Entretanto, já não será possível, para alguns de
meus versos, aquela serena paz da morte absoluta,
não por virtude própria, mas por culpa de Villa-
Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Francisco
Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez,
Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de
ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado.
Criancice? Deus conserve minhas criancices.
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade
do que do espanto da morte.
Manuel Bandeira: Espiritualmente… minha
filosofia é a de Einstein. “Minha religião — disse ele
— consiste numa humilde admiração pelo espírito
superior e sem limites que se revela nos menores
detalhes que possamos perceber com nossos frágeis
espíritos. Essa profunda convicção sentimental da
presença de uma razão poderosa e superior
revelando-se no incompreensível universo — eis a
minha ideia de Deus.” Quando li isto, disse comigo
mesmo: “É exatamente o que eu sinto”. Não
compreendo a negação absoluta de Deus. Como é
que veio essa coisa que não começa nem acaba?
Tempo infinito… Espaço infinito… Uma coisa
absurda que, no entanto, existe!
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!
Manuel Bandeira: Não sei por que, hoje em dia,
tenho pudor de fazer poemas de amor. Muitas
vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo
tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É
como se não quisesse que os outros entrassem na
minha confidência, no meu segredo. Amei, sim.
Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois…
Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-
me ao casamento com quinhentos mil réis de
montepio.
Aquele pequenino anel que tu me deste,
— Ai de mim — era vidro e logo se quebrou…
Assim também o eterno amor que prometeste,
— Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
Teatro em Cataguases
A Quarta Parede
A Quarta Parede apresenta um
enredo extremamente instigante
e inovador, onde um enigma
teatral é apresentado por três
personagens que vão
vivenciando a ação sem que o
público perceba que uma peça de
teatro está sendo criada diante
de seus olhos, até o desfecho
inesperado.
O que de início parece ser um
conflito de gerações, entre uma
adolescente rebelde e um idoso
misterioso, de repente se torna
um embate de horror, ambos
confinados num espaço fechado,
sem nenhuma possibilidade de
fuga.
A adolescente Michele e o idoso
Túlio se enfrentam num embate
de vida ou morte, onde os papéis
de vítima se alternam numa
historia feita de camadas de
suspense, medo, dúvida e
emoção exacerbada, situações
agravadas com a entrada de
Claus, um bizarro deficiente
físico mascarado que fala
emitindo sons incompreensíveis.
Quem é Túlio? Um assassino, um
psicopata, um bancário
aposentado ou um ator
desempregado? Quem é Claus?
Um deficiente físico ou um ator
com sua máscara teatral? Sua
maneira de se expressar é real
ou ele é capaz de falar
corretamente? Como vai reagir
Michele diante daqueles
momentos cruciais que vão
marcar o rito de passagem de
sua adolescência para a
maturidade?
São indagações que tumultuam a
acuada Michele numa historia
onde nada é o que parece ser e
que provoca no público um
permanente estado de alerta
através das surpreendentes
revelações e situações de
suspense, culminando com a
grande surpresa no final.
A peça é um jogo de cenas que
mostra a magia do teatro sendo
desvendada mediante uma
sucessão de golpes teatrais, o
que impede que qualquer
detalhe do enredo seja revelado
previamente ao público.
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Chicos 38

  • 1.
  • 2. Chicos N. 38 Julho 2013 e-zine de literatura e ideias de Cataguases – MG Capa Detalhe doAzulejo As Fiandeiras de Portinari - fotode Vicente Costa Editores Emerson Teixeira Cardoso José Antonio Pereira Colaboradores desta edição Adelto Gonçalves Alberto Acosta Antônio Jaime Antônio Perin Eltãnia André Emanuel Medeiros Flausina Márcia da Silva Ronaldo Cagiano Ronaldo Brito Roque Sebastião Nozza Bielli Lotti Fale conosco em: cataletras.chicos@gmail.com Visite-nos em: http://chicoscataletras.blogspot.com/ Um dedo de prosa Esta é a edição número 38 de 31 de julho de 2013. Estamos em festa. José Antonio Pereira, um dos nossos editores lança no dia 10 de agosto de 2013 seu livro de crônicas Fantasias de Meia Pataca. Algumas de suas crônicas apareceram em primeira mão aqui no Chicos. Abrimos a edição com Kajal Ahmad, uma interessante poeta curda, um dos povos que também perdeu seu território. Outra poeta presente é a nossa amiga Flau. Ronaldo Cagiano, em seu incrível trabalho de mapeamento da poesia contemporânea argentina, nos presenteia com a tradução de César Cantoni. A poesia cabo-verdiana se apresenta com Corsino Forte, como também “Funchal” do poeta sueco Tomas Tranströmer. Numa tradução de Alberto Acosta publicamos em espanhol o poema Cataguases do Ascânio Lopes. Adelto Gonçalves apresenta um magnifico texto sobre a poesia de Claudio Sesín, grande amigo, divulgador da poesia brasileira na Argentina e colaborador aqui no Chicos. Eltânia André em seu caminhar pela Itália nos fala de Dante e sua Divina Comédia. Antônio Jaime em O nome da Rosa em JF, nos fala das peripécias nada ortodoxa dele e da sua trupe teatral em um seminário em Juiz de Fora; mais adiante, noutro texto fala do belo livro de Fernando Abritta recentemente lançado. Ronaldo Brito Roque em Zoom passeia pelas artes em Cataguases. A última entrevista de Manuel Bandeira, concedida a Pedro Bloch, é incrível e bela, compartilhamos com vocês. Em setembro a peça A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt inicia carreira em Cataguases. E muito mais vocês encontrarão por aqui. Desfrutem! Uma boa leitura para todos. Os Chicos Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Cataguases, Biblioteca Ascânio Lopes e a Livraria Casa do Livro convidam para o lançamento do livro Fantasias de Meia Pataca de José Antonio Pereira Dia - 10.08.2013 às 19.30hs
  • 3. Sumário KAJAL AHMAD Direções e outros poemas 03 FLAUSINA MÁRCIA DA SILVA Feliz Ano Treze 10 CÉSAR CANTONI Jantávamos esta noite e outros poemas 11 CORSINO FORTES Emigrante 13 EMANUEL MEDEIROS Inventar 16 ANTÔNIO PERIN As reticências do tempo e outro poema 17 ASCÂNIO LOPES Cataguases 19 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Poema que não realizei 21 TOMAS TRANSTRöMER Funchal 22 ANTONIO JAIME Nome da Rosa em JF 23 JOSÉ ANTONIO PEREIRA Uma carta e seus destinos 24 ELTÂNIA ANDRÉ Antes de ler “Divina Commedia” 25 ADELTO GONÇALVES Claudio Sesín O poeta dos ocasos catamarquenhos 27 EMERSON TEIXEIRA CARDOSO Carteira de cronista 29 ANTONIO JAIME Sobre O Caso da Menina que perdeu a voz 30 RONALDO BRITO ROQUE Zoom em Cataguases 31 SEBASTIÃO NOZZA BIELLI LOTTI Propriedade particular 33 UMA ENTREVISTA A última entrevista de Manuel Bandeira 34 TEATRO EM CATAGUASES A Quarta Parede de Carlos Sérgio Bittencourt 38 Fotos de Vicente Costa As Fiandeiras – Candido Portinari Painel em azulejos
  • 4. Kajal Ahmad É uma poeta que escreve em curdo. Nascida em Kirkuk, no Curdistão iraquiano em 1967, Kajal Ahmad começou a publicar sua poesia na idade de 21 anos. Ela já publicou quatro livros: Benderî Bermoda (1999), Wutekanî Wutin (1999), Qaweyek le gel ev da, (2001) e Awênem şikand , (2004). Kajal ganhou uma considerável reputação pelo seu trabalho admirável, comovente e desafiador em todo o universo da língua curda. Seus poemas foram traduzidos para o árabe, turco, norueguês e inglês. Direções Sempre que ele estava nas montanhas, onde quer que ele tirasse os sapatos, eles sempre apontavam para sua cidade mas nunca pensou que isso significasse que sua terra natal seria liberada. Agora que ele está na sua cidade, onde quer que ele deixe os sapatos, eles apontam para terras além da sua mas nunca ele sonha que um dia poderá vir quando, sem ver a miragem de que no exílio sempre vê, sem qualquer direção dos sapatos, ele viajará através do coração de seu país, a loja o mito na caixa de madeira de sua avó e, no porão de uma casa feliz, fechar muitas portas coloridas sobre ele como as portas de suas histórias de infância.
  • 5. Pássaros De acordo com a mais recente classificação, curdos agora pertencem a uma espécie de ave é por isso que, ao longo das rasgadas, páginas amareladas da história, eles são nômades marcados por suas caravanas. Sim, os curdos são pássaros! E mesmo quando não há nenhum lugar à esquerda, não há refúgio para a sua dor, voltam-se para a ilusão de viajar entre o calor e o frio de sua terra natal. Então, naturalmente, eu não acho estranho que os curdos possam voar. Eles vão de país para país e não podem realizar seus sonhos de sedimentação, de formar uma colónia. Eles não constroem ninhos nem mesmo em seu pouso final eles visitam Mewlana para consultar a sua saúde, ou curvar à poeira no vento suave, como Nali. * * Refere-se a uma famosa linha de Nali, poeta do século 17: Eu sacrifico-me a sua poeira - você vento suave! Mensageiro familiarizado com toda a Sharazoor!
  • 6. Gravidez Ao contrário de seus amigos, ela não pode se gabar de uma cintura fina. Seus quadris não balançam e balançam. Ela não se atreve a montar a roda e o navio de Serchnar como fazia quando ela estava noiva. Ela está grávida por isso que ela é mais bonita do que as meninas a sua volta, mais bonita do que os homens que, à tarde passar por seu lamento. Entre as mulheres do bairro, ela parece mais o amor-golpeado e mais animados. Olhando para ela faz muito tempo para melancia. E você aprende a sonhar do choro de um bebê ou o riso como você tricotar um meia ou jumper um pouco. Sua cintura não é tão fina como uma harmônica mais. O tempo para saias se expande e para jeans desaparece. Batom está agora ignorada juntamente com saltos altos e espelhos. Seus tempos áureos por usar vestidos de baile e maiôs é longo. Agora ela conversa ao seu próprio ventre. Sem saber de nós ou de si mesma. Que Deus torne-o bom, esta busca de nove meses nas estradas da vida e da morte. Que Deus faça-o bom, este destino que as mulheres enfrentam.
  • 7. Mais generosa do que Miriam Marias do meu país! Quando a morte se torna uma necessidade, Vamos enfrentá-lo primeiro mães e não os nossos filhos. Nossa nação está tão solitária como o pai Adão foi antes da fértil chegada de Eva a mãe. Nossa nação está solitária e eu sou solitária. O tédio cresceu como fungo no meu coração mas eu não estou cansada. Meu sorriso, algumas vezes foi como pão quente na boca, agora ele enrola nas bordas. Ah, os poetas, eu tenho sido como uma mulher grávida mas eu não aborto meus poemas nem tem poesia abortada de mim. Jesus, quando é que você vem? Eu estou em pé no Sirat, a ponto de cair da ponte. Eu chorei tanto na casa do amor e da poesia que o conjunto de minhas lágrimas é coberto de algas.
  • 8. Com ou sem poesia, eu estou esperando. Esperando para atravessar, esperando por você. Falando em vão e quem sabe se é tudo sobre mim ou sobre a terra? Depois de uma onda de náusea, Você caiu da ferida de minha boca. Você era uma folha de luz. Após seu nascimento palavras sangraram e nunca mais pararam. Sangue fez de mim uma poeta, a louca poeta Miriam. Antes de você nascer, eu vim e construí em mim uma ponte entre a terra do meu coração e o céu do seu crânio. (O sangramento ainda continua - será que para sempre?) Naquele tempo, a cruz não o tinha encontrado ainda. Ela procurou por toda parte. Se eu soubesse que seria indelicado, ali mesmo em seu nascimento, Eu teria lhe dito para voltar para o útero seguro de sua mãe. Se eu soubesse que iriam chamá-lo o Filho de Deus, eu nunca teria deixado você vir em primeiro lugar.
  • 9. Como Deus pode ser o pai do meu filho se eu nunca passei uma única noite em seus braços? E se eu tiver, por que me chamar a Virgem Mãe? * Diga-me, luz dos meus olhos! quem você acha que é a mais pura, eu ou Miriam? Quem é mais no amor? É a ferida no meu coração mais profunda do que a dela? Não é para eu dizer mas você, a luz dos meus olhos, ama a cantora, Jesus, me diga! Não me chame de Miriam você vai machucar o meu orgulho e meu coração vai quebrar. Certamente, como uma mãe, eu sou gentil. Miriam e eu diferimos no seguinte: se eu fosse incapaz de comprar sua vida com a minha. Eu preferiria ficar cega a manter meus olhos eternamente abertos. Se eu não podia ser crucificada em seu lugar, como eu poderia sentar-me, complacentemente em um canto? E nisto, também, que diferimos: ao contrário dela, eu não poderia desistir de você, não para ninguém, nem mesmo a Deus - o meu coração não me deixaria.
  • 10. Deus não é a mãe cujo coração queima com piedade e que se aflige com a perda de um filho. A maternidade é uma triste sepultura me tornando uma mãe enquanto eu ainda era virgem. Desde que dei à luz Cristo você duvida de minha virgindade, eleva suas facas, eu não me importo. Jesus de areia ... Jesus, pai ... O que estou fazendo aqui, se não para expor as mentiras do mundo? Eu não vou esperar por você para morrer. Só desta vez, meu único filho, em vez de manter sua cinza e guitarra de luto, abraçadas ao cadáver de sua mãe. Eu vou morrer primeiro, eu vou ter certeza disso. Eu não vou viver para ver o dia que a sua morte estará no meu colo. Versão Antônio Perin
  • 11. Flausina Márcia Flausina Márcia da Silva poeta nascida em Cataguases e radicada em Belo Horizonte onde trabalhou na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros livros: Vagalume e Sua Casa Minha Cruz. Feliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano TrezeFeliz Ano Treze Esse ano, que a chuva não recebeu, entrado seco, vai querer lágrimas. Esse ano, ai, que não amadureceu, sofre verde de desencanto amarelo. Esse ano joga pedras, búzios, cartas, embaralha presságios, confunde a razão. Esse ano, bem que o calendário podia passar sem ele, dar a volta nele, desmenti-lo. Esse ano, que eu não pedi aos deuses, chega pagão, deve tudo pra todo mundo. Esse ano, ai, com essa terminação, é sem reticências, é tresandado. Esse ano, bem que vou gostar de passar sem ele, dar a volta nele, desmenti-lo.
  • 12. César Cantoni Nasceu em La Plata (1951), Argentina, onde vive. É autor, dentre outros, de Confluências (1978), Linaje humano (1984), Continuidad de la noche (1993), La salud de los condenados (2004), Intemperie e otros poemas (2006) e El fin ya tuvo lugar (2012). Seus poemas foram traduzidos para o inglês, francês, italiano e catalão. Para o professor, escritor e ensaísta Osvaldo Picardo, em César Cantoni “o poema desata a consciência dos fenômenos da contemporaneidade que, em sua manifestação concreta, contradizem os grandes relatos da história e da metafísica.” Segundo Luis Benítez, “ao ler Cantoni, as velhas e usadas palavras catellhanas parecem renovadas, mais vigorosas, mais significantes que quando estão inseridas em outros discursos.” Trata-se de um poeta cuja proposta estética é ressonância de uma visão aguçada da realidade de seu país, em cuja arte uma visão crítica (sem engajamento ou sectarismo) não se afasta de uma pulsão lírica nem de uma inquietação existencial e metafísica. Eis uma poesia de forte conteúdo reflexivo e profunda imersão nos dilemas humanos, pois como já reconheceu José Di Marco, “o realismo em perspectiva faz da poesia de Cantoni um ato político. Poesia política, mas não panfletária, pedagógica ou moralizante.” Jantávamos esta noite a Néstor Mux Jantávamos esta noite em uma taberna quando uma ratazana desceu do teto, atravessou rapidamente o salão e fugiu pela porta da cozinha. “É só uma entre tantas”, disse o poeta Néstor Mux, enquanto a menina da mesa vizinha saltava e gritava horrorizada em um surto de histeria. Quem sentia mais pavor? A menina ou a ratazana em sua fuga desesperada? Pouco acrescenta saber. Vivemos em um mundo estranho, envolvido pela desconfiança coletiva.
  • 13. Veterano das Malvinas a Gustavo Caso Rosendi e Martín Raninqueo Não é estranho que uma bomba inimiga me desperte no meio da noite, enchendo de fragmentos minha lembrança. Felizmente, a mulher que dorme comigo tem um ar sereno e protetor e seu contato liberta-me do pesadelo. Entrincheirado nos lençóis Afundo, então, meu rosto, no sulco de seus peitos e novamente durmo como um menino. Até que outra bomba venha despertar-me. No dia de São Patrício No Dia de São Patrício, enquanto bebo com os irmãos irlandeses que habitam este solo – mulheres e homens convocados pelo padroeiro da ilha –, e brindo em honra dos poetas caídos nas cruzadas de libertação, começando pelo bravo Pádraig Pearse, eu te declaro minha guerra sem quartel e para sempre, Inglaterra. Às vezes me pergunto Às vezes me pergunto se de tanto ler Williams não acabarei escrevendo como Williams. A mim, no fundo, gostaria escrever de um modo pueril, e inocente como Cummings. Quanto ao resto, não se incomodaria que alguém dissesse alguma vez que escrevo como Sandburg; Tradução Ronaldo Cagiano
  • 14. Corsino Fortes Corsino António Fortes (São Vicente, 1933) é um escritor e político cabo-verdiano. É licenciado em Direito, pela Universidade de Lisboa (1966). Integrou vários governos na república de Cabo Verde, país de que foi Embaixador em Portugal. Presidiu à Associação dos Escritores de Cabo Verde (2003/06). Autor de obras como Pão e Fonema (1974) ou Árvore e Tambor (1986), a sua obra expressa uma nova consciência da realidade cabo-verdiana e uma nova leitura da tradição cultural daquele arquipélago. Emigrante Todas as tardes o poente dobra o teu polegar sobre a ilha E do poente ao polegar cresce um progresso de pedra morta Que a Península Ainda bebe Pela taça da colónia Todo o sangue do teu corpo peregrino Mas quando a tua voz for onda no violão da praia E a terra do rosto E o rosto da terra Estender-te a palma da mão Da oral maritima di ilha De pão & pão feita Ajunturás a última fome à tua fome primeira Do alto virão rostos-e-proas-da-não-viagem Assim erva assim mercuro Arrancar-te as cruzes do corpo
  • 15. O grito das mães leva-te agora À sétima esquina onde a ilha naufraga onde a ilha festaja A sua dor de filha E a tua dor de parturiente Que toda a partida É potência na morte todo o regresso É infância que soletra Já não esperamos o metabolismo Polme de boa fruta fruta de boa polpa A terra aspira teu falo verde E antes que teu pé seja árvore na colina E tua mão cante lua nova em meu ventre Vai E planta na boca d’Amílcar morto Este punhado de agrião E solver golo a golo uma fonética de frescura E com as vírgulas da rua com as sílabas de porta em porta Varrerás antes da noite Os caminhos que vão até às escolas nocturnas Que toda a partida é alfabeto que nasce todo o regresso é nação que soletra Aguardam-te os cães e os leitões da casa de Chota que no quintal emagrecem de morabeza
  • 16. Aguardam-te os copos E a semântica das tabernas Aguardem-te as alimárias amordaçadas de aplauso e cana-de-açúcar Aguardam-te os rostos que explodem no sangue das formigas novos campos de pastorícia Mas quando o teu corpo sangue & lenhite de puro cio Erguer Sobre a seara A tua dor E o teu orgasmo Quem não soube Quem não sabe Emigrante Que toda a partida É potência na morte E todo o regresso É infância que soletra
  • 17. Emanuel Medeiros Emanuel Medeiros Vieira nasceu em Florianópolis, SC, em 1945. Formado em Direito pela UFRGS (1969), foi cineclubista, professor, crítico de cinema, editor, vendedor de livros, jornalista e funcionário público. Ativo militante da política estudantil, foi dirigente do IEPES, embrião da Fundação Pedroso Horta. Redator de discursos parlamentares, foi membro do conselho editorial do jornal “Movimento”, e correspondente em SC do semanário “Opinião”. É detentor de diversos prêmios literários nacionais. Tem 17 livros publicados. Inventar Para Eduardo Dutra Aydos “Escrevemos/Porque sabemos/que vamos morrer.//Escrevemos/porque não sabemos por quê.” (“Pedra” – Francisco Marcelo Cabral) Quisera inventar o tempo seremos todos esquecidos – o oblívio no final da estrada. Distraímos-nos comprando coisas. Mal fechamos os olhos funda-se o esquecimento? Sumimos do mundo. (Antes: volúpia para ser celebridade, sonhando com vidas napoleônicas.) Ai dos danados que resistem aos apelos e rompem com o dogma. Quisera inventar o tempo. Desterro! “Vida é o que está acontecendo enquanto você está ocupado em fazer grandes planos” (“Life is what happens to you while you’re busy making other plans” – John Lennon (em tradução livre) Ele – o Tempo – Senhor do Destino – nos engole. Não: desisti de inventar o tempo. Basta o dia – levando à eternidade. Mas faça sempre com Fé.
  • 18. Antônio Perin Nascido em Itaobim, Vale do Jequitinhonha, migrou para Cataguases, onde virou baiano, viveu alguns anos no Rio, morou um bom tempo em São Paulo, e, voltou para Cataguases, onde vive e escreve. Com sua poesia, colabora e participa de nossas publicações aqui no Chicos. As reticências do tempo Pendurado na parede a presença física das horas solidifica o silêncio do tempo. Em seu repetitivo e metálico ruído transforma o tempo em algo circular. Dita o ritmo da vida lembrando a cada tic e a cada tac o princípio do fim.
  • 19. Ave Rosália Rosália lia lia e relia lia orações de fé num rosário ao santo Antônio esquecendo que santo é o Lucas. Ave Rosaria! Quem cantaria uma rosa numa ária? Só em transe numa fuga de Além lá da Viçosa feito rosa ria. Acorda Rosália antes do último acorde da cantoria.
  • 20. Ascânio Lopes Ascânio Lopes Quatorzevoltas nasceu em Ubá MG) em 1906, vindo com cinco meses para Cataguases. Em 1925 foi para Belo Horizonte, onde estudou Direito. Morreu em 1929, aos 22 anos, o que decretou o fim da revista Verde. Publicou apenas Poemas cronológicos (ao lado de Enrique de Resende e Rosário Fusco). Em 1967, sua obra foi organizada por Delson Gonçalves Ferreira no livro Ascânio Lopes: vida e poesia. Também foi publicada em 1998 a antologia Ascânio, o poeta da Verde, organizada por Joaquim Branco. Em 2005, Luis Ruffato organizou e publicou Ascânio Lopes, todos os caminhos possíveis onde incluiu poemas, ficção, artigos, comentários, resenhas, além de fotos do poeta. Cataguases Ni Belo Horizonte, colcha de retazos iguales, ciudad europea de calles rectas, árboles correctos, casas simétricas, crepúsculos bonitos, siempre bonitos; Ni Juiz de Fora. Ruido. Rumor. Pitos. Klaxons. Ciudad inglesa de cielo humoso, lleno de chimeneas negras; Ni Ouro Prêto, ciudad muerta, Bruges sin Rodenbach, donde estudiantes pasatistas continúan la tradición de las cosas [ que ya olvidamos; Ni Sabará, ciudad reliquia, donde no se puede tocar, para no derrumbar el pasado [ ordenadito; Ni Estrêla do Sul, que sueña con tesoros, tesoros en los cascajos extintos de su río barroso; Ni Uberaba, ni, ni, ciudades arribistas de gente que no [ pretende quedarse. No-o! Cataguazes... Hay cosas más bellas y serenas ocultas [ en tus flancos. En tus calles juega la inconciencia de las ciudades que nunca fueron, que no piensan ser. No sabes, no sé, nadie comprenderá jamás lo que [ deseas, lo que serás. No eres del pasado, no eres del futuro; no tienes edad... Sólo se que eres la más minera ciudad de Minas Gerais... Ni geometría, ni estilo europeo, ni invasión americana [ de bungalós modernos.
  • 21. Derniecri Tus casas son largas casas mineras hechas en previsión de muchos huéspedes. No hay en ti el terror de las ciudades plantadas en la selva virgen. Ni el rugir de los ómnibus atrasados, llenos de gente con prisa. Ni los dísticos de aquí estuvo, aquí sucedió. Ni el tintín áspero de los panaderos. Ni la bocina incómoda de los tintoreros. Tus lecheros aún llevan la leche en borricos, los panaderos dejan el pan en la ventana (ciudad minera). Tu amanecer es suave. Qué alegría tener sólo gente conocida, hace que tu habitante se vuelva [ a saludar a todos los que pasan. Delicia de no encontrar extranjeros de mirada aguda, experta [ mano, que sospechan riquezas en las tierras. Alegía de los Fordes jugando (son dos) en la plaza. (Después dormirán juntos en un mismo garaje). Jacaré ! João Arara! João Gostoso ! tus tipos populares. La muchachada les tira piedras y ellos se vuelven imprecando. Rondas alegres de niñas en las calles, por las tardes, sin peligro [ de vehículos, papagayos que se estorban en los cables de luz, globos que suben, fogatas obligatorias en las fiestas de llegada del jefe político. Jardines donde niñas ariscas pasean media hora sólo antes [ en el cine. Aire tibio y sensual de voluptuosidad hermosa que vibra en tus tardes lluviosas, cuando las goteras mojan a los [ transeúntes y golpean isócronas en los paseos frustrados. Hay en ti la delicia de la vida que pasa porque vale la pena pasar, que pasa sin darse cuenta, sin suponer que se va transformando. En ti se duerme tranquilo sin guardias nocturnos. Mas con el cricri de los grillos, el ranran de los sapos, el sueño es tranquilo como el de un niño de pecho. Vale la pena vivir en ti. Ni inquietud, ni peso inútil de recuerdos Mas confianza que nace de las cosas que no cambian bruscamente, ni permanecen eternas. Tradução para o espanhol de Alberto Acosta
  • 22. Emerson Teixeira Cardoso Poema que não realizei Poema não realizado É um caso de polícia Interrogar a palavra e encontrar uma pista É caso que se resolva? Contanto que se desista contanto que se decida. Pois é descendo no poço No fundo do poço/vida Poema que que já não se faz menos que se investiga e a dor é malograda os poetas que o digam pois quando vai poetar na rima que o bendiga vá o poeta buscar a frase na sua escrita o poema não achado na alma que investiga
  • 23. Tomas Tranströmer Tomas Tranströmer é um poeta, tradutor e psicólogo sueco nascido em Estocolmo em 15.04.1931. Sua poesia tem uma grande influência na Suécia e em todo o mundo, sendo ele o poeta sueco mais traduzido: os seus poemas estão traduzidos em mais de trinta línguas. Recebeu numerosos prémios literários, como por exemplo o Prémio Literário do Conselho Nórdico em 1990 e o Prémio Nobel da Literatura em 2011. Tranströmer iniciou-se na poesia aos 23 anos de idade. O seu primeiro livro intitulava-se 17 dikter (17 poemas). A maior parte da sua obra é escrita em verso livre, embora também tenha feito experiências com linguagem métrica. Foi psicólogo de profissão até 1990. Redigiu cerca de uma quinzena de obras numa longa carreira dedicada à escrita. Em 1990 foi vítima de um acidente vascular cerebral que o deixou em parte afásico e hemiplégico. Continuou a escrever e publicou três obras, como O Grande Enigma: 45 Haikus. Funchal Na praia, o restaurante, qual simples cabana levantada por náufragos. Muitos dão meia-volta ao chegar à porta, mas não os pés de vento vindos do mar. Num compartimento fumegante, um vulto, de pé, frita dois peixes segundo uma antiga receita do Atlântico: pequenas explosões de alho, azeite que ensopa rodelas de tomate. Cada garfada diz-nos que o oceano nos quer bem, é um canto a meia voz vindo do profundo. Olhamos um para o outro, ela e eu. É como subir por aquelas encostas acima, cobertas de flores silvestres, sem acusar o menor sinal de fadiga. Já vivemos tantas experiências juntos, recordamos nós, até momentos de que não éramos especialmente merecedores (como quando nos pusemos na fila para dar sangue ao gigante do bem-estar — ele tinha ordenado transfusões), acontecimentos que nos teriam separados se não nos tivessem unido, e recordámos casos que esquecemos juntos — mas que não se esqueceram de nós! Foram pedras, umas escuras, outras claras, pedras de um mosaico delapidado. E agora sucede isto: os cacos que esvoaçaram reúnem-se, o mosaico fica restaurado. Fica à nossa espera. Da parede do hotel refulge um design violento e terno, talvez seja até um rosto, não conseguimos aperceber-nos tal a pressa com que nos livrámos das roupas. À tardinha, saímos. A pata enorme, de um azul-escuro, que é o cabo, parece ter sido atirada assim para o mar. Entramos no redemoinho de gente: encontrões amistosos, suaves controles, toda a gente a falar com vivacidade o idioma estrangeiro. “Ninguém é uma ilha.” Fortalecemo-nos com os outros, mas também com nós próprios. Com aquilo que, dentro de nós, o outro não vê. Aquilo que tem o seu igual só em si mesmo. O paradoxo mais profundo, a flor que brota do chão da garagem, o ventilador voltado para o negrume benéfico. Uma bebida efervescente num copo vazio. Um altifalante que emite silêncio. Um atalho que fica intransitável à medida que por ele avançamos. Um livro que só pode ser lido nas trevas.
  • 24. Antônio Jaime Nome da Rosa em JF Fosse eu um bom menino, teria ido estudar “pra padre”, como diziam na roça. Mamãe e outras mulheres viviam insistindo. Uma freira chegou a fazer uma apologia da vida monástica, mostrando, ao final, uma foto de Pio XII e dizendo que eu poderia chegar lá. Já padre Ernesto, que, entre outras, me batizou, sequer tocava no assunto, dizia que vocação tem que brotar da pessoa. O diabo é que eu não sabia o que significa vocação, e tome culpa. Em retrospecto, poderia ter sido proveitoso, no mínimo, eu teria uma cultura clássica, que tanta falta me faz. Feito um primo que chegou a usar batina, mas, na Hora H, trocou-a por uma moça bonita e traz seu grego, latim e outras sabenças na língua e na cabeça. É juiz de direito e deu aos filhos a melhor educação, maneira mais eficaz de resolver os problemas terrenos. Estes, por sinal, são prioridade entre os protestantes, cujos países são os mais eficientes, a começar pela erradicação do analfabetismo, para todos lerem a Bíblia. De forma que meu único contato com Seminário foi quando passamos uma semana naquele que fica à entrada de Juiz de Fora. Exibimos para os padres o filme Francisco, arauto de Deus, de Roberto Rosselini e umas coisas que fazíamos, inclusive um tal Romance Louco, do qual não faço mais a menor idéia. Encenado no morro atrás do prédio, onde mulher não podia entrar, mas Dodoca, então futura senhora Paulo Martins, líder do grupo, deu um jeitinho e participou. Lugar de mulher, lá, era na cozinha. Também deram uma namoradinha, morro acima, por entre as árvores e houve outras heresias. Coisas de jovens, Deus perdoa. Da parte deles, padre Lara tocava órgão e disse que este antes fora metodista, mas se converteu. Uns noviços tocavam numa bandinha, pintavam quadros sacros e havia um poeta, de olhar beatifico. “A floresta é linda/ao amanhecer”, um de seus versos. Um deles me deu uma carona em sua lambreta e esta não queria pegar. Depois de várias tentativas, soltou um sonoro “Merda!”, mas bateu incontinenti na boca e corrigiu: “Jesus!”. E a lambreta pegou. No vigor da juventude, e rigor do inverno, mergulhávamos às seis da manhã numa piscina natural, água da montanha, estupidamente gelada. Já a cerveja, feita lá mesmo, segundo receita holandesa, era sem gelo. Fumavam cigarros de palha e mantinham um viveiro de cobras que pegavam para enviar ao Butantan. Não participamos de ofícios religiosos e depois soubemos que o da lambreta também trocou a batina por uma mulher. O mais impressionante, lá, mistério dos mistérios era o fruto proibido da biblioteca deles, um livro da Idade Média, envelopado e costurado em couro, só poderia ser aberto com o nihil obstat do Vaticano. O que poderia inspirar a Umberto Eco um novo O Nome da Rosa. A mim, lembrou “... et antiquum documentum...”, verso de Tantum Ergo, o cântico dos cânticos gregorianos, creio que anterior ao ano 1000. Era o hino que mais me aproximava de um estado de espírito, por assim dizer, elevado, o que só se sente diante da grande arte. Daí, concluo: a Igreja teve grandes artistas a seu serviço, em música e artes visuais, e os dispensou. A liturgia virou pagode, azar da humanidade.
  • 25. José Antonio Pereira Uma carta e seus destinos Atravessou a praça, absorto, cabeça no desastre da véspera. Tudo errado. Planejara detalhe a detalhe. Comprara até um botão de rosa. A rosa, como ele, sofreu com a cena. Foi esmagada pela mão esquerda. Seus espinhos, reagindo à violência, sangraram-na em vários pontos. Uma buzina, um palavrão, vê-se no meio da rua. Volta, senta-se em um banco da praça vazia. Uma folha de amendoeira, ao vento, cai aos seus pés, olha-a detidamente. Forma, cor, volume, se soubesse desenhar? No banco uma folha de papel contida em suas dobras, vincadas com esmero. Abre-a. É uma carta. Linhas de uma escrita suave, letra de calígrafo. Percorre-a, linha a linha, sem se atinar ao texto. Quem seria o autor? Como seria o dono de tal mão? Mão hábil, grande desenhista, não seria um oriental? O gosto pela delicadeza da escrita japonesa o leva a imaginar o nanquim secando no papel arroz. Dobra a carta novamente, coloca-a no mesmo lugar. Volta ao seu infortúnio. Não relevaria mais uma traição... Não era a primeira vez que a via no portão aos beijos com outro. A paixão toma o outro rumo. Chegara a hora de um ponto final. Mas como? Nunca teve coragem de encara-la olho no olho. Volta o olhar à carta, ela permanece ali. Sedutora, acaba o atraindo definitivamente. Com medo põem-se a ler. Seu rosto avermelha-se a medida que avança pelo texto. Tudo que queria dizer estava ali. Escrito com elegância e refinamento. Sente-se fortalecido e toma a decisão. E sai rumo ao seu destino, sugerido pela carta. Na capela mortuária dois corpos são velados. Todos sem entender, se indagavam sobre o porquê de dois suicídios no mesmo dia. De um lado, uma mulher, tendo ao teu lado, de pé, um choroso enamorado que lamenta ter perdido a última carta de sua amada. Doutro um homem, em sua solidão mortuária, tem sentada a certa distância uma jovem que o excomunga sem parar. – Babaca, aquela carta foi escrita por uma mulher. Ele com certeza me traía com ela. Covardão deve ter pedido a ela para escrever a carta. Ainda teve a petulância de dizer que me amava e era fiel. Foi tão covarde que sem coragem de me encarar preferiu suicidar- se.
  • 26. Eltânia André É uma escritora cataguasense, residente em São Paulo SP. Autora dos livros de contos Meu nome agora é Jaque (contos, Ed. Rona, BH, 2007) e Manhãs Adiadas (Prêmio ProAC da Sec. de Cultura de SP 2011, Dobra Editora, SP, 2012). Manhãs Adiadas, está entre os trabalhos selecionados pelo prêmio Portugal Telecom 2013. Antes de ler “Divina Commedia” Fui a Florença não apenas pelo prazer turístico ou gastronômico, mas como se houvesse uma cisão entre passado e presente e eu pudesse separá- los. Adentrar o mundo medieval, apesar dos entraves psicológicos das grifes e dos casacos de peles que abrigavam os corpos das turistas contra o frio intenso. Um grito vindo de Trieste: “o presente imperioso ressurge e ofusca o passado. Salve, Svevo! Eu queria sentir talvez um cheiro, uma sensação, a magia de dar de cara com o mundo dantesco. Estávamos, diziam: no berço do Renascimento, eram os guias com suas sombrinhas-tochas marcando o seu gado. Embutida na experiência metafísica, o futuro da leitora: aquecia- me mergulhar nas páginas da Divina Comédia. Eu e ele, a sós. Florença, a capital da Toscana; Firenze, a pátria de Dante. Construíram o túmulo do poeta, mas ele não retornou nem mesmo depois de morto, seus restos mortais estão em Ravena. Na Basílica Santa Cruz, a inscrição: “Onarate l’altissimo poeta” – “Honra ao poeta mais exaltado”. A cidade surpreende, emociona. Nas constantes idas e vindas para o Hotel Regina, acomodação humilde, perdia-me pelas ruas da cidade; andava sem rumo, buscando conhecê-la sem estratégias, livre. Cadê Dante? Imaginava-me tangenciando seus passos. Um dia, passei num supermercado e comprei uma caixa de morangos, poucos metros e estava novamente na Ponte Vecchio, o rio Arno em sua imponência milenar, imaginei: o encontro fugaz de Dante e Beatrice Portinari. Ela acena a cabeça, os lábios escondem o sorriso aberto, passos lentos; ele não reconhece-a de imediato, tão miúda; tumulto de vozes e máquinas fotográficas; eu a chamo, mas vã tentativa, logo perdem-se no espaço. Dante, comprometido desde os doze anos com Gemma Donati, viriam os filhos Pietro, Jacopo e Antônia, o amor mítico destinado a eternizar-se nas palavras, no livro, no Paraíso. Não adiantaria o reencontro naquela tarde. Às vezes, parada para um chocolate quente ou um bom vinho, sonhar, ver a orquestra de Toscana e o Nanni Moretti com seu discurso em favor de si mesmo, viagens de trem, Bolonha e tantas outras viagens rápidas, neve em Siena. Ah, Siena! Mas, tinha que voltar. Aqui estou! Com o livro em minhas mãos, tradução de Italo Eugenio Mauro, editora 34. Cheira a novo. Desafia-me. Entretanto, Carpeaux diz-me com convicção: esta não é como as outras epopeias, você lerá como se fosse obra de hoje, não se intimide. Animo-me mais. Detive- me, basicamente, nas orientações de Otto Maria Carpeaux, e aula introdutória do professor Giuseppe Mazzota da universidade Yale. Muitos já sabem que a o nome original da obra era Comédia, o adjetivo “divina” foi acrescentado posteriormente. No título já está implícito que a viagem poderá ser permeada de obstáculos, mas terá um final feliz. Pode-se considerar que além de épico é também uma obra autobiográfica. Mazzota sugere que pensemos no grande poema como uma enciclopédia, como um círculo de conhecimento que é estruturada para educar.
  • 27. Autobiográfica, porque também diz do processo pelo qual Dante passou para conhecer o mundo; o significado de ética como a visão de si mesmo e do mundo ao redor. É Dante que narra todo o percurso, Paraíso, Purgatório e Paraíso, guiado pelo poeta romano. Ele, homem político, imagina uma viagem imaginária pelo território de Deus e se propõe a falar sobre o percurso; a política e a retórica, problemas vistos como de fala, de argumentação. Há contradições na biografia de Dante, vou considerar a que mais me surpreendeu. Nasceu em Florença em 1265, apesar de ter alegado nobreza, ele era de família humilde. Envergonhava-se de seu pai, que vivia constantemente envolvido com empréstimos a juros, era um agiota daquela época, por isso não citava o pai. Quando tinha oito anos de idade, morre sua mãe e aos nove conhece Beatrice, mulher que nunca mais esqueceu. Numa análise psicológica, o seu amor pela vizinha tem o DNA do amor maternal, o amor generoso; a protetora que recorre a Virgílio para guiá-lo em sua viagem e a representação do próprio Paraíso. Outro encontro importante na história de Dante foi seu ingresso na Escola de Florença. Foi lá que ele conheceu seu inesquecível professor: Brunetto Latini; dele vai falar para sempre, apesar de mandá-lo para o Inferno – lugar onde revê o mestre querido. Brunetto civilizou a cidade de Florença com a arte da retórica, persuadia o Parlamento, um rétor, grande orador, estudioso de Cícero e considerado um Embaixador para Florença. Com sua morte, Dante segue seus passos e entra para a política. Mazzota considera esse o grande erro de Dante. Erro porque ele tem que enfrentar duras batalhas partidárias entre os Guelfos com total lealdade à Igreja – divididos em duas facções: os brancos e os negros; e os Gibelinos leais ao Império. Dante, a exemplo de Brunetto, torna-se Embaixador para Florença. Durante conflitos políticos, em 1302 vai ao encontro do Papa em uma embaixada e numa mais volta à sua terra natal. Exílio. Armações políticas levaram-no ao exílio, banido da cidade pela qual tinha tanto afeto, suas propriedades confiscadas, advertido que seria condenado à morte, caso retornasse a Florença. Na era medieval, o exílio era recebido como uma punição extrema, severa, pois se considerava que o valor da pessoa era proporcional à posição que ocupava dentro da cidade. Se expulsa, a pessoa não valia nada. Ele vaga de uma cidade a outra. Apesar do sofrimento, o afastamento compulsório também é seu renascimento. Longe de sua cidade, ele defendia mais lealdade aos interesses e filosofias partidárias. Não precisava mais ser um Guelfo ou um Gibelino, podia ser o peregrino do poema. Livre dos entraves internos dos partidos políticos, podia almejar uma reflexão transcendente sobre o mundo, sobre a política, sobre os problemas da cidade. O exílio é a história do poema, o homem é removido da sua cidade; em conseqüência passa a enxergá-la melhor. A Divina Comédia é também um projeto ousado de linguagem, numa época em que tradicionalmente só se escrevia em latim, Dante compõe sua obra em italiano, renovando a literatura, impondo sua língua pátria. A esperança de Dante de ver as portas de Florença abertas para ele, novamente não se concretizou nem mesmo quando concluiu a sua Comédia. Ele morre em Ravena, sem conseguir retornar a Florença. Agora, posso sentar-me na cadeira e seguir a partir da página 29. A primeira palavra em letras maiúsculas: I N F E R N O.
  • 28. Adelto Gonçalves Adelto Gonçalves é mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, umGonzaga, umGonzaga, umGonzaga, um Poeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do IluminismoPoeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona BrasileiraBarcelona BrasileiraBarcelona BrasileiraBarcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e BocageBocageBocageBocage –––– o Perfil Perdidoo Perfil Perdidoo Perfil Perdidoo Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br Claudio Sesín: o poeta dos ocasos catamarquenhos I Quem estuda as letras hispano-americanas nas universidades brasileiras, dificilmente, entra em contato com a literatura contemporânea dos países vizinhos. É o que se dá com a literatura argentina, da qual se conhece Jorge Luis Borges (1899-1986), Adolfo Bioy Casares (1914-1999), Julio Cortázar (1914-1984), Roberto Arlt (1900-1942), Horacio Quiroga (1879- 1937), Oliverio Girondo (1891-1967), Juan José Saer (1937-2005), Alfonsina Storni (1892-1938), Juan Guelman (1930), Rodolfo Alonso (1934) e outros, mas quase nada da geração mais recente. E não se diga que seja uma geração muito jovem porque a maioria já passou dos cinqüenta anos de idade. Não se pode jogar a culpa sobre os professores. Se hoje este articulista conhece uma boa parte de autores argentinos só tem a agradecer ao seu orientador no mestrado, o professor Mario Miguel González (1938- 2013), nascido em Alta Gracia, Córdoba, que sempre se preocupou em falar dos poetas que apareciam na Argentina, ainda que estivesse radicado no Brasil desde que fora contratado pela Universidade de São Paulo (USP) em 1968 e fosse brasileiro naturalizado. Com o desaparecimento de González em fevereiro último, perderam a literatura argentina e a hispano-americana talvez o seu maior divulgador no Brasil. Esse desconhecimento pode ser atribuído à devastação cultural promovida pelas ditaduras militares de direita que infelicitaram tanto Brasil como Argentina e à crise econômica que levou ao fechamento de vários suplementos e revistas culturais tanto lá como aqui, resultado talvez do empobrecimento intelectual das classes médias. Na segunda metade da década de 1970, o Versus, de São Paulo, jornal-tablóide cultural criado pelo jornalista Marcos Faerman (1943-1999), era uma espécie de filhote da revista de crítica cultural Crisis, que circulou em Buenos Aires de 1973 a 1976 e teve em sua direção, primeiro, Ernesto Sábato (1911-2011) e, depois, o uruguaio Eduardo Galeano (1940), que, em 1976, acossado pelo regime do general Jorge Rafael Videla, transferiu-se para Barcelona e de lá enviava colaborações para o Versus. Àquela época, diga-se de passagem, havia na Argentina, ao contrário do Brasil, pelo menos alguns empresários que tinham preocupações culturais e praticavam o mecenato. Era o caso do empresário, advogado e engenheiro-agrônomo Federico Vogelius (1920-1986), que fundou a Crisis à época do retorno do peronismo ao poder e a manteve até que a ditadura militar o atirou ao cárcere por três anos, período em que passou por várias sessões de tortura. Em 1986, Crisis voltaria a circular, também por empenho de Vogelius, mas por poucos meses. Já as despesas de Versus saíam das economias domésticas de Faerman e do seu salário como repórter do Jornal da Tarde, de São Paulo.
  • 29. II Mas a que vêm estas reminiscências? Vêm a propósito de dizer que, tal como no Brasil de hoje, há uma poesia em grande efervescência na Argentina e que, da mesma forma, é pouco conhecida porque, decididamente, houve em ambos os países um empobrecimento cultural avassalador. Entre os nomes que constituem a nova poesia argentina, pode-se citar Claudio Sesín, Eduardo Dalter, Arturo Herrera, José Emílio Talarico, Sofía Vivo, Alejandro Acosta, Mirta Popesciel, Daniel Chirom, Ricardo Ruiz, Elizabeth Molner, Gisele Rodríguez e outros. Um poeta que constitui um exemplo dessa nova poesia argentina é Claudio Sesín (1959), praticante de “uma poética renovadora, que retoma o projeto lírico, sem abandonar o compromisso com a crítica social”, na definição do poeta e crítico Ronaldo Cagiano, um dos poucos que têm tido a preocupação de reconstruir as pontes culturais com a Argentina e outros países latino- americanos. Poeta de Catamarca, região noroeste da Argentina, vizinha a Oeste do Chile, de paisagens montanhosas e crepúsculos deslumbrantes, cuja capital San Fernando del Valle de Catamarca fica a mais de mil quilômetros de Buenos Aires, Sesín sempre foi um poeta cercado pelos cumes nevados da cordilheira e isolado em sua província. Como se tivesse optado por viver um desterro permanente e que, por isso, reluta em largá-lo. Até mesmo quando sai de sua terra, a viagem é parte do seu exílio. É o que diz no poema “El árbol” que faz parte de seu livro El Signo del Crepúsculo (Buenos Aires, Editorial Dunken, 2006): Cuando uno se dirige a la frontera, el viaje es una parte del exilio. (....) (....) Sentir y hasta querer este destierro. El hombre se acostumbra a la tristeza. Um árbol infinito con ramas de tinieblas ensombrece la ausencia, la apacienta. Donde voy a llorar, entre qué brazos? Siempre es llorar por uno, este viajar en sombras por la niebla. III Como observa o poeta Arturo Herrera no prólogo que escreveu para este livro, a poesia de Sesín é exatamente oposta à retórica e contorções lingüísticas que se vê em demasia na poesia pós-moderna. Para ele, este livro deveria ter como título Libro de la Permanencia ou apenas Permanencia porque “a maioria das composições sustenta este conceito como uma solitária pedra na palma da mão aberta e ao seu redor se modulam as distintas sensações do tempo”. O título do livro, no entanto, provém do poema “El signo del crepúsculo” que fecha a obra e que, em sua estrofe final, diz: (...) Hoy me dejo llevar a la extensión del tiempo y voy, un peregrino de mi suerte, buscando qué lugar, qué detalle en penumbras en quién sabe qué imagen, qué piel o qué tristeza, esta felicidad por los ocasos. De fato, a passagem do tempo parece fascinar o poeta e constitui palavra-chave de El Signo del Crepúsculo, ao lado do sentimento de perda que acompanha o homem quando encara o ocaso de sua vida e a inutilidade de acumular tesouros na terra, como se pode ler também no poema “Los comediantes”: (...) A veces creo que el tiempo que nos lleva es un viejo gitano en sus caprichos, que nos compra y nos vende con sus dichos, y tan sólo nos deja en nuestras manos, un sueño sin edad de algún verano y el volver a vibrar del precipicio. (...) IV Claudio Sesín nasceu em Villa Dolores, Valle Viejo, mas passou toda a sua infância em Pomán, província de Catamarca. Foi em 1983 que começou a publicar seus escritos em jornais de Catamarca, especialmente poesia, prosa poética e relatos breves. Desde 1986, integra o Movimento de Escritores pela Liberação (MEL), de Córdoba, e em 1987 passou a fazer parte da redação do periódico cultural El Cronopio, daquela instituição. De 1996 a 1997, colaborou com as revistas Cain e Gaia, de Catamarca, e Cultura Abierta, de Buenos Aires. Em 1993, publicou o seu primeiro livro de poesia, La Barbarie, edição de autor. Em 1997, publicou o seu segundo livro, El Círculo de Fuego, também edição de autor. Em 2008, lançou El Libro de los Poemas Casuales/O Livro dos Poemas Casuais (Buenos Aires: Editorial Dunken) em edição bilíngüe com traduções para o português por Anderson Braga Horta e Antonio Miranda. EL SIGNO DEL CREPÚSCULO, de Claudio Sesín. Buenos Aires: Editorial Dunken, 80 págs., 2006. E-mail: info@dunken.com.ar Site: www.dunken.com.ar
  • 30. Emerson Teixeira Cardoso Carteira de cronista Em uma linguagem que remete ao Salinger de O apanhador do campo de centeio, José Antonio busca num tempo perdido (e no agora) da mítica infância/adolescência o assunto de suas deliciosas crônicas. E aí está a sua maior qualidade: técnica sui generis aliada à memória cinematográfica. Mas é ele um autor inédito? Mais ou menos: José Antonio integrou o quarteto que veio a se chamar “Os cronistas da rua Alferes”, em referência ao livro que publicou com Vanderlei Pequeno, Emerson Teixeira Cardoso e José Vecchi. Portanto, é quase inédito, exceto pelos artigos e contos publicados na e-zine Chicos, alguns constando deste Fantasias de Meia Pataca. José Antonio escreve e consegue o que é indispensável na boa prosa: unir o sentimento à arte, pois o sentimento é arte, e ambos são expressão. O livro, quando nos leva à representação da infância, evoca nomes, lugares, firmas comerciais, acontecimentos políticos, festas populares, como as quermesses da igrejinha do Rosário, o carnaval, de onde resgata a gostosa marchinha Citran de Cataguarino: “Citran de Cataguarino chegô...ô...ô...ô... Trouxe um varau de galinha... uma cestinha de ovos... Citran de Cataguarino chegô”. O lado Macunaíma é revelado na ironia existente em outras faces de seu estilo: Milagres de economistas; O meu mil novecentos e sessenta e oito; Primeiro de abril de 1964; e Não é minha culpa. Pedi a um jovem que desse uma olhada nos originais de Fantasias de Meia Pataca e depois perguntei o que havia achado do livro. E ele: “Na crônica A vila, depois de dizer o que essa vila era para ele em sua infância, José Antonio completou: ‘Notei que meus amigos estavam engrenados num papo sobre futebol. Acho que até o leitor me abandonou’. Pelo contrário, o meu interesse no livro ali apenas começou” – emendou o rapaz. Seu lado cinematográfico nos leva a perambular pelo Bixiga dos anos 80, sua Roma paulista. Somente mesmo um cinéfilo de carteirinha para nos guiar pelo felliniano bairro, estabelecendo correspondência com a emblemática capital italiana, com direito à Fonte de Trevi e Anita Elkberg em La Dolce Vita. Entre mentiras, verdades e fantasias rolavam muito papo e cerveja. Pelas mãos de Ady Resende, é singela homenagem que nos remete ao início dos anos 70, quando tivemos as primeiras impressões do colégio de Niemeyer. Para chegar ao artesanato popular, o mestre nos guiava pelas barras gregas, o desenho geométrico, o artístico, com sombras e perspectivas, e a pintura propriamente dita, com o necessário aprendizado das cores básicas. Apenas depois de passar pelos clássicos Rembrant, Matisse, Van Gogh, Toulose Lautrec e Portinari, que ainda estava ali, na nossa cara, causando estranhamento. Para terminar estas já longas considerações acerca do belo livro de crônicas do José Antonio, destacarei o Barbastião, os dois, o bar e dono. Infelizmente já extintos, ressurgem nas figuras do Cossaco, Rubão e outros bebuns anônimos e incorrigíveis, onde, nas sextas-feiras, como nas outras também, era servido regiamente o tradicional café dos três efes: frio, fraco e fodido. Entra Vasco era a senha para voltarem os olhos para a calçada quando mulher bonita passava pela porta do boteco. Quem se arvorar à leitura deste Fantasias de Meia Pataca não se arrependerá da empreitada. O José Antonio tem bala.
  • 31. Antônio Jaime Sobre: O Caso da Menina que perdeu a voz Fernando Abritta estreou em livro com 'umÁrvore', viagem poético-ecológica pelo que se pode chamar o Brasil profundo, o das riquezas naturais, seu povo e costumes. Depois, ilustrou com desenhos o livro 'Uma verde História', escrito por Joaquim Branco. Também, com desenhos seus, finalizados sobre tecido, em ponto-cruz, numa caprichadíssima edição, ele agora está todo prosa, no livro 'O Caso da Menina que Perdeu a Voz'. Neste, Fernando descreve uma aventura empreendida por Menino, Moleque, Gavião, Curicaca e BeijaFlor , numa expedição do balacobaco, em meio a incontáveis contratempos, na missão, para eles, sagrada, de resgatar a vozque Menina perdeu. Pelo caminho, enfrentam perigos e mais perigos, sem falar de pedras que conversam, criaturas assombrosas, os CruzCredo, os CredoemCruz, o Gigante misterioso, a beldade com um estranho colar que tem vida própria, o escambau a quatro. Extensa galeria de personagens que mantêm o leitor aceso, ligado, grudado na história, sentindo-se parte dela. Livro conduzido numa escrita simples, ágil e sem gramatiquices, feito o vocabulário de seus pequenos personagens. Pé no chão e cabeça lá nas grimpas dos morros de Cataguarino, onde nasceu Fernando, em 1950, neto de Boaventura Abritta, educador respeitável, a ponto de ter impedido uma briga de foice, com um simples raspar de garganta. Esta e outras façanhas, que incluem histórias pitorescas de valentões, jagunços, almas penadas, típicas do meio rural, alimentaram a imaginação de Fernando e incutiram em sua personalidade o gosto, verdadeiro amor , pela natureza. Imaginação que não para de dar frutos, tanto que já tem mais um livro pronto, chamado 'MulaSemCabeça', outro mergulho desenfreado em situações absurdas, encantatórias, ainda em fase de edição. Pronto para ser lido, está este 'O Caso da Menina que Perdeu a Voz'. Lido e ouvido, pois vem acompanhado de um CD em que atores narram a trama, interpretando os personagens, todos os ingredientes para fazer do livro um clássico, no gênero. E tem cacife para inspirar uma boa peça de teatro, filme, história em quadrinhos, até seriado de TV . Curicaca neles, Fernando.
  • 32. Ronaldo Brito Roque Zoom em Cataguases Nasci em Cataguases e não pude evitar a infância do cataguasense típico. Joguei bola ao lado de um mural de Portinari, estudei num colégio projetado por Oscar Niemeyer, dei meus primeiros beijinhos em frente a uma igreja exótica, de arquitetura sui generis, quase surreal (não digo que fosse surreal porque estava de pé). Mas, como qualquer criança de dez anos, eu não fazia a menor idéia de como essas coisas eram raras e valiosas. Minha cabeça infantil imaginava que qualquer cidade brasileira tinha seus murais cubistas, suas igrejas extravagantes e seus colégios longilíneos, com rampas e corredores intermináveis. Só comecei a perceber que Cataguases tinha algo de especial quando conheci cidades vizinhas, como Leopoldina, Astolfo Dutra, Barbacena e similares. Então compreendi que o cataguasense desfruta de uma posição privilegiada. Temos, na esquina ao lado, um acervo artístico que outras cidades de mesmo porte não possuem nem em seus museus. Essa experiência bastaria para despertar definitivamente minha curiosidade e meu gosto pela arte. Mas, no meu caso, o destino quis ser ainda mais generoso. Por uma série de golpes da sorte, vim a conhecer certas figuras cataguasenses que estiveram visceralmente ligadas à história da cidade. Washington Magalhães morava perto do escritório dos meus pais, e me emprestou exemplares da famosa revista Verde. Emerson Teixeira Cardoso me emprestou livros de Rosário Fusco e Chico Peixoto, e publicou, na extinta Trem Azul, alguns dos meus inevitáveis versos de juventude. Antonio Jaime e Fábio de Paula (nosso querido Fabinho) me falaram dos festivais de música popular, me mostraram, às vezes recitando de cor, poemas e canções de Carlos Moura, Ronaldo Werneck, Joaquim Branco. E assim fui descobrindo que a história artística de Cataguases não se limitava à materialidade das artes plásticas. Tivemos poetas e escritores que influenciaram o resto do Brasil e gravaram definitivamente o nome da cidade na história nacional. E tive a sorte de conhecer o trabalho deles, não em salas de aula, diante de professores indiferentes e mal pagos, mas em mesas de bar, bebendo com pessoas que realmente gostavam do que estavam falando. Algumas cervejas ao lado de Emerson, Antonio Jaime e Fabinho, me desculpem a franqueza, valeram dez vezes mais que uma palestra sobre modernismo brasileiro numa universidade federal qualquer. Quem duvidar que os convide para uma noitada e comprove pela própria experiência. Mas, se por um lado fui brindado com esses depoimentos vívidos e saborosos, por outro fiquei com a impressão de que a vida cultural de Cataguases era um fato que pertencia ao passado. Todas aquelas coisas memoráveis de que Emerson e Antonio Jaime me falavam, o festival de música, o sucesso de Maria Alcina, as aventuras d’O Anunciador, tudo isso tinha acontecido vinte ou trinta anos atrás. Eu tinha a sensação de que meus próprios amigos não tardariam a se tornar peças de algum museu municipal e a história da cidade morreria com seus últimos suspiros.
  • 33. Essa sensação se intensificava quando eu percebia que os jovens da minha idade nem sequer sabiam quem fora Rosário Fusco ou Ascânio Lopes. Recitar de cor um poema de Ronaldo Werneck ou Joaquim Branco, infelizmente, era coisa de velhos excêntricos que não aumentava em nada a minha popularidade com as garotas. O presente da própria cidade parecia estar relegando sua história a uma espécie de porão sombrio onde esquecemos os brinquedos e as quinquilharias inúteis. Foi então que o destino providenciou uma nova série de coincidências que me mostraram que a vida cultural de Cataguases estava bem viva e ainda por cima disposta a interagir comigo. Um dia presenteei meu pai com um CD de Césaria Évora, e, ao ver a gorda zarolha na capa, ele exclamou, surpreso: “Já vi esta senhora aqui em Cataguases.” Mais surpreso fiquei eu, pensando que ele tivesse abusado do café ou de bebidas mais fortes. Mais tarde descobri que ele não havia alucinado. Cesária Évora estivera mesmo em Cataguases, para nada menos que um festival internacional de cinema! Poucos anos depois Geraldo Filho me convidou a participar de um festival nacional de literatura, o surpreendente Felica. Tive a chance de falar um pouco sobre meus primeiros passos como escritor, e ainda o prazer memorável de palestrar na mesma noite que Emerson Teixeira Cardoso, que fora, como mencionei, meu professor informal e uma personalidade marcante da minha juventude. Foi sem dúvida uma noite que não esquecerei. Mais tarde tomei conhecimento, na Casa de Leitura de Cataguases, do trabalho encantador do grupo GPTO, cuja qualidade é evidentemente de nível internacional. Na mesma tarde, quando fui agendar o lançamento do meu livro, descobri, atônito, que a cidade lança quase um escritor por mês, uma média muito acima das outras cidades brasileiras. Na semana do meu lançamento, resolvi passar uns dias na cidade e fui brindado com mais surpresas positivas. Descobri, por exemplo, a Revista Tic-Tac, periódico independente que funciona há anos sem nenhuma ajuda da administração pública local. Flanando pelas ruas do centro, fui dar numa espécie de casarão antigo que funciona como teatro amador. A peça que estavam levando era divertida e bem escrita, e tive a impressão de que falta pouco para o teatro infantil de Cataguases chegar ao nível de qualidade das nossas capitais. E já que comecei a fazer, inadvertidamente, essa espécie de lista de realizações culturais recentes, não posso deixar de mencionar duas outras publicações que me chamaram a atenção. O livro “Alma de Brinquedo”, de Leonardo Campos, que deveria ser publicado e distribuído por uma editora de abrangência nacional; e a revista literária amadora “Chicos”, que não raro traz textos de uma qualidade excepcional e, na minha modesta opinião, também merece ser conhecida num âmbito maior que o interior de Minas. Pelas minhas parcas informações, essa é outra publicação que não conta com nenhum tipo de apoio da administração municipal, sendo tocada exclusivamente pela iniciativa e boa vontade do seus editores. Claro que essa condição, aos meus olhos, só a torna ainda mais meritória. Resumindo minhas descobertas dos últimos anos, só posso dizer que a vida cultural de Cataguases continua rica e variada como sempre foi. Os cataguasenses continuam um povo privilegiado frente a seus vizinhos mineiros. Quantas outras cidades, com menos de cem mil habitantes, contam com periódicos independentes, com teatro infantil de qualidade, com livros lançados à proporção de um por mês, e escritores dignos de visibilidade nacional? Vendo tudo isso de longe só posso dizer que a cidade merece sua fama de jóia mineira, e o povo cataguasense deve fazer o que estiver a seu alcance para conservar e renovar incessantemente a riqueza e a variedade da sua vida cultural.
  • 34. Chicos Sebastião Nozza Bielli Lotti Propriedade particular A cidade vai fechando os horizontes. O descampado onde os parques e os circos são armados – também onde, pela manhã, faço alguns exercícios –, um dos elementos que compõem a vista relativamente aprazível que observo da minha janela, com o Cristo no morro do BNH (raquítico, ao lado da torre de TV), as árvores e as palmeiras, agora é uma propriedade privada. Colocaram a placa e alguns operários já estão terminando a cerca de arame farpado. Luiz Antônio, “o homem dos cachorros”, como ficou conhecido pela turma que faz caminhada pela alameda das palmeiras, continuando até a entrada da Vila Reis, me fala não saber se vai ser um condomínio. Ele construiu uma barraca de plástico preto onde passa a maior parte do tempo, apesar de ter uma quitinete alugada, e improvisou, com refugos de madeira e outros materiais,pequenos abrigos individuais para os seus acompanhantes. Todos pretos e saudáveis. Ele diz que não está muito preocupado, porque ganhou um terreno, lá pros lados da Taquara Preta, onde pretende alojá-los em melhores condições. Comentou sobre a época em que os recolhiam pelas ruas, levando-os a Viçosa para serem exterminados. Chegamos também a comentar que a plataforma de um vereador recém-eleito, o Aquiles Branco (cuidado com o calcanhar!), inclui o projeto para esterilizá-los, o que, em minha opinião, é mais louvável. A lembrança dos cachorros que passaram pela minha vida, vez por outra aparece. Os “bebuns” da venda no Corgo da Posse, área rural de Ubá, riam da minha cachorrinha magrela que eu batizei de Baleia – depois de Vidas Secas, filme do Nelson Pereira dos Santos, todas as minhas cachorras homenageavam a heroína do Graciliano Ramos. A única que fugiu à regra foi Suzana, a última, já aqui em Cataguases. Maísa havia lhe dado esse nome desde novinha, pois era sua. Ela me aparecera pedindo socorro porque as crianças cismaram de adestrá-la para participar do circo que organizavam no porão da minha irmã e, daí em diante. ficou sendo minha. Foi a mais bela – a cauda emplumada –, a mais doce e inteligente. Era uma amiga que me ouvia e parecia entender. Beethoven talvez a perturbasse um pouco, mas curtia Bach e Mozart. Outra Baleia, a da Praia de Mauá, que o vizinho deixou comigo ao se mudar, porque ela passava a maior parte do tempo na minha varanda, ficou por lá mesmo quando voltei pra Copacabana, e algumas outras – mais públicas –, apenas foram passando pelas minhas andanças. Sempre gostei mais dos vira-latas, mas convivi por muito tempo com o Barão, um buldogue assustador, num sobrado da Rua Correia Dutra, no Flamengo que, apesar de tudo – eu vivi o momento preciso em que ele abocanhou um gato vacilante em cima do muro – era gente fina. Do Saddam Hussein do meu irmão, enorme, eu sempre quis distância, mas gostava da Meir, que o antecedeu. Certa tarde, há bastante tempo, eu levei o Perrito, um poodle cinza mestiço que morreu atropelado, para beber cerveja com sorvete de tangerina (na época, eu achava que a combinação era sublime) no Bar Elite. Saímos meio altos para o ponto do ônibus com destino à Pampulha, em frente à Nacional, num horário de pique, e acabou acontecendo uma baita confusão com a negativa do motorista em transportar o animal e a torcida dos passageiros, que gritavam: – Deixa! Deixa! Felizmente, ele acabou permitindo e a viagem virou uma festa. Desejo boa sorte ao Luiz Antônio, que prefere a companhia dos bichos.
  • 35. A última entrevista de Manuel Bandeira Numa tarde de março de 1964, três décadas depois de ter publicado o poema que lhe consagraria: “Vou- me embora pra Pasárgada”, o poeta Manuel Bandeira fala ao jornalista Pedro Bloch, em sua última longa entrevista Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: “Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom”. Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje. Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Avenida Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima, basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo Melo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madame Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade. (Edição e seleção de poemas Carlos Willian Leite). Manuel Bandeira: Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos. Rua da União… Como eram lindos os montes das ruas da minha infância Rua do Sol (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal) Atrás de casa ficava a Rua da Saudade… Manuel Bandeira: Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco Manuel Bandeira: Sabe, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Erámos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem. Saí do Recife com 2 anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com 6 (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com 6 e voltei ao Rio com 10. Mas esses quatros anos… Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente.
  • 36. Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? — Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente. Manuel Bandeira: Papai, no Rio, não teve sorte. Aos 40 anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de 6 anos: “É impossível que este menino não saiba ler”. Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: “Meu Jesus Cristinho!” E eu conto no poema: “Mas Jesus Cristo nem se ‘incomodou!’” Vai por cinquenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A formas a forma. Manuel Bandeira: Foi o livro de D’Amicis [Edmondo De Amicis, escritor italiano] uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde morávamos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas “Pombas” [poema de Raimundo Correia]: “Raia, sanguínea e fresca, a madrugada”. Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o professor [Antenor] Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras. Ó caro ruído embalador, Terno como a canção das amas! Canta as baladas que mais amas, Para embalar a minha dor Manuel Bandeira: Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. Hemoptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: “Quanto tempo de vida o senhor me dá?” A resposta: “O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco… dez anos”. Calcule! (“Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? — Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.”) Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse. Manuel Bandeira: Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Éluard e Gala [Gala Dalí], que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dalí. Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Manuel Bandeira: Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917 publiquei meu primeiro livro, “A Cinza das Horas”, 200 exemplares me custaram 300 mil réis. Em “Carnaval” (publicado em 1919), depois, eu dizia: “Quero beber! Cantar asneiras!”. Pois um crítico observou: “Conseguiu plenamente o que queria”. Nestes dois volumes e em “Ritmo Dissoluto” estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de “Libertinagem” é que me resignei à condição de poeta.
  • 37. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar. Ninguém passa na estrada. Nem um bêbado. No entanto há seguramente por ela uma procissão de sombras. Sombras de todos os que passaram. Os que ainda vivem e os que já morreram. Manuel Bandeira: Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil réis. Depois dos 50 é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Álvaro Moreyra, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua “Pauliceia Desvairada”. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão. Andorinha lá fora está dizendo: — “Passei o dia à toa, à toa!” Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste! Passei a vida à toa, à toa… Manuel Bandeira: Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua. Não aceito que não se possa dizer “me dê isso”, “me dê aquilo” se até o Laet [Carlos de Laet] dizia. Nada mais gostoso que: “pra mim brincar”. Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. “Ele já mo deu”… é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão. Meu coração está sedento De tão ardido pelo pranto. Dai um brando acompanhamento À canção do meu desencanto. Manuel Bandeira: Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: — os 500 mil réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.) É que na tua voz selvagem, Voz de cortante, álgida mágoa, Aprendi na cidade a ouvir Como um eco que vem na aragem A estrugir, rugir e mugir, O lamento das quedas-d’água! Manuel Bandeira: Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica. Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. A alma é que estraga o amor. Só em Deus ela pode encontrar satisfação. Não noutra alma. Só em Deus — ou fora do mundo. As almas são incomunicáveis. Manuel Bandeira: A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar.
  • 38. Do que imaginei ver só “Ronda Noturna”, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, “Vênus de Milo” e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental. Provinciano que nunca soube Escolher bem uma gravata; Pernambucano a quem repugna A faca do pernambucano; Poeta ruim que na arte da prosa Envelheceu na infância da arte, E até mesmo escrevendo crônicas Ficou cronista de província. Manuel Bandeira: Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa- Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus conserve minhas criancices. Morrer. Morrer de corpo e de alma. Completamente. Morrer sem deixar o triste despojo da carne, A exangue máscara de cera, Cercada de flores, Que apodrecerão — felizes! — num dia, Banhada de lágrimas Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte. Manuel Bandeira: Espiritualmente… minha filosofia é a de Einstein. “Minha religião — disse ele — consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo — eis a minha ideia de Deus.” Quando li isto, disse comigo mesmo: “É exatamente o que eu sinto”. Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito… Espaço infinito… Uma coisa absurda que, no entanto, existe! O pardalzinho nasceu Livre. Quebraram-lhe a asa. Sacha lhe deu uma casa, Água, comida e carinhos. Foram cuidados em vão: A casa era uma prisão, O pardalzinho morreu. O corpo Sacha enterrou No jardim; a alma, essa voou Para o céu dos passarinhos! Manuel Bandeira: Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor. Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois… Minhas finanças. Meus amores não podiam levar- me ao casamento com quinhentos mil réis de montepio. Aquele pequenino anel que tu me deste, — Ai de mim — era vidro e logo se quebrou… Assim também o eterno amor que prometeste, — Eterno! era bem pouco e cedo se acabou.
  • 39. Teatro em Cataguases A Quarta Parede A Quarta Parede apresenta um enredo extremamente instigante e inovador, onde um enigma teatral é apresentado por três personagens que vão vivenciando a ação sem que o público perceba que uma peça de teatro está sendo criada diante de seus olhos, até o desfecho inesperado. O que de início parece ser um conflito de gerações, entre uma adolescente rebelde e um idoso misterioso, de repente se torna um embate de horror, ambos confinados num espaço fechado, sem nenhuma possibilidade de fuga. A adolescente Michele e o idoso Túlio se enfrentam num embate de vida ou morte, onde os papéis de vítima se alternam numa historia feita de camadas de suspense, medo, dúvida e emoção exacerbada, situações agravadas com a entrada de Claus, um bizarro deficiente físico mascarado que fala emitindo sons incompreensíveis. Quem é Túlio? Um assassino, um psicopata, um bancário aposentado ou um ator desempregado? Quem é Claus? Um deficiente físico ou um ator com sua máscara teatral? Sua maneira de se expressar é real ou ele é capaz de falar corretamente? Como vai reagir Michele diante daqueles momentos cruciais que vão marcar o rito de passagem de sua adolescência para a maturidade? São indagações que tumultuam a acuada Michele numa historia onde nada é o que parece ser e que provoca no público um permanente estado de alerta através das surpreendentes revelações e situações de suspense, culminando com a grande surpresa no final. A peça é um jogo de cenas que mostra a magia do teatro sendo desvendada mediante uma sucessão de golpes teatrais, o que impede que qualquer detalhe do enredo seja revelado previamente ao público.