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CHEQUE. Revogação (contraordem) e Oposição
Osmar Brina Corrêa-Lima, Cadeira n. 26*
A temática versada neste trabalho surgiu em debates após
palestra proferida pelo autor num Encontro de Advogados de
instituições financeiras.
Eis a questão, então formulada: - “pode o banco, dentro do
prazo de apresentação do cheque, recusar-se a pagá-lo, em virtude de
uma contraordem do sacador ou emitente?”
Naquela ocasião, a questão mereceu resposta imediata,
afirmativa, com fundamentação curta, apresentada de maneira intuitiva.
Neste texto, o autor procura explicitá-la.
Todos os dispositivos legais citados neste texto, que não
indicarem expressamente outra pertença, pertencem à Lei nº 7.357 de 2
de setembro de 1985 (Lei do Cheque).
Cheque é ordem de pagamento à vista. Considera-se não escrita
qualquer menção em contrario (art. 32). Emitido o cheque, o
beneficiário ou portador deve apresentá-lo no prazo legal de 30 dias, a
contar do dia da emissão, quando pagável na mesma praça; e de 60
dias, quando emitido em outro lugar do País ou do exterior (art. 33).
Não se confundem os prazos para apresentação do cheque e de
prescrição da ação por falta de pagamento (execução), que é de 6
meses, contados da expiração do prazo de apresentação (art. 59).
Comprovam-se a apresentação e a recusa de pagamento pelo
protesto ou por declaração do sacado, escrita e datada sobre o cheque,
com indicação do dia de apresentação, ou, ainda, por declaração escrita
e datada por câmara de compensação (art. 47, II e § 3°). Comprovado
o não pagamento, o portador deve avisar a seu endossante e ao
emitente, nos 4 dias úteis seguintes ao do protesto ou das declarações
do sacado ou da câmara de compensação, ou, havendo cláusula "sem
despesa", ao (dia) da apresentação. Cada endossante deve, nos 2 dias
úteis seguintes ao do recebimento do aviso, comunicar seu teor ao
endossante precedente, indicando os nomes e endereços dos que deram
os avisos anteriores, e assim por diante, até o emitente, contando-se os
prazos do recebimento do aviso precedente. O aviso a um obrigado
deve estender-se, no mesmo prazo, a seu avalista (art. 49, caput, § 1º e
§ 2°).
A não apresentação do cheque nos prazos previstos (30 e 60
dias) surte os seguintes efeitos: (1°) o beneficiário ou portador perde o
direito de regresso contra endossantes e respectivos avalistas; (2°) o
beneficiário ou portador perde também o direito de execução contra o
emitente ou sacador, se este tinha fundos disponíveis durante o prazo
de apresentação e os deixou de ter, em razão de fato que não lhe seja
imputável (art. 47, § 3°).
Precisamente porque não se confundem os prazos para
apresentação (30 ou 60 dias) e o de prescrição (6 meses), o banco,
“não havendo contra-ordem, e se o sacado possuir fundos disponíveis
do emitente, poderá pagar o cheque até que decorra o prazo de
prescrição, que é de seis meses depois de esgotado o prazo de
apresentação”1
.
O parágrafo precedente introduz o conceito de "contra ordem",
que a lei também chama de “revogação". Ao se referir à "revogação ou
contra- ordem", no parágrafo único do art. 35 e no § 1º do art. 36, a Lei
do Cheque não emprega a conjunção “ou” como alternativa, e sim com
o sentido explicativo consignado pelo “Aurélio”: "de outro modo, por
outra forma, por outra(s) palavra(s)”2
. Com esse mesmo sentido, a
conjunção “ou” aparece empregada nas expressões “beneficiário ou
portador”, “emitente ou sacador” e “banco ou sacado”.
Segundo o art. 35, caput, da Lei do Cheque, “o emitente do
cheque pagável no Brasil pode revogá-lo, mercê de contraordem dada
por aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial, com as razões
motivadoras do ato”. O parágrafo único do art. 35 acrescenta que “a
revogação ou contra ordem só produz efeito depois de expirado o
prazo de apresentação e, não sendo promovida, pode o sacado pagar o
cheque até que decorra o prazo de prescrição”.
Um outro conceito, diferente de revogação ou contraordem, é o
de oposição. Mesmo durante o prazo de apresentação, o emitente e o
portador legitimado podem fazer sustar o pagamento, manifestando ao
sacado, por escrito, oposição fundada em qualquer razão de direito
(art. 36, caput).
1
MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Rio: Forense, 1.990, 3ª ed., vol. II, p. 105.
2
Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio: Nova Fronteira, 1986, verbete “ou”.
Confirmando a diferença entre os dois conceitos, o § 1º do art.
36 dispõe que "a oposição do emitente e a revogação ou contraordem
se excluem reciprocamente".
Em suma a revogação mercê de contraordem só pode ser dada
pelo emitente, com razões motivadoras do ato, e só produz efeito
depois de expirado o prazo de apresentação; a oposição com o objetivo
de sustar o pagamento do cheque, fundada em relevante razão de
direito, pode ser apresentada pelo emitente ou pelo portador
legitimado, mesmo durante o prazo de apresentação, não cabendo,
entretanto, ao sacado julgar da relevância da razão invocada pelo
oponente.
À luz da letra da Lei do Cheque, chega-se à seguinte conclusão:
o emitente ou sacador pode apresentar oposição ao pagamento durante
o prazo de apresentação do cheque (“Art. 36. Mesmo durante o prazo
de apresentação, o emitente e o portador legitimado podem fazer
sustar o pagamento, manifestando ao sacado, por escrito, oposição
fundada em relevante razão de direito. (...).”); e pode revogá-lo
mediante contra ordem que, no entanto, só produzirá efeito depois de
expirado o prazo de apresentação (art. 35, parágrafo único). E as duas
atitudes - revogação e oposição - “se excluem reciprocamente”, ou
seja, a revogação (contraordem) exclui a oposição, e vice-versa.
Em face dessa constatação, pergunta-se: como poderá o emitente
ou sacador opor-se ao pagamento do cheque dentro do prazo de
apresentação se, nesse prazo, uma contraordem sua não produz efeito?
Como distinguir a oposição da contraordem, já que as duas “se
excluem reciprocamente"?
O conceito de oposição, no Direito Cambial, acha-se
ligado, tradicionalmente, a casos de extravio do titulo, de falência ou
incapacidade do portador para recebê-lo. Nos termos do art. 23 do
decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908, "presume-se
validamente desonerado aquele que paga a letra no vencimento, sem
oposição; e “a oposição ao pagamento é somente admissível no caso
de extravio da letra, de falência ou incapacidade do portador para
recebê-lo"3
. Explicando esse dispositivo legal do decreto nº 2.044, de
31 de dezembro de 1908, que “define a letra de câmbio e a nota
promissória e regula as operações cambiais”, José Maria Whitaker
escreve que "no primeiro caso (extravio do titulo), faz-se (a oposição)
pelo processo da anulação; no segundo (falência ou incapacidade do
devedor para recebê-lo), pelo da notificação para não pagar”4
.
Em se tratando de cheque, quer-nos parecer que, em
ambos os casos (extravio do título e falência ou incapacidade do
devedor para recebê-lo), quem pode se opor ao pagamento é o credor
legitimado, e não o emitente ou sacador do cheque. No caso de
extravio, será o legítimo credor; no caso de falência, a massa falida,
representada pelo administrador judicial; e no caso de incapacidade do
portador para recebê-lo, também só poderia ser o seu representante
legal. Contudo, não é esse o comando da atual Lei do Cheque, como se
verá mais adiante.
3
Decreto nº 2.044, de 31/12/1.908: “Art. 23. Presume-se validamente desonerado aquele que
paga a letra no vencimento, sem oposição. Parágrafo único. A oposição ao pagamento é somente
admissível no caso de extravio da letra, de falência ou incapacidade do portador para recebê-la.”
4
WHITAKER, José Maria. Letra de Câmbio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, 7ª ed., p.
225.
Como, então, poderá o emitente ou sacador do cheque, devedor
principal, apresentar oposição ao pagamento sem apresentar ao sacado
uma contraordem? E, mais, se a oposição e a contraordem "se excluem
reciprocamente" como poderá o emitente ou sacador do cheque opor-se
ao seu pagamento dentro do prazo de apresentação? Será, então, o
cheque uma ordem irrevogável dentro do prazo de apresentação? E -
repete-se a pergunta inicial - : pode o banco, dentro no prazo de
apresentação do cheque, recusar-se a pagá-lo em virtude de uma
contraordem do sacador ou emitente? Ou, ainda, deve o banco pagar o
cheque durante o prazo de apresentação, mesmo depois de haver
recebido uma contraordem do emitente?
Cremos que, para responder a essas questões, será
necessário refletir sobre a natureza da relação jurídica entre o sacado
(o banco) e o emitente ou o sacador do cheque. Trata-se,
inegavelmente, de uma relação obrigacional típica de depósito e, mais
especificamente, de depósito pecuniário. “Entende-se por depósito
pecuniário, ou simplesmente depósito, a operação bancária segundo a
qual uma pessoa entrega ao banco determinada importância em
dinheiro, ficando o mesmo com a obrigação de devolvê-la no prazo e
nas condições convencionadas”5
.
O contrato de depósito bancário é bilateral (gera obrigações para
o depositante e o depositário) e oneroso (já que o banco depositário o
pratica por profissão) (Código Civil, art. 6286
). “O depositário é
5
MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. Rio: Forense, 1.990, 10ª ed. Revisada, p.
516.
6
Código Civil de 2.002: “Art. 628. O contrato de depósito é gratuito, exceto se houver
convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por
profissão.”
obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e
diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la,
com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante”
(Código Civil, art. 629). “Ainda que o contrato fixe prazo à restituição,
o depositário entregará o depósito logo que se lhe exija”, salvo em
hipóteses expressamente previstas (Código Civil, art. 6337
). Cabe ao
banco depositário, além de respeitar as cláusulas do contrato de
depósito, acatar as recomendações do depositante sobre a
administração e as aplicações do dinheiro depositado, sob pena de
responder pelos danos que causar.
O Código Comercial brasileiro de 1850, no art. 283,
estipulava que “o depósito voluntário confere-se e aceita-se pela
mesma forma que o mandato ou comissão; e as obrigações recíprocas
do depositante e depositário regulam-se pelas que se acham
determinadas para os mesmos contratos entre comitente e mandatário
ou comissário, em tudo quanto forem aplicáveis”. Em obra publicada
na vigência do Código Comercial de 1850, Caio Mário da Silva Pereira
escreveu o seguinte: “Além de guardar fidelidade aos termos expressos
do mandato, cabe ao representante seguir as instruções recebidas,
simultâneas ou posteriores à outorga dos poderes, sob pena de
7
Código Civil de 2002: “Art. 633. Ainda que o contrato fixe prazo à restituição, o depositário
entregará o depósito logo que se lhe exija, salvo se tiver o direito de retenção a que se refere o art.
644, se o objeto for judicialmente embargado, se sobre ele pender execução, notificada ao
depositário, ou se houver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi dolosamente obtida. (...).
Art. 644. O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague a retribuição devida, o
líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo anterior, provando
imediatamente esses prejuízos ou essas despesas. Parágrafo único. Se essas dívidas, despesas ou
prejuízos não forem provados suficientemente, ou forem ilíquidos, o depositário poderá exigir
caução idônea do depositante ou, na falta desta, a remoção da coisa para o Depósito Público, até
que se liquidem.”
responder por perdas e danos que causar, salvo se aprovada a atuação
pelo comitente”8
.
Por tudo isso, e embora o Código Civil de 2002 não conte
com dispositivo idêntico ao do revogado art. 283 do Código Comercial
de 1850, não nos parece de bom alvitre que o banco (depositário,
sacado), deixando de acatar contraordem expressa do depositante e
emitente ou sacador, dada no prazo de apresentação, deva pagar o
cheque, sob a alegação de que “a revogação ou contraordem só produz
efeito depois de expirado o prazo de apresentação" (art. 35, parágrafo
único).
Prevê-se desde já o seguinte raciocínio argumentativo: a
revogação, ou contraordem dada dentro do prazo de apresentação
mostra-se ineficaz em face da letra da lei, e esta deve prevalecer sobre
a vontade do emitente ou sacador do cheque; um dos requisitos da
validade da manifestação da vontade é sua adequação à lei.
Enfrentaremos essa argumentação. Contudo, antes de tudo,
registre-se, desde logo, certa suspeita. Suspeita-se que o dispositivo do
parágrafo único do art. 35 tenha sido inserido na Lei do Cheque por
alguma preocupação de ordem prática, por parte dos banqueiros. Com
efeito, a revogação ou contraordem, seja por aviso epistolar, ou por via
judicial ou extrajudicial, poderá, eventualmente, sofrer algum
descaminho na sua tramitação burocrática dentro da agência bancária.
Poderá, por exemplo, decorrer um lapso de tempo entre o recebimento
da contraordem ou da notificação por quem de direito e a informação
8
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio: 1962, 1ª ed., vol. III, p. 270.
aos funcionários responsáveis pelo serviço de Caixa. Nesta hipótese, o
banco poderia beneficiar-se alegando, a seu favor, que a contraordem
ainda era ineficaz, porque não expirado o prazo de apresentação.
Nota-se, a respeito da revogação ou contraordem uma certa
variação histórica no Direito Cambial brasileiro. Como registra Fran
Martins, “a Lei Uniforme de Genebra seguiu a orientação de que o
cheque só pode ser revogado depois do prazo de apresentação (art. 32,
1ª al.); mas o Anexo II permitiu, no art. 16, que os países aderentes
aceitassem a revogação do cheque antes de expirado o prazo da
revogação, ou não permitam a revogação do cheque, ainda depois de
expirado esse prazo. O Brasil fez essa reserva e, como na antiga lei
brasileira o art. 6º, referindo-se à contraordem, deixava que esta
poderia ser dada antes de terminado o prazo de apresentação, essa
norma vigorou apesar do disposto no art. 32 da Lei Uniforme. A nova
lei brasileira sobre o cheque, entretanto, mudou essa orientação. De
fato, o art. 35 tratou do assunto objetivamente, estatuindo: "O emitente
do cheque pagável no Brasil pode revogá-lo, mercê de contraordem
dada por aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial, com as
razões motivadoras do ato". O parágrafo único acrescenta que "a
revogação ou contraordem só produz efeito depois de expirado o prazo
de apresentação e, não sendo promovida, pode o sacado pagar o
cheque até que decorra o prazo de prescrição, nos termos do art. 59
desta lei". Fran Martins acrescenta: "Verifica-se, assim, que,
modificando a orientação vigente anteriormente no direito brasileiro, a
atual Lei do Cheque estatui que é admissível impedir o emitente que o
cheque seja pago mediante contraordem epistolar, por via judicial ou
extrajudicial, mas essa contra-ordem só produz efeitos depois de
decorrido o prazo de apresentação.”9
Acoplando essa lição ao que fora dito anteriormente, sugere-se a
seguinte conclusão: o emitente ou sacador pode impedir o pagamento
do cheque por revogação ou contraordem. Contudo, na eventual
ocorrência de pagamento do cheque pelo banco-sacado mesmo depois
de recebida a contraordem, ficará mais difícil para o emitente ou
sacador responsabilizar o banco. Este poderá alegar que tal
contraordem só produziria efeito depois de expirado o prazo de
apresentação. Essa circunstância surte o efeito prático da inversão do
ônus da prova numa eventual ação do emitente ou sacador (titular da
conta-corrente bancária) contra o banco. Ela também recomenda um
redobrado padrão de diligência por parte do depositante-correntista,
que deverá policiar para que a sua contraordem seja processada com
agilidade, percorrendo os canais burocráticos, para chegar
imediatamente às bocas de Caixa.
Apesar ou além de tudo isso, continuamos a entender que o
banco não deve pagar o cheque depois de recebida a contraordem,
mesmo dentro do prazo de apresentação. E esse entendimento decorre,
também, a nosso ver, da própria letra da lei.
Como categoria diferenciada, a lei trata, a par da revogação ou
contraordem, da "oposição do emitente”, acrescentando que "a
oposição do emitente e a revogação ou, contraordem se excluem
reciprocamente” (art. 36, caput, e § 1º). Vimos que a oposição do
9
MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Rio: Forense, 1990, 3ª ed. , vol. II, p. 104/105
emitente surte o mesmo efeito prático de uma contraordem e, a rigor,
só pode ser veiculada através de uma contraordem, dada por aviso
epistolar ou por via judicial ou extrajudicial.
A lei estabelece uma diferença de tratamento apenas quanto à
motivação: na revogação ou contraordem, o emitente deverá explicitar
as “razões motivadoras do ato” (art. 35, caput). A oposição do
emitente deverá fundar-se em relevante razão de direito, mas não cabe
ao sacado julgar da relevância da razão invocada pelo oponente (art.
36, caput, e § 2º). A lei não estabelece nenhuma diferença quanto à
forma. A forma prescrita em lei para a revogação ou contraordem
mostra-se mais ou menos livre: aviso epistolar, ou por via judicial ou
extrajudicial. A forma prescrita para a oposição não aparece
mencionada. O art. 36 só menciona, textualmente, a expressão “por
escrito”, afastando a possibilidade de uma oposição meramente verbal.
E esse escrito tanto pode ser por via judicial ou extrajudicial.
Ora, se a oposição pode ser apresentada pelo emitente "mesmo
durante o prazo de apresentação", se não cabe ao sacado julgar da
relevância da razão invocada pelo oponente" (art. 36, caput, e § 2º), e
se a oposição pode fazer-se da mesma forma que a contraordem (por
aviso epistolar ou por via judicial ou extrajudicial), pensamos que a
conclusão lógica é de que não há distinção a fazer entre a contraordem
e a oposição do emitente, e que esta deve ser sempre acatada, mesmo
durante o prazo de apresentação.
O banco, depositário do dinheiro do correntista, não pode
descumprir as ordens e contra-ordens do depositante. Nem responde
pelos atos deste. Impedido, por lei, de julgar a relevância da razão
invocada pelo oponente (art. 36, § 2º), não pode ser responsabilizado
perante o beneficiário ou portador do cheque por atos do emitente ou
sacador.
Toda essa linha de raciocínio, aqui explicitada, achava-se
subjacente na resposta curta e intuitiva, articulada, mais ou menos
improvisadamente, naqueles debates que se seguiram a uma palestra
sobre títulos de crédito cambiais, proferida pelo autor num Encontro de
Advogados de instituições financeiras.
(*) Professor Titular de Direito Empresarial da Faculdade de Direito da
UFMG
e da Faculdade de Direito Milton Campos.
Subprocurador-Geral da República, aposentado.

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Cheque revogação (contraordem) e oposição

  • 1. CHEQUE. Revogação (contraordem) e Oposição Osmar Brina Corrêa-Lima, Cadeira n. 26* A temática versada neste trabalho surgiu em debates após palestra proferida pelo autor num Encontro de Advogados de instituições financeiras. Eis a questão, então formulada: - “pode o banco, dentro do prazo de apresentação do cheque, recusar-se a pagá-lo, em virtude de uma contraordem do sacador ou emitente?” Naquela ocasião, a questão mereceu resposta imediata, afirmativa, com fundamentação curta, apresentada de maneira intuitiva. Neste texto, o autor procura explicitá-la. Todos os dispositivos legais citados neste texto, que não indicarem expressamente outra pertença, pertencem à Lei nº 7.357 de 2 de setembro de 1985 (Lei do Cheque). Cheque é ordem de pagamento à vista. Considera-se não escrita qualquer menção em contrario (art. 32). Emitido o cheque, o beneficiário ou portador deve apresentá-lo no prazo legal de 30 dias, a contar do dia da emissão, quando pagável na mesma praça; e de 60 dias, quando emitido em outro lugar do País ou do exterior (art. 33). Não se confundem os prazos para apresentação do cheque e de prescrição da ação por falta de pagamento (execução), que é de 6 meses, contados da expiração do prazo de apresentação (art. 59).
  • 2. Comprovam-se a apresentação e a recusa de pagamento pelo protesto ou por declaração do sacado, escrita e datada sobre o cheque, com indicação do dia de apresentação, ou, ainda, por declaração escrita e datada por câmara de compensação (art. 47, II e § 3°). Comprovado o não pagamento, o portador deve avisar a seu endossante e ao emitente, nos 4 dias úteis seguintes ao do protesto ou das declarações do sacado ou da câmara de compensação, ou, havendo cláusula "sem despesa", ao (dia) da apresentação. Cada endossante deve, nos 2 dias úteis seguintes ao do recebimento do aviso, comunicar seu teor ao endossante precedente, indicando os nomes e endereços dos que deram os avisos anteriores, e assim por diante, até o emitente, contando-se os prazos do recebimento do aviso precedente. O aviso a um obrigado deve estender-se, no mesmo prazo, a seu avalista (art. 49, caput, § 1º e § 2°). A não apresentação do cheque nos prazos previstos (30 e 60 dias) surte os seguintes efeitos: (1°) o beneficiário ou portador perde o direito de regresso contra endossantes e respectivos avalistas; (2°) o beneficiário ou portador perde também o direito de execução contra o emitente ou sacador, se este tinha fundos disponíveis durante o prazo de apresentação e os deixou de ter, em razão de fato que não lhe seja imputável (art. 47, § 3°). Precisamente porque não se confundem os prazos para apresentação (30 ou 60 dias) e o de prescrição (6 meses), o banco, “não havendo contra-ordem, e se o sacado possuir fundos disponíveis do emitente, poderá pagar o cheque até que decorra o prazo de
  • 3. prescrição, que é de seis meses depois de esgotado o prazo de apresentação”1 . O parágrafo precedente introduz o conceito de "contra ordem", que a lei também chama de “revogação". Ao se referir à "revogação ou contra- ordem", no parágrafo único do art. 35 e no § 1º do art. 36, a Lei do Cheque não emprega a conjunção “ou” como alternativa, e sim com o sentido explicativo consignado pelo “Aurélio”: "de outro modo, por outra forma, por outra(s) palavra(s)”2 . Com esse mesmo sentido, a conjunção “ou” aparece empregada nas expressões “beneficiário ou portador”, “emitente ou sacador” e “banco ou sacado”. Segundo o art. 35, caput, da Lei do Cheque, “o emitente do cheque pagável no Brasil pode revogá-lo, mercê de contraordem dada por aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial, com as razões motivadoras do ato”. O parágrafo único do art. 35 acrescenta que “a revogação ou contra ordem só produz efeito depois de expirado o prazo de apresentação e, não sendo promovida, pode o sacado pagar o cheque até que decorra o prazo de prescrição”. Um outro conceito, diferente de revogação ou contraordem, é o de oposição. Mesmo durante o prazo de apresentação, o emitente e o portador legitimado podem fazer sustar o pagamento, manifestando ao sacado, por escrito, oposição fundada em qualquer razão de direito (art. 36, caput). 1 MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Rio: Forense, 1.990, 3ª ed., vol. II, p. 105. 2 Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio: Nova Fronteira, 1986, verbete “ou”.
  • 4. Confirmando a diferença entre os dois conceitos, o § 1º do art. 36 dispõe que "a oposição do emitente e a revogação ou contraordem se excluem reciprocamente". Em suma a revogação mercê de contraordem só pode ser dada pelo emitente, com razões motivadoras do ato, e só produz efeito depois de expirado o prazo de apresentação; a oposição com o objetivo de sustar o pagamento do cheque, fundada em relevante razão de direito, pode ser apresentada pelo emitente ou pelo portador legitimado, mesmo durante o prazo de apresentação, não cabendo, entretanto, ao sacado julgar da relevância da razão invocada pelo oponente. À luz da letra da Lei do Cheque, chega-se à seguinte conclusão: o emitente ou sacador pode apresentar oposição ao pagamento durante o prazo de apresentação do cheque (“Art. 36. Mesmo durante o prazo de apresentação, o emitente e o portador legitimado podem fazer sustar o pagamento, manifestando ao sacado, por escrito, oposição fundada em relevante razão de direito. (...).”); e pode revogá-lo mediante contra ordem que, no entanto, só produzirá efeito depois de expirado o prazo de apresentação (art. 35, parágrafo único). E as duas atitudes - revogação e oposição - “se excluem reciprocamente”, ou seja, a revogação (contraordem) exclui a oposição, e vice-versa. Em face dessa constatação, pergunta-se: como poderá o emitente ou sacador opor-se ao pagamento do cheque dentro do prazo de apresentação se, nesse prazo, uma contraordem sua não produz efeito? Como distinguir a oposição da contraordem, já que as duas “se excluem reciprocamente"?
  • 5. O conceito de oposição, no Direito Cambial, acha-se ligado, tradicionalmente, a casos de extravio do titulo, de falência ou incapacidade do portador para recebê-lo. Nos termos do art. 23 do decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908, "presume-se validamente desonerado aquele que paga a letra no vencimento, sem oposição; e “a oposição ao pagamento é somente admissível no caso de extravio da letra, de falência ou incapacidade do portador para recebê-lo"3 . Explicando esse dispositivo legal do decreto nº 2.044, de 31 de dezembro de 1908, que “define a letra de câmbio e a nota promissória e regula as operações cambiais”, José Maria Whitaker escreve que "no primeiro caso (extravio do titulo), faz-se (a oposição) pelo processo da anulação; no segundo (falência ou incapacidade do devedor para recebê-lo), pelo da notificação para não pagar”4 . Em se tratando de cheque, quer-nos parecer que, em ambos os casos (extravio do título e falência ou incapacidade do devedor para recebê-lo), quem pode se opor ao pagamento é o credor legitimado, e não o emitente ou sacador do cheque. No caso de extravio, será o legítimo credor; no caso de falência, a massa falida, representada pelo administrador judicial; e no caso de incapacidade do portador para recebê-lo, também só poderia ser o seu representante legal. Contudo, não é esse o comando da atual Lei do Cheque, como se verá mais adiante. 3 Decreto nº 2.044, de 31/12/1.908: “Art. 23. Presume-se validamente desonerado aquele que paga a letra no vencimento, sem oposição. Parágrafo único. A oposição ao pagamento é somente admissível no caso de extravio da letra, de falência ou incapacidade do portador para recebê-la.” 4 WHITAKER, José Maria. Letra de Câmbio. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, 7ª ed., p. 225.
  • 6. Como, então, poderá o emitente ou sacador do cheque, devedor principal, apresentar oposição ao pagamento sem apresentar ao sacado uma contraordem? E, mais, se a oposição e a contraordem "se excluem reciprocamente" como poderá o emitente ou sacador do cheque opor-se ao seu pagamento dentro do prazo de apresentação? Será, então, o cheque uma ordem irrevogável dentro do prazo de apresentação? E - repete-se a pergunta inicial - : pode o banco, dentro no prazo de apresentação do cheque, recusar-se a pagá-lo em virtude de uma contraordem do sacador ou emitente? Ou, ainda, deve o banco pagar o cheque durante o prazo de apresentação, mesmo depois de haver recebido uma contraordem do emitente? Cremos que, para responder a essas questões, será necessário refletir sobre a natureza da relação jurídica entre o sacado (o banco) e o emitente ou o sacador do cheque. Trata-se, inegavelmente, de uma relação obrigacional típica de depósito e, mais especificamente, de depósito pecuniário. “Entende-se por depósito pecuniário, ou simplesmente depósito, a operação bancária segundo a qual uma pessoa entrega ao banco determinada importância em dinheiro, ficando o mesmo com a obrigação de devolvê-la no prazo e nas condições convencionadas”5 . O contrato de depósito bancário é bilateral (gera obrigações para o depositante e o depositário) e oneroso (já que o banco depositário o pratica por profissão) (Código Civil, art. 6286 ). “O depositário é 5 MARTINS, Fran. Contratos e Obrigações Comerciais. Rio: Forense, 1.990, 10ª ed. Revisada, p. 516. 6 Código Civil de 2.002: “Art. 628. O contrato de depósito é gratuito, exceto se houver convenção em contrário, se resultante de atividade negocial ou se o depositário o praticar por profissão.”
  • 7. obrigado a ter na guarda e conservação da coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que lhe pertence, bem como a restituí-la, com todos os frutos e acrescidos, quando o exija o depositante” (Código Civil, art. 629). “Ainda que o contrato fixe prazo à restituição, o depositário entregará o depósito logo que se lhe exija”, salvo em hipóteses expressamente previstas (Código Civil, art. 6337 ). Cabe ao banco depositário, além de respeitar as cláusulas do contrato de depósito, acatar as recomendações do depositante sobre a administração e as aplicações do dinheiro depositado, sob pena de responder pelos danos que causar. O Código Comercial brasileiro de 1850, no art. 283, estipulava que “o depósito voluntário confere-se e aceita-se pela mesma forma que o mandato ou comissão; e as obrigações recíprocas do depositante e depositário regulam-se pelas que se acham determinadas para os mesmos contratos entre comitente e mandatário ou comissário, em tudo quanto forem aplicáveis”. Em obra publicada na vigência do Código Comercial de 1850, Caio Mário da Silva Pereira escreveu o seguinte: “Além de guardar fidelidade aos termos expressos do mandato, cabe ao representante seguir as instruções recebidas, simultâneas ou posteriores à outorga dos poderes, sob pena de 7 Código Civil de 2002: “Art. 633. Ainda que o contrato fixe prazo à restituição, o depositário entregará o depósito logo que se lhe exija, salvo se tiver o direito de retenção a que se refere o art. 644, se o objeto for judicialmente embargado, se sobre ele pender execução, notificada ao depositário, ou se houver motivo razoável de suspeitar que a coisa foi dolosamente obtida. (...). Art. 644. O depositário poderá reter o depósito até que se lhe pague a retribuição devida, o líquido valor das despesas, ou dos prejuízos a que se refere o artigo anterior, provando imediatamente esses prejuízos ou essas despesas. Parágrafo único. Se essas dívidas, despesas ou prejuízos não forem provados suficientemente, ou forem ilíquidos, o depositário poderá exigir caução idônea do depositante ou, na falta desta, a remoção da coisa para o Depósito Público, até que se liquidem.”
  • 8. responder por perdas e danos que causar, salvo se aprovada a atuação pelo comitente”8 . Por tudo isso, e embora o Código Civil de 2002 não conte com dispositivo idêntico ao do revogado art. 283 do Código Comercial de 1850, não nos parece de bom alvitre que o banco (depositário, sacado), deixando de acatar contraordem expressa do depositante e emitente ou sacador, dada no prazo de apresentação, deva pagar o cheque, sob a alegação de que “a revogação ou contraordem só produz efeito depois de expirado o prazo de apresentação" (art. 35, parágrafo único). Prevê-se desde já o seguinte raciocínio argumentativo: a revogação, ou contraordem dada dentro do prazo de apresentação mostra-se ineficaz em face da letra da lei, e esta deve prevalecer sobre a vontade do emitente ou sacador do cheque; um dos requisitos da validade da manifestação da vontade é sua adequação à lei. Enfrentaremos essa argumentação. Contudo, antes de tudo, registre-se, desde logo, certa suspeita. Suspeita-se que o dispositivo do parágrafo único do art. 35 tenha sido inserido na Lei do Cheque por alguma preocupação de ordem prática, por parte dos banqueiros. Com efeito, a revogação ou contraordem, seja por aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial, poderá, eventualmente, sofrer algum descaminho na sua tramitação burocrática dentro da agência bancária. Poderá, por exemplo, decorrer um lapso de tempo entre o recebimento da contraordem ou da notificação por quem de direito e a informação 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio: 1962, 1ª ed., vol. III, p. 270.
  • 9. aos funcionários responsáveis pelo serviço de Caixa. Nesta hipótese, o banco poderia beneficiar-se alegando, a seu favor, que a contraordem ainda era ineficaz, porque não expirado o prazo de apresentação. Nota-se, a respeito da revogação ou contraordem uma certa variação histórica no Direito Cambial brasileiro. Como registra Fran Martins, “a Lei Uniforme de Genebra seguiu a orientação de que o cheque só pode ser revogado depois do prazo de apresentação (art. 32, 1ª al.); mas o Anexo II permitiu, no art. 16, que os países aderentes aceitassem a revogação do cheque antes de expirado o prazo da revogação, ou não permitam a revogação do cheque, ainda depois de expirado esse prazo. O Brasil fez essa reserva e, como na antiga lei brasileira o art. 6º, referindo-se à contraordem, deixava que esta poderia ser dada antes de terminado o prazo de apresentação, essa norma vigorou apesar do disposto no art. 32 da Lei Uniforme. A nova lei brasileira sobre o cheque, entretanto, mudou essa orientação. De fato, o art. 35 tratou do assunto objetivamente, estatuindo: "O emitente do cheque pagável no Brasil pode revogá-lo, mercê de contraordem dada por aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial, com as razões motivadoras do ato". O parágrafo único acrescenta que "a revogação ou contraordem só produz efeito depois de expirado o prazo de apresentação e, não sendo promovida, pode o sacado pagar o cheque até que decorra o prazo de prescrição, nos termos do art. 59 desta lei". Fran Martins acrescenta: "Verifica-se, assim, que, modificando a orientação vigente anteriormente no direito brasileiro, a atual Lei do Cheque estatui que é admissível impedir o emitente que o cheque seja pago mediante contraordem epistolar, por via judicial ou
  • 10. extrajudicial, mas essa contra-ordem só produz efeitos depois de decorrido o prazo de apresentação.”9 Acoplando essa lição ao que fora dito anteriormente, sugere-se a seguinte conclusão: o emitente ou sacador pode impedir o pagamento do cheque por revogação ou contraordem. Contudo, na eventual ocorrência de pagamento do cheque pelo banco-sacado mesmo depois de recebida a contraordem, ficará mais difícil para o emitente ou sacador responsabilizar o banco. Este poderá alegar que tal contraordem só produziria efeito depois de expirado o prazo de apresentação. Essa circunstância surte o efeito prático da inversão do ônus da prova numa eventual ação do emitente ou sacador (titular da conta-corrente bancária) contra o banco. Ela também recomenda um redobrado padrão de diligência por parte do depositante-correntista, que deverá policiar para que a sua contraordem seja processada com agilidade, percorrendo os canais burocráticos, para chegar imediatamente às bocas de Caixa. Apesar ou além de tudo isso, continuamos a entender que o banco não deve pagar o cheque depois de recebida a contraordem, mesmo dentro do prazo de apresentação. E esse entendimento decorre, também, a nosso ver, da própria letra da lei. Como categoria diferenciada, a lei trata, a par da revogação ou contraordem, da "oposição do emitente”, acrescentando que "a oposição do emitente e a revogação ou, contraordem se excluem reciprocamente” (art. 36, caput, e § 1º). Vimos que a oposição do 9 MARTINS, Fran. Títulos de Crédito. Rio: Forense, 1990, 3ª ed. , vol. II, p. 104/105
  • 11. emitente surte o mesmo efeito prático de uma contraordem e, a rigor, só pode ser veiculada através de uma contraordem, dada por aviso epistolar ou por via judicial ou extrajudicial. A lei estabelece uma diferença de tratamento apenas quanto à motivação: na revogação ou contraordem, o emitente deverá explicitar as “razões motivadoras do ato” (art. 35, caput). A oposição do emitente deverá fundar-se em relevante razão de direito, mas não cabe ao sacado julgar da relevância da razão invocada pelo oponente (art. 36, caput, e § 2º). A lei não estabelece nenhuma diferença quanto à forma. A forma prescrita em lei para a revogação ou contraordem mostra-se mais ou menos livre: aviso epistolar, ou por via judicial ou extrajudicial. A forma prescrita para a oposição não aparece mencionada. O art. 36 só menciona, textualmente, a expressão “por escrito”, afastando a possibilidade de uma oposição meramente verbal. E esse escrito tanto pode ser por via judicial ou extrajudicial. Ora, se a oposição pode ser apresentada pelo emitente "mesmo durante o prazo de apresentação", se não cabe ao sacado julgar da relevância da razão invocada pelo oponente" (art. 36, caput, e § 2º), e se a oposição pode fazer-se da mesma forma que a contraordem (por aviso epistolar ou por via judicial ou extrajudicial), pensamos que a conclusão lógica é de que não há distinção a fazer entre a contraordem e a oposição do emitente, e que esta deve ser sempre acatada, mesmo durante o prazo de apresentação. O banco, depositário do dinheiro do correntista, não pode descumprir as ordens e contra-ordens do depositante. Nem responde pelos atos deste. Impedido, por lei, de julgar a relevância da razão
  • 12. invocada pelo oponente (art. 36, § 2º), não pode ser responsabilizado perante o beneficiário ou portador do cheque por atos do emitente ou sacador. Toda essa linha de raciocínio, aqui explicitada, achava-se subjacente na resposta curta e intuitiva, articulada, mais ou menos improvisadamente, naqueles debates que se seguiram a uma palestra sobre títulos de crédito cambiais, proferida pelo autor num Encontro de Advogados de instituições financeiras. (*) Professor Titular de Direito Empresarial da Faculdade de Direito da UFMG e da Faculdade de Direito Milton Campos. Subprocurador-Geral da República, aposentado.