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r e v i s ta
                 direitos
                 humanos
                                        DAlmo DE ABREU DAllARi

                                                mARy RoBinson

                                               mARco Antônio
                                            RoDRigUEs BARBosA

                                   RicARDo BRisollA BAlEstRERi

                                              AnA RitA DE PAUlA
                                          izABEl mARiA mADEiRA
                                             DE loUREiRo mAioR


                                    cARmEn silvEiRA DE olivEiRA
                                  mARiA lUizA moURA DE olivEiRA

                                               BAltAsAR gARzón

                                                  AUgUsto BoAl

                                             sEBAstião sAlgADo




Edição comemorativa
60 Anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos
                                     01
                                    d e z e m b r o 20 0 8
Apresentação

n
             asce uma nova revista sobre direitos humanos no Brasil. Já
             existem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadas
             a distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangência
nacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educação
em Direitos Humanos.
   Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficia-
lismo chapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivência
com a crítica. A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco
com a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediá-
rio entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.
   Os movimentos sociais e as ONGs dessa área, as instituições e autoridades
dos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários perti-
nentes sabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégico
para a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar de
respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na Declaração
Universal de 10 de dezembro de 1948.
   O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos des-
sa declaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns com
forte marca de ineditismo, como a Conferência Nacional dos Direitos Humanos
do segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação do
presidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em São
Paulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas,
convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos hu-
manos orientados pelo Pacto Global da ONU.
    Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Na-
cional dos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cuja
pauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Huma-
                                                                                              3
nos (PNDH), que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002.
                                                                                    Revista Direitos Humanos




   Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agenda
programática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 2003
Aprese
sobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milha-
res de pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando edu-
cação, saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criança
e adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economia
solidária, muitos outros temas.
   Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso país sediou o mais importante congresso
mundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de crianças
e adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Em
dezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras confe-
rências mencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª Con-
ferência Nacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa.
   Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinação
de avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetição
de intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal,
torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações e
violência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, per-
sistência do trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e do
Adolescente, criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas ou
lideranças de trabalhadores, e a impunidade ainda prevalece largamente sobre as
apurações exemplares.
   Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante desses 20
anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numa
trajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar os
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema nor-
mativo. Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passos
já dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.
entação
    A revista é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O ani-
 versário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos perpassa todas as
 matérias deste primeiro número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ri-
 cas. A tiragem inicial será de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500
 deles serão em espanhol, porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul,
 somos Brasil e Unasul, somos um Brasil que está decidido e talhado à integração cres-
 cente com nuestra America, dos sonhos de Bolívar, de Che e de Salvador Allende.
    Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral.
 Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... O
 certo é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida com
 essa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas,
 partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integran-
 tes, que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas.
    Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área de direitos hu-
 manos do governo federal, para que não deixem a sequência ser interrompida. Uma
 revista vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência,
 fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates que
 prevalecem em cada período.
    Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro que
 o voto popular autoriza os governantes a introduzir mudanças e ajustes, deslocando
 prioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos –
 talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, o
 prosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico,
 ao qual estamos todos obrigados.


                                                        Brasília, 10 de dezembro de 2008
                                                                           Paulo Vannuchi
sum
  ário              sumário>>


                                8
                                Direitos humanos:
                                sessenta anos de conquistas
                                DAlmo DE ABREU DAllARi




                                                                                         17
                                             12
                                                                      BAlEstRERi
                                                                      RicARDo BRisollA

                                                                                          e Direitos Humanos
                                                                                          Segurança pública
                                               Concretizando nossos
                                               compromissos

                                               mARy RoBinson




                                   26
        6
                                   Direito à memória
                                                                                                          34
Revista Direitos Humanos




                                   e à verdade
                                                                                                          Um mundo
                                  mARco Antônio RoDRigUEs BARBosA                                         todos: Univ
                                                                                                          direitos e d
                                                                                         AnA RitA DE PAUlA
                                                                                         izABEl mARiA mADEiRA
Expediente
                                                                                                      Presidente da República



                      40
                                                                                                      Luiz Inácio Lula da Silva
                                                                                                      Ministro da Secretaria
                                                                                                      Especial dos Direitos Humanos
                                                                                                      Paulo Vannuchi
                                                                                                      Secretário Adjunto
                      maioridade para os direitos humanos                                             Rogério Sottili
                      da criança e do adolescente
                                                                                                      Conselho editorial
                      cARmEn silvEiRA DE olivEiRA
                      mARiA lUizA moURA DE olivEiRA                                                   Paulo Vannuchi (Presidente)
                                                                                                      Aída Monteiro
                                                                                                      André Lázaro
                                                                                                      Carmen Silveira de Oliveira
                                                                                                      Dalmo Dallari
                                                                                                      Darci Frigo
                                                                                                      Egydio Salles Filho
                                                                                                      Erasto Fortes Mendonça
                                                                                                      José Geraldo Souza Júnior
                                                                                                      José Gregori



                                                      46
                                                                                                      Marcos Rolim
                                                                                                      Marília Muricy
                                                                                                      Izabel de Loureiro Maior
                                                                                                      Maria Victoria Benevides
                                                      a verdade, onde estiver                         Matilde Ribeiro
                                                                                                      Nilmário Miranda
                                                      BAltAsAR gARzón                                 Oscar Vilhena
                                                                                                      Paulo Carbonari
                                                                                                      Paulo Sérgio Pinheiro
                                                                                                      Perly Cipriano
                                                                                                      Ricardo Brisolla Balestreri
                                                                                                      Samuel Pinheiro Guimarães

                                                                                                      Coordenação editorial:
                                                                                                      Erasto Fortes Mendonça
                                                                                                      Mariana Bertol Carpanezzi
                                                                                                      Patrícia Cunegundes
                                                                                                      Paulo Vannuchi

                                                                                                      Revisão:
                                                                                                      Bárbara de Castro, Joíra Coelho, Luciana Melo




                                                                                         52
                                                                                                      Projeto gráfico e diagramação:
                                                                                                      Wagner Ulisses

                                                                                                      Ilustrações:
                                                                                                      Lívia Barreto
                                                                          AUgUsto BoAl
                                                                                         entrevista




                                                                                                      Produção editorial:
                                                                                                      Jacumã Comunicação

                                                                                                      Secretaria Especial dos Direitos Humanos




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                                                                                                      Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício
                                                                                                      Sede, sala 424
                                                                                                      70.064-900 Brasília – DF
                                                                                                      direitoshumanos@sedh.gov.br
                                                                                                      www.direitoshumanos.gov.br
                                  sEBAstião sAlgADo
                                                      Imagens




                                                                                                      Distribuição gratuita                                                   7
                                                                                                      Tiragem: 8.000 exemplares
                                                                                                                                                                    Revista Direitos Humanos




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                                                                                                      publicada pela Secretaria Especial dos Direitos
versalização de                                                                                       Humanos da Presidência da República do Brasil

direito à diferença                                                                                   As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade
                                                                                                      exclusiva dos autores e não representam necessariamente a
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                                                                                                      da Presidência da República ou do Governo Federal.

A DE loUREiRo mAioR                                                                                   Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução
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artigo



                                DAlmo DE ABREU DAllARi – jurista e
                                professor emérito da Faculdade de Direito da
                                Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de
                                Abreu Dallari é autor de vários livros – e, entre
                                eles, o clássico Elementos de Teoria Geral
                                do Estado. Entre outras atribuições, ocupa
                                atualmente assento no Conselho de Defesa
                                dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).




                           Direitos humanos:
                           sessenta anos de conquistas
                           DAlmo DE ABREU DAllARi
                                                                         1. A DeclArAção UniversAl De 1948:                Na denominação dada ao documento e
                                                                         compromisso hUmAnistA                         nas afirmações constantes do artigo primeiro



                                                                         h
                                                                                  á sessenta anos a humanidade deu     estão contidos alguns elementos esclarece-
                                                                                  início a uma nova fase em sua his-   dores da mais alta importância, que dão o
                                                                                  tória, registrando num documento     testemunho do extraordinário avanço já ob-
                                                                         lúcido e objetivo a tomada de consciência     tido, em comparação com dados anteriores.
                                                                         do valor primordial da pessoa humana e        Com efeito, o primeiro documento que teve
                                                                         de seus direitos essenciais e universais,     a denominação de Declaração de Direitos
                                                                         inerentes à sua própria natureza. Isso já é   foi o que a Assembléia Nacional da França
                                                                         ressaltado, com muita evidência, em sua       aprovou em 1789, num dos momentos mais
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                                                                         denominação, “Declaração Universal dos        expressivos de afirmação da vitória da Revo-
Revista Direitos Humanos




                                                                         Direitos Humanos”, e é enfaticamente pro-     lução Francesa, que punha fim ao chamado
                                                                         clamado em seu artigo primeiro, que inicia    Antigo Regime e começava uma nova fase
                                                                         com o seguinte enunciado: “Todos os seres     na história da humanidade. O documento
                                                                         humanos nascem livres e iguais em digni-      então aprovado foi designado “Declaração
                                                                         dade e direitos”.                             dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que
despertou reações veementes dentro da pró-       qualquer exceção, nascem livres e iguais,        2. os Direitos hUmAnos e
pria Assembléia, denunciando o seu caráter       deixa expresso que a Constituição e o siste-     os cAminhos DA históriA
discriminatório contra as mulheres. Isso foi     ma legal que contiverem exclusões ou dis-            Perde-se na origem dos tempos o reco-
negado pelos líderes da maioria, que eram        criminações quanto aos direitos humanos          nhecimento de que os seres humanos são
franceses brancos e ricos, mas o espírito dis-   não têm o valor de documentos jurídicos          criaturas especiais, que nascem com cer-
criminatório foi confirmado logo em seguida.     autênticos, são falsificações maliciosas que     tas peculiaridades, incluindo necessidades
Basta lembrar que, à semelhança dos Estados      não merecem respeito e devem ser elimi-          básicas de natureza material, psicológica e
Unidos da América, criados com a aprovação       nadas. Os direitos humanos são atributos         espiritual, que são as mesmas para todas as
da primeira Constituição escrita da história,    naturais de todos os seres humanos, que          pessoas. Entre tais peculiaridades encontra-
em 1787, a França impediu o acesso das
mulheres aos altos cargos do governo e da
Administração Pública.                           “Há pessoas que colocam suas
    Assim, a afirmação de que os direitos
humanos declarados são de “todos os se-
                                                 ambições pessoais, sua busca de
res humanos” exclui qualquer espécie de          poder, prestígio e riqueza acima
discriminação. Isso tem ainda grande im-
portância, para constatação dos avanços,         dos valores humanos”
pelo fato de que tanto os Estados Unidos
quanto a França se basearam na afirmação         nascem com eles e que a sociedade, o Es-         se também a possibilidade de se desenvolver
da existência de direitos naturais das pes-      tado, os governos ou quem quer que seja          interiormente, de transformar a natureza e de
soas, primeiro deles o direito à liberdade,      não podem restringir com legitimidade. E         estabelecer novas formas de convivência.
sendo bem conhecido o lema da Revolu-            aí se enquadra a dignidade humana, que           Tudo isso levou à conclusão de que o ser hu-
ção Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fra-        é igual para todos e que é da essência da        mano é dotado de especial dignidade e que
ternidade”, e na prática negaram por muito       pessoa humana, não havendo qualquer di-          é imperativo que todos recebam proteção e
tempo essa afirmação. Com efeito, ambos,         ferença entre a dignidade do proprietário de     apoio para a satisfação das necessidades bá-
Estados Unidos e França, usavam o traba-         uma rica mansão ou suntuosa fazenda e a          sicas e para o pleno uso e desenvolvimento
lho escravo em larga escala e continuaram        do favelado ou do morador de rua e mesmo         de suas possibilidades físicas e intelectuais.
mantendo a escravidão negra durante mui-         do presidiário. Eles podem ficar sujeitos a      Como decorrência de todos esses fatores, foi
tos anos. A mulher só foi admitida como          regras legais diferentes, desde que isso não     sendo definido um conjunto de faculdades
eleitora em eleições nacionais estaduni-         ofenda a dignidade essencial de cada um.         naturais necessitadas de apoio e estímulo
denses em 1920 e na França ela só foi ad-             A Declaração Universal dos Direitos         social, que hoje se externam como direitos
mitida como juíza em 1946. Além disso, os        Humanos aprovada pela Organização das            fundamentais da pessoa humana.
trabalhadores tiveram de enfrentar duríssi-      Nações Unidas em 1948 foi, efetivamente,             Mas apesar de serem direitos de todos
ma resistência, inclusive forte repressão        um avanço para a humanidade. Existem ain-        os seres humanos, o que deveria levar à con-
policial, para, no século XX, ser admitidos      da resistências à sua efetiva aplicação, mas     clusão lógica de que ninguém é contra tais
como “livres e iguais”. Como fica óbvio,         a simples existência dessa declaração tem        direitos, a história mostra coisa bem diferente
aquilo que se denominou enfaticamente Li-        servido de apoio significativo para lutas tra-   disso. Há pessoas que colocam suas ambi-
beralismo continha boa dose de hipocrisia,       vadas por meios pacíficos e para denúncias e     ções pessoais, sua busca de poder, prestígio
pois os direitos declarados eram os dos          reivindicações buscando a concretização de       e riqueza acima dos valores humanos. Isso                   9
homens brancos ricos, excluindo grande           mudanças nas Constituições, na organização       explica as violências da Idade Média, com o
                                                                                                                                                    Revista Direitos Humanos




parte da humanidade.                             das sociedades e nas práticas da convivência     estabelecimento dos privilégios da nobreza e
    Além da denominação, que abrange a           humana constitucionais, visando à elimina-       a servidão dos trabalhadores. Essa é, também,
universalidade dos seres humanos, a afir-        ção das discriminações e à implantação da        a raiz das agressões sofridas pelos índios da
mação de que todos, sem a possibilidade de       justiça social.                                  América Latina com a chegada dos europeus,
artigo         Direitos humanos: sessenta anos de conquistas

                                                                                                                             a Declaração dos Direitos do Homem e do
                                                                                                                             Cidadão, afirmando, no artigo primeiro, que
                                                                                                                             “todos os homens nascem e permanecem
                                                                                                                             livres e iguais em direitos”, mas, ao mes-
                                                                                                                             mo tempo, admitindo “distinções sociais”,
                                                                                                                             as quais, conforme a declaração, deveriam
                                                                                                                             ter fundamento na “utilidade comum”. Logo
                                                                                                                             foram achados os pretextos para essas dis-
                                                                                                                             tinções, instaurando-se uma nova forma de
                                                                                                                             sociedade discriminatória com novas classes
                                                                                                                             de privilegiados, estabelecendo-se enorme
                                                                                                                             distância entre as camadas mais ricas da po-
                                                                                                                             pulação, pouco numerosas, e a grande massa
                                                                                                                             dos mais pobres.
                                                                                                                                 A partir de então, as injustiças inces-
                                                                                                                             santemente acumuladas, as discriminações
                                                                                                                             impostas pela lei, excluindo da participação
                                                                                                                             política os não-proprietários e as mulheres,
                                                                                                                             o uso dos órgãos do Estado para sustentação
                                                                                                                             dos privilégios dos mais ricos e de seus ser-
                           estando aí, igualmente, o nascedouro das        submetidos a condições indignas. Mas a fun-       viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento,
                           violências contra a pessoa humana, inspi-       damentação teológica dos direitos humanos         miséria, violências e inevitáveis revoltas. No
                           radas nos valores do capitalismo, que tenta     foi usada maliciosamente, para sustentar que      campo dos dominadores surgiram, entretan-
                           renovar agora sua imagem desgastada, pro-       os direitos dos reis e dos nobres decorriam       to, muitas disputas, sobretudo de natureza
                           pondo a farsa da globalização.                  da vontade de Deus e assim estariam justifi-      econômica, em âmbito nacional e interna-
                                O excesso de agressões à dignidade da      cadas as discriminações e injustiças sociais.     cional. Essa produção de injustiças e esse
                           pessoa humana, em decorrência do egoísmo,            Os séculos XVII e XVIII foram marcados       choque de ambições levaram à perda da paz,
                           da insaciável voracidade, da insensibilidade    por lutas contra esses privilégios. Grandes fi-   com duas guerras mundiais no século XX,
                           moral dos dominadores, tem despertado re-       lósofos políticos reafirmaram a existência dos    chegando-se a extremos, jamais imaginados,
                           ações, tanto no plano das ideias quanto no      direitos fundamentais da pessoa humana, so-       de violência contra a vida e a dignidade da
                           âmbito da ação material. Desse modo surgi-      bretudo os direitos à liberdade e à igualdade,    pessoa humana.
                           ram teorias e movimentos revolucionários,       mas dando como fundamento desses direitos
                           que foram contribuindo para que um número       a própria natureza humana, descoberta e diri-     3. A DeclArAção UniversAl
                           cada vez maior de seres humanos tomasse         gida pela razão. Na sequência dessas ideias,      Dos Direitos hUmAnos: AvAnços
                           consciência de sua dignidade essencial e dos    a burguesia, que tinha força econômica, mas       e resistênciAs
                           direitos a ela inerentes.                       estava à margem do poder político, associou-           Terminada a Segunda Guerra Mundial, es-
                                No final da Idade Média, no século XIII,   se à plebe, pois ambas estavam igualmente         tando ainda abertas as feridas da grande tragédia
                           aparece a grande figura de São Tomás de         interessadas na destruição dos antigos privi-     causada pelo egoísmo, pelo excesso de ambi-
    10                     Aquino que, tomando a vontade de Deus           légios de que gozavam a nobreza e o clero a       ções materiais, pela arrogância dos poderosos e
                           como fundamento dos direitos humanos,           ela associado e seu valioso aliado político,      pela desordem social que de tudo isso resultou,
Revista Direitos Humanos




                           condena as violências e discriminações, di-     também beneficiário das injustiças.               iniciou-se um trabalho visando à criação de um
                           zendo que o ser humano tem direitos naturais         O ponto culminante dessas lutas foi a Re-    novo tipo de sociedade, informada por valores
                           que devem ser sempre respeitados, chegando      volução Francesa. No ano de 1789, colocado        éticos e tendo a proteção e promoção da pes-
                           a afirmar o direito de rebelião dos que forem   o poder nas mãos da burguesia, foi publicada      soa humana como seus principais objetivos.
Foi instituída, então, a Organização das Nações   trados acarreta sanções de várias espécies,     superioridade política e social, sem qualquer
Unidas (ONU), com o objetivo de trabalhar per-    como o fechamento do acesso a fontes in-        consideração de ordem ética, os que preten-
manentemente pela paz. Demonstrando estar         ternacionais de financiamento e aos serviços    dem que seus interesses tenham prioridade
conscientes de que esse objetivo só poderá ser    de organismos internacionais, além de outras    sobre a dignidade da pessoa humana, esses
atingido mediante a eliminação das injustiças e   consequências de ordem moral e material.        resistem à implantação das normas inspira-
a promoção dos direitos fundamentais da pes-          A partir da proclamação da igualdade de     das nos princípios da Declaração Universal.
soa humana, os integrantes da Assembléia Ge-      todos os seres humanos, em direitos e digni-    Mas a realidade mostra um avanço conside-
ral da ONU aprovaram, em 1948, a Declaração       dade, como está expresso no artigo primeiro     rável na conscientização das pessoas e dos
Universal dos Direitos Humanos.                   da Declaração Universal dos Direitos Huma-      povos, havendo razões objetivas para se acre-
     A Declaração é um marco histórico, não       nos, vários pactos e tratados dispuseram so-    ditar que a história da humanidade está cami-
só pela amplitude das adesões obtidas, mas,       bre situações específicas em que a igualdade    nhando no sentido da criação de uma nova
sobretudo, pelos princípios que proclamou,        vinha sendo negada, fixando regras e estabe-    sociedade, na qual cada pessoa, cada grupo
recuperando a noção de direitos humanos e         lecendo responsabilidades. Essa diretriz já     social, cada povo verá seus direitos humanos
fundando uma nova concepção de convivên-          penetrou nas Constituições, o que significa     fundamentais reconhecidos e respeitados. O
cia humana, vinculada pela solidariedade. É       um reforço, de ordem prática, da eficácia das   que reforça essa crença é a constatação de
importante assinalar também que, a partir da      normas, bem como facilidade maior para seu      que vem aumentando incessantemente o
declaração e com base nos princípios que          conhecimento e sua aplicação.                   número dos que já tomaram consciência de
ela contém, já foram assinados muitos pac-            O que se pode concluir disso tudo é que     que, para superar as resistências, cada um
tos, tratados e convenções, tratando de pro-      a Declaração Universal dos Direitos Humanos     de nós deverá ser um defensor ativo de seus
blemas e situações particulares relacionados      marca o início de um novo período na história   próprios direitos humanos. E por imperativo
com os direitos humanos. Esses documentos         da humanidade. Os que procuram a preser-        ético, mas também para defesa de seus pró-
implicam obrigações jurídicas e o descum-         vação ou a conquista de privilégios, os que     prios direitos, todos deverão ser defensores
primento dos compromissos neles regis-            buscam vantagens materiais e posições de        dos direitos humanos de todos.




                                                                                                                                                         11
                                                                                                                                                  Revista Direitos Humanos
artigo            Concretizando nossos compromissos



                           mARy RoBinson é presidente da
                           “Realizing Rights: The Ethical Globalization
                           Initiative” [Iniciativa para Globalização Ética]
                           e membro da “Elders”. A Sra. Robinson
                           foi Comissária das Nações Unidas para os
                           Direitos Humanos entre 1997 e 2002, e
                           Presidente da Irlanda (1990-1997).




                           Concretizando
                             nossos compromissos
                                                                                                                          mARy RoBinson




                                                                              e
                               Este ensaio foi baseado                                m 2008 celebramos o 60º aniversário      evitar maior deterioração e impedir o avanço
                                                                                      da Declaração Universal dos Direitos     dessa tendência se recuperarmos e fortalecer-
                                nos comentários feitos                                Humanos, oportunidade para que rea-      mos a mensagem dos direitos humanos. Não
                                 pela sra. Robinson na                        firmemos a importância vital dos padrões in-     consigo imaginar forma melhor de fazer isso
                                                                              ternacionais de direitos humanos para a cons-    do que reafirmando a visão de direitos e res-
                            “Harvard Business School”                         trução de um futuro mais justo e sustentável.    ponsabilidades da Declaração Universal, ins-
                               [Escola de Negócios da                         Entretanto, as tendências vislumbradas atual-    trumento que representa um “padrão comum”
                             Universidade de Harvard],                        mente não são positivas no que concerne à re-    para todos os povos e nações.
    12                                                                        alização efetiva da promessa representada pela
                            em Boston, Massachusetts,                         declaração. Em parte por causa das respostas     reAfirmAnDo A mensAgem
Revista Direitos Humanos




                              em 28 de abril de 2008.                         nacionais e globais aos ataques terroristas de   DA DeclArAção UniversAl
                                                                              11 de setembro de 2001, nesta década os di-      Dos Direitos hUmAnos
                                                                              reitos humanos foram deixados de lado e, em         Relembremos por um momento como era
                                                                              alguns casos, ignorados. Todavia, podemos        o mundo em 1948, ano em que surgiu. As
nações emergiam de uma devastadora guerra
mundial e do Holocausto. Pela primeira vez,
                                                   “a Declaração Universal tem
armas nucleares haviam sido empregadas             constituído fonte de inspiração para
contra civis. A Guerra Fria começara. As pes-
soas buscavam laços comuns que unissem             toda legislação internacional do pós-
as nações e aumentassem a segurança hu-
mana para todos.
                                                   guerra na área de direitos humanos”
    Neste contexto, surgiu um grupo de homens
e mulheres com diferentes histórias, culturas e         É claro, contudo, que esta avaliação posi-   no mundo todo. Padrões trabalhistas básicos
crenças, liderado por uma mulher notável: Elea-    tiva precisa ser contrabalançada. Cito, nesse     são ignorados. A pobreza prende milhões a
nor Roosevelt. O mandato do grupo, como parte      sentido, afirmação feita em publicação re-        vidas de desespero.
da recém-criada Comissão de Direitos Huma-         cente pelo Conselho Internacional de Política
nos da ONU, consistia em elaborar uma articu-      de Direitos Humanos, uma das organizações         DA DeclArAção à Ação: Realizing
lação internacional dos direitos e liberdades de   parceiras do trabalho que agora está sob mi-      Rights no sécUlo XXi
toda a humanidade.                                 nha responsabilidade, na Realizing Rights:             Então, o que devemos aprender para os
    Resultado desses esforços, a Declaração                                                          futuros esforços não só para proteger os di-
Universal dos Direitos Humanos ofereceu-               “À medida que a reputação e a influência      reitos humanos, mas também para fazer um
nos uma visão de humanidade comum e de                 dos direitos humanos aumentam, eles           trabalho pró-ativo na sua concretização?
responsabilidades mútuas compartilhadas,               passam a ser ativamente mais contes-
aplicáveis independentemente de lugar ge-              tados, e por atores ainda mais podero-            primeira lição – uma verdade provavel-
ográfico, de cor, de religião, de sexo ou de           sos... Antes eram tolerados por serem         mente óbvia, mas normalmente não declara-
ocupação. Passados sessenta anos, a de-                considerados marginais… As frequentes         da, é o fato de que, como em grandes áreas
claração – e seu cuidadoso equilíbrio en-              referências feitas aos direitos humanos no    do mundo muitas pessoas continuam pobres
tre liberdades individuais, proteção social,           contexto das relações Norte-Sul e, mais       e seus governos são carentes de recursos, as
oportunidade econômica e deveres com a                 recentemente, a força das críticas legais     populações precisam buscar apoio e assis-
comunidade – constituiu-se em instrumento              aos direitos humanos na condução da           tência em a suas próprias comunidades lo-
de direitos humanos reafirmado por todos os            “guerra ao terrorismo” fizeram com que        cais. Essencialmente, não há condições para
governos, e, mais recentemente, pela Cúpula            muitos governos quisessem restringir ou       que tais grupos reivindiquem seus direitos na
Mundial da ONU, em 2005.                               reverter a aplicação dos direitos humanos.    forma prevista nos instrumentos de direitos
    Um dos temas mais subestimados da                  As críticas aos direitos humanos vêm se       humanos. Pensemos sobre isso no contexto
história dos direitos humanos nas últimas              tornando mais disseminadas e explícitas,      do mundo do trabalho: a grande maioria dos
seis décadas consiste na identificação do              principalmente nos países mais ricos… A       trabalhadores do mundo – inclusive os mais
quantum de influência moral, política e le-            oposição e a influência cresceram juntas,     pobres, os que mais necessitam de prote-
gal exercida por aquele texto no mundo. A              levando a um grau de desorientação.” 1        ção–, está no setor informal. Esse fato cria
Declaração Universal tem constituído fonte                                                           um sério desafio prático para os governos.
de inspiração para toda a legislação inter-             Bem sabemos que, a despeito do desen-            Para criar condições de proteção dos
nacional do pós-guerra na área de direitos         volvimento da legislação internacional de di-     direitos humanos das comunidades muito
humanos. Seus dispositivos têm servido de          reitos humanos nos últimos sessentas anos,        pobres ou marginalizadas, os governos preci-
modelo para constituições e leis, regulamen-       massivas violações a esses direitos conti-        sam encontrar novos caminhos para alcançá-            13
tos e políticas internos de defesa dos direitos    nuam a ser perpetradas nos dias de hoje. A        las e atendê-las. Além disso, as organizações
                                                                                                                                                     Revista Direitos Humanos




humanos. Acima de tudo, a declaração tem           elaboração de legislação formal não resultou      de direitos humanos precisam encontrar no-
sido um símbolo de esperança para milhões          em proteção universal aos direitos humanos.       vas formas de conquistar a confiança dessas
de pessoas no decorrer de longos períodos          O genocídio voltou a acontecer. As mulheres       comunidades. A meu ver, a única maneira de
de opressão.                                       e as minorias sofrem ampla discriminação          fazê-lo é por meio da celebração de parcerias
artigo            Concretizando nossos compromissos

                                                                                                                            dos por um espaço de atuação da sociedade
                                                                                                                            civil e dos defensores dos direitos humanos,
                                                                                                                            tanto quanto pela garantia de que entre tais
                                                                                                                            sistemas formais e institucionalizados de de-
                                                                                                                            fesa e promoção dos direitos humanos e tais
                                                                                                                            atores da sociedade configure-se verdadeira
                                                                                                                            e efetiva dinâmica de relacionamento.
                                                                                                                                 Os direitos humanos não podem ser
                                                                                                                            concretizados na ausência de instituições
                                                                                                                            efetivas e transparentes. Se os tribunais são
                                                                                                                            corruptos, sobrecarregados e ineficientes, os
                                                                                                                            direitos civis básicos reputam-se violados.
                                                                                                                            Se os ministérios sociais não têm recursos
                                                                                                                            e autonomia suficientes, ou seu quadro fun-
                                                                                                                            cional não é qualificado, os direitos básicos
                                                                                                                            de assistência à saúde, educação e moradia
                                                                                                                            adequadas não podem ser devidamente exer-
                                                                                                                            cidos. A construção e a reforma dos aparatos
                                                                                                                            institucionais do Estado não tarefas fáceis ou
                                                                                                                            particularmente notáveis, embora essenciais.
                                                                                                                                 O tema do incentivo à capacitação de ins-
                                                                                                                            tituições me leva a refletir sobre um terceiro
                                                                                                                            desafio: definir as obrigações internacionais
                           com organizações que estejam presentes há         Resguardar os direitos daqueles que vivem na   mais concretamente. Nas últimas décadas
                           tempos nessas comunidades, tais como enti-        pobreza é um desafio que todos devemos en-     vem sendo amplamente reconhecida a ne-
                           dades religiosas, grupos comunitários, ONGs       frentar, se quisermos criar sociedades mais    cessidade de criação de uma espécie de
                           e outras.                                         inclusivas, prósperas e justas.                autoridade supranacional legítima, uma vez
                                A batalha pelos direitos humanos é ine-          Assim, chegamos a uma segunda lição        que a ação tomada em nível exclusivamen-
                           vitavelmente uma batalha por poder, e esta        e a um desafio – fazer mais para apoiar os     te nacional não parece apta a resolver vários
                           batalha está geralmente ligada a batalhas         países em desenvolvimento na construção de     complexos problemas mundiais. Conhece-
                           correlatas por recursos. Assim, a promoção        seus próprios sistemas nacionais de proteção   mos muitos desses problemas, como a mu-
                           sustentável de todos os direitos humanos de-      aos direitos humanos. Por sistemas nacionais   dança climática, o comércio desigual, a dis-
                           pende de políticas e programas que abordem        de proteção, refiro-me aos arranjos institu-   seminação de pandemias e novas doenças,
                           as desigualdades econômicas e sociais.            cionais que, sob a égide regulamentadora do    o comércio ilegal de armas e de pessoas, a
                                Descobrir maneiras de resguardar os di-      ordenamento jurídico nacional e inspiração     regulamentação e o monitoramento da tecno-
                           reitos garantidos por lei é outro aspecto vital   nos compromissos internacionais assumidos      logia nuclear, entre outros.
                           para o empoderamento dos marginalizados.          pelo Estado, têm como objetivo garantir o           Em todos esses casos, a coordenação
                           No ano passado, 2007, trabalhei para a Co-        exercício e a proteção dos direitos humanos    internacional e a ação coletiva se fazem ne-
    14                     missão de Empoderamento Legal dos Pobres,         dos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, o    cessárias se quisermos alcançar mudanças
                           presidida por Hernando de Soto e Madeleine        Poder Legislativo, as instituições ou comis-   positivas. A realidade é que hoje os Estados
Revista Direitos Humanos




                           Albright. A comissão enfatizou a importância      sões nacionais de direitos humanos. Incluem-   são incapazes de chegar a uma cooperação
                           do acesso à Justiça e às demais garantias         se, ainda, os sistemas de saúde e educação,    efetiva, à exceção de casos envolvendo evi-
                           do Estado de Direito como condições para o        assim como outros serviços públicos. Esses     dentes interesses nacionais de curto prazo.
                           concreto exercício de todos os outros direitos.   sistemas nacionais devem ser complementa-      Tal fragilidade é também observável na seara
da legislação de direitos humanos, que ainda    bais e a capacidade de atingir resultados      uma sociedade estável e regrada é essen-
não alcançou patamar de desenvolvimento         provavelmente aumentará, trazendo efeitos      cial para o bom andamento do empreen-
suficiente para lidar com as responsabilida-    cada vez mais nocivos para as pessoas e        dimento. As empresas precisam assegurar-
des transnacionais dos Estados.                 comunidades, assim como para a credibi-        se que seus contratos serão devidamente
     Vejamos os urgentes dilemas de direi-      lidade política dos governos.                  observados, com o respaldo dos juízes e
tos humanos que nos são colocados pela              A atual ausência de governos nacionais     tribunais de justiça, e que suas proprieda-
mudança climática. Poucos negariam que o        legítimos em muito locais, agravada pela       des e investimentos serão protegidos.
fenômeno tende a enfraquecer a capacidade       governança internacional ineficiente, tem           Quanto mais nos envolvemos nessas
de exercício de uma ampla gama de direitos      direcionado o foco, cada vez mais, sobre as    questões, mais percebemos que muito res-
humanos protegidos internacionalmente – o       responsabilidades dos atores não estatais em   ta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias de
direito à saúde e mesmo à vida, o direito à     matéria de direitos humanos. Dados seu po-     responsabilidade corporativa, por exemplo,
alimentação, à água, à habitação e à proprie-   der e influência no mundo de hoje, o setor     como o Pacto Global das Nações Unidas, se
dade; os direitos dos povos indígenas e tra-    corporativo ocupou o centro deste debate.      expandiram muito nos últimos anos, mas ain-
dicionais, bem como os direitos associados      Definir de maneira mais precisa a natureza e   da não conseguiram a adesão de empresas
à sobrevivência e à cultura, à migração e ao                                                   estatais de países com economia de mercado
reassentamento e o direito de segurança pes-                                                   emergentes, os quais vêm se tornando atores
soal em caso de conflito.                           “os direitos                               cada vez mais importantes no cenário global.
     Os impactos mais drásticos da mudança                                                     Ao mesmo tempo, esforços empreendidos
climática provavelmente ocorrerão – e já es-       humanos não                                 por vários atores internacionais, coletivamen-
tão sendo vivenciados – nos países mais po-                                                    te, no intuito de construir responsabilidades
bres, nos quais os mecanismos de proteção a          podem ser                                 corporativas claras em questões temáticas
direitos costumam ser frágeis. As populações                                                   tais como violações aos direitos trabalhis-
cujos direitos são pouco protegidos têm me-
                                                   concretizados                               tas, ameaças à segurança pessoal e liber-
nos condições de conhecer e de preparar-se
para os efeitos da mudança climática, bem
                                                    na ausência                                dade de expressão, entre outros, geralmen-
                                                                                               te não se desenvolvem a ponto de firmar
como para demandar de maneira eficiente
ações do governo nacional ou da comunida-
                                                  de instituições                              mecanismos reconhecidamente legítimos
                                                                                               de comunicação e prestação de contas ao
de internacional. Somada a isso, a responsa-         efetivas e                                público. Esses são enormes desafios que
bilidade pelos impactos nos países mais vul-                                                   ainda precisam ser enfrentados.
neráveis costuma não recair sobre o governo       transparentes”                                    Também é importante mencionar que o
mais próximo, mas sobre atores difusos,                                                        esforço necessário para integrar os valores
tanto públicos quanto privados, muitos dos                                                     de direitos humanos à cultura corporativa
quais estão distantes dos limites estatais. A   o escopo das responsabilidades corporativas    demanda recursos significativos para pro-
legislação de direitos humanos nem sempre       é um quarto desafio para o futuro.             gramas de treinamento e melhoria contí-
consegue ultrapassar as fronteiras para impor       Todos sabemos que há diversos fatores      nua. Passar aos funcionários uma mensa-
obrigações em questões como essas.              subjacentes à grande ênfase que o setor        gem de que a empresa acredita na ampla
     Apesar do interesse crescente de de-       empresarial vem emprestando aos direitos       agenda de direitos humanos, que deve ser
fensores de direitos humanos e organis-         humanos: fortes convicções éticas de alguns    uma peça essencial nas decisões comer-
mos legais internacionais pelas chamadas        executivos líderes, cálculo de risco para a    ciais em todos os níveis, é muito mais fácil           15
obrigações “extraterritoriais”, novas regras    reputação, o impacto da opinião pública, o     na teoria do que na prática.
                                                                                                                                                Revista Direitos Humanos




e práticas comuns nessa nova área devem         comportamento dos pares e concorrentes, a           John Ruggie, professor da Harvard’s Ken-
demorar a constituir-se. No curto prazo, a      lealdade e o desempenho dos funcionários       nedy School of Government [Escola Kennedy
“lacuna de oferta” entre a necessidade de       e as novas políticas internacionais. Os lí-    de Governo da Universidade de Harvard], no
ação internacional efetiva em questões glo-     deres de empresas reconhecem, ainda, que       exercício de sua função como Representante
artigo            Concretizando nossos compromissos

                           Especial do Secretário-Geral das Nações Uni-       cadas ao emprego, à atividade econômica e       to sustentável no futuro. Algumas grandes
                           das em direitos comerciais e humanos, tem          à igualdade, além de maior cooperação com       empresas, por exemplo, vêm se preparando
                           contribuído de forma inestimável nos últimos       organizações especializadas nessas áreas,       para analisar toda a sua cadeia de valores em
                           três anos ao enfatizar que todas a empresas        como sindicatos e empresas.                     países em desenvolvimento, para descobrir
                           têm responsabilidade de respeitar os direitos          Como podemos aumentar o poder dos           como podem mudar seus processos locais
                           humanos. Em seu relatório mais recente, o          mercados para os pobres? Se o principal         de compras ou distribuição de modo a criar
                           professor Ruggie apresentou um marco polí-         patrimônio desse segmento é o trabalho,         mais empregos locais sustentáveis. Espero
                           tico que se baseia em três princípios: Prote-      como podemos apoiá-los por meio de uma          que possamos desenvolver mais essas me-
                           ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve a       legislação sobre trabalho decente –, ou seja,   todologias no futuro.
                           obrigação do Estado de proteger contra os abu-     um aparato legal que inclua não somente
                           sos aos direitos humanos cometidos por atores      prevenção ao trabalho infantil e escravo, mas   UmA oportUniDADe De reAfirmAr o
                           corporativos, a responsabilidade corporativa de    também a criação de “condições justas e         Direito comUm De nAscimento
                           respeitar todos os direitos humanos, e a neces-    favoráveis de trabalho”, assim como “remu-           O 60º aniversário da Declaração Univer-
                           sidade de emprego de medidas corretivas que        neração justa e favorável”, capaz de prover a   sal neste ano é uma oportunidade para que as
                           sejam efetivas. O professor Ruggie sugere que      existência humana digna, como determina a       organizações, governos, universidades, gru-
                           a responsabilidade corporativa deve respeitar      Declaração Universal dos Direitos Humanos?      pos religiosos, empresas e outras instituições
                           todos os direitos humanos, e que deve ser efeti-   Como podemos reafirmar a importância da         no mundo todo reafirmem a importância dos
                           vada pelas empresas por meio de um conjunto        liberdade de associação e crescimento nos       direitos humanos como garantias inerentes a
                           definido de ações, tais como:                      EUA e na Europa, se essa importância é ata-     cada ser humano, e para que colaborem no
                               • Adoção de uma política de direitos hu-       cada hoje em dia?                               estabelecimento de uma agenda positiva para
                               manos.                                             Nós, da organização Realizing Rights,       esses direitos no século XXI.
                               • Adoção de medidas pró-ativas para            apoiamos os esforços da Organização Interna-         Para aproveitar ao máximo esta oportu-
                               entender como as atividades atuais e           cional do Trabalho e de um número crescen-      nidade, a Elders – grupo de líderes forma-
                               propostas podem afetar os direitos hu-         te de atores da sociedade civil que se unem     do no ano passado por Nelson Mandela, do
                               manos.                                         em torno do conceito de “trabalho decente”.     qual tenho o orgulho de participar – lançou
                               • Realização de atualizações periódicas        Acreditamos que a ampla comunidade de ati-      a campanha Todo Ser Humano tem Direitos.
                               sobre o impacto e desempenho em direi-         vistas em direitos humanos tem um impor-        A campanha nos convida a um compromis-
                               tos humanos.                                   tante papel a desempenhar, refletindo com       so de viver pelos princípios da Declaração
                               • Oferecimento ao público de mecanis-          os líderes do setor privado sobre os desafios   Universal. Eu os convido a conhecer melhor
                               mos eficientes de denúncia para lidar          de gerar oportunidades de emprego decente,      a campanha e a se envolver pessoalmente,
                               com os supostos casos de violação aos          capazes de contribuir para o desenvolvimen-     acessando o site www.everyhumanhasrights.
                               padrões de direitos humanos.                                                                   org. Trabalhamos com vários parceiros com
                                Por fim, vou me referir brevemente a um                                                       o intuito de ajudar a reafirmar e recuperar a
                           quinto desafio. Esse diz respeito ao papel da      “algumas grandes                                importância dos compromissos e obrigações
                           geração de emprego e riqueza para a efetiva-                                                       baseados na Declaração Universal.
                           ção de uma série de direitos humanos. Até          empresas vêm se                                      Todos os seres humanos nascem livres e
                           agora, especialistas em direitos humanos
                           pouco disseram sobre essa questão. Valioso
                                                                               preparando para                                iguais em dignidade e direitos. É isso que diz
                                                                                                                              o Artigo 1º da Declaração Universal. A frase
    16                     trabalho aplicando a perspectiva de direitos        analisar toda sua                              é tão significativa e importante hoje quanto
                           humanos à análise orçamentária e à aloca-                                                          foi em 1948. Assumamos os direitos de que
                                                                              cadeia de valores
Revista Direitos Humanos




                           ção de assistência, por exemplo, vem sendo                                                         somos titulares desde nosso nascimento e o
                           construído; nos próximos anos, entretanto,           em países em                                  usemos como pretendiam os elaboradores da
                           será necessário o desenvolvimento de novas                                                         declaração Universal: para garantir os direitos
                           formas de análise dos direitos humanos apli-       desenvolvimento”                                humanos a todas as pessoas.
Segurança pública
e direitos humanos
RicARDo BRisollA BAlEstRERi é secretário nacional de Segurança Pública, membro
                                                                                                      “Creio firmemente que
do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH), do Comitê Nacional para
Combate à Prática da Tortura (SEDH) e da Comissão Estruturadora da Universidade Federal
                                                                                                      enquanto os homens não
Latino-Americana (Unila – MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presente
texto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que o           conseguirem encontrar
ele faça parte.
                                                                                                      uma forma de desistir da
                                                                                                      violência para resolver
                                                                                                      seus conflitos, e não
                                                                                                      encontrarem uma forma
                                                                                                      de conviver sem recorrer à
                                                                                                      violência, quer se trate da
                                                                                                      violência das instituições,
                                                                                                      quer da violência daqueles
                                                                                                      que tentam destruir essas


h
          á 60 anos, por decisão da Organiza-       pródigo em termos de direitos civis e políticos
          ção das Nações Unidas, o mundo deu        – um viés avaliativo obviamente herdado do
                                                                                                      mesmas instituições, o
          um salto gigantesco em sua história       marxismo mecanicista vulgar, que considera
moral, aprovando a Declaração Universal dos         os elementos “estruturais” como determi-
                                                                                                      curso da história continuará
Direitos Humanos.                                   nantes dos “superestruturais”. Por essa visão,
     Pela primeira vez, um roteiro formal, su-      tudo o que não reordene o modo de produção
                                                                                                      a ser o que sempre foi,
ficientemente consensual entre as nações,           e não gere, imediatamente, melhor distribui-
                                                                                                      ou seja, uma monótona e
reconheceu direitos individuais e também            ção de riquezas, merece desconfiança e des-
                                                                                                                                           17
coletivos, superando teoricamente milenares         dém. Os resultados de tal equívoco conceitual
                                                                                                      quase obsessiva tragédia de
privilégios e preconceitos classistas, étnicos,     e prático, os conhecemos através da história
                                                                                                                                     Revista Direitos Humanos




sexistas, etários, culturais.                       do “socialismo real”. Há quem insista, contu-     lágrimas e sangue.”
     Infelizmente, há quem desdenhe dessa           do, nessas fórmulas jacobinas, verticalistas,
vitória, por julgar tal roteiro como insuficiente   autoritárias, sempre frutos da “magia” de um      (Norberto Bobbio)
no campo dos direitos sociais e econômicos e        poder emanado, invariavelmente, de cima.
artigo            Segurança Pública e Direitos Humanos

                           Quem o faz, no mais das vezes, pensa estar        “de baixo para cima”. Assim, princípios que
                           criticando, “pela esquerda”, as “ingenuidades     garantam, por exemplo, as liberdades de or-
                           pequeno-burguesas” da militância dos direitos     ganização e expressão, incidem, sempre, ne-
                           humanos. Sem querer, repete a lógica lampe-       cessária e obrigatoriamente, sobre o aprofun-
                           duzana que, veladamente, nas novas formas,        damento da democracia também no campo
                           preserva os velhos conteúdos, “mudando tudo       social e econômico. Bem-estar se conquista.
                           para que nada mude”. Na verdade, sempre que       Não se ganha de brinde, por conta de benfei-
                           não se critica a dinâmica do poder, particu-      torias das classes dominantes.
                           larmente sua verticalidade tradicional, se está        A Declaração Universal de Direitos Hu-
                           replicando uma forma conservadora de pensar       manos fez bem, portanto, em destacar os
                           e ordenar o mundo. Uma lógica “de direita”,       direitos civis e políticos. É por eles que se
                           portanto (aliás, antes que – por modismos de      pode superar a heteronomia, construindo
                           pretensa pós-modernidade – me censurem            e conquistando o caminho para um mundo
                           pelos termos aqui utilizados, preciso declarar    mais justo. Obviamente, portanto, continua
                           total adesão a Norberto Bobbio quanto à con-      sendo uma inócua candura clamar por algum
                           tinuidade da adequação da díade “esquerda” e      tipo de declaração universal de melhor distri-
                           “direita” para uma compreensão analítica, um      buição das riquezas.
                           posicionamento axiológico e uma postura de             Como percebe o leitor, iniciei este artigo
                           intervenção no mundo contemporâneo:               pela crítica ao conservadorismo de esquerda,
                                                                             no que atine à avaliação da luta pelos direi-
                               “Como já afirmei várias vezes a propósito     tos humanos. O objetivo é tentar identificar
                               daquilo que chamei de ‘as grandes dico-       as causas do isolamento e fragilização de
                               tomias’ em que qualquer campo do saber        tal luta no contexto da sociedade brasileira
                               está dividido, também da dupla de termos      contemporânea para, na sequência, arrolar
                               antitéticos direita e esquerda pode-se fa-    elementos de auto isolamento e auto fragi-
                               zer um uso descritivo, um uso axiológico,     lização, particularmente no que se refere à
                               um uso histórico: descritivo para dar uma     relação da militância tradicional de DH com o
                               representação sintética das duas partes       poderoso drama que se desenvolve no cam-
                               em conflito; axiológico, para exprimir um     po da segurança pública. É claro que, antes
                               juízo de valor positivo ou negativo sobre     disso, precisamos passar também pela crítica
                               uma ou outra das partes; histórico, para      ao pensamento predominante (quase “pensa-
                               assinalar a passagem de uma parte a ou-       mento único”, em que pese uma qualificada
                               tra da vida política de uma nação. O uso      presença pessoal, mas inorgânica e ideologi-
                               histórico, por sua vez, pode ser descritivo   camente insípida – ímpar em termos histó-
                               ou valorativo... A árvore das ideologias      ricos – de políticos de esquerda em postos
                               está sempre verde.... Além do mais, não       executivos e legislativos) no Brasil presente:
                               há nada mais ideológico do que a afirma-      o pensamento da direita.
                               ção de que as ideologias estão em crise.”          Emmanuel Rodríguez, autor de El gobier-
    18                         (Direita e Esquerda. Norberto Bobbio).        no imposible, trabajo y fronteras en las metró-
                                                                             polis de la abundancia, durante o Seminário
Revista Direitos Humanos




                               Evidentemente, na história humana, as         Nueva Derecha: Ideas y Medios para la Con-
                           verdadeiras transformações (diferentemente        trarrevolución, ocorrido em 2006 na Espanha,
                           das meras “mudanças”) se dão, invariavel-         destacou a predominância mundial, nos dias
                           mente, em verticalidade anti-hegemônica,          que seguem, de uma “nova direita”, forte-
“Bem-estar se conquista. não
se ganha de brinde, por conta
de benfeitorias das classes
dominantes”
mente fundada no populismo e na demagogia        Nueva Derecha: Ideas e Medios para la Con-
e emanada principalmente dos Estados Uni-        trarrevolución-Espanha, 2006).
dos, tendo se espraiado, inclusive, pela Eu-          Penso que tal característica está forte-
ropa. O risco representado por tal movimento     mente presente também no Brasil, onde o
é, no mais das vezes, subestimado. Contudo,      pensamento da direita (se é que se pode de-
há nele potência germinal para desestabilizar    nominar assim tal presente conjunto de clichês)
os consensos de governabilidade entre forças     é quase um mero sinônimo de senso comum.
progressistas e conservadoras mais tradicio-     Não se suponha, contudo, que por suas carên-
nais, presentes nas democracias ocidentais.      cias conceituais e filosóficas, por seu empiris-
     Em meio a um momento em que o sis-          mo, por sua arrogância moldada na ignorância,
tema democrático representativo vive uma         seja um pensamento de pouca expressão e de
forte crise de legitimidade, o discurso dessa    pouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, como
nova direita logra estabelecer uma ponte de      dissemos acima, praticamente como pensa-
comunicação direta com setores muito am-         mento totalitário e totalizante.
plos da sociedade, seduzindo e congregando            Por ser senso comum, igualmente, não
pessoas de segmentos bastante diversos (in-      se suponha – em equívoco de ingenuidade
cluindo muitas que, outrora, se encontravam      espontaneísta – que provenha da “malta”. Em
à esquerda). É uma retórica marcadamente         sociedades do tipo da nossa, tecidas de com-
agressiva, não comedida, rupturista, que tra-    plexos mosaicos desordenados, urbanizadas,
balha a incorporação de categorias “morais”      industrializadas, de serviços, consumistas
como fatores de alavancagem emocional do         mas excludentes, desenraizadas, “americani-
debate político, aproveitando-se, paradoxal-     zadas” no arremedo, midiatizadas e idiotiza-
mente, da crise crônica de anomia inerente ao    das, onde os “sistemas de ensino”, a par da
estado neoliberal que sustenta. Em tal dire-     fragilidade conteudística, caracterizam-se por
ção, propõe “medidas excepcionais”, trocan-      um enorme vazio no campo do que Piaget de-
do a liberdade pela segurança, por exemplo,      finiu como “juízo moral”, o senso comum se
com o fito de combater fantasmas externos (o     molda no tecnicismo universitário sem trans-
terrorismo, no mundo rico) ou internos, em       versalidade humanística, nas banalidades,
todas as partes (o narcotráfico, a delinquên-    futilidades, silêncios e histerias dos meios
cia, a imigração, a pornografia, etc.).          de comunicação, na “cultura” de mercado
     “Lo más paradójico”, sublinhou Emma-        e de manada. O senso comum, no Brasil, é
nuel Rodríguez, “es que esta nueva derecha,      de elite. Obviamente, replica-se nas classes             19
en un tan perverso como eficaz circulo vicioso   populares. Daí, sua aplastadora força.
                                                                                                    Revista Direitos Humanos




de autolegitimación, ha logrado aprovecharse          Como quase todo pensamento ordinário,
de los miedos y miserias morales que provo-      o nosso também aninha vasta gama de pre-
can las políticas neoliberales para justificar   conceitos, de mitos manipulatórios, de ódios e
sus propias medidas represivas” (Seminário       rancores, de “certezas” e “explicações totais”.
artigo            Segurança Pública e Direitos Humanos




                           O senso comum, como expressão emocional           za tantos “autos de resistência” dos pobres,      televisión, publicaciones periodísticas,
                           das massas, no mais das vezes, se nutre de        nem tanta pena de morte de fato, nem tanto        tanto digitales como en papel, weblogs...)
                           sombras. Por isso, sobrevaloriza o poder e a      “ladrão de galinha” se estragando em ex-          como instrumentos propagandísticos”.
                           força bruta, encara como fragilidade a com-       temporâneas e criminógenas masmorras              Además lo ha hecho re-apropiándose
                           paixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza a   medievais. É claro que estranhamos quando         de herramientas contrainformativas que
                           ousadia, a criatividade e a diferença.            essas coisas atingem gente “nossa” – das          empezó a desarrollar la izquierda radical
                               Por isso rejeita os direitos humanos e a      classes média e alta – pelo que levantamos        en las décadas de los sesenta y los se-
                           sua militância.                                   grandes ondas hipócritas de indignação            tenta. Así, frente al rigorismo formal de
                               É um notável paradoxo o fato de nosso         passageira! A mídia nos acompanha: fala           los medios “serios” convencionales, des-
                           país, cada vez mais progressista e moder-         quando consensuamos e cala quando con-            pliegan una retórica hiperbólica y agresiva
                           nizado, cada vez mais “encaixado” na eco-         vém. Nos retroalimentamos. A maioria dos          que abusa del sarcasmo y de la soflama
                           nomia global, expressar-se de forma tão           nossos especialistas midiáticos, aliás, só        y basa sus denuncias en hipótesis y es-
                           intensamente anacrônica e pobre no campo          expressa o conceito de organicidade quando        peculaciones fuertemente tendenciosas y
                           das humanidades, das “ideias de fundo”, dos       se trata da vinculação com a própria mídia.       escasamente contrastadas (pues su obje-
                           projetos de sociedade.                            Atacar nas sístoles indignadas e sumir nas        tivo no es la búsqueda de la verdad, sino
                               Por aqui, a sociedade reage de forma          diastólicas fases alienadas.                      el desgaste del adversario)”. Seminário
                           blasé em relação a crimes ocorridos no                Resultados? Nada de novo, nada de pro-        Nueva Derecha: Ideas e Medios para la
                           período ditatorial. Não nos horrorizamos,         positivo.                                         Contrarrevolución–Espanha, 2006.
  20                       como em outros lugares. Por aqui, repercute
                           pouco a presença de gente agressivamente             “La nueva derecha”, aseguró Emmanuel            Em tal quadro, como surpreender-se que
Revista Direitos Humanos




                           fascista, exibindo sua pobreza de espírito           Rodríguez, “ha sido capaz de adecuarse      se tratem os direitos humanos como “defesa
                           nas ruas, vestindo camisetas com fotos de            perfectamente al nuevo orden mediático,     de bandidos”? (Em setores mais conservado-
                           generais ditadores e os dizeres: “Eu era feliz       utilizando todo tipo de medios comuni-      res das polícias e das forças armadas também
                           e sabia”. Por aqui, não é causa de estranhe-         cativos (emisoras de radio, cadenas de      são tratados como “coisa de veados”).
“Como chocar-se diante da
                                                 violência doméstica, das mulheres
                                                 apanhando e sendo traídas, das
                                                 crianças e idosos vilipendiados?”
                                                     Obviamente, não estamos sozinhos no            erroneamente, fundamenta-se em dores e
                                                 quadro internacional, como afirmamos acima.        restrições reais que precisam ser cuidadas.
                                                 Somos, contudo, uma espécie de replicação          É aí que entra a galvanizadora questão da
                                                 piorada, pela falta de alternativas relevantes à   segurança pública.
                                                 burrice única. Uma espécie de corpo que se             Quero afirmar, com isto, uma genérica
                                                 vai desenvolvendo, formando musculatura,           falta de compreensão histórica da mili-
                                                 mas sofrendo de anencefalia. Coisa de cultu-       tância de direitos humanos em relação ao
                                                 ra periférico-dependente.                          tema da segurança como pauta positiva e
                                                     Procurei caracterizar, até aqui, a falta de    propositiva, da sua importância não ape-
                                                 “cobertura” para a nossa causa, à esquerda         nas para o Estado, mas para a Nação, de
                                                 e à direita.                                       sua relevância para a democracia e para o
                                                                                                    desenvolvimento. Tal incompreensão levou
     Mais: como chocar-se diante da violência        No dizer de Marco Mondaini (Direitos           nossa dedicada e abnegada comunidade de
doméstica, das mulheres apanhando e sendo            Humanos, Editora Contexto, São Paulo,          DH, em poucos anos de democracia, a um
traídas pelos machões, das crianças e idosos         2006), “seja na sua versão neoliberal,         dramático isolamento, revelado nas evidên-
vilipendiados? Como pasmar à frente do pre-          que procura identificar nos direitos hu-       cias empíricas do dia-a-dia, mas também
conceito racial, homofóbico, estético? É bas-        manos uma barreira à realização racional       em inúmeras pesquisas de opinião sobre
tante óbvio que, nesse contexto, se naturalize       da lucratividade pelo livre-mercado; seja      diversos temas que nos são atinentes.
a violência para “acabar com a violência”, se        através da matriz marxista ortodoxa, que            Diante disso, ao invés de revermos
prestigie a “lógica da eliminação” dos crimi-        busca observar nos direitos humanos            nossas metodologias e particularmente
nosos mas também dos diferentes. Dá tudo             nada mais do que um conjunto de forma-         nossos processos de comunicação, nos
na mesma e está “tudo dominado”, pela via            lidades responsáveis pelo encobrimento         empedernimos na certeza do acerto de
direita (que, por sua inconsistência teórica,        da estrutura de classes e da luta entre        nossas posições e na convicção do atraso
de maneira geral, não se sabe e nem se as-           estas no seio da sociedade capitalista,        e do reacionarismo da mesma sociedade
sume como tal).                                      sendo, por isso mesmo, nada mais que           que defendemos. E, ainda que tenhamos
     Lamentavelmente, o mesmo Brasil que             direitos das classes dominantes; ou ainda      razão, vamos justificando e agravando o
ruma celeremente para o primeiro mundo,              na linha extremamente vulgar que define        dizer bíblico: “São como pastores sem re-
no campo econômico, dele se encontra pa-             os direitos humanos como ‘direitos de          banho, que se apascentam a si mesmos”.
teticamente distanciado no campo simbóli-            bandidos’, o que se percebe claramente             É claro que a comunidade de direitos
co. Em que país civilizado ou em verdadeiro          é a incapacidade de compreender a fundo        humanos não é um bloco monolítico e
processo civilizatório se poderia encontrar          seu caráter universal e democrático.”          nem todos os segmentos se enquadram                21
tanta aversão a direitos humanos? Esse é,                                                           na categoria acima. Lamentavelmente,
                                                                                                                                                  Revista Direitos Humanos




contudo, o nosso cenário real e – ainda que          O quadro poderia não ser tão ruim,             contudo, parece-me que a maior parte
doa – creio ser necessário olharmos corajo-      contudo, se não tivéssemos ajudado a               de nós – do ponto vista da compreensão,
sa e criticamente as nossas piores misérias:     agravá-lo com nossa incompreensão de               dos conhecimentos, da identificação com
as “espirituais”.                                que o senso comum, ainda que conclua               a causa da segurança pública como tam-
artigo           Segurança Pública e Direitos Humanos

                           bém uma causa popular e de direitos hu-          de ordem material mas também daqueles         disposição para entrar quartéis, delega-
                           manos – encontra-se paradigmaticamente           de ordem subjetiva: balizamentos legais       cias, salas de aula de academias, conse-
                           paralisada nos anos 70, quando vivíamos          e éticos, mediação de conflitos, educa-       lhos comunitários de segurança, postos
                           na zona de risco da ditadura, mas igual-         ção pública de qualidade, liberdades de       de polícia comunitária, não para atacar-
                           mente na zona de conforto da aprovação           expressão, de organização, de ir e vir, de    mos os policiais (o que abreviaria muito
                           popular, heróis e heroínas de um mundo           criar e empreender.                           nossa presença junto a eles), mas para
                           bipolar. Tal crítica, a faço com respeito e          Tal vácuo de presença do estado de-       ajudá-los a construir modelos alternativos
                           compaixão, uma vez que, por anos, estive         mocrático de direito gerou ambiência para     de policiamento e atendimento das comu-
                           “preso” na mesma torre.                          o estabelecimento de “governos” totalitá-     nidades, modelos com a cara da demo-
                               Não foi fácil descer dela e ir para a        rios do crime organizado, que se utilizam     cracia, sempre teremos algum programa
                           planície da democracia, enfrentando a vida       de tais áreas para estoque de armas e         de TV nos chamando para a crítica, mas
                           como a vida é, com sua complexidade,             drogas, venda varejista e recrutamento de     não teremos uma polícia de proximidade,
                           contradições e desafios suprapessoais.           mão-de-obra barata, além de outras ati-       cuidando com cidadania dos cidadãos.
                           Não foi fácil, no início, encontrar, nas salas   vidades criminosas associadas. Assim,
                           de aula, a polícia da qual eu tinha tantas       grande parte dos pobres deste país se en-         ...”Torna-se inquestionável a priorida-
                           vezes apanhado e muito menos aquela que          contra, ainda, sob o tacão de uma ditadura        de na garantia de segurança para os
                           por dois sofridos anos me havia processa-        empresarial ilícita, covarde e sanguinária.       pobres. Estes são os mais atingidos
                                                                                                                              em tudo, espremidos que estão entre
                           “Grande parte dos pobres deste                                                                     a violência da polícia (são os eternos
                                                                                                                              suspeitos) e a violência da criminalidade
                           país se encontra, ainda, sob o                                                                     comum. São eles as principais vítimas

                           tacão de uma ditadura empresarial                                                                  do narcotráfico, das balas perdidas, dos
                                                                                                                              assaltos e estupros, da violência nas
                           ilícita, covarde e sanguinária”                                                                    escolas” (Benevides, Maria Victoria, Di-
                                                                                                                              reitos Humanos:Desafios para o Século
                           do. Foi, contudo, um enfrentamento deses-        São eles, os que não possuem recursos             XXI, in Educação Em Direitos Humanos:
                           quizofrenizante e necessário como serviço        para enclausurarem-se em condomínios              Fundamentos Teórico-Metodológicos, vá-
                           a uma democracia que precisa devolver a          privados e seguros, as maiores vítimas da         rios, Editora Universitária, João Pessoa,
                           sua polícia ao povo. Mais do que parte do        insegurança pública. São, também eles,            2007).
                           problema, optei, com vários outros com-          as maiores vítimas de padrões de policia-
                           panheiros e companheiras, por fazer parte        mento equivocados, invasivos, reativos,            A par de tudo isso, três fatores vêm sen-
                           das soluções.                                    truculentos, criminalizadores da pobreza.     do apontados por expoentes da comunidade
                               Creio que, a estas alturas, faz-se neces-    Os nossos eventuais “escrúpulos” em não       acadêmica internacional como gêneses do de-
                           sário o resgate de uma aparente obviedade        nos aproximar da polícia não os ajudam em     senvolvimento nacional: a formação de redes
                           que, contudo, é insuficientemente enfrenta-      nada. Ao contrário, mantêm-nas presas de      de voluntariado e engajamento cidadão, o livre
                           da: por quê o tema da segurança pública se       um sistema servil, junto aos criminosos e     empreendedorismo popular e o acesso demo-
                           tornou tão crucial para a nação brasileira,      de pânico, quando da presença policial.       crático à educação de qualidade, construtora
                           como revelam as pesquisas de opinião?            Nossas meras atividades de denúncias,         da autonomia intelectual e do juízo moral dos
   22                          Inicialmente, porque a maioria dessa         que sempre serão imprescindíveis para o       indivíduos.
                           nação se encontra, historicamente, na or-        aprimoramento democrático, têm se reve-            Pesquisas do Departamento de Estudos
Revista Direitos Humanos




                           fandade em relação aos poderes públicos,         lado insuficientes, e mesmo pífias, quando    Internacionais de Harvard, conduzidas pelo
                           vivendo em áreas de carência ou mesmo            se trata da mudança de um sistema que,        professor Robert Putnam (um dos referen-
                           de quase total ausência de políticas públi-      mais do que “consertado” pontualmente,        ciais teóricos do PNUD/ONU), comprovam
                           cas, alcançadoras não apenas dos direitos        precisa ser transformado. Se não tivermos     que o desenvolvimento dos países passa,
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Revista direitos humanos 01

  • 1. r e v i s ta direitos humanos DAlmo DE ABREU DAllARi mARy RoBinson mARco Antônio RoDRigUEs BARBosA RicARDo BRisollA BAlEstRERi AnA RitA DE PAUlA izABEl mARiA mADEiRA DE loUREiRo mAioR cARmEn silvEiRA DE olivEiRA mARiA lUizA moURA DE olivEiRA BAltAsAR gARzón AUgUsto BoAl sEBAstião sAlgADo Edição comemorativa 60 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos 01 d e z e m b r o 20 0 8
  • 2.
  • 3. Apresentação n asce uma nova revista sobre direitos humanos no Brasil. Já existem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadas a distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangência nacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educação em Direitos Humanos. Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficia- lismo chapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivência com a crítica. A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco com a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediá- rio entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares. Os movimentos sociais e as ONGs dessa área, as instituições e autoridades dos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários perti- nentes sabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégico para a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar de respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na Declaração Universal de 10 de dezembro de 1948. O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos des- sa declaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns com forte marca de ineditismo, como a Conferência Nacional dos Direitos Humanos do segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação do presidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em São Paulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas, convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos hu- manos orientados pelo Pacto Global da ONU. Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Na- cional dos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cuja pauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Huma- 3 nos (PNDH), que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002. Revista Direitos Humanos Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agenda programática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 2003
  • 4. Aprese sobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milha- res de pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando edu- cação, saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criança e adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economia solidária, muitos outros temas. Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso país sediou o mais importante congresso mundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de crianças e adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Em dezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras confe- rências mencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª Con- ferência Nacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa. Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinação de avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetição de intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal, torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações e violência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, per- sistência do trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas ou lideranças de trabalhadores, e a impunidade ainda prevalece largamente sobre as apurações exemplares. Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante desses 20 anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numa trajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar os instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema nor- mativo. Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passos já dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.
  • 5. entação A revista é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O ani- versário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos perpassa todas as matérias deste primeiro número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ri- cas. A tiragem inicial será de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500 deles serão em espanhol, porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul, somos Brasil e Unasul, somos um Brasil que está decidido e talhado à integração cres- cente com nuestra America, dos sonhos de Bolívar, de Che e de Salvador Allende. Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral. Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... O certo é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida com essa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas, partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integran- tes, que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas. Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área de direitos hu- manos do governo federal, para que não deixem a sequência ser interrompida. Uma revista vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência, fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates que prevalecem em cada período. Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro que o voto popular autoriza os governantes a introduzir mudanças e ajustes, deslocando prioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos – talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, o prosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico, ao qual estamos todos obrigados. Brasília, 10 de dezembro de 2008 Paulo Vannuchi
  • 6. sum ário sumário>> 8 Direitos humanos: sessenta anos de conquistas DAlmo DE ABREU DAllARi 17 12 BAlEstRERi RicARDo BRisollA e Direitos Humanos Segurança pública Concretizando nossos compromissos mARy RoBinson 26 6 Direito à memória 34 Revista Direitos Humanos e à verdade Um mundo mARco Antônio RoDRigUEs BARBosA todos: Univ direitos e d AnA RitA DE PAUlA izABEl mARiA mADEiRA
  • 7. Expediente Presidente da República 40 Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi Secretário Adjunto maioridade para os direitos humanos Rogério Sottili da criança e do adolescente Conselho editorial cARmEn silvEiRA DE olivEiRA mARiA lUizA moURA DE olivEiRA Paulo Vannuchi (Presidente) Aída Monteiro André Lázaro Carmen Silveira de Oliveira Dalmo Dallari Darci Frigo Egydio Salles Filho Erasto Fortes Mendonça José Geraldo Souza Júnior José Gregori 46 Marcos Rolim Marília Muricy Izabel de Loureiro Maior Maria Victoria Benevides a verdade, onde estiver Matilde Ribeiro Nilmário Miranda BAltAsAR gARzón Oscar Vilhena Paulo Carbonari Paulo Sérgio Pinheiro Perly Cipriano Ricardo Brisolla Balestreri Samuel Pinheiro Guimarães Coordenação editorial: Erasto Fortes Mendonça Mariana Bertol Carpanezzi Patrícia Cunegundes Paulo Vannuchi Revisão: Bárbara de Castro, Joíra Coelho, Luciana Melo 52 Projeto gráfico e diagramação: Wagner Ulisses Ilustrações: Lívia Barreto AUgUsto BoAl entrevista Produção editorial: Jacumã Comunicação Secretaria Especial dos Direitos Humanos 62 Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede, sala 424 70.064-900 Brasília – DF direitoshumanos@sedh.gov.br www.direitoshumanos.gov.br sEBAstião sAlgADo Imagens Distribuição gratuita 7 Tiragem: 8.000 exemplares Revista Direitos Humanos de todos para DIReItoS HUmanoS é uma revista semestral publicada pela Secretaria Especial dos Direitos versalização de Humanos da Presidência da República do Brasil direito à diferença As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva dos autores e não representam necessariamente a posição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República ou do Governo Federal. A DE loUREiRo mAioR Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e não seja para venda ou qualquer fim comercial.
  • 8. artigo DAlmo DE ABREU DAllARi – jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de Abreu Dallari é autor de vários livros – e, entre eles, o clássico Elementos de Teoria Geral do Estado. Entre outras atribuições, ocupa atualmente assento no Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). Direitos humanos: sessenta anos de conquistas DAlmo DE ABREU DAllARi 1. A DeclArAção UniversAl De 1948: Na denominação dada ao documento e compromisso hUmAnistA nas afirmações constantes do artigo primeiro h á sessenta anos a humanidade deu estão contidos alguns elementos esclarece- início a uma nova fase em sua his- dores da mais alta importância, que dão o tória, registrando num documento testemunho do extraordinário avanço já ob- lúcido e objetivo a tomada de consciência tido, em comparação com dados anteriores. do valor primordial da pessoa humana e Com efeito, o primeiro documento que teve de seus direitos essenciais e universais, a denominação de Declaração de Direitos inerentes à sua própria natureza. Isso já é foi o que a Assembléia Nacional da França ressaltado, com muita evidência, em sua aprovou em 1789, num dos momentos mais 8 denominação, “Declaração Universal dos expressivos de afirmação da vitória da Revo- Revista Direitos Humanos Direitos Humanos”, e é enfaticamente pro- lução Francesa, que punha fim ao chamado clamado em seu artigo primeiro, que inicia Antigo Regime e começava uma nova fase com o seguinte enunciado: “Todos os seres na história da humanidade. O documento humanos nascem livres e iguais em digni- então aprovado foi designado “Declaração dade e direitos”. dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que
  • 9. despertou reações veementes dentro da pró- qualquer exceção, nascem livres e iguais, 2. os Direitos hUmAnos e pria Assembléia, denunciando o seu caráter deixa expresso que a Constituição e o siste- os cAminhos DA históriA discriminatório contra as mulheres. Isso foi ma legal que contiverem exclusões ou dis- Perde-se na origem dos tempos o reco- negado pelos líderes da maioria, que eram criminações quanto aos direitos humanos nhecimento de que os seres humanos são franceses brancos e ricos, mas o espírito dis- não têm o valor de documentos jurídicos criaturas especiais, que nascem com cer- criminatório foi confirmado logo em seguida. autênticos, são falsificações maliciosas que tas peculiaridades, incluindo necessidades Basta lembrar que, à semelhança dos Estados não merecem respeito e devem ser elimi- básicas de natureza material, psicológica e Unidos da América, criados com a aprovação nadas. Os direitos humanos são atributos espiritual, que são as mesmas para todas as da primeira Constituição escrita da história, naturais de todos os seres humanos, que pessoas. Entre tais peculiaridades encontra- em 1787, a França impediu o acesso das mulheres aos altos cargos do governo e da Administração Pública. “Há pessoas que colocam suas Assim, a afirmação de que os direitos humanos declarados são de “todos os se- ambições pessoais, sua busca de res humanos” exclui qualquer espécie de poder, prestígio e riqueza acima discriminação. Isso tem ainda grande im- portância, para constatação dos avanços, dos valores humanos” pelo fato de que tanto os Estados Unidos quanto a França se basearam na afirmação nascem com eles e que a sociedade, o Es- se também a possibilidade de se desenvolver da existência de direitos naturais das pes- tado, os governos ou quem quer que seja interiormente, de transformar a natureza e de soas, primeiro deles o direito à liberdade, não podem restringir com legitimidade. E estabelecer novas formas de convivência. sendo bem conhecido o lema da Revolu- aí se enquadra a dignidade humana, que Tudo isso levou à conclusão de que o ser hu- ção Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fra- é igual para todos e que é da essência da mano é dotado de especial dignidade e que ternidade”, e na prática negaram por muito pessoa humana, não havendo qualquer di- é imperativo que todos recebam proteção e tempo essa afirmação. Com efeito, ambos, ferença entre a dignidade do proprietário de apoio para a satisfação das necessidades bá- Estados Unidos e França, usavam o traba- uma rica mansão ou suntuosa fazenda e a sicas e para o pleno uso e desenvolvimento lho escravo em larga escala e continuaram do favelado ou do morador de rua e mesmo de suas possibilidades físicas e intelectuais. mantendo a escravidão negra durante mui- do presidiário. Eles podem ficar sujeitos a Como decorrência de todos esses fatores, foi tos anos. A mulher só foi admitida como regras legais diferentes, desde que isso não sendo definido um conjunto de faculdades eleitora em eleições nacionais estaduni- ofenda a dignidade essencial de cada um. naturais necessitadas de apoio e estímulo denses em 1920 e na França ela só foi ad- A Declaração Universal dos Direitos social, que hoje se externam como direitos mitida como juíza em 1946. Além disso, os Humanos aprovada pela Organização das fundamentais da pessoa humana. trabalhadores tiveram de enfrentar duríssi- Nações Unidas em 1948 foi, efetivamente, Mas apesar de serem direitos de todos ma resistência, inclusive forte repressão um avanço para a humanidade. Existem ain- os seres humanos, o que deveria levar à con- policial, para, no século XX, ser admitidos da resistências à sua efetiva aplicação, mas clusão lógica de que ninguém é contra tais como “livres e iguais”. Como fica óbvio, a simples existência dessa declaração tem direitos, a história mostra coisa bem diferente aquilo que se denominou enfaticamente Li- servido de apoio significativo para lutas tra- disso. Há pessoas que colocam suas ambi- beralismo continha boa dose de hipocrisia, vadas por meios pacíficos e para denúncias e ções pessoais, sua busca de poder, prestígio pois os direitos declarados eram os dos reivindicações buscando a concretização de e riqueza acima dos valores humanos. Isso 9 homens brancos ricos, excluindo grande mudanças nas Constituições, na organização explica as violências da Idade Média, com o Revista Direitos Humanos parte da humanidade. das sociedades e nas práticas da convivência estabelecimento dos privilégios da nobreza e Além da denominação, que abrange a humana constitucionais, visando à elimina- a servidão dos trabalhadores. Essa é, também, universalidade dos seres humanos, a afir- ção das discriminações e à implantação da a raiz das agressões sofridas pelos índios da mação de que todos, sem a possibilidade de justiça social. América Latina com a chegada dos europeus,
  • 10. artigo Direitos humanos: sessenta anos de conquistas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, afirmando, no artigo primeiro, que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, mas, ao mes- mo tempo, admitindo “distinções sociais”, as quais, conforme a declaração, deveriam ter fundamento na “utilidade comum”. Logo foram achados os pretextos para essas dis- tinções, instaurando-se uma nova forma de sociedade discriminatória com novas classes de privilegiados, estabelecendo-se enorme distância entre as camadas mais ricas da po- pulação, pouco numerosas, e a grande massa dos mais pobres. A partir de então, as injustiças inces- santemente acumuladas, as discriminações impostas pela lei, excluindo da participação política os não-proprietários e as mulheres, o uso dos órgãos do Estado para sustentação dos privilégios dos mais ricos e de seus ser- estando aí, igualmente, o nascedouro das submetidos a condições indignas. Mas a fun- viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento, violências contra a pessoa humana, inspi- damentação teológica dos direitos humanos miséria, violências e inevitáveis revoltas. No radas nos valores do capitalismo, que tenta foi usada maliciosamente, para sustentar que campo dos dominadores surgiram, entretan- renovar agora sua imagem desgastada, pro- os direitos dos reis e dos nobres decorriam to, muitas disputas, sobretudo de natureza pondo a farsa da globalização. da vontade de Deus e assim estariam justifi- econômica, em âmbito nacional e interna- O excesso de agressões à dignidade da cadas as discriminações e injustiças sociais. cional. Essa produção de injustiças e esse pessoa humana, em decorrência do egoísmo, Os séculos XVII e XVIII foram marcados choque de ambições levaram à perda da paz, da insaciável voracidade, da insensibilidade por lutas contra esses privilégios. Grandes fi- com duas guerras mundiais no século XX, moral dos dominadores, tem despertado re- lósofos políticos reafirmaram a existência dos chegando-se a extremos, jamais imaginados, ações, tanto no plano das ideias quanto no direitos fundamentais da pessoa humana, so- de violência contra a vida e a dignidade da âmbito da ação material. Desse modo surgi- bretudo os direitos à liberdade e à igualdade, pessoa humana. ram teorias e movimentos revolucionários, mas dando como fundamento desses direitos que foram contribuindo para que um número a própria natureza humana, descoberta e diri- 3. A DeclArAção UniversAl cada vez maior de seres humanos tomasse gida pela razão. Na sequência dessas ideias, Dos Direitos hUmAnos: AvAnços consciência de sua dignidade essencial e dos a burguesia, que tinha força econômica, mas e resistênciAs direitos a ela inerentes. estava à margem do poder político, associou- Terminada a Segunda Guerra Mundial, es- No final da Idade Média, no século XIII, se à plebe, pois ambas estavam igualmente tando ainda abertas as feridas da grande tragédia aparece a grande figura de São Tomás de interessadas na destruição dos antigos privi- causada pelo egoísmo, pelo excesso de ambi- 10 Aquino que, tomando a vontade de Deus légios de que gozavam a nobreza e o clero a ções materiais, pela arrogância dos poderosos e como fundamento dos direitos humanos, ela associado e seu valioso aliado político, pela desordem social que de tudo isso resultou, Revista Direitos Humanos condena as violências e discriminações, di- também beneficiário das injustiças. iniciou-se um trabalho visando à criação de um zendo que o ser humano tem direitos naturais O ponto culminante dessas lutas foi a Re- novo tipo de sociedade, informada por valores que devem ser sempre respeitados, chegando volução Francesa. No ano de 1789, colocado éticos e tendo a proteção e promoção da pes- a afirmar o direito de rebelião dos que forem o poder nas mãos da burguesia, foi publicada soa humana como seus principais objetivos.
  • 11. Foi instituída, então, a Organização das Nações trados acarreta sanções de várias espécies, superioridade política e social, sem qualquer Unidas (ONU), com o objetivo de trabalhar per- como o fechamento do acesso a fontes in- consideração de ordem ética, os que preten- manentemente pela paz. Demonstrando estar ternacionais de financiamento e aos serviços dem que seus interesses tenham prioridade conscientes de que esse objetivo só poderá ser de organismos internacionais, além de outras sobre a dignidade da pessoa humana, esses atingido mediante a eliminação das injustiças e consequências de ordem moral e material. resistem à implantação das normas inspira- a promoção dos direitos fundamentais da pes- A partir da proclamação da igualdade de das nos princípios da Declaração Universal. soa humana, os integrantes da Assembléia Ge- todos os seres humanos, em direitos e digni- Mas a realidade mostra um avanço conside- ral da ONU aprovaram, em 1948, a Declaração dade, como está expresso no artigo primeiro rável na conscientização das pessoas e dos Universal dos Direitos Humanos. da Declaração Universal dos Direitos Huma- povos, havendo razões objetivas para se acre- A Declaração é um marco histórico, não nos, vários pactos e tratados dispuseram so- ditar que a história da humanidade está cami- só pela amplitude das adesões obtidas, mas, bre situações específicas em que a igualdade nhando no sentido da criação de uma nova sobretudo, pelos princípios que proclamou, vinha sendo negada, fixando regras e estabe- sociedade, na qual cada pessoa, cada grupo recuperando a noção de direitos humanos e lecendo responsabilidades. Essa diretriz já social, cada povo verá seus direitos humanos fundando uma nova concepção de convivên- penetrou nas Constituições, o que significa fundamentais reconhecidos e respeitados. O cia humana, vinculada pela solidariedade. É um reforço, de ordem prática, da eficácia das que reforça essa crença é a constatação de importante assinalar também que, a partir da normas, bem como facilidade maior para seu que vem aumentando incessantemente o declaração e com base nos princípios que conhecimento e sua aplicação. número dos que já tomaram consciência de ela contém, já foram assinados muitos pac- O que se pode concluir disso tudo é que que, para superar as resistências, cada um tos, tratados e convenções, tratando de pro- a Declaração Universal dos Direitos Humanos de nós deverá ser um defensor ativo de seus blemas e situações particulares relacionados marca o início de um novo período na história próprios direitos humanos. E por imperativo com os direitos humanos. Esses documentos da humanidade. Os que procuram a preser- ético, mas também para defesa de seus pró- implicam obrigações jurídicas e o descum- vação ou a conquista de privilégios, os que prios direitos, todos deverão ser defensores primento dos compromissos neles regis- buscam vantagens materiais e posições de dos direitos humanos de todos. 11 Revista Direitos Humanos
  • 12. artigo Concretizando nossos compromissos mARy RoBinson é presidente da “Realizing Rights: The Ethical Globalization Initiative” [Iniciativa para Globalização Ética] e membro da “Elders”. A Sra. Robinson foi Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos entre 1997 e 2002, e Presidente da Irlanda (1990-1997). Concretizando nossos compromissos mARy RoBinson e Este ensaio foi baseado m 2008 celebramos o 60º aniversário evitar maior deterioração e impedir o avanço da Declaração Universal dos Direitos dessa tendência se recuperarmos e fortalecer- nos comentários feitos Humanos, oportunidade para que rea- mos a mensagem dos direitos humanos. Não pela sra. Robinson na firmemos a importância vital dos padrões in- consigo imaginar forma melhor de fazer isso ternacionais de direitos humanos para a cons- do que reafirmando a visão de direitos e res- “Harvard Business School” trução de um futuro mais justo e sustentável. ponsabilidades da Declaração Universal, ins- [Escola de Negócios da Entretanto, as tendências vislumbradas atual- trumento que representa um “padrão comum” Universidade de Harvard], mente não são positivas no que concerne à re- para todos os povos e nações. 12 alização efetiva da promessa representada pela em Boston, Massachusetts, declaração. Em parte por causa das respostas reAfirmAnDo A mensAgem Revista Direitos Humanos em 28 de abril de 2008. nacionais e globais aos ataques terroristas de DA DeclArAção UniversAl 11 de setembro de 2001, nesta década os di- Dos Direitos hUmAnos reitos humanos foram deixados de lado e, em Relembremos por um momento como era alguns casos, ignorados. Todavia, podemos o mundo em 1948, ano em que surgiu. As
  • 13. nações emergiam de uma devastadora guerra mundial e do Holocausto. Pela primeira vez, “a Declaração Universal tem armas nucleares haviam sido empregadas constituído fonte de inspiração para contra civis. A Guerra Fria começara. As pes- soas buscavam laços comuns que unissem toda legislação internacional do pós- as nações e aumentassem a segurança hu- mana para todos. guerra na área de direitos humanos” Neste contexto, surgiu um grupo de homens e mulheres com diferentes histórias, culturas e É claro, contudo, que esta avaliação posi- no mundo todo. Padrões trabalhistas básicos crenças, liderado por uma mulher notável: Elea- tiva precisa ser contrabalançada. Cito, nesse são ignorados. A pobreza prende milhões a nor Roosevelt. O mandato do grupo, como parte sentido, afirmação feita em publicação re- vidas de desespero. da recém-criada Comissão de Direitos Huma- cente pelo Conselho Internacional de Política nos da ONU, consistia em elaborar uma articu- de Direitos Humanos, uma das organizações DA DeclArAção à Ação: Realizing lação internacional dos direitos e liberdades de parceiras do trabalho que agora está sob mi- Rights no sécUlo XXi toda a humanidade. nha responsabilidade, na Realizing Rights: Então, o que devemos aprender para os Resultado desses esforços, a Declaração futuros esforços não só para proteger os di- Universal dos Direitos Humanos ofereceu- “À medida que a reputação e a influência reitos humanos, mas também para fazer um nos uma visão de humanidade comum e de dos direitos humanos aumentam, eles trabalho pró-ativo na sua concretização? responsabilidades mútuas compartilhadas, passam a ser ativamente mais contes- aplicáveis independentemente de lugar ge- tados, e por atores ainda mais podero- primeira lição – uma verdade provavel- ográfico, de cor, de religião, de sexo ou de sos... Antes eram tolerados por serem mente óbvia, mas normalmente não declara- ocupação. Passados sessenta anos, a de- considerados marginais… As frequentes da, é o fato de que, como em grandes áreas claração – e seu cuidadoso equilíbrio en- referências feitas aos direitos humanos no do mundo muitas pessoas continuam pobres tre liberdades individuais, proteção social, contexto das relações Norte-Sul e, mais e seus governos são carentes de recursos, as oportunidade econômica e deveres com a recentemente, a força das críticas legais populações precisam buscar apoio e assis- comunidade – constituiu-se em instrumento aos direitos humanos na condução da tência em a suas próprias comunidades lo- de direitos humanos reafirmado por todos os “guerra ao terrorismo” fizeram com que cais. Essencialmente, não há condições para governos, e, mais recentemente, pela Cúpula muitos governos quisessem restringir ou que tais grupos reivindiquem seus direitos na Mundial da ONU, em 2005. reverter a aplicação dos direitos humanos. forma prevista nos instrumentos de direitos Um dos temas mais subestimados da As críticas aos direitos humanos vêm se humanos. Pensemos sobre isso no contexto história dos direitos humanos nas últimas tornando mais disseminadas e explícitas, do mundo do trabalho: a grande maioria dos seis décadas consiste na identificação do principalmente nos países mais ricos… A trabalhadores do mundo – inclusive os mais quantum de influência moral, política e le- oposição e a influência cresceram juntas, pobres, os que mais necessitam de prote- gal exercida por aquele texto no mundo. A levando a um grau de desorientação.” 1 ção–, está no setor informal. Esse fato cria Declaração Universal tem constituído fonte um sério desafio prático para os governos. de inspiração para toda a legislação inter- Bem sabemos que, a despeito do desen- Para criar condições de proteção dos nacional do pós-guerra na área de direitos volvimento da legislação internacional de di- direitos humanos das comunidades muito humanos. Seus dispositivos têm servido de reitos humanos nos últimos sessentas anos, pobres ou marginalizadas, os governos preci- modelo para constituições e leis, regulamen- massivas violações a esses direitos conti- sam encontrar novos caminhos para alcançá- 13 tos e políticas internos de defesa dos direitos nuam a ser perpetradas nos dias de hoje. A las e atendê-las. Além disso, as organizações Revista Direitos Humanos humanos. Acima de tudo, a declaração tem elaboração de legislação formal não resultou de direitos humanos precisam encontrar no- sido um símbolo de esperança para milhões em proteção universal aos direitos humanos. vas formas de conquistar a confiança dessas de pessoas no decorrer de longos períodos O genocídio voltou a acontecer. As mulheres comunidades. A meu ver, a única maneira de de opressão. e as minorias sofrem ampla discriminação fazê-lo é por meio da celebração de parcerias
  • 14. artigo Concretizando nossos compromissos dos por um espaço de atuação da sociedade civil e dos defensores dos direitos humanos, tanto quanto pela garantia de que entre tais sistemas formais e institucionalizados de de- fesa e promoção dos direitos humanos e tais atores da sociedade configure-se verdadeira e efetiva dinâmica de relacionamento. Os direitos humanos não podem ser concretizados na ausência de instituições efetivas e transparentes. Se os tribunais são corruptos, sobrecarregados e ineficientes, os direitos civis básicos reputam-se violados. Se os ministérios sociais não têm recursos e autonomia suficientes, ou seu quadro fun- cional não é qualificado, os direitos básicos de assistência à saúde, educação e moradia adequadas não podem ser devidamente exer- cidos. A construção e a reforma dos aparatos institucionais do Estado não tarefas fáceis ou particularmente notáveis, embora essenciais. O tema do incentivo à capacitação de ins- tituições me leva a refletir sobre um terceiro desafio: definir as obrigações internacionais com organizações que estejam presentes há Resguardar os direitos daqueles que vivem na mais concretamente. Nas últimas décadas tempos nessas comunidades, tais como enti- pobreza é um desafio que todos devemos en- vem sendo amplamente reconhecida a ne- dades religiosas, grupos comunitários, ONGs frentar, se quisermos criar sociedades mais cessidade de criação de uma espécie de e outras. inclusivas, prósperas e justas. autoridade supranacional legítima, uma vez A batalha pelos direitos humanos é ine- Assim, chegamos a uma segunda lição que a ação tomada em nível exclusivamen- vitavelmente uma batalha por poder, e esta e a um desafio – fazer mais para apoiar os te nacional não parece apta a resolver vários batalha está geralmente ligada a batalhas países em desenvolvimento na construção de complexos problemas mundiais. Conhece- correlatas por recursos. Assim, a promoção seus próprios sistemas nacionais de proteção mos muitos desses problemas, como a mu- sustentável de todos os direitos humanos de- aos direitos humanos. Por sistemas nacionais dança climática, o comércio desigual, a dis- pende de políticas e programas que abordem de proteção, refiro-me aos arranjos institu- seminação de pandemias e novas doenças, as desigualdades econômicas e sociais. cionais que, sob a égide regulamentadora do o comércio ilegal de armas e de pessoas, a Descobrir maneiras de resguardar os di- ordenamento jurídico nacional e inspiração regulamentação e o monitoramento da tecno- reitos garantidos por lei é outro aspecto vital nos compromissos internacionais assumidos logia nuclear, entre outros. para o empoderamento dos marginalizados. pelo Estado, têm como objetivo garantir o Em todos esses casos, a coordenação No ano passado, 2007, trabalhei para a Co- exercício e a proteção dos direitos humanos internacional e a ação coletiva se fazem ne- 14 missão de Empoderamento Legal dos Pobres, dos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, o cessárias se quisermos alcançar mudanças presidida por Hernando de Soto e Madeleine Poder Legislativo, as instituições ou comis- positivas. A realidade é que hoje os Estados Revista Direitos Humanos Albright. A comissão enfatizou a importância sões nacionais de direitos humanos. Incluem- são incapazes de chegar a uma cooperação do acesso à Justiça e às demais garantias se, ainda, os sistemas de saúde e educação, efetiva, à exceção de casos envolvendo evi- do Estado de Direito como condições para o assim como outros serviços públicos. Esses dentes interesses nacionais de curto prazo. concreto exercício de todos os outros direitos. sistemas nacionais devem ser complementa- Tal fragilidade é também observável na seara
  • 15. da legislação de direitos humanos, que ainda bais e a capacidade de atingir resultados uma sociedade estável e regrada é essen- não alcançou patamar de desenvolvimento provavelmente aumentará, trazendo efeitos cial para o bom andamento do empreen- suficiente para lidar com as responsabilida- cada vez mais nocivos para as pessoas e dimento. As empresas precisam assegurar- des transnacionais dos Estados. comunidades, assim como para a credibi- se que seus contratos serão devidamente Vejamos os urgentes dilemas de direi- lidade política dos governos. observados, com o respaldo dos juízes e tos humanos que nos são colocados pela A atual ausência de governos nacionais tribunais de justiça, e que suas proprieda- mudança climática. Poucos negariam que o legítimos em muito locais, agravada pela des e investimentos serão protegidos. fenômeno tende a enfraquecer a capacidade governança internacional ineficiente, tem Quanto mais nos envolvemos nessas de exercício de uma ampla gama de direitos direcionado o foco, cada vez mais, sobre as questões, mais percebemos que muito res- humanos protegidos internacionalmente – o responsabilidades dos atores não estatais em ta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias de direito à saúde e mesmo à vida, o direito à matéria de direitos humanos. Dados seu po- responsabilidade corporativa, por exemplo, alimentação, à água, à habitação e à proprie- der e influência no mundo de hoje, o setor como o Pacto Global das Nações Unidas, se dade; os direitos dos povos indígenas e tra- corporativo ocupou o centro deste debate. expandiram muito nos últimos anos, mas ain- dicionais, bem como os direitos associados Definir de maneira mais precisa a natureza e da não conseguiram a adesão de empresas à sobrevivência e à cultura, à migração e ao estatais de países com economia de mercado reassentamento e o direito de segurança pes- emergentes, os quais vêm se tornando atores soal em caso de conflito. “os direitos cada vez mais importantes no cenário global. Os impactos mais drásticos da mudança Ao mesmo tempo, esforços empreendidos climática provavelmente ocorrerão – e já es- humanos não por vários atores internacionais, coletivamen- tão sendo vivenciados – nos países mais po- te, no intuito de construir responsabilidades bres, nos quais os mecanismos de proteção a podem ser corporativas claras em questões temáticas direitos costumam ser frágeis. As populações tais como violações aos direitos trabalhis- cujos direitos são pouco protegidos têm me- concretizados tas, ameaças à segurança pessoal e liber- nos condições de conhecer e de preparar-se para os efeitos da mudança climática, bem na ausência dade de expressão, entre outros, geralmen- te não se desenvolvem a ponto de firmar como para demandar de maneira eficiente ações do governo nacional ou da comunida- de instituições mecanismos reconhecidamente legítimos de comunicação e prestação de contas ao de internacional. Somada a isso, a responsa- efetivas e público. Esses são enormes desafios que bilidade pelos impactos nos países mais vul- ainda precisam ser enfrentados. neráveis costuma não recair sobre o governo transparentes” Também é importante mencionar que o mais próximo, mas sobre atores difusos, esforço necessário para integrar os valores tanto públicos quanto privados, muitos dos de direitos humanos à cultura corporativa quais estão distantes dos limites estatais. A o escopo das responsabilidades corporativas demanda recursos significativos para pro- legislação de direitos humanos nem sempre é um quarto desafio para o futuro. gramas de treinamento e melhoria contí- consegue ultrapassar as fronteiras para impor Todos sabemos que há diversos fatores nua. Passar aos funcionários uma mensa- obrigações em questões como essas. subjacentes à grande ênfase que o setor gem de que a empresa acredita na ampla Apesar do interesse crescente de de- empresarial vem emprestando aos direitos agenda de direitos humanos, que deve ser fensores de direitos humanos e organis- humanos: fortes convicções éticas de alguns uma peça essencial nas decisões comer- mos legais internacionais pelas chamadas executivos líderes, cálculo de risco para a ciais em todos os níveis, é muito mais fácil 15 obrigações “extraterritoriais”, novas regras reputação, o impacto da opinião pública, o na teoria do que na prática. Revista Direitos Humanos e práticas comuns nessa nova área devem comportamento dos pares e concorrentes, a John Ruggie, professor da Harvard’s Ken- demorar a constituir-se. No curto prazo, a lealdade e o desempenho dos funcionários nedy School of Government [Escola Kennedy “lacuna de oferta” entre a necessidade de e as novas políticas internacionais. Os lí- de Governo da Universidade de Harvard], no ação internacional efetiva em questões glo- deres de empresas reconhecem, ainda, que exercício de sua função como Representante
  • 16. artigo Concretizando nossos compromissos Especial do Secretário-Geral das Nações Uni- cadas ao emprego, à atividade econômica e to sustentável no futuro. Algumas grandes das em direitos comerciais e humanos, tem à igualdade, além de maior cooperação com empresas, por exemplo, vêm se preparando contribuído de forma inestimável nos últimos organizações especializadas nessas áreas, para analisar toda a sua cadeia de valores em três anos ao enfatizar que todas a empresas como sindicatos e empresas. países em desenvolvimento, para descobrir têm responsabilidade de respeitar os direitos Como podemos aumentar o poder dos como podem mudar seus processos locais humanos. Em seu relatório mais recente, o mercados para os pobres? Se o principal de compras ou distribuição de modo a criar professor Ruggie apresentou um marco polí- patrimônio desse segmento é o trabalho, mais empregos locais sustentáveis. Espero tico que se baseia em três princípios: Prote- como podemos apoiá-los por meio de uma que possamos desenvolver mais essas me- ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve a legislação sobre trabalho decente –, ou seja, todologias no futuro. obrigação do Estado de proteger contra os abu- um aparato legal que inclua não somente sos aos direitos humanos cometidos por atores prevenção ao trabalho infantil e escravo, mas UmA oportUniDADe De reAfirmAr o corporativos, a responsabilidade corporativa de também a criação de “condições justas e Direito comUm De nAscimento respeitar todos os direitos humanos, e a neces- favoráveis de trabalho”, assim como “remu- O 60º aniversário da Declaração Univer- sidade de emprego de medidas corretivas que neração justa e favorável”, capaz de prover a sal neste ano é uma oportunidade para que as sejam efetivas. O professor Ruggie sugere que existência humana digna, como determina a organizações, governos, universidades, gru- a responsabilidade corporativa deve respeitar Declaração Universal dos Direitos Humanos? pos religiosos, empresas e outras instituições todos os direitos humanos, e que deve ser efeti- Como podemos reafirmar a importância da no mundo todo reafirmem a importância dos vada pelas empresas por meio de um conjunto liberdade de associação e crescimento nos direitos humanos como garantias inerentes a definido de ações, tais como: EUA e na Europa, se essa importância é ata- cada ser humano, e para que colaborem no • Adoção de uma política de direitos hu- cada hoje em dia? estabelecimento de uma agenda positiva para manos. Nós, da organização Realizing Rights, esses direitos no século XXI. • Adoção de medidas pró-ativas para apoiamos os esforços da Organização Interna- Para aproveitar ao máximo esta oportu- entender como as atividades atuais e cional do Trabalho e de um número crescen- nidade, a Elders – grupo de líderes forma- propostas podem afetar os direitos hu- te de atores da sociedade civil que se unem do no ano passado por Nelson Mandela, do manos. em torno do conceito de “trabalho decente”. qual tenho o orgulho de participar – lançou • Realização de atualizações periódicas Acreditamos que a ampla comunidade de ati- a campanha Todo Ser Humano tem Direitos. sobre o impacto e desempenho em direi- vistas em direitos humanos tem um impor- A campanha nos convida a um compromis- tos humanos. tante papel a desempenhar, refletindo com so de viver pelos princípios da Declaração • Oferecimento ao público de mecanis- os líderes do setor privado sobre os desafios Universal. Eu os convido a conhecer melhor mos eficientes de denúncia para lidar de gerar oportunidades de emprego decente, a campanha e a se envolver pessoalmente, com os supostos casos de violação aos capazes de contribuir para o desenvolvimen- acessando o site www.everyhumanhasrights. padrões de direitos humanos. org. Trabalhamos com vários parceiros com Por fim, vou me referir brevemente a um o intuito de ajudar a reafirmar e recuperar a quinto desafio. Esse diz respeito ao papel da “algumas grandes importância dos compromissos e obrigações geração de emprego e riqueza para a efetiva- baseados na Declaração Universal. ção de uma série de direitos humanos. Até empresas vêm se Todos os seres humanos nascem livres e agora, especialistas em direitos humanos pouco disseram sobre essa questão. Valioso preparando para iguais em dignidade e direitos. É isso que diz o Artigo 1º da Declaração Universal. A frase 16 trabalho aplicando a perspectiva de direitos analisar toda sua é tão significativa e importante hoje quanto humanos à análise orçamentária e à aloca- foi em 1948. Assumamos os direitos de que cadeia de valores Revista Direitos Humanos ção de assistência, por exemplo, vem sendo somos titulares desde nosso nascimento e o construído; nos próximos anos, entretanto, em países em usemos como pretendiam os elaboradores da será necessário o desenvolvimento de novas declaração Universal: para garantir os direitos formas de análise dos direitos humanos apli- desenvolvimento” humanos a todas as pessoas.
  • 17. Segurança pública e direitos humanos RicARDo BRisollA BAlEstRERi é secretário nacional de Segurança Pública, membro “Creio firmemente que do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH), do Comitê Nacional para Combate à Prática da Tortura (SEDH) e da Comissão Estruturadora da Universidade Federal enquanto os homens não Latino-Americana (Unila – MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presente texto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que o conseguirem encontrar ele faça parte. uma forma de desistir da violência para resolver seus conflitos, e não encontrarem uma forma de conviver sem recorrer à violência, quer se trate da violência das instituições, quer da violência daqueles que tentam destruir essas h á 60 anos, por decisão da Organiza- pródigo em termos de direitos civis e políticos ção das Nações Unidas, o mundo deu – um viés avaliativo obviamente herdado do mesmas instituições, o um salto gigantesco em sua história marxismo mecanicista vulgar, que considera moral, aprovando a Declaração Universal dos os elementos “estruturais” como determi- curso da história continuará Direitos Humanos. nantes dos “superestruturais”. Por essa visão, Pela primeira vez, um roteiro formal, su- tudo o que não reordene o modo de produção a ser o que sempre foi, ficientemente consensual entre as nações, e não gere, imediatamente, melhor distribui- ou seja, uma monótona e reconheceu direitos individuais e também ção de riquezas, merece desconfiança e des- 17 coletivos, superando teoricamente milenares dém. Os resultados de tal equívoco conceitual quase obsessiva tragédia de privilégios e preconceitos classistas, étnicos, e prático, os conhecemos através da história Revista Direitos Humanos sexistas, etários, culturais. do “socialismo real”. Há quem insista, contu- lágrimas e sangue.” Infelizmente, há quem desdenhe dessa do, nessas fórmulas jacobinas, verticalistas, vitória, por julgar tal roteiro como insuficiente autoritárias, sempre frutos da “magia” de um (Norberto Bobbio) no campo dos direitos sociais e econômicos e poder emanado, invariavelmente, de cima.
  • 18. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos Quem o faz, no mais das vezes, pensa estar “de baixo para cima”. Assim, princípios que criticando, “pela esquerda”, as “ingenuidades garantam, por exemplo, as liberdades de or- pequeno-burguesas” da militância dos direitos ganização e expressão, incidem, sempre, ne- humanos. Sem querer, repete a lógica lampe- cessária e obrigatoriamente, sobre o aprofun- duzana que, veladamente, nas novas formas, damento da democracia também no campo preserva os velhos conteúdos, “mudando tudo social e econômico. Bem-estar se conquista. para que nada mude”. Na verdade, sempre que Não se ganha de brinde, por conta de benfei- não se critica a dinâmica do poder, particu- torias das classes dominantes. larmente sua verticalidade tradicional, se está A Declaração Universal de Direitos Hu- replicando uma forma conservadora de pensar manos fez bem, portanto, em destacar os e ordenar o mundo. Uma lógica “de direita”, direitos civis e políticos. É por eles que se portanto (aliás, antes que – por modismos de pode superar a heteronomia, construindo pretensa pós-modernidade – me censurem e conquistando o caminho para um mundo pelos termos aqui utilizados, preciso declarar mais justo. Obviamente, portanto, continua total adesão a Norberto Bobbio quanto à con- sendo uma inócua candura clamar por algum tinuidade da adequação da díade “esquerda” e tipo de declaração universal de melhor distri- “direita” para uma compreensão analítica, um buição das riquezas. posicionamento axiológico e uma postura de Como percebe o leitor, iniciei este artigo intervenção no mundo contemporâneo: pela crítica ao conservadorismo de esquerda, no que atine à avaliação da luta pelos direi- “Como já afirmei várias vezes a propósito tos humanos. O objetivo é tentar identificar daquilo que chamei de ‘as grandes dico- as causas do isolamento e fragilização de tomias’ em que qualquer campo do saber tal luta no contexto da sociedade brasileira está dividido, também da dupla de termos contemporânea para, na sequência, arrolar antitéticos direita e esquerda pode-se fa- elementos de auto isolamento e auto fragi- zer um uso descritivo, um uso axiológico, lização, particularmente no que se refere à um uso histórico: descritivo para dar uma relação da militância tradicional de DH com o representação sintética das duas partes poderoso drama que se desenvolve no cam- em conflito; axiológico, para exprimir um po da segurança pública. É claro que, antes juízo de valor positivo ou negativo sobre disso, precisamos passar também pela crítica uma ou outra das partes; histórico, para ao pensamento predominante (quase “pensa- assinalar a passagem de uma parte a ou- mento único”, em que pese uma qualificada tra da vida política de uma nação. O uso presença pessoal, mas inorgânica e ideologi- histórico, por sua vez, pode ser descritivo camente insípida – ímpar em termos histó- ou valorativo... A árvore das ideologias ricos – de políticos de esquerda em postos está sempre verde.... Além do mais, não executivos e legislativos) no Brasil presente: há nada mais ideológico do que a afirma- o pensamento da direita. ção de que as ideologias estão em crise.” Emmanuel Rodríguez, autor de El gobier- 18 (Direita e Esquerda. Norberto Bobbio). no imposible, trabajo y fronteras en las metró- polis de la abundancia, durante o Seminário Revista Direitos Humanos Evidentemente, na história humana, as Nueva Derecha: Ideas y Medios para la Con- verdadeiras transformações (diferentemente trarrevolución, ocorrido em 2006 na Espanha, das meras “mudanças”) se dão, invariavel- destacou a predominância mundial, nos dias mente, em verticalidade anti-hegemônica, que seguem, de uma “nova direita”, forte-
  • 19. “Bem-estar se conquista. não se ganha de brinde, por conta de benfeitorias das classes dominantes” mente fundada no populismo e na demagogia Nueva Derecha: Ideas e Medios para la Con- e emanada principalmente dos Estados Uni- trarrevolución-Espanha, 2006). dos, tendo se espraiado, inclusive, pela Eu- Penso que tal característica está forte- ropa. O risco representado por tal movimento mente presente também no Brasil, onde o é, no mais das vezes, subestimado. Contudo, pensamento da direita (se é que se pode de- há nele potência germinal para desestabilizar nominar assim tal presente conjunto de clichês) os consensos de governabilidade entre forças é quase um mero sinônimo de senso comum. progressistas e conservadoras mais tradicio- Não se suponha, contudo, que por suas carên- nais, presentes nas democracias ocidentais. cias conceituais e filosóficas, por seu empiris- Em meio a um momento em que o sis- mo, por sua arrogância moldada na ignorância, tema democrático representativo vive uma seja um pensamento de pouca expressão e de forte crise de legitimidade, o discurso dessa pouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, como nova direita logra estabelecer uma ponte de dissemos acima, praticamente como pensa- comunicação direta com setores muito am- mento totalitário e totalizante. plos da sociedade, seduzindo e congregando Por ser senso comum, igualmente, não pessoas de segmentos bastante diversos (in- se suponha – em equívoco de ingenuidade cluindo muitas que, outrora, se encontravam espontaneísta – que provenha da “malta”. Em à esquerda). É uma retórica marcadamente sociedades do tipo da nossa, tecidas de com- agressiva, não comedida, rupturista, que tra- plexos mosaicos desordenados, urbanizadas, balha a incorporação de categorias “morais” industrializadas, de serviços, consumistas como fatores de alavancagem emocional do mas excludentes, desenraizadas, “americani- debate político, aproveitando-se, paradoxal- zadas” no arremedo, midiatizadas e idiotiza- mente, da crise crônica de anomia inerente ao das, onde os “sistemas de ensino”, a par da estado neoliberal que sustenta. Em tal dire- fragilidade conteudística, caracterizam-se por ção, propõe “medidas excepcionais”, trocan- um enorme vazio no campo do que Piaget de- do a liberdade pela segurança, por exemplo, finiu como “juízo moral”, o senso comum se com o fito de combater fantasmas externos (o molda no tecnicismo universitário sem trans- terrorismo, no mundo rico) ou internos, em versalidade humanística, nas banalidades, todas as partes (o narcotráfico, a delinquên- futilidades, silêncios e histerias dos meios cia, a imigração, a pornografia, etc.). de comunicação, na “cultura” de mercado “Lo más paradójico”, sublinhou Emma- e de manada. O senso comum, no Brasil, é nuel Rodríguez, “es que esta nueva derecha, de elite. Obviamente, replica-se nas classes 19 en un tan perverso como eficaz circulo vicioso populares. Daí, sua aplastadora força. Revista Direitos Humanos de autolegitimación, ha logrado aprovecharse Como quase todo pensamento ordinário, de los miedos y miserias morales que provo- o nosso também aninha vasta gama de pre- can las políticas neoliberales para justificar conceitos, de mitos manipulatórios, de ódios e sus propias medidas represivas” (Seminário rancores, de “certezas” e “explicações totais”.
  • 20. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos O senso comum, como expressão emocional za tantos “autos de resistência” dos pobres, televisión, publicaciones periodísticas, das massas, no mais das vezes, se nutre de nem tanta pena de morte de fato, nem tanto tanto digitales como en papel, weblogs...) sombras. Por isso, sobrevaloriza o poder e a “ladrão de galinha” se estragando em ex- como instrumentos propagandísticos”. força bruta, encara como fragilidade a com- temporâneas e criminógenas masmorras Además lo ha hecho re-apropiándose paixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza a medievais. É claro que estranhamos quando de herramientas contrainformativas que ousadia, a criatividade e a diferença. essas coisas atingem gente “nossa” – das empezó a desarrollar la izquierda radical Por isso rejeita os direitos humanos e a classes média e alta – pelo que levantamos en las décadas de los sesenta y los se- sua militância. grandes ondas hipócritas de indignação tenta. Así, frente al rigorismo formal de É um notável paradoxo o fato de nosso passageira! A mídia nos acompanha: fala los medios “serios” convencionales, des- país, cada vez mais progressista e moder- quando consensuamos e cala quando con- pliegan una retórica hiperbólica y agresiva nizado, cada vez mais “encaixado” na eco- vém. Nos retroalimentamos. A maioria dos que abusa del sarcasmo y de la soflama nomia global, expressar-se de forma tão nossos especialistas midiáticos, aliás, só y basa sus denuncias en hipótesis y es- intensamente anacrônica e pobre no campo expressa o conceito de organicidade quando peculaciones fuertemente tendenciosas y das humanidades, das “ideias de fundo”, dos se trata da vinculação com a própria mídia. escasamente contrastadas (pues su obje- projetos de sociedade. Atacar nas sístoles indignadas e sumir nas tivo no es la búsqueda de la verdad, sino Por aqui, a sociedade reage de forma diastólicas fases alienadas. el desgaste del adversario)”. Seminário blasé em relação a crimes ocorridos no Resultados? Nada de novo, nada de pro- Nueva Derecha: Ideas e Medios para la período ditatorial. Não nos horrorizamos, positivo. Contrarrevolución–Espanha, 2006. 20 como em outros lugares. Por aqui, repercute pouco a presença de gente agressivamente “La nueva derecha”, aseguró Emmanuel Em tal quadro, como surpreender-se que Revista Direitos Humanos fascista, exibindo sua pobreza de espírito Rodríguez, “ha sido capaz de adecuarse se tratem os direitos humanos como “defesa nas ruas, vestindo camisetas com fotos de perfectamente al nuevo orden mediático, de bandidos”? (Em setores mais conservado- generais ditadores e os dizeres: “Eu era feliz utilizando todo tipo de medios comuni- res das polícias e das forças armadas também e sabia”. Por aqui, não é causa de estranhe- cativos (emisoras de radio, cadenas de são tratados como “coisa de veados”).
  • 21. “Como chocar-se diante da violência doméstica, das mulheres apanhando e sendo traídas, das crianças e idosos vilipendiados?” Obviamente, não estamos sozinhos no erroneamente, fundamenta-se em dores e quadro internacional, como afirmamos acima. restrições reais que precisam ser cuidadas. Somos, contudo, uma espécie de replicação É aí que entra a galvanizadora questão da piorada, pela falta de alternativas relevantes à segurança pública. burrice única. Uma espécie de corpo que se Quero afirmar, com isto, uma genérica vai desenvolvendo, formando musculatura, falta de compreensão histórica da mili- mas sofrendo de anencefalia. Coisa de cultu- tância de direitos humanos em relação ao ra periférico-dependente. tema da segurança como pauta positiva e Procurei caracterizar, até aqui, a falta de propositiva, da sua importância não ape- “cobertura” para a nossa causa, à esquerda nas para o Estado, mas para a Nação, de e à direita. sua relevância para a democracia e para o desenvolvimento. Tal incompreensão levou Mais: como chocar-se diante da violência No dizer de Marco Mondaini (Direitos nossa dedicada e abnegada comunidade de doméstica, das mulheres apanhando e sendo Humanos, Editora Contexto, São Paulo, DH, em poucos anos de democracia, a um traídas pelos machões, das crianças e idosos 2006), “seja na sua versão neoliberal, dramático isolamento, revelado nas evidên- vilipendiados? Como pasmar à frente do pre- que procura identificar nos direitos hu- cias empíricas do dia-a-dia, mas também conceito racial, homofóbico, estético? É bas- manos uma barreira à realização racional em inúmeras pesquisas de opinião sobre tante óbvio que, nesse contexto, se naturalize da lucratividade pelo livre-mercado; seja diversos temas que nos são atinentes. a violência para “acabar com a violência”, se através da matriz marxista ortodoxa, que Diante disso, ao invés de revermos prestigie a “lógica da eliminação” dos crimi- busca observar nos direitos humanos nossas metodologias e particularmente nosos mas também dos diferentes. Dá tudo nada mais do que um conjunto de forma- nossos processos de comunicação, nos na mesma e está “tudo dominado”, pela via lidades responsáveis pelo encobrimento empedernimos na certeza do acerto de direita (que, por sua inconsistência teórica, da estrutura de classes e da luta entre nossas posições e na convicção do atraso de maneira geral, não se sabe e nem se as- estas no seio da sociedade capitalista, e do reacionarismo da mesma sociedade sume como tal). sendo, por isso mesmo, nada mais que que defendemos. E, ainda que tenhamos Lamentavelmente, o mesmo Brasil que direitos das classes dominantes; ou ainda razão, vamos justificando e agravando o ruma celeremente para o primeiro mundo, na linha extremamente vulgar que define dizer bíblico: “São como pastores sem re- no campo econômico, dele se encontra pa- os direitos humanos como ‘direitos de banho, que se apascentam a si mesmos”. teticamente distanciado no campo simbóli- bandidos’, o que se percebe claramente É claro que a comunidade de direitos co. Em que país civilizado ou em verdadeiro é a incapacidade de compreender a fundo humanos não é um bloco monolítico e processo civilizatório se poderia encontrar seu caráter universal e democrático.” nem todos os segmentos se enquadram 21 tanta aversão a direitos humanos? Esse é, na categoria acima. Lamentavelmente, Revista Direitos Humanos contudo, o nosso cenário real e – ainda que O quadro poderia não ser tão ruim, contudo, parece-me que a maior parte doa – creio ser necessário olharmos corajo- contudo, se não tivéssemos ajudado a de nós – do ponto vista da compreensão, sa e criticamente as nossas piores misérias: agravá-lo com nossa incompreensão de dos conhecimentos, da identificação com as “espirituais”. que o senso comum, ainda que conclua a causa da segurança pública como tam-
  • 22. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos bém uma causa popular e de direitos hu- de ordem material mas também daqueles disposição para entrar quartéis, delega- manos – encontra-se paradigmaticamente de ordem subjetiva: balizamentos legais cias, salas de aula de academias, conse- paralisada nos anos 70, quando vivíamos e éticos, mediação de conflitos, educa- lhos comunitários de segurança, postos na zona de risco da ditadura, mas igual- ção pública de qualidade, liberdades de de polícia comunitária, não para atacar- mente na zona de conforto da aprovação expressão, de organização, de ir e vir, de mos os policiais (o que abreviaria muito popular, heróis e heroínas de um mundo criar e empreender. nossa presença junto a eles), mas para bipolar. Tal crítica, a faço com respeito e Tal vácuo de presença do estado de- ajudá-los a construir modelos alternativos compaixão, uma vez que, por anos, estive mocrático de direito gerou ambiência para de policiamento e atendimento das comu- “preso” na mesma torre. o estabelecimento de “governos” totalitá- nidades, modelos com a cara da demo- Não foi fácil descer dela e ir para a rios do crime organizado, que se utilizam cracia, sempre teremos algum programa planície da democracia, enfrentando a vida de tais áreas para estoque de armas e de TV nos chamando para a crítica, mas como a vida é, com sua complexidade, drogas, venda varejista e recrutamento de não teremos uma polícia de proximidade, contradições e desafios suprapessoais. mão-de-obra barata, além de outras ati- cuidando com cidadania dos cidadãos. Não foi fácil, no início, encontrar, nas salas vidades criminosas associadas. Assim, de aula, a polícia da qual eu tinha tantas grande parte dos pobres deste país se en- ...”Torna-se inquestionável a priorida- vezes apanhado e muito menos aquela que contra, ainda, sob o tacão de uma ditadura de na garantia de segurança para os por dois sofridos anos me havia processa- empresarial ilícita, covarde e sanguinária. pobres. Estes são os mais atingidos em tudo, espremidos que estão entre “Grande parte dos pobres deste a violência da polícia (são os eternos suspeitos) e a violência da criminalidade país se encontra, ainda, sob o comum. São eles as principais vítimas tacão de uma ditadura empresarial do narcotráfico, das balas perdidas, dos assaltos e estupros, da violência nas ilícita, covarde e sanguinária” escolas” (Benevides, Maria Victoria, Di- reitos Humanos:Desafios para o Século do. Foi, contudo, um enfrentamento deses- São eles, os que não possuem recursos XXI, in Educação Em Direitos Humanos: quizofrenizante e necessário como serviço para enclausurarem-se em condomínios Fundamentos Teórico-Metodológicos, vá- a uma democracia que precisa devolver a privados e seguros, as maiores vítimas da rios, Editora Universitária, João Pessoa, sua polícia ao povo. Mais do que parte do insegurança pública. São, também eles, 2007). problema, optei, com vários outros com- as maiores vítimas de padrões de policia- panheiros e companheiras, por fazer parte mento equivocados, invasivos, reativos, A par de tudo isso, três fatores vêm sen- das soluções. truculentos, criminalizadores da pobreza. do apontados por expoentes da comunidade Creio que, a estas alturas, faz-se neces- Os nossos eventuais “escrúpulos” em não acadêmica internacional como gêneses do de- sário o resgate de uma aparente obviedade nos aproximar da polícia não os ajudam em senvolvimento nacional: a formação de redes que, contudo, é insuficientemente enfrenta- nada. Ao contrário, mantêm-nas presas de de voluntariado e engajamento cidadão, o livre da: por quê o tema da segurança pública se um sistema servil, junto aos criminosos e empreendedorismo popular e o acesso demo- tornou tão crucial para a nação brasileira, de pânico, quando da presença policial. crático à educação de qualidade, construtora como revelam as pesquisas de opinião? Nossas meras atividades de denúncias, da autonomia intelectual e do juízo moral dos 22 Inicialmente, porque a maioria dessa que sempre serão imprescindíveis para o indivíduos. nação se encontra, historicamente, na or- aprimoramento democrático, têm se reve- Pesquisas do Departamento de Estudos Revista Direitos Humanos fandade em relação aos poderes públicos, lado insuficientes, e mesmo pífias, quando Internacionais de Harvard, conduzidas pelo vivendo em áreas de carência ou mesmo se trata da mudança de um sistema que, professor Robert Putnam (um dos referen- de quase total ausência de políticas públi- mais do que “consertado” pontualmente, ciais teóricos do PNUD/ONU), comprovam cas, alcançadoras não apenas dos direitos precisa ser transformado. Se não tivermos que o desenvolvimento dos países passa,