2. A crise da educação como crise social
importada
A importância da educação escolar é um fenómeno típico do nosso século e a
crise da educação é um tema recorrente desde a II Guerra Mundial. A educação
escolar parece sofrer de uma crise endémica e a formação dos professores tem
sido sempre discutida contra este pano de fundo de crise.
A crise não representa um conflito interno do sistema escolar, mas resulta
sobretudo da importação pela escola dos problemas sociais. Dito de outro modo
— trata‐se de uma crise social importada.
O instrumento de transformação da crise social em crise escolar tem sido o
progressivo aumento da escolaridade obrigatória.
4. A crise da educação como crise social
importada
Mas a escola de massas não serve só de instrumento importador para a
educação escolar dos problemas sociais; ela serve de seu meio difusor e
potenciador privilegiado, dada a concentração de pessoas em formação, em
espaços claramente visíveis.
Assim, os problemas de violência e delinquência transformam‐se em
problemas de segurança na escola, os do consumo de droga no problema da
prevenção escolar da toxicodependência, os conflitos étnicos suscitam a
problemática da educação multicultural, os conflitos linguísticos suscitam a
problemática da educação bilíngue.
5. A crise da educação como crise social
importada
A escola de massas, pelo seu carácter obrigatório, também cria problemas
próprios da imposição a todos os adolescentes de uma vida social específica — tal
concentração facilita o consumo da droga, a transmissão da SIDA, a gravidez
precoce das adolescentes, o consumismo juvenil, etc.
7. A escola para todos como agente das utopias
sociais da modernidade
A escola de massas seria assim, no mundo ocidental, o instrumento decisivo
da realização dos ideais das revoluções constitutivas da Idade Contemporânea —
liberdade, igualdade e solidariedade num quadro não imperial de estados‐nações.
O confronto das expectativas sociais postas na escola de massas com a
realidade da situação mundial presente constitui componente importante da
chamada crise da educação.
8. A escola para todos e a massificação de
alunos e professores
A escolaridade obrigatória criou, como dissemos, uma nova realidade
organizacional — a escola de massas.
A massificação a que nos referimos tem uma dupla dimensão — a
massificação da população escolar (massificação discente) e a massificação da
população dos professores (massificação docente).
A massificação discente é, evidentemente, o cerne da diferença entre a escola
de massas, por um lado, e a escola de elites (liceu) ou de trabalhadores
qualificados (escola técnica), por outro. O que a caracteriza a escola de massas é a
heterogeneidade geográfica (origem rural ou urbana), social e étnica da sua
frequência.
9. A escola para todos e a massificação de
alunos e professores
Esta heterogeneidade arrasta consigo várias consequências.
Em primeiro lugar, arrasta consigo uma heterogeneidade académica,
aumentando a amplitude de capacidades, conhecimentos e aproveitamento
escolar em cada turma.
Em segundo lugar, traz para a escola, através das várias educações informais
familiares, valores e normas muito diferentes, alguns dos quais podem ser
antagónicos às que a escola veicula. É aqui de referir a influência que as
diferentes valorizações pelas famílias da educação escolar dos filhos têm no
sucesso destes.
Em terceiro lugar, tal heterogeneidade faz surgir na escola um conjunto de
crianças e adolescentes que, não valorizando a escola, resistem à sua cultura de
forma mais violenta ou menos violenta.
10. A escola para todos e a massificação de
alunos e professores
A heterogeneidade docente resulta principalmente do alargamento do
recrutamento dos professores e da consequente entrada massiva de docentes
novos, muitos dos quais não qualificados, no sistema escolar.
Criaram‐se categorizações legais sofisticadas para essa estratégia de
recrutamento alargado.
Este alargamento do recrutamento dos professores implicou uma facilitação
do acesso à profissão nas décadas de 1970, e 1980, traduzida na diminuição das
exigências da formação.
Em conclusão, a massificação docente foi uma consequência da massificação
discente). Iremos analisar em pormenor as consequências que aquela
massificação teve na condição docente e na formação dos professores.
11. A massificação dos professores —
consequências
A resposta conjuntural ao aumento vertiginoso da população estudantil foi
um aumento igualmente vertiginoso da população dos professores.
Situando‐nos, em Portugal, podemos referir que entre 1964‐65 e 1984‐85 o
número de lugares docentes mais que triplicou enquanto o número de alunos
não chegou a duplicar.
Esta massificação dos professores teve repercussões enormes nas suas
condições de trabalho, no seu estatuto e representação social, na sua formação,
no seu papel na escola.
12. Consequências da massificação nas
condições de trabalho dos professores
As condições de trabalho nas décadas de 1970, 1980 e 1990 deterioraram‐se
para todos os professores, resultado conjuntural inevitável da explosão escolar.
Em Portugal, a situação agravou‐se pela necessidade de superar rapidamente a
política de contenção escolar do Estado Novo.
Mas foram os novos professores — os "professores massificados" — os mais
afectados por essa deterioração.
O novo professor da década de 1970 e 1980 trabalhou maioritariamente ou
em escolas urbanas superlotadas ou em escolas periféricas com instalações
provisórias ou incompletas.
Quer isto dizer que geralmente não teve acesso a condições físicas razoáveis
de trabalho. Assim este professor novo não ganha o hábito de permanecer na
escola para além das aulas.
13. Consequências da massificação nas
condições de trabalho dos professores
Este novo professor não tem um espaço de pertença na escola; para usar a
expressão de desabafo ouvida numa reunião — "não tenho na escola nada a que
possa chamar meu — uma sala, uma secretária, um canto".
Por outro lado, o professor novo muda de escola frequentemente — ou
compelido pela sua situação de professor provisório ou em busca de escolas
geograficamente mais perto do lugar onde vive.
Todos os anos o Estado tem movimentado milhares de professores de
localidade para localidade, de escola para escola, quais meros peões de ensino.
Esta mobilidade tem como consequência frequente o professor não viver na
localidade onde trabalha.
15. Consequências da massificação na
representação ocupacional dos professores
Ao criar‐se uma massa de agentes de ensino móveis, de emprego precário,
não qualificados profissionalmente, criaram‐se as condições necessárias para o
aparecimento de um forte sindicalismo docente.
Os sindicatos de professores nasceram, em Portugal, depois do advento do
regime democrático, e em plena expansão da escola de massas, fortemente
ligados à defesa dos interesses do quase "proletariado docente".
A representação ocupacional dos professores passou a assumir nessas
décadas predominantemente o carácter laboral, sendo pouco saliente (embora
presente) a representação de carácter profissional.
16. Consequências da massificação no
desempenho docente
A massificação da população discente altera estruturalmente o carácter das
escolas secundárias até então existentes. Contrariamente aos liceus e às escolas
técnicas, as escolas de massas são heterogéneas no seu clima social e académico.
Há crianças e adolescentes com variadas educações informais, diferenciadas
aptidões, motivações e interesses, diferentes necessidades e projectos de vida.
Isto torna muito difícil a continuação do modelo de ensino baseado no aluno
motivado, ajudado em casa, e na turma academicamente homogénea.
Torna‐se, pois, difícil para os professores ensinarem como foram ensinados,
ou extraírem simplesmente da lógica da disciplina que leccionam a organização e
sequência das suas aulas.
19. Indiferenciação e diferenciação na função
docente
Mas têm vindo a surgir factores de diferenciação para além das diferenças
naturais entre os seres humanos. Há, como vimos, professores com formações
profissionais diferentes na escola de massas, há concepções diferentes do
professor que têm implicado diferentes pontos de vista sobre matérias tão
importantes como o acesso, a formação contínua, a progressão na carreira ou a
avaliação dos professores.
20. Indiferenciação e diferenciação na função
docente
Mas têm surgido igualmente diferenças derivadas da diversidade
característica da escola de massas — há assim cargos de directores de turma,
delegados de disciplina, directores de departamento curricular, directores de
instalações, animadores culturais, monitores de formação contínua, orientadores
pedagógicos, supervisores, formadores de formadores, professores peritos em
orientação escolar, professores de apoio, professores de apoio a crianças com
necessidades educativas especiais, etc.
Esta proliferação representa uma diversificação horizontal da função docente
e tem clara relação com a multiplicidade e diversidade de papéis cometidos à
escola de massas.
21. Indiferenciação e diferenciação na função
docente
Mas a complexidade organizacional, que esta diversificação horizontal
provoca, suscita necessidades de coordenação de actividades tão diversas. Por
outro lado, o próprio crescimento do número de alunos e de turmas suscitaria,
por si só, maior necessidade de coordenação pedagógica. Assim, surge um nível
de gestão pedagógica intermédia na escola de massas com funções sobretudo de
coordenação.
O nível de coordenação, para ser eficaz, situa‐se acima do nível de ensino em
contacto. Às atribuições de coordenação correspondem competências de chefia
intermédia. Quer isto dizer que a diversificação horizontal suscita inevitavelmente
uma diversificação vertical na função docente. Tal inevitabilidade é fomentada,
ainda, pelo aparecimento do sistema de muitos professores não qualificados que
precisam de ser acompanhados e supervisionados. Surge, assim, a necessidade de
uma hierarquia funcional.