1. PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO
GABINETE DES. FRANCISCO BANDEIRA DE MELLO
ÓRGÃO ESPECIAL
1
MC na ADI 0016977-87.2020.8.17.9000
MEDIDA CAUTELAR NA
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 0016977-87.2020.8.17.9000
REQUERENTE: Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros do Estado
de Pernambuco – URBANA/PE
INTERESSADOS: Município do Recife e Câmara de Vereadores do Recife
RELATOR: Des. Francisco Bandeira de Mello
VOTO (MEDIDA CAUTELAR)
Submeto à apreciação do Colegiado o pedido de medida cautelar formulado em
ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Sindicato das Empresas de
Transporte de Passageiros do Estado de Pernambuco – URBANA/PE em face da
Lei Municipal n. 18.761/2020 (Recife), que “proíbe o acúmulo das funções de
motorista de ônibus e cobrador de tarifas no transporte público coletivo do Município
do Recife”.
À partida, registro que (i) o autor da ação tem legitimidade para propô-la, consoante
o art. 63, VII, da Constituição Estadual (“Art. 63. Podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade: (...) VII - federação sindical, sindicato ou entidade de classe de
âmbito estadual;”), (ii) há pertinência temática entre as suas atribuições
estatutárias e o objeto desta ação, (iii) os advogados por ele constituídos
apresentaram instrumento de mandato com poderes específicos e (iv) a petição
inicial atende aos requisitos formais exigidos pela legislação de regência.
A propósito do pedido de concessão de medida cautelar, importa assinalar que,
“Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para a concessão de
medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, devem ser
satisfeitos cumulativamente os requisitos da plausibilidade jurídica da tese
exposta (fumus boni iuris) e da possibilidade de prejuízo decorrente do
retardamento da decisão postulada (periculum in mora)” (ADI 5.374 MC-AgR, Rel.
Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 22/06/2020, DJe-172, de
08/07/2020, destaquei).
Sob essa perspectiva, coloco em destaque os aspectos que, neste momento
processual, me parecem mais relevantes para o exame da pretensão cautelar.
A lei impugnada tem o seguinte teor:
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MC na ADI 0016977-87.2020.8.17.9000
“Art. 1º Fica proibida a acumulação da função de cobrador de tarifas pelos
motoristas de ônibus do transporte público coletivo do Município do Recife.
Parágrafo único. A função de cobrador de tarifas nos ônibus do transporte público coletivo
do Município do Recife será exercida por profissional específico para essa função,
denominado cobrador.
Art. 2º As empresas que descumprirem a proibição estabelecida nesta Lei terão sua
concessão ou permissão cassadas, ficando impossibilitadas de participar de processo
licitatório de serviços de transporte público coletivo municipal.
Parágrafo único. No caso da cassação referida no caput, fica o Município autorizado a
conceder permissão de circulação em caráter emergencial, não superior a 30 (trinta) dias,
até o estabelecimento de nova concessão ou permissão.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor após decorridos 30 (trinta) dias de sua publicação oficial.
Recife, 30 de outubro de 2020
GERALDO JULIO DE MELLO FILHO
Prefeito do Recife
Projeto de Lei nº 05/2019 autoria do Vereador Ivan Moraes.” (destaquei)
De início, observo que o art. 78, incisos I e V, da Constituição Estadual –
reproduzindo quase que literalmente texto da Constituição Federal (art. 30, incisos
I e V) –, outorga aos municípios a competência para “legislar sobre assuntos de
interesse local” e para “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão,
os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem
caráter essencial”.
Via de consequência, em sendo dos municípios a competência material para a
organização e a prestação do serviço de transporte público de interesse local, tem-se
configurada a competência legislativa dos municípios para definir o regime de
prestação desses serviços.
Não há dúvida, portanto, que os municípios têm competência para legislar sobre o
serviço de transporte público de interesse local.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal espelha essa percepção, inclusive
em caso no qual se questionava a constitucionalidade de lei municipal que impôs a
obrigatoriedade da presença de “cobrador” em transporte coletivo de passageiros:
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“Agravo regimental em recurso extraordinário. 2. Direito Constitucional. 3. Exigência de
cobrador por lei municipal. Transporte coletivo. Competência municipal. Interesse
local preponderante. 4. Precedentes em sede de controle concentrado de
constitucionalidade. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada.
6. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(RE 940.662 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 31/03/2017,
DJe-090, de 03/05/2017). (destaquei)
O próprio Sindicato proponente não nega “a competência do ente municipal para
legislar sobre o transporte público estritamente local”.
Defende, porém, que “embora a lei impugnada utilize a expressão ‘transporte público
coletivo do Município do Recife’, deve-se ter em mente que a quase totalidade do
transporte público na cidade não é ‘do Recife’, pois não lhe pertence isoladamente.
Ao contrário, ele compõe um sistema muito maior, metropolitano: o Sistema de
Transporte Público de Passageiros da Região Metropolitana do Recife (STPP/RMR)”.
Ou seja, sustenta, em substância, que a lei impugnada afeta, na prática, todo o
sistema de transporte público da região metropolitana do Recife, transcendendo,
por isso mesmo, os limites da competência legislativa do Município do Recife,
restrita que é às matérias de interesse local.
Para além disso, o Sindicato proponente assevera que a competência legislativa em
discussão é de iniciativa privativa do Chefe do Executivo, na medida em que interfere
com a gestão de contratos de concessão de serviços públicos.
De resto, aponta violação aos princípios da separação dos poderes e da eficiência
(CE, arts. 79 e 97, caput).
Pois bem.
Passo a enfrentar as arguições constantes da inicial, principiando pela atinente ao
vício de iniciativa.
Como visto, está-se diante de lei originada de projeto de iniciativa parlamentar, que
veicula norma referente a serviço público objeto de delegação.
A Constituição Estadual (assim como a Federal) não contempla dispositivo expresso
reservando à competência privativa do Chefe do Executivo a iniciativa de leis que
versem sobre o regime de prestação de serviços públicos.
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Há, contudo, significativa corrente jurisprudencial que infere essa competência
privativa, via interpretação sistemática, da denominada reserva de administração1,
decorrência do próprio conteúdo nuclear do princípio da separação de poderes,
previsto no plano local no art. 79, caput, da Constituição do Estado de Pernambuco
(“São poderes do Município, independentes e harmônicos entre si, o Executivo e o
Legislativo”).
Nessa direção, colho os seguintes precedentes do STF, formados em processos que
versavam sobre leis municipais concernentes a transporte coletivo de passageiros:
“EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Lei nº 4.166/05 do Município de Cascavel/PR. Lei de iniciativa
parlamentar que concede gratuidade no transporte coletivo urbano às pessoas
maiores de 60 anos. Equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. Reserva de
Administração. Separação de Poderes. Violação. Precedentes. Recurso extraordinário
parcialmente provido.
1. O Supremo Tribunal Federal tem declarado a inconstitucionalidade de leis de
iniciativa do poder legislativo que preveem determinado benefício tarifário no acesso
a serviço público concedido, tendo em vista a interferência indevida na gestão do
contrato administrativo de concessão, matéria reservada ao Poder Executivo,
estando evidenciada a ofensa ao princípio da separação dos poderes.
2. Não obstante o nobre escopo da referida norma de estender aos idosos entre 60
(sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, independentemente do horário, a gratuidade nos
transportes coletivos urbanos esteja prevista no art. 230, § 2º, da Constituição Federal, o
diploma em referência, originado de projeto de iniciativa do poder legislativo, acaba
por incidir em matéria sujeita à reserva de administração, por ser atinente aos
contratos administrativos celebrados com as concessionárias de serviço de
transporte coletivo urbano municipal (art. 30, inciso V, da Constituição Federal).
3. Agravo regimental não provido.”
(ARE 929.591 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 06/10/2017,
DJe-247, de 27/10/2017). (destaquei)
1
“Ofende a denominada reserva de administração, decorrência do conteúdo nuclear do princípio da Separação de
Poderes (CF, art. 2º), a proibição de cobrança de tarifa de assinatura básica no que concerne aos serviços de água
e gás, em grande medida submetidos também à incidência de leis federais (CF, art. 22, IV), mormente quando
constante de ato normativo emanado do Poder Legislativo fruto de iniciativa parlamentar, porquanto supressora da
margem de apreciação do Chefe do Poder Executivo Distrital na condução da Administração Pública, no que se
inclui a formulação da política pública remuneratória do serviço público” (ADI 3.343, Rel. Min. Ayres Britto, Rel.
p/Acórdão Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2011, DJe-221, de 22/11/2011).
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“EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPRESENTAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 5.127/2015. MUNICÍPIO DE VOLTA
REDONDA. OBRIGATORIEDADE DE INSTALAÇÃO DE AR
CONDICIONADO NOS VEÍCULOS DE TRANSPORTE COLETIVO
MUNICIPAL. PROCESSO LEGISLATIVO. INICIATIVA PRIVATIVA. PODER
EXECUTIVO. SERVIÇOS PÚBLICOS.
1. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que compete ao
Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis que interfiram na gestão de contratos
de concessão de serviços públicos.
2. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese,
condenação em honorários advocatícios.
3. Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista no art.
1.021, § 4º, do CPC/2015.”
(ARE 1.075.713 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, julgado em
29/06/2018, DJe-157, de 06/08/2018). (destaquei)
“EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI
MUNICIPAL DE INICIATIVA DO PODER LEGISLATIVO. ISENÇÃO DE
TARIFA DE TRANSPORTE COLETIVO. VÍCIO DE INICIATIVA.
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. COMPETÊNCIA PRIVATIVA DO
CHEFE DO PODER EXECUTIVO. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA
PROVIMENTO.”
(RE 1.154.488 AgR, Relª. Minª. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 05/11/2019,
DJe-256, de 25/11/2019). (destaquei)
Este Órgão Especial recentemente adotou esse mesmo posicionamento:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL
DE GARANHUNS Nº 4.233/2016. GRATUIDADE DE TRANSPORTE COLETIVO
PARA MAIORES DE 60 ANOS E PARA ACOMPANHANTES DE DEFICIENTES
COM MAIS DE 60 ANOS. PROJETO DE LEI DO LEGISLATIVO. VÍCIO DE
INICIATIVA. OFENSA À SEPARAÇÃO DOS PODERES E INTERFERÊNCIA
INDEVIDA NA GESTÃO DO CONTRATO ADMINISTRATIVO DE
CONCESSÃO. INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL CONFIGURADA.
ASPECTO MATERIAL. ENTENDIMENTO DO STF EM CONTROLE
CONCENTRADO PELA APLICABILIDADE IMEDIATA DA NORMA
INDEPENDENTEMENTE DA FONTE DE CUSTEIO.
1. Embora a norma impugnada, instituidora do benefício da gratuidade de transporte
coletivo aos idosos, tenha sido aprovada sem a respectiva fonte de custeio para compensar
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MC na ADI 0016977-87.2020.8.17.9000
o impacto financeiro suportado pelas empresas de transporte, deve-se respeitar o
entendimento firmado pelo STF, em controle concentrado, pela constitucionalidade do
art. 39 da Lei Federal nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), considerando-o reprodução do
art. 230, §2º da CF/88, com eficácia plena e de aplicabilidade imediata (ADI 3.768-4).
Efeito vinculante e eficácia ex tunc;
2. Em situação de eventual prejuízo financeiro surgido com a ampliação da gratuidade,
caberá às concessionárias buscarem individualmente o reequilíbrio através dos
mecanismos legais para a revisão dos seus contratos e convênios com o ente público;
2. O §3º do art. 39 do Estatuto do Idoso deixa a critério da legislação local dispor sobre
as condições para exercício da gratuidade nos meios de transportes coletivos das pessoas
compreendidas na faixa etária entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos;
3. Incorre em vício formal de inconstitucionalidade a norma municipal de iniciativa
de membro do Poder Legislativo que institua gratuidade de transporte a idoso entre
60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, por ofensa ao Princípio da Separação dos
Poderes e pela interferência indevida na gestão do contrato administrativo de
concessão. Precedentes do STF (ARE 929591 AgR);
4. Ação julgada procedente para reconhecer a inconstitucionalidade formal diante do vício
de iniciativa.”
(ADI 0432436-5 / 0004100-91.2016.8.17.0000, Rel. Des. José Fernandes de Lemos,
Órgão Especial, julgado em 03/06/2019, DJe de 13/06/2019). (destaquei)
Existe, é verdade, conforme referiram a Câmara Municipal do Recife e o Município
do Recife ao se manifestarem nestes autos, um acórdão da 2ª Turma do STF, sob a
relatoria do Min. Edson Fachin, no qual ficou assentada a inexistência de vício de
iniciativa em lei municipal editada em termos análogos à norma que ora se examina.
O acórdão tem a seguinte ementa:
“Ementa: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM
AGRAVO. INTERPOSIÇÃO EM 26.06.2018. MUNICÍPIO DE DIADEMA. AÇÃO
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. VÍCIO DE INICIATIVA.
INOCORRÊNCIA. LEI MUNICIPAL 3.310/2013 QUE ALTEROU A LEI
MUNICIPAL 1.688/98. ORGANIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE
TRANSPORTE COLETIVO. INTERESSE LOCAL PREPONDERANTE.
COMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO. ART. 30, V, DA CF. PRECEDENTES.
PRETENSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO NESTA SEDE RECURSAL.
INVIABILIDADE. ART. 317, § 4º, DO RISTF. AGRAVO NÃO PROVIDO.
1. É constitucional a Lei Municipal 3.310/2013, que alterou a Lei Municipal 1.688/98,
a qual proibiu motoristas de transportes coletivos de acumularem as funções de
cobradores, tendo em vista que compete aos municípios legislarem sobre
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organização do serviço público de transporte coletivo em razão do preponderante
interesse local envolvido. Precedentes.
2. É vedada, em regra, a concessão de efeito suspensivo nesta sede recursal, nos termos
do art. 317, § 4º, do RISTF. Além disso, não há motivo excepcional, na hipótese em
análise, para conferi-lo. 3. Agravo regimental a que se nega provimento, com previsão de
aplicação da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do CPC.”
(ARE 1.109.932 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, Segunda Turma, julgado em 12/11/2018,
DJe-248, de 22/11/2018). (destaquei)
Todavia, também em caso referente à “proibição de atividade concomitante de
motorista e cobrador de passagens em transportes coletivos urbanos”, o Min.
Alexandre de Moraes prolatou, em 05/03/2020, a seguinte decisão no RE
1.254.518:
“Trata-se de Recurso Extraordinário interposto em face de acórdão proferido pelo
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Na origem, o Sindicato das Empresas de Transporte Metropolitano e Urbano de
Passageiros da Região Metropolitana de Campinas - SETCAMP ajuizou ação direta de
inconstitucionalidade, com pedido liminar, em face da Lei 6.044, de 6 de abril de 2018,
do Município de Sumaré, que “dispõe sobre a proibição de atividade concomitante de
motorista e cobrador de passagens em transportes coletivos urbanos e dá outras
providências.
Alegou, em suma, (a) vício formal por invasão da competência privativa da União
para legislar sobre direito trabalhista e normas gerais de licitação, conforme previsto no
art. 22, I, XVI e XXVII, da Constituição Federal, respectivamente; (b) usurpação, pelo
Parlamento municipal, da competência do Chefe do Poder Executivo para dispor a
respeito da organização do transporte coletivo urbano, nos termos dos arts. 5º, 47, II, XI
e XVIII, e 144 da Constituição Estadual, bem como dos arts. 30, V, 61, § 1º, “b”, e 175
da Constituição Federal; e (c) ofensa ao princípio da iniciativa privada, preceito inscrito
nos arts. 1º, IV, e 170 da Constituição Federal.
Eis o teor da norma impugnada:
“Lei 6.044, de 6 de abril de 2018
Art. 1º Fica proibido às empresas públicas e/ou privadas, concessionárias de
atividades de serviços de transporte coletivo rodoviário, urbano incumbir aos
motoristas dos referidos veículos a atribuição, simultânea de motorista e cobrador
de passagens do referido transporte Coletivo.
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Art. 2º O descumprimento do disposto na presente Lei implica a empresa
infratora a sanções na forma da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, em seu
artigo 29, inciso II.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”
A propósito, a Lei Federal 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, que “dispõe sobre o
regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175
da Constituição Federal, e dá outras providências”, em seu art. 29, II, prevê:
“Art. 29. Incumbe ao poder concedente:
(…)
II - aplicar as penalidades regulamentares e contratuais;”
O Órgão Especial do Tribunal de origem julgou procedente a ação, para declarar a
inconstitucionalidade da lei municipal em questão por usurpação da competência
privativa da União, prevista no art. 22 da CF/1998, para legislar sobre direito do trabalho
(inciso I), condições para o exercício de profissões (inciso XVI), e edição de normas
gerais sobre licitação e contratos.
Vislumbrou, também, ofensa ao art. 5º e 47, II, XIV e XVII, e art. 144 da
Constituição Estadual, que, por simetria, reproduzem os arts. 2º e 61 da Carta Federal.
Entendeu que, nos termos do Tema 917, com repercussão geral reconhecida, não
afronta a competência privativa do Chefe do Poder Executivo Municipal, prevista no art.
61 da CF/1988, lei de iniciativa parlamentar que não cuide especificamente de sua
estrutura ou da atribuição de seus órgãos, ou do regime jurídico de servidores públicos.
No entanto, no caso dos autos, a norma, ao dispor sobre as condições de execução do
serviço delegado, tratou de matéria de reserva de administração, e, com isso, invadiu o
âmbito da iniciativa privativa do Poder Executivo.
Veja-se a ementa do acórdão recorrido (Doc. 5):
“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE - Lei n. 6.044, de 16
de abril de 2018, do Município de Sumaré, que ‘dispõe sobre a proibição de
atividade concomitante de motorista e cobrador de passagens em transportes
coletivos urbanos e dá outras providências’.
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I. COMPETÊNCIA LEGISLATIVA MUNICIPAL – Lei que, ao vedar às
concessionárias de serviços de transporte coletivo a possibilidade de exigir ou
permitir que seus motoristas exerçam a função de cobrador, dispõe sobre o
exercício de atividade profissional e sobre a liberdade de ordenamento do serviço -
Ademais, ao autorizar a aplicação de penalidades previstas na Lei n. 8.987/94 (Lei
geral das concessões), a lei vergastada dispõe sobre normas gerais de licitação e
contratação pública, usurpando a competência legislativa privativa da União
prevista no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal Violação ao disposto
nos incisos I, XVI e XXVII do artigo 22 da Constituição Federal.
II. VÍCIO DE INICIATIVA - Inconstitucionalidade da lei impugnada -
Desrespeito aos artigos 5º e 47, incisos II, XIV e XIX, da Constituição Estadual -
Lei de iniciativa parlamentar que invadiu as atribuições do Chefe do Poder
Executivo, ofendendo o princípio da separação dos poderes - Tema 917 de
Repercussão Geral.
Inconstitucionalidade configurada – Ação julgada procedente.”
Opostos Embargos de Declaração pela Mesa Diretora da Câmara Municipal de
Sumaré, foram rejeitados (Doc. 17).
Irresignada, a Mesa da Câmara Municipal de Sumaré, com fundamento no artigo
102, III, “a”, da Constituição Federal, interpôs o presente Recurso Extraordinário (Doc.
8). Em síntese, alegou que o acórdão recorrido violou os artigos 22, XXVII; e 30, I e V;
e 61, da CF/1988, haja vista a compatibilidade da Lei Municipal 6.044/2018, com a
Constituição Federal, pois:
a) a lei questionada, ao dispor acerca da proibição de acumulação de funções,
atendeu ao interesse local, pois pretendeu garantir serviços públicos de qualidade aos
munícipes;
b) o acórdão recorrido contrariou o que foi decidido no Tema 917 da repercussão
geral; e
c) no ARE 1.109.932-AgR (Rel. Min. EDSON FACHIN), em que se analisou
norma de idêntico teor ao da presente lei do município de Sumaré, o STF concluiu pela
inexistência de vício formal de iniciativa, mesmo tendo sido o processo legislativo
iniciado no Parlamento.
Em contrarrazões (Doc. 10), o Sindicato recorrido, em preliminar, afirma, em
síntese, que o recurso não preenche os requisitos de admissibilidade.
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No mérito, argumenta, em suma, que embora o Município possa legislar no
interesse local, não lhe é dada a prerrogativa de dispor sobre matéria de competência
privativa da União relacionada ao exercício do trabalho e da liberdade de atividade
econômica. Requer, ao final, a manutenção do acórdão recorrido.
É o relatório.
Reputam-se preenchidos todos os pressupostos constitucionais de admissibilidade.
Assim, passo à análise do mérito do apelo extremo.
O recurso não comporta provimento.
O diploma legal contestado, de iniciativa do Poder Legislativo, adentrou em
matéria sujeita à reserva da Administração, uma vez que se imiscuiu nos aspectos
atinentes a contratos administrativos celebrados com as concessionárias de serviço
de transporte coletivo urbano municipal.
Dessa forma, contrariou as regras de iniciativa privativa do Chefe do Poder
Executivo, bem como a separação de poderes.
Esse é o entendimento que tem sido sufragado nesta CORTE, conforme os
precedentes abaixo elencados:
“EMENTA Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Ação
Direta de Inconstitucionalidade. Lei nº 4.166/05 do Município de Cascavel/PR. Lei
de iniciativa parlamentar que concede gratuidade no transporte coletivo urbano às
pessoas maiores de 60 anos. Equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Reserva de Administração. Separação de Poderes. Violação. Precedentes. Recurso
extraordinário parcialmente provido. 1. O Supremo Tribunal Federal tem declarado
a inconstitucionalidade de leis de iniciativa do poder legislativo que preveem
determinado benefício tarifário no acesso a serviço público concedido, tendo em
vista a interferência indevida na gestão do contrato administrativo de concessão,
matéria reservada ao Poder Executivo, estando evidenciada a ofensa ao princípio
da separação dos poderes. 2. Não obstante o nobre escopo da referida norma de
estender aos idosos entre 60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos,
independentemente do horário, a gratuidade nos transportes coletivos urbanos
esteja prevista no art. 230, § 2º, da Constituição Federal, o diploma em referência,
originado de projeto de iniciativa do poder legislativo, acaba por incidir em matéria
sujeita à reserva de administração, por ser atinente aos contratos administrativos
celebrados com as concessionárias de serviço de transporte coletivo urbano
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municipal (art. 30, inciso V, da Constituição Federal). 3. Agravo regimental não
provido.” (ARE 929.591-AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma,
DJe de 27/10/2017)
A propósito dos princípios constitucionais da reserva de administração e separação
de poderes, o eminente decano desta CORTE, Min. CELSO DE MELLO, ao relatar a
ADI 776-MC, Tribunal Pleno, DJ de 15/12/2006, consignou:
“RESERVA DE ADMINISTRAÇÃO E SEPARAÇÃO DE PODERES. - O
princípio constitucional da reserva de administração impede a ingerência normativa
do Poder Legislativo em matérias sujeitas à exclusiva competência administrativa
do Poder Executivo. É que, em tais matérias, o Legislativo não se qualifica como
instância de revisão dos atos administrativos emanados do Poder Executivo.
Precedentes. Não cabe, ao Poder Legislativo, sob pena de desrespeito ao postulado
da separação de poderes, desconstituir, por lei, atos de caráter administrativo que
tenham sido editados pelo Poder Executivo no estrito desempenho de suas
privativas atribuições institucionais. Essa prática legislativa, quando efetivada,
subverte a função primária da lei, transgride o princípio da divisão funcional do
poder, representa comportamento heterodoxo da instituição parlamentar e importa
em atuação ultra vires do Poder Legislativo, que não pode, em sua atuação político-
jurídica, exorbitar dos limites que definem o exercício de suas prerrogativas
institucionais.”
Verifica-se, portanto, que o acórdão recorrido não se afastou da jurisprudência desta
CORTE, razão pela qual deve ser mantido.
Diante do exposto, com base no art. 21, §§ 1º, do Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal, NEGO SEGUIMENTO AO RECURSO EXTRAORDINÁRIO.
Publique-se.
Brasília, 5 de março de 2020.
Ministro ALEXANDRE DE MORAES
Relator” (destaquei em negrito)
Em sucessivo, a 1ª Turma confirmou, em sede de agravo interno, a decisão do Min.
Alexandre de Moraes:
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GABINETE DES. FRANCISCO BANDEIRA DE MELLO
ÓRGÃO ESPECIAL
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MC na ADI 0016977-87.2020.8.17.9000
“Ementa: AGRAVO INTERNO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACÓRDÃO
RECORRIDO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DO STF.
1. O acórdão do Tribunal de origem revela-se em conformidade com a
jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
2. Agravo interno a que se nega provimento. Na forma do art. 1.021, §§ 4º e 5º, do Código
de Processo Civil de 2015, em caso de votação unânime, fica condenado o agravante a
pagar ao agravado multa de um por cento do valor atualizado da causa, cujo depósito
prévio passa a ser condição para a interposição de qualquer outro recurso (à exceção da
Fazenda Pública e do beneficiário de gratuidade da justiça, que farão o pagamento ao
final).”
(RE 1.254.518 AgR, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Primeira Turma, julgado em
20/04/2020, DJe-105, de 30/04/2020). (destaquei)
Acrescento ainda decisão proferida, em 21/09/2020, pelo Exmo. Min. Edson
Fachin no ARE 1.282.234:
“Decisão: Trata-se de agravo cujo objeto é a decisão que não admitiu recurso
extraordinário interposto em face de acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, assim ementado (eDOC 8, p. 3):
DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Lei nº 4.068, de 17.06.2003,
e Lei nº 4.216. de 30.09.2005, do Município de Mogi Guaçu, de iniciativa
parlamentar, que obrigam as concessionárias de transporte coletivo a edificar,
anualmente, entre vinte e cinquenta instalações, com coberturas, nas paradas
de embarque e desembarque de passageiros. Processo legislativo. Competência
exclusiva do Chefe do Executivo. Inexistência de invasão. Tema 917 do Colendo
Supremo Tribunal Federal. Quebra, entretanto, do princípio da separação entre
os poderes. Indevida ingerência no ajuste firmado com a empresa prestadora,
com evidente reflexo econômico. Manifesta invasão de competência. Afronta aos
artigos 5º, 47, II, XIV e XVIII, 117, 144 e 159, parágrafo único, da Carta
Bandeirante. Precedentes. Ausência de destinação de verba orçamentária.
Irrelevância. Atual siso deste C. Órgão Especial. AÇÃO PROCEDENTE.
Os embargos de declaração foram desprovidos (eDOC 37).
No recurso extraordinário, com fundamento no art. 102, III, a, do permissivo
constitucional, aponta-se ofensa ao art. 37, V, da Constituição Federal.
Nas razões recursais, sustenta-se, que a questão tratada pelas leis impugnadas não
se encontra entre aquelas previstas no rol taxativo dos projetos de lei de iniciativa
exclusiva do Chefe do Poder Executivo, previsto no art. 61, do texto constitucional, e que
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não comporta interpretação extensiva.
A Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo inadmitiu o recurso
extraordinário em virtude da demonstração insuficiente acerca da presença de repercussão
geral da causa (eDOC 21).
É o relatório. Decido.
A irresignação não merece prosperar.
Verifica-se que o Tribunal de origem, quando do julgamento da ação direta de
inconstitucionalidade, asseverou que (eDOC 1, p. 15-17):
“Lado outro, é visível que as leis em evidência transpuseram os limites no
tocante à preservação dos contratos de transporte coletivo assinados.
(...)
Por certo que a presente situação é reveladora da interveniência naquilo que
fora combinado nos respectivos editais, alterando, de maneira significativa, o
ponto ao equilíbrio estabelecido nos primórdios.
Vale reforçar que o artigo 117 da Carta Política Estadual é severo ao conter
a direta e expressa vedação à mudança das condições previamente combinadas,
forma leal – aliás- de se preservar o contrato administrativo e proteger seus
celebrantes de aparecimento de qualquer surpresa.”
Observa-se que o entendimento adotado pelo Tribunal de origem está em
consonância com a jurisprudência desta Corte, de que compete ao Poder Executivo
a iniciativa de leis que interfiram na gestão de contratos de concessão de serviços
públicos, conforme assentado na ADI 2.733/ES, da relatoria do Min. Eros Grau, DJ
03.02.2006, assim ementada:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.304/02 DO
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. EXCLUSÃO DAS MOTOCICLETAS DA
RELAÇÃO DE VEÍCULOS SUJEITOS AO PAGAMENTO DE PEDÁGIO.
CONCESSÃO DE DESCONTO, AOS ESTUDANTES, DE CINQUENTA POR
CENTO SOBRE O VALOR DO PEDÁGIO. LEI DE INICIATIVA
PARLAMENTAR. EQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DOS
CONTRATROS CELEBRADOS PELA ADMINISTRAÇÃO. VIOLAÇÃO.
PRINCÍPIO DA HARMONIA ENTRE OS PODERES. AFRONTA. 1. A lei
estadual afeta o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão de obra
pública, celebrado pela Administração capixaba, ao conceder descontos e isenções
sem qualquer forma de compensação. 2. Afronta evidente ao princípio da harmonia
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entre os poderes, harmonia e não separação, na medida em que o Poder Legislativo
pretende substituir o Executivo na gestão dos contratos administrativos celebrados.
3. Pedido de declaração de inconstitucionalidade julgado procedente.
Assim, conforme disposto no acórdão recorrido, as leis municipais, de iniciativa
parlamentar, que obrigam as concessionárias de transporte coletivo a edificar
instalações, com coberturas, nas paradas de embarque e desembarque de
passageiros, estão eivadas de vício formal e violam o princípio da separação de
poderes, ao interferir indevidamente na gestão de contrato administrativo celebrado
com concessionária de serviço público, matéria afeta à seara do Poder Executivo.
Destaco, nesse mesmo sentido, julgados de ambas as Turmas desta Suprema Corte:
Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Ação Direta de
Inconstitucionalidade. Lei nº 4.166/05 do Município de Cascavel/PR. Lei de
iniciativa parlamentar que concede gratuidade no transporte coletivo urbano às
pessoas maiores de 60 anos. Equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Reserva de Administração. Separação de Poderes. Violação. Precedentes. Recurso
extraordinário parcialmente provido.
1. O Supremo Tribunal Federal tem declarado a inconstitucionalidade de leis
de iniciativa do poder legislativo que preveem determinado benefício tarifário no
acesso a serviço público concedido, tendo em vista a interferência indevida na
gestão do contrato administrativo de concessão, matéria reservada ao Poder
Executivo, estando evidenciada a ofensa ao princípio da separação dos poderes.
2. Não obstante o nobre escopo da referida norma de estender aos idosos entre
60 (sessenta) e 65 (sessenta e cinco) anos, independentemente do horário, a
gratuidade nos transportes coletivos urbanos esteja prevista no art. 230, § 2º, da
Constituição Federal, o diploma em referência, originado de projeto de iniciativa
do poder legislativo, acaba por incidir em matéria sujeita à reserva de
administração, por ser atinente aos contratos administrativos celebrados com as
concessionárias de serviço de transporte coletivo urbano municipal (art. 30, inciso
V, da Constituição Federal). Agravo regimental não provido. (ARE 929591 AgR,
Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, DJe 27.10.2017)
DIREITO CONSTITUCIONAL. AGRAVO INTERNO EM RECURSO
EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. REPRESENTAÇÃO DE
INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 5.127/2015. MUNICÍPIO DE VOLTA
REDONDA. OBRIGATORIEDADE DE INSTALAÇÃO DE AR
CONDICIONADO NOS VEÍCULOS DE TRANSPORTE COLETIVO
MUNICIPAL. PROCESSO LEGISLATIVO. INICIATIVA PRIVATIVA. PODER
EXECUTIVO. SERVIÇOS PÚBLICOS.
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1. O Supremo Tribunal Federal firmou orientação no sentido de que compete ao
Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis que interfiram na gestão de contratos
de concessão de serviços públicos.
2. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na
hipótese, condenação em honorários advocatícios.
Agravo interno a que se nega provimento, com aplicação da multa prevista
no art. 1.021, § 4º, do CPC/2015. (ARE 1075713 AgR, Rel. Min. Roberto Barroso,
Primeira Turma, DJe 01.8.2018)
Ante o exposto, nego provimento ao recurso, nos termos dos artigos 21, § 1º, do
RISTF, por estar o acórdão recorrido em confronto com entendimento do Plenário desta
Suprema Corte.
Incabível a aplicação do disposto no art. 85, § 11, do CPC, em virtude de se tratar
de recurso oriundo de ação direta de inconstitucionalidade.
Publique-se.
Brasília, 21 de setembro de 2020.
Ministro Edson Fachin
Relator” (destaquei em negrito)
Desse modo, tenho para mim que a jurisprudência prevalecente no STF aponta no
sentido de que “compete ao Chefe do Poder Executivo a iniciativa de leis que
interfiram na gestão de contratos de concessão de serviços públicos”.
Ora, mesmo que se considere, apenas para fins de argumentação, que o serviço de
transporte público do Município do Recife seja exclusivamente local (e não
metropolitano), é certo que o regime jurídico atual não contempla a obrigatoriedade
da presença de cobradores.
Parece evidente, pois, que a exigência constante da lei impugnada modifica o regime
de prestação de serviços e impacta nos custos respectivos, interferindo, por
conseguinte, na gestão dos contratos correlatos.
Nessa perspectiva, a norma em tela aparentemente padece inconstitucionalidade
formal, por vício de iniciativa quanto à deflagração do correspondente processo
legislativo, sendo cediço que a “Sanção executiva não tem força normativa para sanar
vício de inconstitucionalidade formal, mesmo que se trate de vício de usurpação de
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iniciativa de prerrogativa institucional do Chefe do Poder Executivo” (ADI 6.337, Relª.
Minª. Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 24/08/2020, DJe-255, de
22/10/2020).
Essa constatação é suficiente para caracterizar o requisito atinente ao fumus boni
iuris.
De qualquer modo, penso que a relevância social da controvérsia reclama seja
também apreciada a questão relativa a saber se a lei em comento tem o condão de
alcançar o sistema de transporte público metropolitano, no qual se insere a grande
maioria dos serviços de transporte público realizados nos limites territoriais do Recife.
Como se sabe, todo o sistema de transporte coletivo metropolitano é realizado por
meio do Consórcio de Transporte da Região Metropolitana do Recife – CTM, que, nos
termos da Lei estadual nº 14.474/2011, além de gerir o sistema, figura como “Poder
Concedente” dos serviços de transporte delegados.
E, de acordo com o Consórcio CTM (cf. ID 13950116), em 17 de novembro de 2020,
o sistema metropolitano possuía 353 linhas ativas, sendo 195 do tipo SEI (Sistema
Estrutural Integrado) e 158 do tipo SIC (Sistema Complementar).
Dentre essas, 141 linhas ativas têm itinerários totalmente compreendidos nos
limites territoriais do Recife, e 112 linhas ativas são intermunicipais, com
itinerários parcialmente compreendidos no espaço territorial do Recife.
Bem se percebe, pois, que mais de 70% das linhas metropolitanas circulam pelo
Recife, no todo ou em parte.
Entretanto, o peso específico do Recife, ou mesmo a sua centralidade no âmbito do
conjunto metropolitano, de modo algum significa que o interesse público
metropolitano deva ser mensurado em função da Capital, exclusivamente.
Deveras, a própria razão de ser da existência jurídica das regiões metropolitanas
radica na necessidade coletiva, sob o prisma do interesse público metropolitano, da
realização de serviços comuns, dado que a realidade decorrente do fenômeno da
conurbação, a englobar municípios distintos em uma grande unidade sócio-
econômica, cria interações recíprocas e fluxos de demandas que não têm como ser
atendidos senão mediante políticas metropolitanas.
É o caso das linhas que compõem os serviços de transporte público da região
metropolitana do Recife, sejam as linhas ditas estruturais, sejam as
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complementares, cujas definições de itinerários e frequências têm que levar em
conta, por óbvio, as demandas globais da região metropolitana, a partir das suas
interações recíprocas.
O parecer da Procuradoria Geral do Estado, acostado aos autos pelo autor (ID
13114814, págs. 1 a 6), é convergente com esse entendimento:
“(...) Como bem observado pelo CTM, “o transporte público de passageiros da Região
Metropolitana do Recife é um serviço de natureza intermunicipal, dadas as condições
físicas, operacionais e tarifárias, específicas do Sistema de Transporte Público Coletivo
de Passageiros/RMR”.
E continua: “Assim, proporcionam-se viagens entre municípios da Região Metropolitana
do Recife com conexões intermodais de passageiros, os quais podem transitar para além
do município de Recife, mediante vários meios de transporte, com pagamento de uma
única tarifa, caracterizando, em razão disso, um transporte intermunicipal.”
Nesse sentido, não se restringindo o transporte público de passageiros ao Município de
Recife, notadamente para aquelas linhas que transitam por mais de um município, fica
claro que a situação descrita jamais poderia se subsumir à hipótese legal prevista na Lei
Municipal n.º 18.761/2020, que se limita ao “transporte público coletivo do Município do
Recife.”
Em respeito às competências constitucionalmente estabelecidas, que fixa a competência
legislativa municipal em razão dos interesses locais (art. 30, I, da Constituição Federal),
natural que uma lei do Município de Recife não deve ter impacto em uma operação que
envolve, a bem da verdade, uma região metropolitana, muito além das fronteiras do
próprio município.
Se o Município possui competência constitucional para legislar sobre questões
apenas locais, é óbvio que uma operação de transporte público de passageiros, via
operação consorciada, responsável até mesmo pela concessão do serviço público, não
pode ser impactada por lei do Município de Recife, que tem como campo de
abrangência - critério espacial da norma, nos dizeres do Professor Paulo de Barros
Carvalho - o território do próprio Município.
(...)
Isto posto, entendemos que a Lei Municipal n.º 18.761/2020, oriunda do Município de
Recife, se limita a disciplinar o “transporte público coletivo do Município do Recife”,
como tal entendido aquele delegado pelo próprio Município de Recife, não abarcando as
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linhas objeto de operação consorciada no bojo do CTM, que ostenta a condição de
empresa pública multifederativa.”
À luz dessas reflexões, penso que o serviço de transporte público metropolitano,
atualmente a cargo do Consórcio CTM, consubstancia atividade material que
transcende o interesse local de qualquer dos municípios que integram a região
metropolitana do Recife, e como tal deve ser regulada por norma estadual.
Por conseguinte, ainda que possível fosse relevar, ad argumentandum, a aparente
inconstitucionalidade formal, por vício de iniciativa, da lei impugnada, seria de rigor
reconhecer a sua absoluta inidoneidade jurídica para disciplinar, a qualquer título,
as linhas integrantes do Sistema de Transporte Público Coletivo de Passageiros da
Região Metropolitana do Recife - STPP/RMR, gerido pelo Consórcio de Transportes
da Região Metropolitana do Recife – CTM, poder concedente do setor, e regulado
pelo Conselho Superior de Transporte Metropolitano - CSTM2.
Nesse cenário (de eventual superação do aparente vício formal), e mediante recurso
à técnica da interpretação conforme à Constituição, seria de rigor, a meu sentir, a
concessão da medida cautelar para declarar a inconstitucionalidade parcial da lei
em foco, sem redução de texto, em ordem a limitar a sua aplicação às linhas
integrantes do Sistema de Transporte Público de Passageiros do Município do Recife
– STPP/Recife, setor organizado, fiscalizado e gerenciado pela Autarquia de Trânsito
e Transporte Urbano do Recife – CTTU3.
2
Lei Municipal nº 17.769/2012 (Recife):
“Art. 3º Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - Poder Concedente: o Consórcio de Transportes da Região Metropolitana do Recife Ltda - CTM;
II - Concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade
de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e
risco e por prazo determinado;
III - órgão gestor do STPP/RMR: o Consórcio de Transportes da Região Metropolitana do Recife Ltda - CTM;
IV - órgão regulador do STPP/RMR: o Conselho Superior de Transporte Metropolitano - CSTM, nos termos da Lei Estadual nº
13.461/2008;
(...)”
3
Lei Municipal nº 18.291/2016 (Recife):
“Art. 25 Ficam outorgados à Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife - CTTU as competências e atribuições próprias
do Poder Público, nos termos do Código de Trânsito Brasileiro - CTB (Lei Federal nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, e suas
alterações), notadamente as seguintes:
(...)
XIX - organizar, fiscalizar e gerenciar o Sistema de Transporte Público de Passageiros do Município do Recife, especialmente os
serviços municipais de transporte por táxi e de transportes especiais afetos a sua área de atuação (complementar, fretamento e
escolar etc.), exercendo o poder punitivo;
(...)”
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De qualquer sorte, remanesce, pelo menos neste momento processual de cognição
não exauriente, a aparente inconstitucionalidade formal da norma.
Por derradeiro, vislumbro a presença do periculum in mora.
Isso porque o Consórcio CTM emitiu declaração atestando que, antes mesmo do
início da pandemia causada pelo novo Coronavírus, o sistema já vinha operando
sem cobrador em 66,94% da frota (1.616 veículos) e em 68,93% das linhas (284
linhas) do STPP/RMR (ID Num. 13950116), havendo ainda notícia no sentido de
que alguns veículos já saem de fábrica sem o espaço físico reservado a esse
profissional (ID Num. 14009084).
Ou seja: a aplicação da norma impugnada tem o potencial de alcançar dois terços
da frota metropolitana, impactando tanto a operacionalidade do sistema como o seu
custo, porquanto a agregação da despesa inerente à contratação de cobradores
evidentemente repercutirá imediatamente no equilíbrio econômico-financeiro dos
contratos em vigor e, por efeito reflexo, na composição das tarifas a serem
suportadas pelos usuários.
Por todo o exposto, concedo a medida cautelar requerida, para o fim de suspender,
com efeito ex tunc e até posterior deliberação, a eficácia da Lei Municipal nº
18.761/2020 (Recife).
É como voto.
Recife, de de 2020.
Des. Francisco Bandeira de Mello
Relator