1) A Declaração Universal de 1948 marcou o início de uma nova fase na história da humanidade ao reconhecer de forma objetiva e lúcida o valor primordial da pessoa humana e seus direitos essenciais e universais.
2) Ao afirmar que todos os seres humanos, sem qualquer exceção, nascem livres e iguais, o documento deixou claro que constituições e leis que contenham exclusões ou discriminações quanto aos direitos humanos são falsificações que não merecem respeito.
3) Ao longo da história, hou
1. r e v i s ta
direitos
humanos
DAlmo DE ABREU DAllARi
mARy RoBinson
mARco Antônio
RoDRigUEs BARBosA
RicARDo BRisollA BAlEstRERi
AnA RitA DE PAUlA
izABEl mARiA mADEiRA
DE loUREiRo mAioR
cARmEn silvEiRA DE olivEiRA
mARiA lUizA moURA DE olivEiRA
BAltAsAR gARzón
AUgUsto BoAl
sEBAstião sAlgADo
Edição comemorativa
60 Anos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos
01
d e z e m b r o 20 0 8
2.
3. Apresentação
n
asce uma nova revista sobre direitos humanos no Brasil. Já
existem importantes publicações, de diferentes perfis, voltadas
a distintos focos de interesse. Mas faltava uma, de abrangência
nacional, com abordagem mais diretamente centrada nos temas da Educação
em Direitos Humanos.
Ela tem caráter institucional, mas tal identidade não deve resultar em oficia-
lismo chapa branca. Governos democráticos não podem temer a convivência
com a crítica. A vocação da revista é desenvolver reflexões e um diálogo franco
com a sociedade civil. Seu formato e linguagem buscam um ponto intermediá-
rio entre a elaboração acadêmica e aquela mais sintética das lutas populares.
Os movimentos sociais e as ONGs dessa área, as instituições e autoridades
dos poderes públicos que cuidam do tema, os segmentos universitários perti-
nentes sabem que a Educação em Direitos Humanos é o eixo mais estratégico
para a construção de uma nova consciência nacional e de um novo patamar de
respeito à dignidade intrínseca da pessoa humana, consagrada na Declaração
Universal de 10 de dezembro de 1948.
O lançamento faz parte da agenda brasileira de celebração dos 60 anos des-
sa declaração, ao lado de marcantes eventos ocorridos em 2008, alguns com
forte marca de ineditismo, como a Conferência Nacional dos Direitos Humanos
do segmento LGBT, realizada em Brasília no mês de junho, por convocação do
presidente da República, que também presidiu um pioneiro encontro, em São
Paulo, no mesmo mês, com presidentes e dirigentes de grandes empresas,
convocando-os ao engajamento claro nos compromissos com os direitos hu-
manos orientados pelo Pacto Global da ONU.
Entre 15 e 18 de dezembro se realiza em Brasília a 11ª Conferência Na-
cional dos Direitos Humanos, com aproximadamente 1.400 participantes, cuja
pauta central é a revisão e atualização do Programa Nacional de Direitos Huma-
3
nos (PNDH), que o Brasil formulou em 1996 e ampliou em 2002.
Revista Direitos Humanos
Um desafio colocado para a terceira versão do PNDH é incorporar a agenda
programática resultante de grandes encontros nacionais ocorridos desde 2003
4. Aprese
sobre o vasto leque de questões relacionadas à proteção dos direitos humanos. Milha-
res de pessoas já participaram em alguma etapa das 50 conferências abordando edu-
cação, saúde, meio ambiente, igualdade racial, equidade de gênero, cidades, criança
e adolescente, juventude, segurança alimentar, desenvolvimento agrário, economia
solidária, muitos outros temas.
Em novembro, no Rio de Janeiro, nosso país sediou o mais importante congresso
mundial já realizado para articular o enfrentamento da exploração sexual de crianças
e adolescentes, reunindo nada menos que 170 países e 3.500 congressistas. Em
dezembro, ocorreu em Brasília a 2ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com
Deficiência, precedida pelas etapas estaduais, da mesma forma que as outras confe-
rências mencionadas acima. Em março de 2009 se completará o processo da 2ª Con-
ferência Nacional dos Direitos do Idoso, que já concluiu em 2008 sua fase federativa.
Temos um cenário de conquistas palpáveis, que encorajam nossa determinação
de avançar rumo a metas mais desafiadoras. Mas também presenciamos a repetição
de intoleráveis violações, dando a tônica no cotidiano nacional: violência criminal,
torturas e desmandos policiais, presídios, racismo, homofobia, discriminações e
violência contra a mulher, contra idosos e contra pessoas com deficiência, per-
sistência do trabalho escravo, desrespeito às normas do Estatuto da Criança e do
Adolescente, criminalização de movimentos sociais e assassinato de indígenas ou
lideranças de trabalhadores, e a impunidade ainda prevalece largamente sobre as
apurações exemplares.
Essa convivência entre avanços e violações tem sido marca constante desses 20
anos de reconstrução democrática do País, a partir da Constituição de 1988. Numa
trajetória de Estado, o Brasil já deu passos importantes no sentido de incorporar os
instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos ao nosso sistema nor-
mativo. Programas novos são iniciados a cada ano, em diferentes áreas. Mas os passos
já dados não superam o muito que ainda resta de caminhada.
5. entação
A revista é mais um passo. Pequeno ou grande, o passo vai na direção certa. O ani-
versário de 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos perpassa todas as
matérias deste primeiro número, que exibe diversidade de temas e reflexões muito ri-
cas. A tiragem inicial será de 8.000 exemplares, com o importante detalhe de que 500
deles serão em espanhol, porque não somos apenas Brasil. Somos Brasil e Mercosul,
somos Brasil e Unasul, somos um Brasil que está decidido e talhado à integração cres-
cente com nuestra America, dos sonhos de Bolívar, de Che e de Salvador Allende.
Buscando respeitar o tamanho de nossas pernas, a publicação nasce semestral.
Mas já planeja virar quadrimestral, quem sabe trimestral depois, ou bimestral, ou... O
certo é que ela vem para ficar. A montagem de seu Conselho Editorial foi concebida com
essa predestinação. Diferentes áreas, diferentes geografias, diferentes opiniões políticas,
partidárias, religiosas ou filosóficas estão refletidas na composição de seus 22 integran-
tes, que aceitaram incorporar mais esta trincheira a suas pesadas agendas.
Fica aqui registrado um enfático apelo aos futuros titulares da área de direitos hu-
manos do governo federal, para que não deixem a sequência ser interrompida. Uma
revista vale muito como série histórica. Só com o passar dos anos torna-se referência,
fonte para pesquisas e estudos posteriores, medição e fotografia dos debates que
prevalecem em cada período.
Na saudável alternância de partidos no poder, própria das democracias, é claro que
o voto popular autoriza os governantes a introduzir mudanças e ajustes, deslocando
prioridades. Mas o apelo vale como alerta no sentido de que, em direitos humanos –
talvez mais do que em qualquer outro segmento –, a acumulação ao longo dos anos, o
prosseguimento, a persistência e a perseverança compõem um imperativo categórico,
ao qual estamos todos obrigados.
Brasília, 10 de dezembro de 2008
Paulo Vannuchi
6. sum
ário sumário>>
8
Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
DAlmo DE ABREU DAllARi
17
12
BAlEstRERi
RicARDo BRisollA
e Direitos Humanos
Segurança pública
Concretizando nossos
compromissos
mARy RoBinson
26
6
Direito à memória
34
Revista Direitos Humanos
e à verdade
Um mundo
mARco Antônio RoDRigUEs BARBosA todos: Univ
direitos e d
AnA RitA DE PAUlA
izABEl mARiA mADEiRA
7. Expediente
Presidente da República
40
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Secretaria
Especial dos Direitos Humanos
Paulo Vannuchi
Secretário Adjunto
maioridade para os direitos humanos Rogério Sottili
da criança e do adolescente
Conselho editorial
cARmEn silvEiRA DE olivEiRA
mARiA lUizA moURA DE olivEiRA Paulo Vannuchi (Presidente)
Aída Monteiro
André Lázaro
Carmen Silveira de Oliveira
Dalmo Dallari
Darci Frigo
Egydio Salles Filho
Erasto Fortes Mendonça
José Geraldo Souza Júnior
José Gregori
46
Marcos Rolim
Marília Muricy
Izabel de Loureiro Maior
Maria Victoria Benevides
a verdade, onde estiver Matilde Ribeiro
Nilmário Miranda
BAltAsAR gARzón Oscar Vilhena
Paulo Carbonari
Paulo Sérgio Pinheiro
Perly Cipriano
Ricardo Brisolla Balestreri
Samuel Pinheiro Guimarães
Coordenação editorial:
Erasto Fortes Mendonça
Mariana Bertol Carpanezzi
Patrícia Cunegundes
Paulo Vannuchi
Revisão:
Bárbara de Castro, Joíra Coelho, Luciana Melo
52
Projeto gráfico e diagramação:
Wagner Ulisses
Ilustrações:
Lívia Barreto
AUgUsto BoAl
entrevista
Produção editorial:
Jacumã Comunicação
Secretaria Especial dos Direitos Humanos
62
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Sede, sala 424
70.064-900 Brasília – DF
direitoshumanos@sedh.gov.br
www.direitoshumanos.gov.br
sEBAstião sAlgADo
Imagens
Distribuição gratuita 7
Tiragem: 8.000 exemplares
Revista Direitos Humanos
de todos para DIReItoS HUmanoS é uma revista semestral
publicada pela Secretaria Especial dos Direitos
versalização de Humanos da Presidência da República do Brasil
direito à diferença As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade
exclusiva dos autores e não representam necessariamente a
posição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República ou do Governo Federal.
A DE loUREiRo mAioR Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução
parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e não
seja para venda ou qualquer fim comercial.
8. artigo
DAlmo DE ABREU DAllARi – jurista e
professor emérito da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de
Abreu Dallari é autor de vários livros – e, entre
eles, o clássico Elementos de Teoria Geral
do Estado. Entre outras atribuições, ocupa
atualmente assento no Conselho de Defesa
dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).
Direitos humanos:
sessenta anos de conquistas
DAlmo DE ABREU DAllARi
1. A DeclArAção UniversAl De 1948: Na denominação dada ao documento e
compromisso hUmAnistA nas afirmações constantes do artigo primeiro
h
á sessenta anos a humanidade deu estão contidos alguns elementos esclarece-
início a uma nova fase em sua his- dores da mais alta importância, que dão o
tória, registrando num documento testemunho do extraordinário avanço já ob-
lúcido e objetivo a tomada de consciência tido, em comparação com dados anteriores.
do valor primordial da pessoa humana e Com efeito, o primeiro documento que teve
de seus direitos essenciais e universais, a denominação de Declaração de Direitos
inerentes à sua própria natureza. Isso já é foi o que a Assembléia Nacional da França
ressaltado, com muita evidência, em sua aprovou em 1789, num dos momentos mais
8
denominação, “Declaração Universal dos expressivos de afirmação da vitória da Revo-
Revista Direitos Humanos
Direitos Humanos”, e é enfaticamente pro- lução Francesa, que punha fim ao chamado
clamado em seu artigo primeiro, que inicia Antigo Regime e começava uma nova fase
com o seguinte enunciado: “Todos os seres na história da humanidade. O documento
humanos nascem livres e iguais em digni- então aprovado foi designado “Declaração
dade e direitos”. dos Direitos do Homem e do Cidadão”, o que
9. despertou reações veementes dentro da pró- qualquer exceção, nascem livres e iguais, 2. os Direitos hUmAnos e
pria Assembléia, denunciando o seu caráter deixa expresso que a Constituição e o siste- os cAminhos DA históriA
discriminatório contra as mulheres. Isso foi ma legal que contiverem exclusões ou dis- Perde-se na origem dos tempos o reco-
negado pelos líderes da maioria, que eram criminações quanto aos direitos humanos nhecimento de que os seres humanos são
franceses brancos e ricos, mas o espírito dis- não têm o valor de documentos jurídicos criaturas especiais, que nascem com cer-
criminatório foi confirmado logo em seguida. autênticos, são falsificações maliciosas que tas peculiaridades, incluindo necessidades
Basta lembrar que, à semelhança dos Estados não merecem respeito e devem ser elimi- básicas de natureza material, psicológica e
Unidos da América, criados com a aprovação nadas. Os direitos humanos são atributos espiritual, que são as mesmas para todas as
da primeira Constituição escrita da história, naturais de todos os seres humanos, que pessoas. Entre tais peculiaridades encontra-
em 1787, a França impediu o acesso das
mulheres aos altos cargos do governo e da
Administração Pública. “Há pessoas que colocam suas
Assim, a afirmação de que os direitos
humanos declarados são de “todos os se-
ambições pessoais, sua busca de
res humanos” exclui qualquer espécie de poder, prestígio e riqueza acima
discriminação. Isso tem ainda grande im-
portância, para constatação dos avanços, dos valores humanos”
pelo fato de que tanto os Estados Unidos
quanto a França se basearam na afirmação nascem com eles e que a sociedade, o Es- se também a possibilidade de se desenvolver
da existência de direitos naturais das pes- tado, os governos ou quem quer que seja interiormente, de transformar a natureza e de
soas, primeiro deles o direito à liberdade, não podem restringir com legitimidade. E estabelecer novas formas de convivência.
sendo bem conhecido o lema da Revolu- aí se enquadra a dignidade humana, que Tudo isso levou à conclusão de que o ser hu-
ção Francesa, “Liberdade, Igualdade, Fra- é igual para todos e que é da essência da mano é dotado de especial dignidade e que
ternidade”, e na prática negaram por muito pessoa humana, não havendo qualquer di- é imperativo que todos recebam proteção e
tempo essa afirmação. Com efeito, ambos, ferença entre a dignidade do proprietário de apoio para a satisfação das necessidades bá-
Estados Unidos e França, usavam o traba- uma rica mansão ou suntuosa fazenda e a sicas e para o pleno uso e desenvolvimento
lho escravo em larga escala e continuaram do favelado ou do morador de rua e mesmo de suas possibilidades físicas e intelectuais.
mantendo a escravidão negra durante mui- do presidiário. Eles podem ficar sujeitos a Como decorrência de todos esses fatores, foi
tos anos. A mulher só foi admitida como regras legais diferentes, desde que isso não sendo definido um conjunto de faculdades
eleitora em eleições nacionais estaduni- ofenda a dignidade essencial de cada um. naturais necessitadas de apoio e estímulo
denses em 1920 e na França ela só foi ad- A Declaração Universal dos Direitos social, que hoje se externam como direitos
mitida como juíza em 1946. Além disso, os Humanos aprovada pela Organização das fundamentais da pessoa humana.
trabalhadores tiveram de enfrentar duríssi- Nações Unidas em 1948 foi, efetivamente, Mas apesar de serem direitos de todos
ma resistência, inclusive forte repressão um avanço para a humanidade. Existem ain- os seres humanos, o que deveria levar à con-
policial, para, no século XX, ser admitidos da resistências à sua efetiva aplicação, mas clusão lógica de que ninguém é contra tais
como “livres e iguais”. Como fica óbvio, a simples existência dessa declaração tem direitos, a história mostra coisa bem diferente
aquilo que se denominou enfaticamente Li- servido de apoio significativo para lutas tra- disso. Há pessoas que colocam suas ambi-
beralismo continha boa dose de hipocrisia, vadas por meios pacíficos e para denúncias e ções pessoais, sua busca de poder, prestígio
pois os direitos declarados eram os dos reivindicações buscando a concretização de e riqueza acima dos valores humanos. Isso 9
homens brancos ricos, excluindo grande mudanças nas Constituições, na organização explica as violências da Idade Média, com o
Revista Direitos Humanos
parte da humanidade. das sociedades e nas práticas da convivência estabelecimento dos privilégios da nobreza e
Além da denominação, que abrange a humana constitucionais, visando à elimina- a servidão dos trabalhadores. Essa é, também,
universalidade dos seres humanos, a afir- ção das discriminações e à implantação da a raiz das agressões sofridas pelos índios da
mação de que todos, sem a possibilidade de justiça social. América Latina com a chegada dos europeus,
10. artigo Direitos humanos: sessenta anos de conquistas
a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, afirmando, no artigo primeiro, que
“todos os homens nascem e permanecem
livres e iguais em direitos”, mas, ao mes-
mo tempo, admitindo “distinções sociais”,
as quais, conforme a declaração, deveriam
ter fundamento na “utilidade comum”. Logo
foram achados os pretextos para essas dis-
tinções, instaurando-se uma nova forma de
sociedade discriminatória com novas classes
de privilegiados, estabelecendo-se enorme
distância entre as camadas mais ricas da po-
pulação, pouco numerosas, e a grande massa
dos mais pobres.
A partir de então, as injustiças inces-
santemente acumuladas, as discriminações
impostas pela lei, excluindo da participação
política os não-proprietários e as mulheres,
o uso dos órgãos do Estado para sustentação
dos privilégios dos mais ricos e de seus ser-
estando aí, igualmente, o nascedouro das submetidos a condições indignas. Mas a fun- viçais, tudo isso acarretou mais sofrimento,
violências contra a pessoa humana, inspi- damentação teológica dos direitos humanos miséria, violências e inevitáveis revoltas. No
radas nos valores do capitalismo, que tenta foi usada maliciosamente, para sustentar que campo dos dominadores surgiram, entretan-
renovar agora sua imagem desgastada, pro- os direitos dos reis e dos nobres decorriam to, muitas disputas, sobretudo de natureza
pondo a farsa da globalização. da vontade de Deus e assim estariam justifi- econômica, em âmbito nacional e interna-
O excesso de agressões à dignidade da cadas as discriminações e injustiças sociais. cional. Essa produção de injustiças e esse
pessoa humana, em decorrência do egoísmo, Os séculos XVII e XVIII foram marcados choque de ambições levaram à perda da paz,
da insaciável voracidade, da insensibilidade por lutas contra esses privilégios. Grandes fi- com duas guerras mundiais no século XX,
moral dos dominadores, tem despertado re- lósofos políticos reafirmaram a existência dos chegando-se a extremos, jamais imaginados,
ações, tanto no plano das ideias quanto no direitos fundamentais da pessoa humana, so- de violência contra a vida e a dignidade da
âmbito da ação material. Desse modo surgi- bretudo os direitos à liberdade e à igualdade, pessoa humana.
ram teorias e movimentos revolucionários, mas dando como fundamento desses direitos
que foram contribuindo para que um número a própria natureza humana, descoberta e diri- 3. A DeclArAção UniversAl
cada vez maior de seres humanos tomasse gida pela razão. Na sequência dessas ideias, Dos Direitos hUmAnos: AvAnços
consciência de sua dignidade essencial e dos a burguesia, que tinha força econômica, mas e resistênciAs
direitos a ela inerentes. estava à margem do poder político, associou- Terminada a Segunda Guerra Mundial, es-
No final da Idade Média, no século XIII, se à plebe, pois ambas estavam igualmente tando ainda abertas as feridas da grande tragédia
aparece a grande figura de São Tomás de interessadas na destruição dos antigos privi- causada pelo egoísmo, pelo excesso de ambi-
10 Aquino que, tomando a vontade de Deus légios de que gozavam a nobreza e o clero a ções materiais, pela arrogância dos poderosos e
como fundamento dos direitos humanos, ela associado e seu valioso aliado político, pela desordem social que de tudo isso resultou,
Revista Direitos Humanos
condena as violências e discriminações, di- também beneficiário das injustiças. iniciou-se um trabalho visando à criação de um
zendo que o ser humano tem direitos naturais O ponto culminante dessas lutas foi a Re- novo tipo de sociedade, informada por valores
que devem ser sempre respeitados, chegando volução Francesa. No ano de 1789, colocado éticos e tendo a proteção e promoção da pes-
a afirmar o direito de rebelião dos que forem o poder nas mãos da burguesia, foi publicada soa humana como seus principais objetivos.
11. Foi instituída, então, a Organização das Nações trados acarreta sanções de várias espécies, superioridade política e social, sem qualquer
Unidas (ONU), com o objetivo de trabalhar per- como o fechamento do acesso a fontes in- consideração de ordem ética, os que preten-
manentemente pela paz. Demonstrando estar ternacionais de financiamento e aos serviços dem que seus interesses tenham prioridade
conscientes de que esse objetivo só poderá ser de organismos internacionais, além de outras sobre a dignidade da pessoa humana, esses
atingido mediante a eliminação das injustiças e consequências de ordem moral e material. resistem à implantação das normas inspira-
a promoção dos direitos fundamentais da pes- A partir da proclamação da igualdade de das nos princípios da Declaração Universal.
soa humana, os integrantes da Assembléia Ge- todos os seres humanos, em direitos e digni- Mas a realidade mostra um avanço conside-
ral da ONU aprovaram, em 1948, a Declaração dade, como está expresso no artigo primeiro rável na conscientização das pessoas e dos
Universal dos Direitos Humanos. da Declaração Universal dos Direitos Huma- povos, havendo razões objetivas para se acre-
A Declaração é um marco histórico, não nos, vários pactos e tratados dispuseram so- ditar que a história da humanidade está cami-
só pela amplitude das adesões obtidas, mas, bre situações específicas em que a igualdade nhando no sentido da criação de uma nova
sobretudo, pelos princípios que proclamou, vinha sendo negada, fixando regras e estabe- sociedade, na qual cada pessoa, cada grupo
recuperando a noção de direitos humanos e lecendo responsabilidades. Essa diretriz já social, cada povo verá seus direitos humanos
fundando uma nova concepção de convivên- penetrou nas Constituições, o que significa fundamentais reconhecidos e respeitados. O
cia humana, vinculada pela solidariedade. É um reforço, de ordem prática, da eficácia das que reforça essa crença é a constatação de
importante assinalar também que, a partir da normas, bem como facilidade maior para seu que vem aumentando incessantemente o
declaração e com base nos princípios que conhecimento e sua aplicação. número dos que já tomaram consciência de
ela contém, já foram assinados muitos pac- O que se pode concluir disso tudo é que que, para superar as resistências, cada um
tos, tratados e convenções, tratando de pro- a Declaração Universal dos Direitos Humanos de nós deverá ser um defensor ativo de seus
blemas e situações particulares relacionados marca o início de um novo período na história próprios direitos humanos. E por imperativo
com os direitos humanos. Esses documentos da humanidade. Os que procuram a preser- ético, mas também para defesa de seus pró-
implicam obrigações jurídicas e o descum- vação ou a conquista de privilégios, os que prios direitos, todos deverão ser defensores
primento dos compromissos neles regis- buscam vantagens materiais e posições de dos direitos humanos de todos.
11
Revista Direitos Humanos
12. artigo Concretizando nossos compromissos
mARy RoBinson é presidente da
“Realizing Rights: The Ethical Globalization
Initiative” [Iniciativa para Globalização Ética]
e membro da “Elders”. A Sra. Robinson
foi Comissária das Nações Unidas para os
Direitos Humanos entre 1997 e 2002, e
Presidente da Irlanda (1990-1997).
Concretizando
nossos compromissos
mARy RoBinson
e
Este ensaio foi baseado m 2008 celebramos o 60º aniversário evitar maior deterioração e impedir o avanço
da Declaração Universal dos Direitos dessa tendência se recuperarmos e fortalecer-
nos comentários feitos Humanos, oportunidade para que rea- mos a mensagem dos direitos humanos. Não
pela sra. Robinson na firmemos a importância vital dos padrões in- consigo imaginar forma melhor de fazer isso
ternacionais de direitos humanos para a cons- do que reafirmando a visão de direitos e res-
“Harvard Business School” trução de um futuro mais justo e sustentável. ponsabilidades da Declaração Universal, ins-
[Escola de Negócios da Entretanto, as tendências vislumbradas atual- trumento que representa um “padrão comum”
Universidade de Harvard], mente não são positivas no que concerne à re- para todos os povos e nações.
12 alização efetiva da promessa representada pela
em Boston, Massachusetts, declaração. Em parte por causa das respostas reAfirmAnDo A mensAgem
Revista Direitos Humanos
em 28 de abril de 2008. nacionais e globais aos ataques terroristas de DA DeclArAção UniversAl
11 de setembro de 2001, nesta década os di- Dos Direitos hUmAnos
reitos humanos foram deixados de lado e, em Relembremos por um momento como era
alguns casos, ignorados. Todavia, podemos o mundo em 1948, ano em que surgiu. As
13. nações emergiam de uma devastadora guerra
mundial e do Holocausto. Pela primeira vez,
“a Declaração Universal tem
armas nucleares haviam sido empregadas constituído fonte de inspiração para
contra civis. A Guerra Fria começara. As pes-
soas buscavam laços comuns que unissem toda legislação internacional do pós-
as nações e aumentassem a segurança hu-
mana para todos.
guerra na área de direitos humanos”
Neste contexto, surgiu um grupo de homens
e mulheres com diferentes histórias, culturas e É claro, contudo, que esta avaliação posi- no mundo todo. Padrões trabalhistas básicos
crenças, liderado por uma mulher notável: Elea- tiva precisa ser contrabalançada. Cito, nesse são ignorados. A pobreza prende milhões a
nor Roosevelt. O mandato do grupo, como parte sentido, afirmação feita em publicação re- vidas de desespero.
da recém-criada Comissão de Direitos Huma- cente pelo Conselho Internacional de Política
nos da ONU, consistia em elaborar uma articu- de Direitos Humanos, uma das organizações DA DeclArAção à Ação: Realizing
lação internacional dos direitos e liberdades de parceiras do trabalho que agora está sob mi- Rights no sécUlo XXi
toda a humanidade. nha responsabilidade, na Realizing Rights: Então, o que devemos aprender para os
Resultado desses esforços, a Declaração futuros esforços não só para proteger os di-
Universal dos Direitos Humanos ofereceu- “À medida que a reputação e a influência reitos humanos, mas também para fazer um
nos uma visão de humanidade comum e de dos direitos humanos aumentam, eles trabalho pró-ativo na sua concretização?
responsabilidades mútuas compartilhadas, passam a ser ativamente mais contes-
aplicáveis independentemente de lugar ge- tados, e por atores ainda mais podero- primeira lição – uma verdade provavel-
ográfico, de cor, de religião, de sexo ou de sos... Antes eram tolerados por serem mente óbvia, mas normalmente não declara-
ocupação. Passados sessenta anos, a de- considerados marginais… As frequentes da, é o fato de que, como em grandes áreas
claração – e seu cuidadoso equilíbrio en- referências feitas aos direitos humanos no do mundo muitas pessoas continuam pobres
tre liberdades individuais, proteção social, contexto das relações Norte-Sul e, mais e seus governos são carentes de recursos, as
oportunidade econômica e deveres com a recentemente, a força das críticas legais populações precisam buscar apoio e assis-
comunidade – constituiu-se em instrumento aos direitos humanos na condução da tência em a suas próprias comunidades lo-
de direitos humanos reafirmado por todos os “guerra ao terrorismo” fizeram com que cais. Essencialmente, não há condições para
governos, e, mais recentemente, pela Cúpula muitos governos quisessem restringir ou que tais grupos reivindiquem seus direitos na
Mundial da ONU, em 2005. reverter a aplicação dos direitos humanos. forma prevista nos instrumentos de direitos
Um dos temas mais subestimados da As críticas aos direitos humanos vêm se humanos. Pensemos sobre isso no contexto
história dos direitos humanos nas últimas tornando mais disseminadas e explícitas, do mundo do trabalho: a grande maioria dos
seis décadas consiste na identificação do principalmente nos países mais ricos… A trabalhadores do mundo – inclusive os mais
quantum de influência moral, política e le- oposição e a influência cresceram juntas, pobres, os que mais necessitam de prote-
gal exercida por aquele texto no mundo. A levando a um grau de desorientação.” 1 ção–, está no setor informal. Esse fato cria
Declaração Universal tem constituído fonte um sério desafio prático para os governos.
de inspiração para toda a legislação inter- Bem sabemos que, a despeito do desen- Para criar condições de proteção dos
nacional do pós-guerra na área de direitos volvimento da legislação internacional de di- direitos humanos das comunidades muito
humanos. Seus dispositivos têm servido de reitos humanos nos últimos sessentas anos, pobres ou marginalizadas, os governos preci-
modelo para constituições e leis, regulamen- massivas violações a esses direitos conti- sam encontrar novos caminhos para alcançá- 13
tos e políticas internos de defesa dos direitos nuam a ser perpetradas nos dias de hoje. A las e atendê-las. Além disso, as organizações
Revista Direitos Humanos
humanos. Acima de tudo, a declaração tem elaboração de legislação formal não resultou de direitos humanos precisam encontrar no-
sido um símbolo de esperança para milhões em proteção universal aos direitos humanos. vas formas de conquistar a confiança dessas
de pessoas no decorrer de longos períodos O genocídio voltou a acontecer. As mulheres comunidades. A meu ver, a única maneira de
de opressão. e as minorias sofrem ampla discriminação fazê-lo é por meio da celebração de parcerias
14. artigo Concretizando nossos compromissos
dos por um espaço de atuação da sociedade
civil e dos defensores dos direitos humanos,
tanto quanto pela garantia de que entre tais
sistemas formais e institucionalizados de de-
fesa e promoção dos direitos humanos e tais
atores da sociedade configure-se verdadeira
e efetiva dinâmica de relacionamento.
Os direitos humanos não podem ser
concretizados na ausência de instituições
efetivas e transparentes. Se os tribunais são
corruptos, sobrecarregados e ineficientes, os
direitos civis básicos reputam-se violados.
Se os ministérios sociais não têm recursos
e autonomia suficientes, ou seu quadro fun-
cional não é qualificado, os direitos básicos
de assistência à saúde, educação e moradia
adequadas não podem ser devidamente exer-
cidos. A construção e a reforma dos aparatos
institucionais do Estado não tarefas fáceis ou
particularmente notáveis, embora essenciais.
O tema do incentivo à capacitação de ins-
tituições me leva a refletir sobre um terceiro
desafio: definir as obrigações internacionais
com organizações que estejam presentes há Resguardar os direitos daqueles que vivem na mais concretamente. Nas últimas décadas
tempos nessas comunidades, tais como enti- pobreza é um desafio que todos devemos en- vem sendo amplamente reconhecida a ne-
dades religiosas, grupos comunitários, ONGs frentar, se quisermos criar sociedades mais cessidade de criação de uma espécie de
e outras. inclusivas, prósperas e justas. autoridade supranacional legítima, uma vez
A batalha pelos direitos humanos é ine- Assim, chegamos a uma segunda lição que a ação tomada em nível exclusivamen-
vitavelmente uma batalha por poder, e esta e a um desafio – fazer mais para apoiar os te nacional não parece apta a resolver vários
batalha está geralmente ligada a batalhas países em desenvolvimento na construção de complexos problemas mundiais. Conhece-
correlatas por recursos. Assim, a promoção seus próprios sistemas nacionais de proteção mos muitos desses problemas, como a mu-
sustentável de todos os direitos humanos de- aos direitos humanos. Por sistemas nacionais dança climática, o comércio desigual, a dis-
pende de políticas e programas que abordem de proteção, refiro-me aos arranjos institu- seminação de pandemias e novas doenças,
as desigualdades econômicas e sociais. cionais que, sob a égide regulamentadora do o comércio ilegal de armas e de pessoas, a
Descobrir maneiras de resguardar os di- ordenamento jurídico nacional e inspiração regulamentação e o monitoramento da tecno-
reitos garantidos por lei é outro aspecto vital nos compromissos internacionais assumidos logia nuclear, entre outros.
para o empoderamento dos marginalizados. pelo Estado, têm como objetivo garantir o Em todos esses casos, a coordenação
No ano passado, 2007, trabalhei para a Co- exercício e a proteção dos direitos humanos internacional e a ação coletiva se fazem ne-
14 missão de Empoderamento Legal dos Pobres, dos cidadãos. Incluem-se aí os tribunais, o cessárias se quisermos alcançar mudanças
presidida por Hernando de Soto e Madeleine Poder Legislativo, as instituições ou comis- positivas. A realidade é que hoje os Estados
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Albright. A comissão enfatizou a importância sões nacionais de direitos humanos. Incluem- são incapazes de chegar a uma cooperação
do acesso à Justiça e às demais garantias se, ainda, os sistemas de saúde e educação, efetiva, à exceção de casos envolvendo evi-
do Estado de Direito como condições para o assim como outros serviços públicos. Esses dentes interesses nacionais de curto prazo.
concreto exercício de todos os outros direitos. sistemas nacionais devem ser complementa- Tal fragilidade é também observável na seara
15. da legislação de direitos humanos, que ainda bais e a capacidade de atingir resultados uma sociedade estável e regrada é essen-
não alcançou patamar de desenvolvimento provavelmente aumentará, trazendo efeitos cial para o bom andamento do empreen-
suficiente para lidar com as responsabilida- cada vez mais nocivos para as pessoas e dimento. As empresas precisam assegurar-
des transnacionais dos Estados. comunidades, assim como para a credibi- se que seus contratos serão devidamente
Vejamos os urgentes dilemas de direi- lidade política dos governos. observados, com o respaldo dos juízes e
tos humanos que nos são colocados pela A atual ausência de governos nacionais tribunais de justiça, e que suas proprieda-
mudança climática. Poucos negariam que o legítimos em muito locais, agravada pela des e investimentos serão protegidos.
fenômeno tende a enfraquecer a capacidade governança internacional ineficiente, tem Quanto mais nos envolvemos nessas
de exercício de uma ampla gama de direitos direcionado o foco, cada vez mais, sobre as questões, mais percebemos que muito res-
humanos protegidos internacionalmente – o responsabilidades dos atores não estatais em ta ainda a fazer. Iniciativas voluntárias de
direito à saúde e mesmo à vida, o direito à matéria de direitos humanos. Dados seu po- responsabilidade corporativa, por exemplo,
alimentação, à água, à habitação e à proprie- der e influência no mundo de hoje, o setor como o Pacto Global das Nações Unidas, se
dade; os direitos dos povos indígenas e tra- corporativo ocupou o centro deste debate. expandiram muito nos últimos anos, mas ain-
dicionais, bem como os direitos associados Definir de maneira mais precisa a natureza e da não conseguiram a adesão de empresas
à sobrevivência e à cultura, à migração e ao estatais de países com economia de mercado
reassentamento e o direito de segurança pes- emergentes, os quais vêm se tornando atores
soal em caso de conflito. “os direitos cada vez mais importantes no cenário global.
Os impactos mais drásticos da mudança Ao mesmo tempo, esforços empreendidos
climática provavelmente ocorrerão – e já es- humanos não por vários atores internacionais, coletivamen-
tão sendo vivenciados – nos países mais po- te, no intuito de construir responsabilidades
bres, nos quais os mecanismos de proteção a podem ser corporativas claras em questões temáticas
direitos costumam ser frágeis. As populações tais como violações aos direitos trabalhis-
cujos direitos são pouco protegidos têm me-
concretizados tas, ameaças à segurança pessoal e liber-
nos condições de conhecer e de preparar-se
para os efeitos da mudança climática, bem
na ausência dade de expressão, entre outros, geralmen-
te não se desenvolvem a ponto de firmar
como para demandar de maneira eficiente
ações do governo nacional ou da comunida-
de instituições mecanismos reconhecidamente legítimos
de comunicação e prestação de contas ao
de internacional. Somada a isso, a responsa- efetivas e público. Esses são enormes desafios que
bilidade pelos impactos nos países mais vul- ainda precisam ser enfrentados.
neráveis costuma não recair sobre o governo transparentes” Também é importante mencionar que o
mais próximo, mas sobre atores difusos, esforço necessário para integrar os valores
tanto públicos quanto privados, muitos dos de direitos humanos à cultura corporativa
quais estão distantes dos limites estatais. A o escopo das responsabilidades corporativas demanda recursos significativos para pro-
legislação de direitos humanos nem sempre é um quarto desafio para o futuro. gramas de treinamento e melhoria contí-
consegue ultrapassar as fronteiras para impor Todos sabemos que há diversos fatores nua. Passar aos funcionários uma mensa-
obrigações em questões como essas. subjacentes à grande ênfase que o setor gem de que a empresa acredita na ampla
Apesar do interesse crescente de de- empresarial vem emprestando aos direitos agenda de direitos humanos, que deve ser
fensores de direitos humanos e organis- humanos: fortes convicções éticas de alguns uma peça essencial nas decisões comer-
mos legais internacionais pelas chamadas executivos líderes, cálculo de risco para a ciais em todos os níveis, é muito mais fácil 15
obrigações “extraterritoriais”, novas regras reputação, o impacto da opinião pública, o na teoria do que na prática.
Revista Direitos Humanos
e práticas comuns nessa nova área devem comportamento dos pares e concorrentes, a John Ruggie, professor da Harvard’s Ken-
demorar a constituir-se. No curto prazo, a lealdade e o desempenho dos funcionários nedy School of Government [Escola Kennedy
“lacuna de oferta” entre a necessidade de e as novas políticas internacionais. Os lí- de Governo da Universidade de Harvard], no
ação internacional efetiva em questões glo- deres de empresas reconhecem, ainda, que exercício de sua função como Representante
16. artigo Concretizando nossos compromissos
Especial do Secretário-Geral das Nações Uni- cadas ao emprego, à atividade econômica e to sustentável no futuro. Algumas grandes
das em direitos comerciais e humanos, tem à igualdade, além de maior cooperação com empresas, por exemplo, vêm se preparando
contribuído de forma inestimável nos últimos organizações especializadas nessas áreas, para analisar toda a sua cadeia de valores em
três anos ao enfatizar que todas a empresas como sindicatos e empresas. países em desenvolvimento, para descobrir
têm responsabilidade de respeitar os direitos Como podemos aumentar o poder dos como podem mudar seus processos locais
humanos. Em seu relatório mais recente, o mercados para os pobres? Se o principal de compras ou distribuição de modo a criar
professor Ruggie apresentou um marco polí- patrimônio desse segmento é o trabalho, mais empregos locais sustentáveis. Espero
tico que se baseia em três princípios: Prote- como podemos apoiá-los por meio de uma que possamos desenvolver mais essas me-
ger, Respeitar e Remediar. O marco envolve a legislação sobre trabalho decente –, ou seja, todologias no futuro.
obrigação do Estado de proteger contra os abu- um aparato legal que inclua não somente
sos aos direitos humanos cometidos por atores prevenção ao trabalho infantil e escravo, mas UmA oportUniDADe De reAfirmAr o
corporativos, a responsabilidade corporativa de também a criação de “condições justas e Direito comUm De nAscimento
respeitar todos os direitos humanos, e a neces- favoráveis de trabalho”, assim como “remu- O 60º aniversário da Declaração Univer-
sidade de emprego de medidas corretivas que neração justa e favorável”, capaz de prover a sal neste ano é uma oportunidade para que as
sejam efetivas. O professor Ruggie sugere que existência humana digna, como determina a organizações, governos, universidades, gru-
a responsabilidade corporativa deve respeitar Declaração Universal dos Direitos Humanos? pos religiosos, empresas e outras instituições
todos os direitos humanos, e que deve ser efeti- Como podemos reafirmar a importância da no mundo todo reafirmem a importância dos
vada pelas empresas por meio de um conjunto liberdade de associação e crescimento nos direitos humanos como garantias inerentes a
definido de ações, tais como: EUA e na Europa, se essa importância é ata- cada ser humano, e para que colaborem no
• Adoção de uma política de direitos hu- cada hoje em dia? estabelecimento de uma agenda positiva para
manos. Nós, da organização Realizing Rights, esses direitos no século XXI.
• Adoção de medidas pró-ativas para apoiamos os esforços da Organização Interna- Para aproveitar ao máximo esta oportu-
entender como as atividades atuais e cional do Trabalho e de um número crescen- nidade, a Elders – grupo de líderes forma-
propostas podem afetar os direitos hu- te de atores da sociedade civil que se unem do no ano passado por Nelson Mandela, do
manos. em torno do conceito de “trabalho decente”. qual tenho o orgulho de participar – lançou
• Realização de atualizações periódicas Acreditamos que a ampla comunidade de ati- a campanha Todo Ser Humano tem Direitos.
sobre o impacto e desempenho em direi- vistas em direitos humanos tem um impor- A campanha nos convida a um compromis-
tos humanos. tante papel a desempenhar, refletindo com so de viver pelos princípios da Declaração
• Oferecimento ao público de mecanis- os líderes do setor privado sobre os desafios Universal. Eu os convido a conhecer melhor
mos eficientes de denúncia para lidar de gerar oportunidades de emprego decente, a campanha e a se envolver pessoalmente,
com os supostos casos de violação aos capazes de contribuir para o desenvolvimen- acessando o site www.everyhumanhasrights.
padrões de direitos humanos. org. Trabalhamos com vários parceiros com
Por fim, vou me referir brevemente a um o intuito de ajudar a reafirmar e recuperar a
quinto desafio. Esse diz respeito ao papel da “algumas grandes importância dos compromissos e obrigações
geração de emprego e riqueza para a efetiva- baseados na Declaração Universal.
ção de uma série de direitos humanos. Até empresas vêm se Todos os seres humanos nascem livres e
agora, especialistas em direitos humanos
pouco disseram sobre essa questão. Valioso
preparando para iguais em dignidade e direitos. É isso que diz
o Artigo 1º da Declaração Universal. A frase
16 trabalho aplicando a perspectiva de direitos analisar toda sua é tão significativa e importante hoje quanto
humanos à análise orçamentária e à aloca- foi em 1948. Assumamos os direitos de que
cadeia de valores
Revista Direitos Humanos
ção de assistência, por exemplo, vem sendo somos titulares desde nosso nascimento e o
construído; nos próximos anos, entretanto, em países em usemos como pretendiam os elaboradores da
será necessário o desenvolvimento de novas declaração Universal: para garantir os direitos
formas de análise dos direitos humanos apli- desenvolvimento” humanos a todas as pessoas.
17. Segurança pública
e direitos humanos
RicARDo BRisollA BAlEstRERi é secretário nacional de Segurança Pública, membro
“Creio firmemente que
do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (SEDH), do Comitê Nacional para
Combate à Prática da Tortura (SEDH) e da Comissão Estruturadora da Universidade Federal
enquanto os homens não
Latino-Americana (Unila – MEC). As opiniões pessoais do autor, reproduzidas no presente
texto, não representam posições do Governo Federal ou de qualquer das instituições de que o conseguirem encontrar
ele faça parte.
uma forma de desistir da
violência para resolver
seus conflitos, e não
encontrarem uma forma
de conviver sem recorrer à
violência, quer se trate da
violência das instituições,
quer da violência daqueles
que tentam destruir essas
h
á 60 anos, por decisão da Organiza- pródigo em termos de direitos civis e políticos
ção das Nações Unidas, o mundo deu – um viés avaliativo obviamente herdado do
mesmas instituições, o
um salto gigantesco em sua história marxismo mecanicista vulgar, que considera
moral, aprovando a Declaração Universal dos os elementos “estruturais” como determi-
curso da história continuará
Direitos Humanos. nantes dos “superestruturais”. Por essa visão,
Pela primeira vez, um roteiro formal, su- tudo o que não reordene o modo de produção
a ser o que sempre foi,
ficientemente consensual entre as nações, e não gere, imediatamente, melhor distribui-
ou seja, uma monótona e
reconheceu direitos individuais e também ção de riquezas, merece desconfiança e des-
17
coletivos, superando teoricamente milenares dém. Os resultados de tal equívoco conceitual
quase obsessiva tragédia de
privilégios e preconceitos classistas, étnicos, e prático, os conhecemos através da história
Revista Direitos Humanos
sexistas, etários, culturais. do “socialismo real”. Há quem insista, contu- lágrimas e sangue.”
Infelizmente, há quem desdenhe dessa do, nessas fórmulas jacobinas, verticalistas,
vitória, por julgar tal roteiro como insuficiente autoritárias, sempre frutos da “magia” de um (Norberto Bobbio)
no campo dos direitos sociais e econômicos e poder emanado, invariavelmente, de cima.
18. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos
Quem o faz, no mais das vezes, pensa estar “de baixo para cima”. Assim, princípios que
criticando, “pela esquerda”, as “ingenuidades garantam, por exemplo, as liberdades de or-
pequeno-burguesas” da militância dos direitos ganização e expressão, incidem, sempre, ne-
humanos. Sem querer, repete a lógica lampe- cessária e obrigatoriamente, sobre o aprofun-
duzana que, veladamente, nas novas formas, damento da democracia também no campo
preserva os velhos conteúdos, “mudando tudo social e econômico. Bem-estar se conquista.
para que nada mude”. Na verdade, sempre que Não se ganha de brinde, por conta de benfei-
não se critica a dinâmica do poder, particu- torias das classes dominantes.
larmente sua verticalidade tradicional, se está A Declaração Universal de Direitos Hu-
replicando uma forma conservadora de pensar manos fez bem, portanto, em destacar os
e ordenar o mundo. Uma lógica “de direita”, direitos civis e políticos. É por eles que se
portanto (aliás, antes que – por modismos de pode superar a heteronomia, construindo
pretensa pós-modernidade – me censurem e conquistando o caminho para um mundo
pelos termos aqui utilizados, preciso declarar mais justo. Obviamente, portanto, continua
total adesão a Norberto Bobbio quanto à con- sendo uma inócua candura clamar por algum
tinuidade da adequação da díade “esquerda” e tipo de declaração universal de melhor distri-
“direita” para uma compreensão analítica, um buição das riquezas.
posicionamento axiológico e uma postura de Como percebe o leitor, iniciei este artigo
intervenção no mundo contemporâneo: pela crítica ao conservadorismo de esquerda,
no que atine à avaliação da luta pelos direi-
“Como já afirmei várias vezes a propósito tos humanos. O objetivo é tentar identificar
daquilo que chamei de ‘as grandes dico- as causas do isolamento e fragilização de
tomias’ em que qualquer campo do saber tal luta no contexto da sociedade brasileira
está dividido, também da dupla de termos contemporânea para, na sequência, arrolar
antitéticos direita e esquerda pode-se fa- elementos de auto isolamento e auto fragi-
zer um uso descritivo, um uso axiológico, lização, particularmente no que se refere à
um uso histórico: descritivo para dar uma relação da militância tradicional de DH com o
representação sintética das duas partes poderoso drama que se desenvolve no cam-
em conflito; axiológico, para exprimir um po da segurança pública. É claro que, antes
juízo de valor positivo ou negativo sobre disso, precisamos passar também pela crítica
uma ou outra das partes; histórico, para ao pensamento predominante (quase “pensa-
assinalar a passagem de uma parte a ou- mento único”, em que pese uma qualificada
tra da vida política de uma nação. O uso presença pessoal, mas inorgânica e ideologi-
histórico, por sua vez, pode ser descritivo camente insípida – ímpar em termos histó-
ou valorativo... A árvore das ideologias ricos – de políticos de esquerda em postos
está sempre verde.... Além do mais, não executivos e legislativos) no Brasil presente:
há nada mais ideológico do que a afirma- o pensamento da direita.
ção de que as ideologias estão em crise.” Emmanuel Rodríguez, autor de El gobier-
18 (Direita e Esquerda. Norberto Bobbio). no imposible, trabajo y fronteras en las metró-
polis de la abundancia, durante o Seminário
Revista Direitos Humanos
Evidentemente, na história humana, as Nueva Derecha: Ideas y Medios para la Con-
verdadeiras transformações (diferentemente trarrevolución, ocorrido em 2006 na Espanha,
das meras “mudanças”) se dão, invariavel- destacou a predominância mundial, nos dias
mente, em verticalidade anti-hegemônica, que seguem, de uma “nova direita”, forte-
19. “Bem-estar se conquista. não
se ganha de brinde, por conta
de benfeitorias das classes
dominantes”
mente fundada no populismo e na demagogia Nueva Derecha: Ideas e Medios para la Con-
e emanada principalmente dos Estados Uni- trarrevolución-Espanha, 2006).
dos, tendo se espraiado, inclusive, pela Eu- Penso que tal característica está forte-
ropa. O risco representado por tal movimento mente presente também no Brasil, onde o
é, no mais das vezes, subestimado. Contudo, pensamento da direita (se é que se pode de-
há nele potência germinal para desestabilizar nominar assim tal presente conjunto de clichês)
os consensos de governabilidade entre forças é quase um mero sinônimo de senso comum.
progressistas e conservadoras mais tradicio- Não se suponha, contudo, que por suas carên-
nais, presentes nas democracias ocidentais. cias conceituais e filosóficas, por seu empiris-
Em meio a um momento em que o sis- mo, por sua arrogância moldada na ignorância,
tema democrático representativo vive uma seja um pensamento de pouca expressão e de
forte crise de legitimidade, o discurso dessa pouca extensão. Ao contrário, vitima-nos, como
nova direita logra estabelecer uma ponte de dissemos acima, praticamente como pensa-
comunicação direta com setores muito am- mento totalitário e totalizante.
plos da sociedade, seduzindo e congregando Por ser senso comum, igualmente, não
pessoas de segmentos bastante diversos (in- se suponha – em equívoco de ingenuidade
cluindo muitas que, outrora, se encontravam espontaneísta – que provenha da “malta”. Em
à esquerda). É uma retórica marcadamente sociedades do tipo da nossa, tecidas de com-
agressiva, não comedida, rupturista, que tra- plexos mosaicos desordenados, urbanizadas,
balha a incorporação de categorias “morais” industrializadas, de serviços, consumistas
como fatores de alavancagem emocional do mas excludentes, desenraizadas, “americani-
debate político, aproveitando-se, paradoxal- zadas” no arremedo, midiatizadas e idiotiza-
mente, da crise crônica de anomia inerente ao das, onde os “sistemas de ensino”, a par da
estado neoliberal que sustenta. Em tal dire- fragilidade conteudística, caracterizam-se por
ção, propõe “medidas excepcionais”, trocan- um enorme vazio no campo do que Piaget de-
do a liberdade pela segurança, por exemplo, finiu como “juízo moral”, o senso comum se
com o fito de combater fantasmas externos (o molda no tecnicismo universitário sem trans-
terrorismo, no mundo rico) ou internos, em versalidade humanística, nas banalidades,
todas as partes (o narcotráfico, a delinquên- futilidades, silêncios e histerias dos meios
cia, a imigração, a pornografia, etc.). de comunicação, na “cultura” de mercado
“Lo más paradójico”, sublinhou Emma- e de manada. O senso comum, no Brasil, é
nuel Rodríguez, “es que esta nueva derecha, de elite. Obviamente, replica-se nas classes 19
en un tan perverso como eficaz circulo vicioso populares. Daí, sua aplastadora força.
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de autolegitimación, ha logrado aprovecharse Como quase todo pensamento ordinário,
de los miedos y miserias morales que provo- o nosso também aninha vasta gama de pre-
can las políticas neoliberales para justificar conceitos, de mitos manipulatórios, de ódios e
sus propias medidas represivas” (Seminário rancores, de “certezas” e “explicações totais”.
20. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos
O senso comum, como expressão emocional za tantos “autos de resistência” dos pobres, televisión, publicaciones periodísticas,
das massas, no mais das vezes, se nutre de nem tanta pena de morte de fato, nem tanto tanto digitales como en papel, weblogs...)
sombras. Por isso, sobrevaloriza o poder e a “ladrão de galinha” se estragando em ex- como instrumentos propagandísticos”.
força bruta, encara como fragilidade a com- temporâneas e criminógenas masmorras Además lo ha hecho re-apropiándose
paixão, enerva-se com a inteligência, ojeriza a medievais. É claro que estranhamos quando de herramientas contrainformativas que
ousadia, a criatividade e a diferença. essas coisas atingem gente “nossa” – das empezó a desarrollar la izquierda radical
Por isso rejeita os direitos humanos e a classes média e alta – pelo que levantamos en las décadas de los sesenta y los se-
sua militância. grandes ondas hipócritas de indignação tenta. Así, frente al rigorismo formal de
É um notável paradoxo o fato de nosso passageira! A mídia nos acompanha: fala los medios “serios” convencionales, des-
país, cada vez mais progressista e moder- quando consensuamos e cala quando con- pliegan una retórica hiperbólica y agresiva
nizado, cada vez mais “encaixado” na eco- vém. Nos retroalimentamos. A maioria dos que abusa del sarcasmo y de la soflama
nomia global, expressar-se de forma tão nossos especialistas midiáticos, aliás, só y basa sus denuncias en hipótesis y es-
intensamente anacrônica e pobre no campo expressa o conceito de organicidade quando peculaciones fuertemente tendenciosas y
das humanidades, das “ideias de fundo”, dos se trata da vinculação com a própria mídia. escasamente contrastadas (pues su obje-
projetos de sociedade. Atacar nas sístoles indignadas e sumir nas tivo no es la búsqueda de la verdad, sino
Por aqui, a sociedade reage de forma diastólicas fases alienadas. el desgaste del adversario)”. Seminário
blasé em relação a crimes ocorridos no Resultados? Nada de novo, nada de pro- Nueva Derecha: Ideas e Medios para la
período ditatorial. Não nos horrorizamos, positivo. Contrarrevolución–Espanha, 2006.
20 como em outros lugares. Por aqui, repercute
pouco a presença de gente agressivamente “La nueva derecha”, aseguró Emmanuel Em tal quadro, como surpreender-se que
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fascista, exibindo sua pobreza de espírito Rodríguez, “ha sido capaz de adecuarse se tratem os direitos humanos como “defesa
nas ruas, vestindo camisetas com fotos de perfectamente al nuevo orden mediático, de bandidos”? (Em setores mais conservado-
generais ditadores e os dizeres: “Eu era feliz utilizando todo tipo de medios comuni- res das polícias e das forças armadas também
e sabia”. Por aqui, não é causa de estranhe- cativos (emisoras de radio, cadenas de são tratados como “coisa de veados”).
21. “Como chocar-se diante da
violência doméstica, das mulheres
apanhando e sendo traídas, das
crianças e idosos vilipendiados?”
Obviamente, não estamos sozinhos no erroneamente, fundamenta-se em dores e
quadro internacional, como afirmamos acima. restrições reais que precisam ser cuidadas.
Somos, contudo, uma espécie de replicação É aí que entra a galvanizadora questão da
piorada, pela falta de alternativas relevantes à segurança pública.
burrice única. Uma espécie de corpo que se Quero afirmar, com isto, uma genérica
vai desenvolvendo, formando musculatura, falta de compreensão histórica da mili-
mas sofrendo de anencefalia. Coisa de cultu- tância de direitos humanos em relação ao
ra periférico-dependente. tema da segurança como pauta positiva e
Procurei caracterizar, até aqui, a falta de propositiva, da sua importância não ape-
“cobertura” para a nossa causa, à esquerda nas para o Estado, mas para a Nação, de
e à direita. sua relevância para a democracia e para o
desenvolvimento. Tal incompreensão levou
Mais: como chocar-se diante da violência No dizer de Marco Mondaini (Direitos nossa dedicada e abnegada comunidade de
doméstica, das mulheres apanhando e sendo Humanos, Editora Contexto, São Paulo, DH, em poucos anos de democracia, a um
traídas pelos machões, das crianças e idosos 2006), “seja na sua versão neoliberal, dramático isolamento, revelado nas evidên-
vilipendiados? Como pasmar à frente do pre- que procura identificar nos direitos hu- cias empíricas do dia-a-dia, mas também
conceito racial, homofóbico, estético? É bas- manos uma barreira à realização racional em inúmeras pesquisas de opinião sobre
tante óbvio que, nesse contexto, se naturalize da lucratividade pelo livre-mercado; seja diversos temas que nos são atinentes.
a violência para “acabar com a violência”, se através da matriz marxista ortodoxa, que Diante disso, ao invés de revermos
prestigie a “lógica da eliminação” dos crimi- busca observar nos direitos humanos nossas metodologias e particularmente
nosos mas também dos diferentes. Dá tudo nada mais do que um conjunto de forma- nossos processos de comunicação, nos
na mesma e está “tudo dominado”, pela via lidades responsáveis pelo encobrimento empedernimos na certeza do acerto de
direita (que, por sua inconsistência teórica, da estrutura de classes e da luta entre nossas posições e na convicção do atraso
de maneira geral, não se sabe e nem se as- estas no seio da sociedade capitalista, e do reacionarismo da mesma sociedade
sume como tal). sendo, por isso mesmo, nada mais que que defendemos. E, ainda que tenhamos
Lamentavelmente, o mesmo Brasil que direitos das classes dominantes; ou ainda razão, vamos justificando e agravando o
ruma celeremente para o primeiro mundo, na linha extremamente vulgar que define dizer bíblico: “São como pastores sem re-
no campo econômico, dele se encontra pa- os direitos humanos como ‘direitos de banho, que se apascentam a si mesmos”.
teticamente distanciado no campo simbóli- bandidos’, o que se percebe claramente É claro que a comunidade de direitos
co. Em que país civilizado ou em verdadeiro é a incapacidade de compreender a fundo humanos não é um bloco monolítico e
processo civilizatório se poderia encontrar seu caráter universal e democrático.” nem todos os segmentos se enquadram 21
tanta aversão a direitos humanos? Esse é, na categoria acima. Lamentavelmente,
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contudo, o nosso cenário real e – ainda que O quadro poderia não ser tão ruim, contudo, parece-me que a maior parte
doa – creio ser necessário olharmos corajo- contudo, se não tivéssemos ajudado a de nós – do ponto vista da compreensão,
sa e criticamente as nossas piores misérias: agravá-lo com nossa incompreensão de dos conhecimentos, da identificação com
as “espirituais”. que o senso comum, ainda que conclua a causa da segurança pública como tam-
22. artigo Segurança Pública e Direitos Humanos
bém uma causa popular e de direitos hu- de ordem material mas também daqueles disposição para entrar quartéis, delega-
manos – encontra-se paradigmaticamente de ordem subjetiva: balizamentos legais cias, salas de aula de academias, conse-
paralisada nos anos 70, quando vivíamos e éticos, mediação de conflitos, educa- lhos comunitários de segurança, postos
na zona de risco da ditadura, mas igual- ção pública de qualidade, liberdades de de polícia comunitária, não para atacar-
mente na zona de conforto da aprovação expressão, de organização, de ir e vir, de mos os policiais (o que abreviaria muito
popular, heróis e heroínas de um mundo criar e empreender. nossa presença junto a eles), mas para
bipolar. Tal crítica, a faço com respeito e Tal vácuo de presença do estado de- ajudá-los a construir modelos alternativos
compaixão, uma vez que, por anos, estive mocrático de direito gerou ambiência para de policiamento e atendimento das comu-
“preso” na mesma torre. o estabelecimento de “governos” totalitá- nidades, modelos com a cara da demo-
Não foi fácil descer dela e ir para a rios do crime organizado, que se utilizam cracia, sempre teremos algum programa
planície da democracia, enfrentando a vida de tais áreas para estoque de armas e de TV nos chamando para a crítica, mas
como a vida é, com sua complexidade, drogas, venda varejista e recrutamento de não teremos uma polícia de proximidade,
contradições e desafios suprapessoais. mão-de-obra barata, além de outras ati- cuidando com cidadania dos cidadãos.
Não foi fácil, no início, encontrar, nas salas vidades criminosas associadas. Assim,
de aula, a polícia da qual eu tinha tantas grande parte dos pobres deste país se en- ...”Torna-se inquestionável a priorida-
vezes apanhado e muito menos aquela que contra, ainda, sob o tacão de uma ditadura de na garantia de segurança para os
por dois sofridos anos me havia processa- empresarial ilícita, covarde e sanguinária. pobres. Estes são os mais atingidos
em tudo, espremidos que estão entre
“Grande parte dos pobres deste a violência da polícia (são os eternos
suspeitos) e a violência da criminalidade
país se encontra, ainda, sob o comum. São eles as principais vítimas
tacão de uma ditadura empresarial do narcotráfico, das balas perdidas, dos
assaltos e estupros, da violência nas
ilícita, covarde e sanguinária” escolas” (Benevides, Maria Victoria, Di-
reitos Humanos:Desafios para o Século
do. Foi, contudo, um enfrentamento deses- São eles, os que não possuem recursos XXI, in Educação Em Direitos Humanos:
quizofrenizante e necessário como serviço para enclausurarem-se em condomínios Fundamentos Teórico-Metodológicos, vá-
a uma democracia que precisa devolver a privados e seguros, as maiores vítimas da rios, Editora Universitária, João Pessoa,
sua polícia ao povo. Mais do que parte do insegurança pública. São, também eles, 2007).
problema, optei, com vários outros com- as maiores vítimas de padrões de policia-
panheiros e companheiras, por fazer parte mento equivocados, invasivos, reativos, A par de tudo isso, três fatores vêm sen-
das soluções. truculentos, criminalizadores da pobreza. do apontados por expoentes da comunidade
Creio que, a estas alturas, faz-se neces- Os nossos eventuais “escrúpulos” em não acadêmica internacional como gêneses do de-
sário o resgate de uma aparente obviedade nos aproximar da polícia não os ajudam em senvolvimento nacional: a formação de redes
que, contudo, é insuficientemente enfrenta- nada. Ao contrário, mantêm-nas presas de de voluntariado e engajamento cidadão, o livre
da: por quê o tema da segurança pública se um sistema servil, junto aos criminosos e empreendedorismo popular e o acesso demo-
tornou tão crucial para a nação brasileira, de pânico, quando da presença policial. crático à educação de qualidade, construtora
como revelam as pesquisas de opinião? Nossas meras atividades de denúncias, da autonomia intelectual e do juízo moral dos
22 Inicialmente, porque a maioria dessa que sempre serão imprescindíveis para o indivíduos.
nação se encontra, historicamente, na or- aprimoramento democrático, têm se reve- Pesquisas do Departamento de Estudos
Revista Direitos Humanos
fandade em relação aos poderes públicos, lado insuficientes, e mesmo pífias, quando Internacionais de Harvard, conduzidas pelo
vivendo em áreas de carência ou mesmo se trata da mudança de um sistema que, professor Robert Putnam (um dos referen-
de quase total ausência de políticas públi- mais do que “consertado” pontualmente, ciais teóricos do PNUD/ONU), comprovam
cas, alcançadoras não apenas dos direitos precisa ser transformado. Se não tivermos que o desenvolvimento dos países passa,