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QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido
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Q
QQQQQuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebê
O Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico
no Tno Tno Tno Tno Teatreatreatreatreatro do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimido
AAAAAugusto Boal
Augusto Boal é dramaturgo, encenador e coordenador do Centro do Teatro do Oprimido.
1 Conhecimento que não depende e é anterior à experiência prática.
O Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o Conhecimento
uando nasce um bebê é um corpo huma-
no que vem ao mundo. Passam a existir o
corpo e o mundo – o corpo no mundo.
Esse corpo não traz consigo nenhum pre-
conceito, nenhum parti-pris, idéias ina-
baláveis, certezas ou intransigências. Não
torce por nenhum time de futebol e não
professa nenhuma religião. Não faz filosofia
nem compara valores – desconhece valores: é
apenas um corpo humano.
Não possui nenhum Conhecimento a
priori, no sentido kantiano1, que ultrapasse os
limites do que lhe é orgânico e, nele, singular.
Apenas traz consigo seus cinco sentidos, neces-
sidades biológicas e, mais tarde, incipientes de-
sejos. Sobretudo, traz um cérebro com cem bi-
lhões de neurônios que criam infinitas sinapses:
a Mente, que é a sua vida psíquica, organizadora
de emoções e produtora de idéias e projetos.
Seus sentidos já existiam, em desenvolvi-
mento, dentro do ventre materno, e já guarda-
vam memórias. Sua pele já tocava o líquido
amniótico, que poucas variações tinha de tem-
peratura e consistência. Seus ouvidos já recebiam
sons vindos de fora, amortecidos; sua boca ape-
nas sentia sabor nos lábios apertados; seus olhos
nada viam, e seus pulmões não respiravam.
O nascimento produz um choque senso-
rial de tremenda violência, e o bebê chora. As-
sustado, pensa: pensa um pensamento mudo,
pois não conhece palavras. Sua pele toca outras
peles, roupas e coisas – ele sente e compara.
Sons, à sua volta, tornam-se explosivos e diversi-
ficados. Pela primeira vez seus pulmões se reple-
tam de ar e o bebê cheira. Saboreia o leite mater-
no. Seus olhos, quando se abrem bem abertos,
ao tudo verem, nada vêem: lentamente, ao lon-
go dos dias que passam, das pessoas e coisas que
passam, distinguem traços e cores, desenham
perspectivas e reconhecem fisionomias.
Os primeiros contatos com o mundo ex-
terior são de natureza sensorial – isto é, estéti-
cos. A Estética nasce com o bebê.
A Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento Sensível
Quando, entre 1750 e 1758, o filósofo alemão
Alexander Baumgarten escreveu seus dois livros
sobre a Estética, ele a definiu assim: “Os Sen-
tidos, – e os Conhecimentos que deles derivam
–, permitem imaginar uma gnosiologia inferior.
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Não duvido que possa existir uma Ciência do
Conhecimento Sensível... intermediária entre a
sensação pura, obscura e confusa, e o puro inte-
lecto, claro e distinto. Ela não é nem algo exis-
tente na própria Coisa, nem pura criação do ser
humano: é o resultado de uma síntese particular,
harmonia entre Coisa e Pensamento. O Con-
ceito Sensível é particular, como objeto de sensi-
bilidade; e geral, como objeto de entendimento”.
Estética é uma relação Sujeito-Objeto,
concordo. Discordo apenas do uso da palavra
“inferior” para designar o Conhecimento Sen-
sível que não é uma função estática, arquivo
morto ou mero registro de Informações senso-
riais, mas sim o orquestrador das novas infor-
mações com as anteriormente recebidas, e com
os desejos e necessidades do Sujeito.
Quero adotar a idéia de que existe uma
outra forma de pensar, não verbal – o Pensa-
mento Sensível –, que é dinâmico, articulado e
resolutivo.
O fluxo contínuo de nossas ações e deci-
sões, que levam em conta, e ao cabo, as infor-
mações orquestradas pelo Conhecimento, são
obra de um verdadeiro Pensamento Sensível
que, dinamizando esse Conhecimento, determi-
na e orienta a dinâmica do Sujeito.
O Conhecimento Sensível organiza o
Léxico de todos os elementos psíquicos em Sin-
taxe valorativa – conjuga-se no presente do
indicativo; o Pensamento Sensível, apoiado no
Conhecimento, é Gerúndio. O Conhecimen-
to oferece opções; o Pensamento escolhe e
inventa. O Conhecimento interroga; o Pensa-
mento responde. O Conhecimento é o conhe-
cido; o Pensamento, o conhecer. O Conheci-
mento traz o passado até o instante presente; o
Pensamento, do instante, avança para o futuro.
Ambos são etapas interpenetráveis de um mes-
mo processo psíquico.
Também não me parece adequada a ex-
pressão “puro intelecto” pois tal pureza não exis-
te: o Intelecto é o resultado da metamorfose
contínua e progressiva de sensações, emoções e
idéias, atuais e passadas, que rodopiam na Men-
te, antes de se projetarem no futuro como fala e
ação. Mas concordo que, na formação do Inte-
lecto, existe um salto vital, impossível de ser
conhecido: da mesma forma que o ácido
desoxirribonucléico adquire vida, – ou nela se
transforma, sem que saibamos como, nem por-
quê –, o cérebro orgânico cria a Mente multi-
fária e, esta, o Intelecto refinado.
A Estética não é a Ciência do Belo, como
se costuma dizer, mas sim a da Comunicação
Sensorial e da Sensibilidade. Fosse somente a
Ciência do Belo e do Sublime, teríamos que in-
ventar uma outra palavra para designarmos o
quase-Belo, o menos-Belo e a Fealdade. O Belo,
que da Estética faz parte, é a organização senso-
rial da realidade, anárquica e aleatória, em for-
mas que lhe dão sentido e, a nós, prazer. Pode
ser traduzido e explicado em palavras, mas não
as necessita.
O Feio, que é o antônimo apenas de Bo-
nito, pode ser Belo. O Feio é Belo – não há nis-
to nenhuma contradição. Bela é a Verdade.
Qual? Como não somos todos iguais, haverá
muitas. A Estética não tem valores universais.
Afirmo também que não existe o Mais-
Belo e o Menos-Belo, conceitos criados em so-
ciedades individualistas, capitalistas e neoli-
berais, em que é importante ser sempre o
primeiro, o melhor. Penso, ao contrário, que
cada Coisa é ou não Bela em função da sua ca-
pacidade de, através dos nossos sentidos, signi-
ficar uma verdade real ou imaginária, dentro de
condições temporais e concretas, quer nos atraia
ou assuste.
O Maria Fumaça e o Trem-Bala, o carri-
nho de mão e o carro de corridas, são belos em
suas realidades sociais, como, nas naturais, o ar-
busto e a sequóia, o riacho e o mar.
O Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o Mundo
Para sobreviver, o bebê precisa conhecer o mun-
do – sobretudo, o seu lugar no mundo. No en-
tanto, os estímulos que recebe são pletóricos e
confusos, desordenados, difíceis de entender.
Seus sentidos registram sensações torrenciais.
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QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido
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Aquelas que se repetem são fixadas no seu cére-
bro e, organizados por sua mente, servirão de
parâmetros e paradigmas para receber e estru-
turar as próximas que virão.
Sensações não nos vêm isoladas, puras e
refratárias: cada uma recebe e produz emoções
específicas. Se o bebê mama, o estômago sacia-
do e o sabor do leite se associam ao prazer de
tocar o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir
sua voz. Cada sensação está envolta em emo-
ções e memórias.
Se o bebê ouve música suave, se recon-
forta; ouvindo techno, essa agressiva sensação
virá associada ao espanto e à dor. Sendo con-
frontado à luz de holofotes, seu corpo se retrai
em sofrimento e se pacifica, se exposto à suave
luz azul.
Progressivamente, sensações e emoções, –
e as memórias a elas referentes –, são organiza-
das pelo Conhecimento em estruturas sensori-
ais, mnemônicas e emotivas que, em movimen-
to, são o Pensamento Sensível. Nele, e entre
elas, existe o fenômeno da Sinestesia que propi-
cia o seu entrelaçamento e interdependência.2
O bebê passa a pressentir, sinestesica-
mente, aqueles estímulos que prenunciam pra-
zeres, – como a mãe que se aproxima para lhe
dar de mamar –, ou ameaçam dores: vozes dis-
tantes ou gritos.
Suas faculdades motoras se desenvolvem;
nessa medida, o bebê aprende que, não só é
capaz de perceber o mundo, mas é também
capaz de se associar a ele. Ouve música e move
o corpo, dança, perseguindo o ritmo que nem
sempre encontra. Reage, com prazer, ao canto
dos pássaros, e teme o trovão. Sente o cheiro de
leite e busca o seio. Vê o pai ou a mãe, e abre os
braços. Aprende a sorrir – grande invenção
humana.
Quanto mais se desenvolvem seus mús-
culos, mais aprende que pode, não apenas per-
ceber e se associar ao mundo, mas pode também
transformá-lo. Se levarmos uma criança à praia,
com areia ela fará uma escultura e se descobrirá
escultora. Se lhe dermos papel branco e lápis de
cor, ela se descobrirá pintora. Se lhe dermos pe-
ças de armar, fará uma bela arquitetura – a crian-
ça é arquiteta.
Nesta seqüência – perceber o mundo,
associar-se a ele e transformá-lo – estes são os
primeiros contatos da criança com o mundo
que a cerca: contatos estéticos, artísticos, or-
ganizadores de sensações, às quais atribui valo-
res e qualidades. Essa forma de pensar e de se
relacionar com o mundo é uma forma estética
de conhecê-lo e, com ele, dialogar. As lingua-
gens estéticas são cognitivas – são, em si mes-
mas, Conhecimento.
A Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento Simbólico
O bebê, desde cedo, começa a reter em sua me-
mória sons seqüenciais associados continua-
mente às mesmas coisas e pessoas, atos ou fatos,
presentes ou futuros: são as Palavras. Surge o
Pensamento Simbólico.
A soberana Palavra nos traz o Conheci-
mento Abstrato que é produzido pelas lingua-
gens informativas:3 aquelas que transportam
2 Sinestesia é o diálogo entre os sentidos, p. ex., a visão de uma pessoa ou coisa que provoca sensações
epidérmicas de prazer ou dor, emoções de medo ou atração. Diferente da Cenestesia que se refere às
impressões sensoriais internas do organismo que nos fazem sentir bem-dispostos ou tensos, saudáveis
ou doentes.
3 Se uma pessoa a outra diz – “Eu te amo” –, essa frase refere-se ao amor, mas não é o amor. Se nada
disser, e apenas olhar a pessoa amada, seu olhar é o amor. A palavra amor é linguagem informativa,
enquanto que a voz com que é pronunciada, e o rosto de quem a pronuncia naquele momento, esses,
são linguagem cognitiva.
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192
Conhecimento, mas não são Conhecimento;
referem-se à Coisa, mas não são a Coisa. São
simbólicas e não sinaléticas.4
A Linguagem das Palavras é essencial na
constituição do Ser Humano, pois permite ar-
ticular pensamentos sobre o que não está em
contato direto com os sentidos, pensar o Futu-
ro que não existe, refletir sobre o passado revo-
luto; permite adiar e antecipar, organizar o tem-
po e dar significados ao espaço, fazer promessas
e ameaças, jogar xadrez, criar agendas, usar o
dinheiro e o cartão de crédito, emprestar e co-
brar juros, fazer hipotecas e continuar moran-
do na mesma casa, imaginar o não-acontecido
e ponderar possibilidades de acontecer.
Com a invenção da Palavra, o Ser Huma-
no descobriu também a Mentira e suas formas
mais comuns: o Falso-Testemunho e a Calúnia,
eficazes armas de Poder. Com a Mentira surgiu
a Hipocrisia que é a possibilidade de se dar con-
tínua aparência de verdade ao que o Sujeito sabe
ser falso. O Pensamento Simbólico sufoca o
Pensamento Sensível.
Criando uma outra forma de vida, a Pa-
lavra torna mais complexa e densa a Realidade,
e a boa relação entre os dois Pensamentos pode
entrar em franca colisão.
É curioso lembrar que a palavra grega
Hupokrisia, entre os seus vários sentidos, tinha
o de “Desempenhar um papel em uma peça” –
isto é: a Arte do Ator. Significava também: “A
resposta do Oráculo”. Oráculo e Ator, ambos
misteriosos, tinham, e conservam, o mágico
poder de impor empática submissão aos seus
interlocutores e, neles, inocular mensagens, sen-
timentos e valores. A Empatia é arma perigosa,
instrumento de convencimento e poder.
A Ficção, que é uma variante da Mentira
criada e transmitida através da Empatia, revela-
se como uma outra forma, – paralela, estrutu-
rada e coerente –, de compreensão ou interpre-
tação do real que pode produzir opressivas e
categoriais estruturas de raça, casta ou classe,
credo ou sexo. Torna-se uma outra Realidade,
onde até mesmo o Improvável e o Impossível
passam a ser categorias do Real.
A palavra Ficção torna-se a única ficção
que realmente existe, pois que existe descolada
de qualquer realidade.
A luta pela posse do Território, tão co-
mum entre os animais predatórios como nós,
os humanos, estendeu-se às palavras e não so-
mente à terra e aos bens materiais.
Liberdade e Democracia, por exemplo,
passaram a ter o significado que lhes atribuem
os seus proprietários, e perderam o sentido eti-
mológico que possuíam ao serem criadas. O
neoliberalismo chama de demo-cracia (o poder
do povo) ao que todos sabemos ser uma pluto-
cracia (o poder do dinheiro), e Liberdade passa
a designar a razão do mais forte.
Com a introdução da Palavra, que é
simbólica, as linguagens estéticas, que são sina-
léticas, esmaecem e se tornam cada vez menos
conscientes e consistentes. O Pensamento Sen-
sível torna-se diáfano ou obscuro: não vemos
com nitidez o que olhamos, não escutamos com
precisão o que ouvimos, nem sentimos em toda
sua extensão o que tocamos. Prestamos atenção
ao significado das palavras – mas não ao tim-
bre, volume, ritmo e outras características sen-
soriais da voz. Definha, em nós, o artista.5
No entanto, o corpo humano e as lin-
guagens estéticas são capazes de um Conheci-
4 Nas linguagens simbólicas os significantes estão dissociados do significado; nas linguagens sinaléticas,
significantes e significados são inseparáveis. No exemplo anterior, a palavra amor é simbólica e o rosto
do amante sinalético.
5 Temos que re-aprender a ver a coisa no espaço, o espaço da coisa, e o espaço do espaço, feito coisa;
temos que sentir o que toca o nosso corpo, e sentir o corpo; escutar os sons que ouvimos, e os que estão
gravados na memória. Temos que redescobrir o corpo: temos um corpo.
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QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido
193
mento, paralelo e simultâneo ao das palavras,
indispensável para a mais ampla e multidimen-
sional percepção do mundo, e para a sua
compreensão mais profunda. São formas de co-
nhecer que produzem um Conhecimento espe-
cífico que somente através delas se obtém, e às
outras se acrescenta. O que aprendemos ao ver
uma pessoa, é insubstituível pelo que, dela, pos-
sam nos dizer. Ouvi-la nos traz um conheci-
mento que é insubstituível pelo que, da sua voz,
se possa predicar.
Esse Conhecimento e esse Pensamento
Sensíveis6 podem ser traduzidos em palavras –
linguagem simbólica, – porém, ao serem tradu-
zidos em Pensamento Simbólico, perdem a sua
essência, como acontece quando alguém expli-
ca um quadro ou uma sonata. A sonata e o qua-
dro já falavam por si, e a palavra, embora traga
outra forma de Conhecimento, obscurece mo-
mentaneamente a percepção estética.
O Pensamento Sensível, veloz e incessan-
te, é base e raiz do Pensamento Simbólico, in-
termitente e lento, sem o qual este não existi-
ria, mas que existe sem aquele. Não necessita se
transformar em Pensamento Simbólico, isto é,
em palavras, porque são dois diferentes níveis e
formas de pensar.
O Pensamento Sensível, primogênito e
genitor, inventa as Palavras, e as Palavras, orga-
nizadas, constroem o Pensamento Simbólico.
Os dois Pensamentos, o Sensível e o Sim-
bólico, interagem, subdividem-se e multipli-
cam-se, amalgamam-se impuros, e variam seus
fluxos a cada instante. Despertos, podem se as-
sumir como Consciência, que consiste em pen-
sar o pensamento, criticamente, como Sujeito
que examina o seu Objeto: avalio o que penso,
pensando em vários níveis simultâneos, e deci-
do o que faço. A Consciência é Ética: escolhe
seus valores... sejam quais forem.
O Pensamento Sensível não ocupa ne-
nhum espaço no tempo, mas o Pensamento
Simbólico exige tempo para ocupar o seu espaço.
Esse é o segredo da Arte.
O Teatro do Oprimido, – como Arte que
é –, sem desvalorizar a Palavra, procura estimu-
lar nos seus participantes, através dos sentidos,
o Conhecimento e o Pensamento Sensíveis em
cada instante da Ação teatral, metáfora da vida,
em cada Imagem e em cada Som. Vai além, e
procura conhecer a própria Palavra como obje-
to sensível, pois entende que toda Sintaxe é
Poesia – pode ser ruim, mas é poesia…
Duas palavras, quando se associam, criam
um terceiro Ser, soma infinita de significados.7
O Pensamento Sensível encara o Pensa-
mento Simbólico: entre os dois, sobrevém a cor-
dialidade complementar... ou a pororoca lin-
güística e sensorial se estabelece.
Sendo imperfeitos nossos sentidos, – úni-
cos em cada ser humano –, cada um de nós terá,
desse mundo, uma percepção imperfeita e única.
Apesar disso, podemos dizer que nossas
percepções do mundo, – embora sejam apenas
o nosso mundo e não o mundo –, assemelham-se
entre elas e, dele, podemos predicar algumas
características reconhecidas por todos, cada qual
a seu modo que, embora diferente, é semelhan-
te: isto é uma cadeira; aquilo, uma mesa; este,
um oprimido; aquele, um opressor.
Temos que reconhecer, no entanto, que
nossa singular visão da mesa e da cadeira, como
de tudo que nos cerca, tem os limites da nossa
percepção, envolta, como está, em nossas emo-
ções e memórias; articulada, como está, com
nossos desejos e necessidades.
6 O Conhecimento é o articulador das informações, e o Pensamento é o formador de decisões e o prove-
dor de ações que passam, ou não, pela Consciência.
7 Chove indica água que cai do céu; muito, indica uma quantidade indefinida. Chove muito, designa
desde a fina garoa até a torrencial tempestade tropical.
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194
O Teatro do Oprimido, ao propor os ci-
dadãos como atores e espectadores, – espect-ato-
res – palco e platéia, Objetos e Sujeitos da ação
dramática e do diálogo-fórum, deve, necessaria-
mente, começar pelo relato individual de uma
história verdadeira: uma opressão particular – o
Coro é formado por indivíduos.
A partir do particular, no entanto, não se
dirige à singularidade dessa opressão, mas sim à
generalidade de opressões semelhantes – do in-
divíduo ao grupo social.
Essa expansão, ao mesmo tempo em que
se espraia pelo múltiplo, aprofunda-se na uni-
cidade de cada participante, pois a vida social
penetra e se reflete na mente de cada cidadão:
não é possível separar, estanques, o mundo lá
de fora e o de dentro de nós – a assim chamada
política, e a psicologia, assim chamada.
Vivemos flutuando no real, sem com ele
nos confundirmos. Como nossas particulares
flutuações se assemelham, podemos dialogar –
Diálogo Social codificado, cheio de imperfei-
ções e mal-entendidos, mas baseado no tácito
acordo de que estamos falando da mesma coisa
quando sabemos, conscientes ou não, que fala-
mos de coisas diferentes.
Esse Diálogo Social é por todos aceito em
função da relação custo-benefício: ao preço de
fingimento e faz-de-conta, renunciamos à bus-
ca do inaccessível Conhecimento do Outro para
ganharmos a agradável sensação de sermos par-
ceiros, até iguais. Incluímos ainda, na coluna
dos ganhos, a possibilidade otimista de nos
aproximarmos, cada vez mais, de um quase-co-
nhecimento através desse quase-diálogo, e che-
garmos a uma quase-verdade.
Delírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinação
e as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Arte
Essa flutuação sobre o real encontra, em condi-
ções e momentos especiais, a feição de decola-
gens e vôos siderais.
Quando um poeta, imerso em seus pen-
samentos, memórias e imaginações, escreve o
seu poema; quando um pintor, alheio ao mun-
do, pinta o seu quadro; quando um composi-
tor escuta sons que transcreve em partituras,
sem que ninguém os ouça; quando o ator sobe
ao palco e finge ser quem ele sabe que não é, e
os espectadores fingem acreditar, e acreditam –
estes são casos de Formas Delirantes de percep-
ção estética do mundo.
Formas Delirantes diferem dos Delírios
porque são socialmente enquadradas, ritualiza-
das, estruturadas, – têm lugar, modo e hora –, e
porque são, ou podem ser, reversíveis pelo pró-
prio sujeito que as produz.
No Delírio Patológico, o sujeito, por si
só não é capaz, ou é pouco capaz, de fazer esta
reversão; incapaz mesmo de compreendê-la e de
compreender-se.
Formas Delirantes são ainda diferentes
porque os Delírios são repetitivos, limitados a
poucas interpretações do real, empobrecedores,
enquanto que as Formas Delirantes são criati-
vas, imaginosas, e rompem limites.
Por essa virtude de romper limites, as For-
mas Delirantes correm o risco de se transfor-
marem em Alucinações8, o que ocorre quando
são ativadas sensações sem os objetos que as pro-
voquem, quando se pode ver o que não existe e
pode-se abraçar a imaginação. Isto acontece nos
8 O Delírio interpreta erroneamente a realidade que existe, atribuindo-lhe valores e propósitos que, reco-
nhecidamente, não são verdadeiros, ou não se coadunam com a usual interpretação coletiva; a Alucina-
ção cria uma realidade inexistente através de sensações, imagens e sons que, igualmente, inexistem.
O Delírio pode ser uma forma de racionalizar a Alucinação, que pode ter sido o seu estágio anterior,
mas pode, igualmente, provocá-la: Alucinógeno produto da Alucinação.
As Formas Delirantes afastam-se da realidade objetiva, que é por todos compartida, e instalam-se em
uma realidade criada, para a qual a todos convida (como no teatro, conserto musical ou dança), ou das
quais a todos exclui (como no momento criativo solitário do pintor ou compositor).
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QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido
195
transes alucinados de certas religiões animistas,
como nos transes alucinados de certos pintores,
compositores, atores e outros artistas.
Formas Delirantes e Alucinações, são ma-
neiras especiais com as quais o Sujeito organiza
e estrutura, valora e expressa, a sua percepção
do mundo – nisso se assemelham. São diferen-
tes porque, na Alucinação, o Sujeito torna-se
vítima do descontrole perceptivo e, nas Formas
Delirantes, o Sujeito se permite e atinge os li-
mites desse descontrole, sem ultrapassá-lo.
Assemelham-se, ainda, porque ambas são
aventuras investigatórias do intelecto, governa-
do ou não.
Podemos mesmo falar de uma Alucina-
ção Estética, controlável pelo artista, diferente
da Alucinação Patológica, senhora do paciente.
TTTTTeatreatreatreatreatro do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Política
Vivemos uma época que não é melhor nem pior
do que outras – é igualmente cruel, individua-
lista e excludente.
Olhando para o passado, vemos desuma-
nas guerras religiosas e pagãs, etnocídios e vari-
adas formas de genocídios. Isto é o mesmo que
hoje vemos, não só nos bárbaros países africa-
nos e asiáticos, mas nos civilizados europeus e
americanos: mata-se à tripa forra.
Se, ontem, piratas e flibusteiros atacavam
e roubavam as naus em alto-mar, hoje bandidos
e meliantes assaltam carros e ônibus na Linha
Vermelha, caminhões na estrada.
Se, ontem, soldados marchavam a pé cru-
zando fronteiras contíguas, hoje, exércitos in-
teiros viajam de continente a continente, e ma-
tam, – não espada na mão, mas suavemente
teclando sofisticados computadores que, à dis-
tância, disparam bombas inteligentes e impie-
dosas que sobrevoam países e perseguem seus
inimigos com raios infravermelhos e ultraviole-
tas, lazer, e o que mais se invente.
Concordo com Shakespeare para quem o
teatro é Arte que nos mostra a nossa verdadeira
cara – virtudes e vícios. Isto é a nossa Arte. Mas
não concordo que isso baste: se não nos agrada
nossa cara, há que mudá-la.
Temos que invadir esse espelho e, como
faz a criança com a areia da praia, temos que
fazer a escultura de como queremos ser.
Arte é Política. Teatro é movimento: mos-
tra ações humanas, atos sociais, e todas ações
humanas têm sentido, meta e significado. Por
que parar quando baixa o pano? Aí começa!
Concordo com aqueles filósofos que dis-
seram, como Hegel, que a “Arte é o luzir da Ver-
dade através dos meios sensoriais”. Mas não
concordo que essa verdade que luz, se olharmos
cara a cara o mundo em que vivemos, seja divi-
na como pensava o filósofo: é terrena.
Nem sempre é bela, mas bela há que tor-
ná-la. Como faz a criança pintando suas cores.
Concordo que temos que buscar a Verda-
de, aquela que mostre porque a dor existe, e
quem a causa. Mas não nos basta a Imagem do
Espelho: temos que inventar outra Imagem
que nos satisfaça, – imagem sem opressão –,
e persegui-la.
Como faz a criança quando aprende a di-
zer “Não!”
Teatro é arte dinâmica: não podemos pa-
ralisá-la dizendo – “Assim é a vida!” – antes di-
gamos: “Assim será!”
Embora sejam fundamentais e insubstituí-
veis – por isso escrevo! – não será só com pala-
vras que conheceremos o mundo; menos ainda
poderemos transformá-lo. No teatro, ensaia-se
para o espetáculo e, no espetáculo, fisicamente
e não só com palavras, devemos ensaiar os mei-
os de transformar o mundo: entrando em cena.
Depois, no real, temos que transformá-lo.
Ensaiar com os sentidos, as emoções, a
inteligência e a criatividade que tínhamos como
crianças, mas com a experiência vivida, a cora-
gem e a responsabilidade que temos agora,
como adultos.
Ensaiar e, depois, extrapolar para a socie-
dade o que descobrirmos no palco ou na arena.
O jogo da criança era à brinca; o nosso,
é à vera.
R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01195

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  • 1. QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido 189 Q QQQQQuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebêuando nasce um bebê O Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento SimbólicoO Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Tno Tno Tno Tno Teatreatreatreatreatro do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimidoo do Oprimido AAAAAugusto Boal Augusto Boal é dramaturgo, encenador e coordenador do Centro do Teatro do Oprimido. 1 Conhecimento que não depende e é anterior à experiência prática. O Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o ConhecimentoO Corpo e o Conhecimento uando nasce um bebê é um corpo huma- no que vem ao mundo. Passam a existir o corpo e o mundo – o corpo no mundo. Esse corpo não traz consigo nenhum pre- conceito, nenhum parti-pris, idéias ina- baláveis, certezas ou intransigências. Não torce por nenhum time de futebol e não professa nenhuma religião. Não faz filosofia nem compara valores – desconhece valores: é apenas um corpo humano. Não possui nenhum Conhecimento a priori, no sentido kantiano1, que ultrapasse os limites do que lhe é orgânico e, nele, singular. Apenas traz consigo seus cinco sentidos, neces- sidades biológicas e, mais tarde, incipientes de- sejos. Sobretudo, traz um cérebro com cem bi- lhões de neurônios que criam infinitas sinapses: a Mente, que é a sua vida psíquica, organizadora de emoções e produtora de idéias e projetos. Seus sentidos já existiam, em desenvolvi- mento, dentro do ventre materno, e já guarda- vam memórias. Sua pele já tocava o líquido amniótico, que poucas variações tinha de tem- peratura e consistência. Seus ouvidos já recebiam sons vindos de fora, amortecidos; sua boca ape- nas sentia sabor nos lábios apertados; seus olhos nada viam, e seus pulmões não respiravam. O nascimento produz um choque senso- rial de tremenda violência, e o bebê chora. As- sustado, pensa: pensa um pensamento mudo, pois não conhece palavras. Sua pele toca outras peles, roupas e coisas – ele sente e compara. Sons, à sua volta, tornam-se explosivos e diversi- ficados. Pela primeira vez seus pulmões se reple- tam de ar e o bebê cheira. Saboreia o leite mater- no. Seus olhos, quando se abrem bem abertos, ao tudo verem, nada vêem: lentamente, ao lon- go dos dias que passam, das pessoas e coisas que passam, distinguem traços e cores, desenham perspectivas e reconhecem fisionomias. Os primeiros contatos com o mundo ex- terior são de natureza sensorial – isto é, estéti- cos. A Estética nasce com o bebê. A Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento SensívelA Estética como Pensamento Sensível Quando, entre 1750 e 1758, o filósofo alemão Alexander Baumgarten escreveu seus dois livros sobre a Estética, ele a definiu assim: “Os Sen- tidos, – e os Conhecimentos que deles derivam –, permitem imaginar uma gnosiologia inferior. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01189
  • 2. sssss ala ppppp reta 190 Não duvido que possa existir uma Ciência do Conhecimento Sensível... intermediária entre a sensação pura, obscura e confusa, e o puro inte- lecto, claro e distinto. Ela não é nem algo exis- tente na própria Coisa, nem pura criação do ser humano: é o resultado de uma síntese particular, harmonia entre Coisa e Pensamento. O Con- ceito Sensível é particular, como objeto de sensi- bilidade; e geral, como objeto de entendimento”. Estética é uma relação Sujeito-Objeto, concordo. Discordo apenas do uso da palavra “inferior” para designar o Conhecimento Sen- sível que não é uma função estática, arquivo morto ou mero registro de Informações senso- riais, mas sim o orquestrador das novas infor- mações com as anteriormente recebidas, e com os desejos e necessidades do Sujeito. Quero adotar a idéia de que existe uma outra forma de pensar, não verbal – o Pensa- mento Sensível –, que é dinâmico, articulado e resolutivo. O fluxo contínuo de nossas ações e deci- sões, que levam em conta, e ao cabo, as infor- mações orquestradas pelo Conhecimento, são obra de um verdadeiro Pensamento Sensível que, dinamizando esse Conhecimento, determi- na e orienta a dinâmica do Sujeito. O Conhecimento Sensível organiza o Léxico de todos os elementos psíquicos em Sin- taxe valorativa – conjuga-se no presente do indicativo; o Pensamento Sensível, apoiado no Conhecimento, é Gerúndio. O Conhecimen- to oferece opções; o Pensamento escolhe e inventa. O Conhecimento interroga; o Pensa- mento responde. O Conhecimento é o conhe- cido; o Pensamento, o conhecer. O Conheci- mento traz o passado até o instante presente; o Pensamento, do instante, avança para o futuro. Ambos são etapas interpenetráveis de um mes- mo processo psíquico. Também não me parece adequada a ex- pressão “puro intelecto” pois tal pureza não exis- te: o Intelecto é o resultado da metamorfose contínua e progressiva de sensações, emoções e idéias, atuais e passadas, que rodopiam na Men- te, antes de se projetarem no futuro como fala e ação. Mas concordo que, na formação do Inte- lecto, existe um salto vital, impossível de ser conhecido: da mesma forma que o ácido desoxirribonucléico adquire vida, – ou nela se transforma, sem que saibamos como, nem por- quê –, o cérebro orgânico cria a Mente multi- fária e, esta, o Intelecto refinado. A Estética não é a Ciência do Belo, como se costuma dizer, mas sim a da Comunicação Sensorial e da Sensibilidade. Fosse somente a Ciência do Belo e do Sublime, teríamos que in- ventar uma outra palavra para designarmos o quase-Belo, o menos-Belo e a Fealdade. O Belo, que da Estética faz parte, é a organização senso- rial da realidade, anárquica e aleatória, em for- mas que lhe dão sentido e, a nós, prazer. Pode ser traduzido e explicado em palavras, mas não as necessita. O Feio, que é o antônimo apenas de Bo- nito, pode ser Belo. O Feio é Belo – não há nis- to nenhuma contradição. Bela é a Verdade. Qual? Como não somos todos iguais, haverá muitas. A Estética não tem valores universais. Afirmo também que não existe o Mais- Belo e o Menos-Belo, conceitos criados em so- ciedades individualistas, capitalistas e neoli- berais, em que é importante ser sempre o primeiro, o melhor. Penso, ao contrário, que cada Coisa é ou não Bela em função da sua ca- pacidade de, através dos nossos sentidos, signi- ficar uma verdade real ou imaginária, dentro de condições temporais e concretas, quer nos atraia ou assuste. O Maria Fumaça e o Trem-Bala, o carri- nho de mão e o carro de corridas, são belos em suas realidades sociais, como, nas naturais, o ar- busto e a sequóia, o riacho e o mar. O Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o MundoO Corpo e o Mundo Para sobreviver, o bebê precisa conhecer o mun- do – sobretudo, o seu lugar no mundo. No en- tanto, os estímulos que recebe são pletóricos e confusos, desordenados, difíceis de entender. Seus sentidos registram sensações torrenciais. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01190
  • 3. QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido 191 Aquelas que se repetem são fixadas no seu cére- bro e, organizados por sua mente, servirão de parâmetros e paradigmas para receber e estru- turar as próximas que virão. Sensações não nos vêm isoladas, puras e refratárias: cada uma recebe e produz emoções específicas. Se o bebê mama, o estômago sacia- do e o sabor do leite se associam ao prazer de tocar o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir sua voz. Cada sensação está envolta em emo- ções e memórias. Se o bebê ouve música suave, se recon- forta; ouvindo techno, essa agressiva sensação virá associada ao espanto e à dor. Sendo con- frontado à luz de holofotes, seu corpo se retrai em sofrimento e se pacifica, se exposto à suave luz azul. Progressivamente, sensações e emoções, – e as memórias a elas referentes –, são organiza- das pelo Conhecimento em estruturas sensori- ais, mnemônicas e emotivas que, em movimen- to, são o Pensamento Sensível. Nele, e entre elas, existe o fenômeno da Sinestesia que propi- cia o seu entrelaçamento e interdependência.2 O bebê passa a pressentir, sinestesica- mente, aqueles estímulos que prenunciam pra- zeres, – como a mãe que se aproxima para lhe dar de mamar –, ou ameaçam dores: vozes dis- tantes ou gritos. Suas faculdades motoras se desenvolvem; nessa medida, o bebê aprende que, não só é capaz de perceber o mundo, mas é também capaz de se associar a ele. Ouve música e move o corpo, dança, perseguindo o ritmo que nem sempre encontra. Reage, com prazer, ao canto dos pássaros, e teme o trovão. Sente o cheiro de leite e busca o seio. Vê o pai ou a mãe, e abre os braços. Aprende a sorrir – grande invenção humana. Quanto mais se desenvolvem seus mús- culos, mais aprende que pode, não apenas per- ceber e se associar ao mundo, mas pode também transformá-lo. Se levarmos uma criança à praia, com areia ela fará uma escultura e se descobrirá escultora. Se lhe dermos papel branco e lápis de cor, ela se descobrirá pintora. Se lhe dermos pe- ças de armar, fará uma bela arquitetura – a crian- ça é arquiteta. Nesta seqüência – perceber o mundo, associar-se a ele e transformá-lo – estes são os primeiros contatos da criança com o mundo que a cerca: contatos estéticos, artísticos, or- ganizadores de sensações, às quais atribui valo- res e qualidades. Essa forma de pensar e de se relacionar com o mundo é uma forma estética de conhecê-lo e, com ele, dialogar. As lingua- gens estéticas são cognitivas – são, em si mes- mas, Conhecimento. A Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento SimbólicoA Palavra e o Pensamento Simbólico O bebê, desde cedo, começa a reter em sua me- mória sons seqüenciais associados continua- mente às mesmas coisas e pessoas, atos ou fatos, presentes ou futuros: são as Palavras. Surge o Pensamento Simbólico. A soberana Palavra nos traz o Conheci- mento Abstrato que é produzido pelas lingua- gens informativas:3 aquelas que transportam 2 Sinestesia é o diálogo entre os sentidos, p. ex., a visão de uma pessoa ou coisa que provoca sensações epidérmicas de prazer ou dor, emoções de medo ou atração. Diferente da Cenestesia que se refere às impressões sensoriais internas do organismo que nos fazem sentir bem-dispostos ou tensos, saudáveis ou doentes. 3 Se uma pessoa a outra diz – “Eu te amo” –, essa frase refere-se ao amor, mas não é o amor. Se nada disser, e apenas olhar a pessoa amada, seu olhar é o amor. A palavra amor é linguagem informativa, enquanto que a voz com que é pronunciada, e o rosto de quem a pronuncia naquele momento, esses, são linguagem cognitiva. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01191
  • 4. sssss ala ppppp reta 192 Conhecimento, mas não são Conhecimento; referem-se à Coisa, mas não são a Coisa. São simbólicas e não sinaléticas.4 A Linguagem das Palavras é essencial na constituição do Ser Humano, pois permite ar- ticular pensamentos sobre o que não está em contato direto com os sentidos, pensar o Futu- ro que não existe, refletir sobre o passado revo- luto; permite adiar e antecipar, organizar o tem- po e dar significados ao espaço, fazer promessas e ameaças, jogar xadrez, criar agendas, usar o dinheiro e o cartão de crédito, emprestar e co- brar juros, fazer hipotecas e continuar moran- do na mesma casa, imaginar o não-acontecido e ponderar possibilidades de acontecer. Com a invenção da Palavra, o Ser Huma- no descobriu também a Mentira e suas formas mais comuns: o Falso-Testemunho e a Calúnia, eficazes armas de Poder. Com a Mentira surgiu a Hipocrisia que é a possibilidade de se dar con- tínua aparência de verdade ao que o Sujeito sabe ser falso. O Pensamento Simbólico sufoca o Pensamento Sensível. Criando uma outra forma de vida, a Pa- lavra torna mais complexa e densa a Realidade, e a boa relação entre os dois Pensamentos pode entrar em franca colisão. É curioso lembrar que a palavra grega Hupokrisia, entre os seus vários sentidos, tinha o de “Desempenhar um papel em uma peça” – isto é: a Arte do Ator. Significava também: “A resposta do Oráculo”. Oráculo e Ator, ambos misteriosos, tinham, e conservam, o mágico poder de impor empática submissão aos seus interlocutores e, neles, inocular mensagens, sen- timentos e valores. A Empatia é arma perigosa, instrumento de convencimento e poder. A Ficção, que é uma variante da Mentira criada e transmitida através da Empatia, revela- se como uma outra forma, – paralela, estrutu- rada e coerente –, de compreensão ou interpre- tação do real que pode produzir opressivas e categoriais estruturas de raça, casta ou classe, credo ou sexo. Torna-se uma outra Realidade, onde até mesmo o Improvável e o Impossível passam a ser categorias do Real. A palavra Ficção torna-se a única ficção que realmente existe, pois que existe descolada de qualquer realidade. A luta pela posse do Território, tão co- mum entre os animais predatórios como nós, os humanos, estendeu-se às palavras e não so- mente à terra e aos bens materiais. Liberdade e Democracia, por exemplo, passaram a ter o significado que lhes atribuem os seus proprietários, e perderam o sentido eti- mológico que possuíam ao serem criadas. O neoliberalismo chama de demo-cracia (o poder do povo) ao que todos sabemos ser uma pluto- cracia (o poder do dinheiro), e Liberdade passa a designar a razão do mais forte. Com a introdução da Palavra, que é simbólica, as linguagens estéticas, que são sina- léticas, esmaecem e se tornam cada vez menos conscientes e consistentes. O Pensamento Sen- sível torna-se diáfano ou obscuro: não vemos com nitidez o que olhamos, não escutamos com precisão o que ouvimos, nem sentimos em toda sua extensão o que tocamos. Prestamos atenção ao significado das palavras – mas não ao tim- bre, volume, ritmo e outras características sen- soriais da voz. Definha, em nós, o artista.5 No entanto, o corpo humano e as lin- guagens estéticas são capazes de um Conheci- 4 Nas linguagens simbólicas os significantes estão dissociados do significado; nas linguagens sinaléticas, significantes e significados são inseparáveis. No exemplo anterior, a palavra amor é simbólica e o rosto do amante sinalético. 5 Temos que re-aprender a ver a coisa no espaço, o espaço da coisa, e o espaço do espaço, feito coisa; temos que sentir o que toca o nosso corpo, e sentir o corpo; escutar os sons que ouvimos, e os que estão gravados na memória. Temos que redescobrir o corpo: temos um corpo. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01192
  • 5. QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido 193 mento, paralelo e simultâneo ao das palavras, indispensável para a mais ampla e multidimen- sional percepção do mundo, e para a sua compreensão mais profunda. São formas de co- nhecer que produzem um Conhecimento espe- cífico que somente através delas se obtém, e às outras se acrescenta. O que aprendemos ao ver uma pessoa, é insubstituível pelo que, dela, pos- sam nos dizer. Ouvi-la nos traz um conheci- mento que é insubstituível pelo que, da sua voz, se possa predicar. Esse Conhecimento e esse Pensamento Sensíveis6 podem ser traduzidos em palavras – linguagem simbólica, – porém, ao serem tradu- zidos em Pensamento Simbólico, perdem a sua essência, como acontece quando alguém expli- ca um quadro ou uma sonata. A sonata e o qua- dro já falavam por si, e a palavra, embora traga outra forma de Conhecimento, obscurece mo- mentaneamente a percepção estética. O Pensamento Sensível, veloz e incessan- te, é base e raiz do Pensamento Simbólico, in- termitente e lento, sem o qual este não existi- ria, mas que existe sem aquele. Não necessita se transformar em Pensamento Simbólico, isto é, em palavras, porque são dois diferentes níveis e formas de pensar. O Pensamento Sensível, primogênito e genitor, inventa as Palavras, e as Palavras, orga- nizadas, constroem o Pensamento Simbólico. Os dois Pensamentos, o Sensível e o Sim- bólico, interagem, subdividem-se e multipli- cam-se, amalgamam-se impuros, e variam seus fluxos a cada instante. Despertos, podem se as- sumir como Consciência, que consiste em pen- sar o pensamento, criticamente, como Sujeito que examina o seu Objeto: avalio o que penso, pensando em vários níveis simultâneos, e deci- do o que faço. A Consciência é Ética: escolhe seus valores... sejam quais forem. O Pensamento Sensível não ocupa ne- nhum espaço no tempo, mas o Pensamento Simbólico exige tempo para ocupar o seu espaço. Esse é o segredo da Arte. O Teatro do Oprimido, – como Arte que é –, sem desvalorizar a Palavra, procura estimu- lar nos seus participantes, através dos sentidos, o Conhecimento e o Pensamento Sensíveis em cada instante da Ação teatral, metáfora da vida, em cada Imagem e em cada Som. Vai além, e procura conhecer a própria Palavra como obje- to sensível, pois entende que toda Sintaxe é Poesia – pode ser ruim, mas é poesia… Duas palavras, quando se associam, criam um terceiro Ser, soma infinita de significados.7 O Pensamento Sensível encara o Pensa- mento Simbólico: entre os dois, sobrevém a cor- dialidade complementar... ou a pororoca lin- güística e sensorial se estabelece. Sendo imperfeitos nossos sentidos, – úni- cos em cada ser humano –, cada um de nós terá, desse mundo, uma percepção imperfeita e única. Apesar disso, podemos dizer que nossas percepções do mundo, – embora sejam apenas o nosso mundo e não o mundo –, assemelham-se entre elas e, dele, podemos predicar algumas características reconhecidas por todos, cada qual a seu modo que, embora diferente, é semelhan- te: isto é uma cadeira; aquilo, uma mesa; este, um oprimido; aquele, um opressor. Temos que reconhecer, no entanto, que nossa singular visão da mesa e da cadeira, como de tudo que nos cerca, tem os limites da nossa percepção, envolta, como está, em nossas emo- ções e memórias; articulada, como está, com nossos desejos e necessidades. 6 O Conhecimento é o articulador das informações, e o Pensamento é o formador de decisões e o prove- dor de ações que passam, ou não, pela Consciência. 7 Chove indica água que cai do céu; muito, indica uma quantidade indefinida. Chove muito, designa desde a fina garoa até a torrencial tempestade tropical. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01193
  • 6. sssss ala ppppp reta 194 O Teatro do Oprimido, ao propor os ci- dadãos como atores e espectadores, – espect-ato- res – palco e platéia, Objetos e Sujeitos da ação dramática e do diálogo-fórum, deve, necessaria- mente, começar pelo relato individual de uma história verdadeira: uma opressão particular – o Coro é formado por indivíduos. A partir do particular, no entanto, não se dirige à singularidade dessa opressão, mas sim à generalidade de opressões semelhantes – do in- divíduo ao grupo social. Essa expansão, ao mesmo tempo em que se espraia pelo múltiplo, aprofunda-se na uni- cidade de cada participante, pois a vida social penetra e se reflete na mente de cada cidadão: não é possível separar, estanques, o mundo lá de fora e o de dentro de nós – a assim chamada política, e a psicologia, assim chamada. Vivemos flutuando no real, sem com ele nos confundirmos. Como nossas particulares flutuações se assemelham, podemos dialogar – Diálogo Social codificado, cheio de imperfei- ções e mal-entendidos, mas baseado no tácito acordo de que estamos falando da mesma coisa quando sabemos, conscientes ou não, que fala- mos de coisas diferentes. Esse Diálogo Social é por todos aceito em função da relação custo-benefício: ao preço de fingimento e faz-de-conta, renunciamos à bus- ca do inaccessível Conhecimento do Outro para ganharmos a agradável sensação de sermos par- ceiros, até iguais. Incluímos ainda, na coluna dos ganhos, a possibilidade otimista de nos aproximarmos, cada vez mais, de um quase-co- nhecimento através desse quase-diálogo, e che- garmos a uma quase-verdade. Delírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinaçãoDelírio, alucinação e as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Artee as formas delirantes da Arte Essa flutuação sobre o real encontra, em condi- ções e momentos especiais, a feição de decola- gens e vôos siderais. Quando um poeta, imerso em seus pen- samentos, memórias e imaginações, escreve o seu poema; quando um pintor, alheio ao mun- do, pinta o seu quadro; quando um composi- tor escuta sons que transcreve em partituras, sem que ninguém os ouça; quando o ator sobe ao palco e finge ser quem ele sabe que não é, e os espectadores fingem acreditar, e acreditam – estes são casos de Formas Delirantes de percep- ção estética do mundo. Formas Delirantes diferem dos Delírios porque são socialmente enquadradas, ritualiza- das, estruturadas, – têm lugar, modo e hora –, e porque são, ou podem ser, reversíveis pelo pró- prio sujeito que as produz. No Delírio Patológico, o sujeito, por si só não é capaz, ou é pouco capaz, de fazer esta reversão; incapaz mesmo de compreendê-la e de compreender-se. Formas Delirantes são ainda diferentes porque os Delírios são repetitivos, limitados a poucas interpretações do real, empobrecedores, enquanto que as Formas Delirantes são criati- vas, imaginosas, e rompem limites. Por essa virtude de romper limites, as For- mas Delirantes correm o risco de se transfor- marem em Alucinações8, o que ocorre quando são ativadas sensações sem os objetos que as pro- voquem, quando se pode ver o que não existe e pode-se abraçar a imaginação. Isto acontece nos 8 O Delírio interpreta erroneamente a realidade que existe, atribuindo-lhe valores e propósitos que, reco- nhecidamente, não são verdadeiros, ou não se coadunam com a usual interpretação coletiva; a Alucina- ção cria uma realidade inexistente através de sensações, imagens e sons que, igualmente, inexistem. O Delírio pode ser uma forma de racionalizar a Alucinação, que pode ter sido o seu estágio anterior, mas pode, igualmente, provocá-la: Alucinógeno produto da Alucinação. As Formas Delirantes afastam-se da realidade objetiva, que é por todos compartida, e instalam-se em uma realidade criada, para a qual a todos convida (como no teatro, conserto musical ou dança), ou das quais a todos exclui (como no momento criativo solitário do pintor ou compositor). R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01194
  • 7. QQQQQuando nasce um bebê. O Pensamento Sensível e o Pensamento Simbólico no Teatro do Oprimido 195 transes alucinados de certas religiões animistas, como nos transes alucinados de certos pintores, compositores, atores e outros artistas. Formas Delirantes e Alucinações, são ma- neiras especiais com as quais o Sujeito organiza e estrutura, valora e expressa, a sua percepção do mundo – nisso se assemelham. São diferen- tes porque, na Alucinação, o Sujeito torna-se vítima do descontrole perceptivo e, nas Formas Delirantes, o Sujeito se permite e atinge os li- mites desse descontrole, sem ultrapassá-lo. Assemelham-se, ainda, porque ambas são aventuras investigatórias do intelecto, governa- do ou não. Podemos mesmo falar de uma Alucina- ção Estética, controlável pelo artista, diferente da Alucinação Patológica, senhora do paciente. TTTTTeatreatreatreatreatro do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Políticao do Oprimido – Arte e Política Vivemos uma época que não é melhor nem pior do que outras – é igualmente cruel, individua- lista e excludente. Olhando para o passado, vemos desuma- nas guerras religiosas e pagãs, etnocídios e vari- adas formas de genocídios. Isto é o mesmo que hoje vemos, não só nos bárbaros países africa- nos e asiáticos, mas nos civilizados europeus e americanos: mata-se à tripa forra. Se, ontem, piratas e flibusteiros atacavam e roubavam as naus em alto-mar, hoje bandidos e meliantes assaltam carros e ônibus na Linha Vermelha, caminhões na estrada. Se, ontem, soldados marchavam a pé cru- zando fronteiras contíguas, hoje, exércitos in- teiros viajam de continente a continente, e ma- tam, – não espada na mão, mas suavemente teclando sofisticados computadores que, à dis- tância, disparam bombas inteligentes e impie- dosas que sobrevoam países e perseguem seus inimigos com raios infravermelhos e ultraviole- tas, lazer, e o que mais se invente. Concordo com Shakespeare para quem o teatro é Arte que nos mostra a nossa verdadeira cara – virtudes e vícios. Isto é a nossa Arte. Mas não concordo que isso baste: se não nos agrada nossa cara, há que mudá-la. Temos que invadir esse espelho e, como faz a criança com a areia da praia, temos que fazer a escultura de como queremos ser. Arte é Política. Teatro é movimento: mos- tra ações humanas, atos sociais, e todas ações humanas têm sentido, meta e significado. Por que parar quando baixa o pano? Aí começa! Concordo com aqueles filósofos que dis- seram, como Hegel, que a “Arte é o luzir da Ver- dade através dos meios sensoriais”. Mas não concordo que essa verdade que luz, se olharmos cara a cara o mundo em que vivemos, seja divi- na como pensava o filósofo: é terrena. Nem sempre é bela, mas bela há que tor- ná-la. Como faz a criança pintando suas cores. Concordo que temos que buscar a Verda- de, aquela que mostre porque a dor existe, e quem a causa. Mas não nos basta a Imagem do Espelho: temos que inventar outra Imagem que nos satisfaça, – imagem sem opressão –, e persegui-la. Como faz a criança quando aprende a di- zer “Não!” Teatro é arte dinâmica: não podemos pa- ralisá-la dizendo – “Assim é a vida!” – antes di- gamos: “Assim será!” Embora sejam fundamentais e insubstituí- veis – por isso escrevo! – não será só com pala- vras que conheceremos o mundo; menos ainda poderemos transformá-lo. No teatro, ensaia-se para o espetáculo e, no espetáculo, fisicamente e não só com palavras, devemos ensaiar os mei- os de transformar o mundo: entrando em cena. Depois, no real, temos que transformá-lo. Ensaiar com os sentidos, as emoções, a inteligência e a criatividade que tínhamos como crianças, mas com a experiência vivida, a cora- gem e a responsabilidade que temos agora, como adultos. Ensaiar e, depois, extrapolar para a socie- dade o que descobrirmos no palco ou na arena. O jogo da criança era à brinca; o nosso, é à vera. R4-A4-Augusto_Boal.PMD 23/2/2007, 14:01195