Registo impresso do Intercâmbio Bilateral Portugal-Estónia, realizado no verão de 2010 entre São João da Madeira (pt) e Tallin (ee), pela Associação Cultural Ginga Brasil Capoeira, com a supervisão do Contra-Mestre Bola e do Professor Cangaceiro.
2. Juventude em Acção
Gingando para Cidadania
Nesta edição:
Editorial 2
Juventude em Acção 3
Gingando para Cidadania 6 Expediente e contactos
Ensino não-formal 10
Esta revista foi elaborada por uma equipa de participantes do projecto Gingando para Cida-
O que é AEJ? 12 dania e impressa na CopyScan.
Jornalista Responsável: Raquel Evangelista — raquellobao80@gmail.com
Capoeira e inclusão social 14
Revisão: Renata de Freitas — renatafreitas@gmail.com
Capoeira em Portugal 18 Colaboradores: Fred Abreu, Geraldo Junior, Marina Tofantsuk, Olena Valdenmaiier, Pedro
Abib, Luiz Renato Vieira, Raquel Evangelista, Ricardo Nascimento, Sérgio Xavier.
Capoeira na Estónia 24 Arte: Fabiana Pavel — fa.pavel@gmail.com
www.gingandoparacidadania.blogspot.com
Capoeira, comunidade e
26
globalização
AEJ — Associação Estamos Juntos Tel: +351 25832680
Rua de Ribes, apartado 451 capoeira@aej.pt
Capoeira e festas populares 31 São João da Madeira — Aveiro www.aej.pt
3701-194 — Portugal
Ginga Brasil na Europa 36
3. Gingando para Cidadania — Editorial
Desafio superado
Raquel Evangelista*
Esta revista é o resultado do traba- Foi preciso ver o Contra-Mestre Bola que só ganhamos ao sermos tolerantes,
lho realizado durante o intercâmbio dar aulas para crianças da comunidade que somos todos cidadãos europeus e
Gingando para Cidadania, promovido local para perceber que a capoeira é que as diferenças culturais podem ser
pela AEJ e pela Associação Cultural Gin- para todos. Foi preciso assistir às pales- enriquecedoras.
ga Brasil Capoeira nos meses de Julho e tras do Professor Cangaceiro para per- Para aqueles que não conhecem a
Agosto. Eu realmente espero que seu ceber que a história dos meus dois paí- capoeira ou o Juventude em Acção, será
significado seja mais do que um registo ses (Brasil e Portugal) também está mais fácil entender como este aprendi-
impresso do verão de 2010 para todos ligada através da capoeira e influencia zado aconteceu e o que ainda pode ser
envolvidos no projecto. inclusive a identidade das pessoas. Foi feito a partir dos artigos e comentários
Gostaria que todos leitores perce- preciso ver jovens com deficiências físi- aqui publicados. Obrigada a todos que
bessem a importância do Programa cas a praticá-la para perceber que não colaboraram para que esta revista
Juventude em Acção e da utilização da há limites quando se tem motivação. Foi “nascesse”, aos alunos, professores e
capoeira como uma metodologia de preciso ver estonianos e portugueses mestres que estiveram presentes duran-
ensino não-formal, com grande poten- tentando conversar para me certificar te o intercâmbio. Foram vocês que me
cial para o combate à exclusão social. de que a comunicação não-verbal é po- deram a certeza de que vale a pena tra-
Devo admitir que o Gingando para derosa. Foi preciso ver a luta disfarçada balhar para a juventude. Boa leitura!
Cidadania foi um dos maiores desafios de dança para perceber que na vida
que já enfrentei. Até então, minha visão quase tudo pode se transformar.
sobre capoeira era meramente prática. Hoje, estou certa de que o desafio foi
Antes deste projecto, eu não vislumbra- cumprido e que o resultado final pode
*Jornalista, youth worker, mestre e doutora
va o potencial que a actividade concen- ser considerado excelente. Os partici- em Comunicação Social.
tra em si. pantes deste projecto compreenderam raquellobao80@gmail.com
4. Gingando para Cidadania — Juventude em Acção
Atreve-te a descobrir!
Através da Decisão N.º 1719/2006/ peia. O programa promove a mobilidade
CE de 15 de Novembro de 2006, o Parla- dentro e fora das fronteiras europeias, a
mento Europeu e o Conselho adoptaram educação não formal, o diálogo intercul-
o Programa Juventude em Acção ou tural e encoraja a inclusão de todos, volvimento pessoal e social dos seus
Youth in Action Programme para o independentemente da sua origem edu- participantes”, afirma Pompeu Miguel
período entre 2007 e 2013, o que coloca cacional, social ou cultural. Martins, director da agência portuguesa,
em prática o quadro legal de apoio des- Em Portugal, o Juventude em Acção é cuja sede fica na cidade de Braga.
tinado a actividades de aprendizagem gerido pela ANGJPA (Agência Nacional Em 2010, mais de 100 projectos, orga-
não formal para os jovens. para a Gestão do Programa Juventude nizados pelas mais diversas associações
O Programa Juventude em Acção em Acção). Como sua missão é a gestão e entidades, foram aprovados pela
assenta na experiência do anterior Pro- do programa comunitário, a agência agência portuguesa. O número indica
grama Juventude para a Europa (1989- nacional potencia sinergias e assegura que Portugal ainda tem muito trabalho
1999), do Serviço Voluntário Europeu uma administração integrada e eficaz, pela frente, se comparado com o volume
(1996-1999) e do Programa JUVENTU- contribuindo, assim, para o bom funcio- de outros países europeus. “Portugal
DE (2000-2006), tendo sido adoptado namento do programa em causa. “Este tem, hoje, uma Agência que os jovens
após uma consulta aos diferentes inter- programa é uma grande aposta na conhecem e que conhece os jovens. Con-
venientes no domínio da juventude. emancipação dos jovens e das suas tinuaremos neste rumo, confiantes nos
Ele tem como objectivo estimular o organizações, com resultados na expres- resultados destes primeiros dois anos e
sentido activo de cidadania europeia, a são internacional do movimento asso- esperançados de que, juntos, havemos
solidariedade e a tolerância entre os ciativo e num significativo aumento de de chegar a mais gente”, acrescenta
jovens europeus e o seu envolvimento competências, não só no domínio do Pompeu Martins. Mais informações po-
na construção do futuro da União Euro- multilinguismo, mas também no desen- de ser obtidas em www.juventude.pt.
3
5. Prioridades do Juventude em Acção
Uma das prioridades do Programa
Juventude em Acção é a Cidadania Euro-
peia, ou seja, procura-se fomentar nos
jovens a consciência e a sensibilidade
para o facto de serem cidadãos euro-
peus. O objectivo consiste em incentivar
os jovens a reflectir sobre temáticas
europeias e envolvê-los na discussão
sobre a construção e o futuro da União
Europeia.
Outra prioridade é a Participação dos cia representativa; (3) reforçar o apoio Estas quatro prioridades são consi-
Jovens. O objectivo geral é incentivar os às diferentes formas de aprendizagem deradas permanentes. No entanto, há
jovens a serem cidadãos activos. A parti- para a participação. aquelas consideradas anuais. Em 2010,
cipação assume as seguintes dimensões, Outras duas prioridades são a Diver- o tema escolhido foi o combate à pobre-
enunciadas na Resolução do Conselho sidade Cultural e a Inclusão de Jovens za e à exclusão social. Em Portugal, di-
sobre os objectivos comuns no domínio com Menos Oportunidades. Ou seja, os versas iniciativas destacaram o tema.
da participação e da informação dos projectos devem promover a sensibili- Em 2011, haverá um destaque para
jovens: (1) aumentar a participação dos zação e a reflexão sobre as diferenças de o voluntariado. Isto significa que a cada
jovens na vida cívica das respectivas valores e também estimular que os jo- ano, o programa estimula a execução de
comunidades; (2) aumentar a participa- vens em qualquer tipo de situação de projectos que atinjam objectivos ligados
ção dos jovens no sistema da democra- desvantagem possam tomar parte. a estes temas.
“O Juventude em Acção oferece oportunidades importantes para os jovens adquirirem capacidades e competências. Por
conseguinte, é um instrumento essencial para a aprendizagem não formal e informal numa dimensão europeia”.
6. Acção 1.1—Intercâmbios para todos os gostos
O programa Juventude em Acção é mais países, proporcionando-lhes a conhecerem a cultura local e presenciar
dividido em cinco Acções. Cada uma oportunidade de discutirem e confron- o dia a dia dos cidad~os. “Nossa ideia era
delas trata de uma metodologia de ensi- tarem vários temas, ao mesmo tempo permitir que todos os jovens entendes-
no não-formal particular, permitindo que aprendem sobre o país de cada um”. sem o que é ser um cidadão europeu e
que os organizadores de um projecto Dependendo do número de países as vantagens que as diferenças culturais
possam escolher o método mais adequa- envolvidos, um Intercâmbio pode ser podem nos trazer”, afirma Raquel Evan-
do para atingir os objectivos propostos. bilateral, trilateral ou multilateral. O gelista, responsável pelo projecto.
Dentre as Acções, a designada pelo Bilateral justifica-se, em especial, quan- Normalmente, os intercâmbios trila-
número 1.1 é a que pretendemos apre- do os promotores estão a realizar o seu terais ou multilaterais concentram a
sentar a seguir. primeiro projecto europeu, ou quando recepção de todos os grupos de partici-
De acordo com o guia do candidato os participantes não têm experiência a pantes em um único país. Dessa forma,
2010, um Intercâmbio “é um projecto nível europeu. perde-se o contacto com a realidade
que junta grupos de jovens de dois ou Além disso, deve-se observar que local de outro país, mas ganha-se na
um Intercâmbio pode ser itinerante, im- diversidade de grupos participantes.
plicando, para tal, a deslocação de todos
os participantes ao mesmo tempo, a um
ou mais países que participem no inter-
câmbio. Este foi o caso do Gingando
para Cidadania, pois em sua primeira “O Juventude em Acção promove a
fase, o grupo dos jovens estonianos vie- mobilidade dentro e fora das
ram a Portugal e, alguns dias depois, os fronteiras europeias, a educação não
portugueses foram a Estónia. Sua vanta- formal, o diálogo intercultural e
gem está na possibilidade dos grupos encoraja a inclusão de jovens”.
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7. Gingando para Cidadania — Intercâmbio bilateral entre Portugal e Estónia
Saiba mais sobre o nosso projecto
O projecto Gigando para a Cidadania fomentação do sentido de cidadania
foi um intercâmbio bilateral, de carácter europeia nos jovens e o desenvolvimen-
itinerante, a ser realizado nas cidades de to de uma visão mais ampla sobre a
São João da Madeira (Portugal) e Tail- diversidade cultural e os benefícios que
linn (Estónia). Seu tema é a conscienti- tal variedade pode trazer para a cons-
zação da cidadania europeia, a promo- trução de uma sociedade baseada em
ção da diversidade cultural e o estímulo valores socioculturais positivos e livre
ao diálogo intercultural através da práti- de discriminação.
ca desportiva da capoeira e das danças. Para atingir estes objectivos foram
Seus dois objectivos principais são a aplicados métodos de ensino não for- Acima: pela primeira vez, jovens do grupo portu-
mais, com predominância de dinâmicas guês fazem aula de ténis nas instalações da AEJ.
Abaixo: um workshop de música com os dois
de grupo e da prática desportiva, nome-
grupos de participantes.
adamente capoeira e danças. Esperáva-
mos que os 26 participantes envolvidos
desenvolvessem a expressão corporal e
de pensamentos.
O projecto em si durou seis meses. Já
a realização das actividades tomou 13
dias nas duas cidades: do dia 22 a 29 de
Julho em Portugal, e dos dias 3 a 12 de
Agosto na Estónia. Quer saber mais?
Workshop de capoeira aberto à comunidade em São Visite nosso blog: gingandoparacidada-
João da Madeira, Portugal. nia.blogspot.com
8. The project Gingando para a cidada- connected to their local culture and their
nia was a bi-lateral exchange, with a vision of what means to be an European
itinerant character, which took place in citizen. The project itself will lasted 6
São João da Madeira (Portugal) and Tail-
months. However, the execution of activi-
linn (Estonia). Its theme is awareness of
ties will took 13 days in both cities: from 22
European citizenship, the promotion of
to 29 August, in Portugal, and from 3 to 12
cultural diversity and incentive to inter-
cultural dialogue by means of sport August, in Estonia.
practice of capoeira and dancing. Its two
main objectives are the fostering of a
sense of European citizenship in young Acima: apresentação de capoeira e danças numa praça
pública em Taillinn. A esquerda: grupo estoniano brin-
people (a sense of belonging and com-
ca com um dos formadores. Abaixo: Jovens fazem
mitment to the European Union) and workshop da dança maculelê e depois fazem
the development of a wider view about apresentação numa discoteca.
cultural diversity and the benefits such
variety can bring to build a society
based on positive socio-cultural values
and free from discrimination.
To achieve these objectives, creative
methods of non-formal teaching were
used, with a predominance of group
dynamics and sports, specially capoeira
and dancing. It is hoped the 26 partici-
pants involved (13 young people from
each country) can freely develop their
body expressions and thoughts.
That means they will have the chan-
ce to develop the expressive potential
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9. Gingando para Cidadania — Intercâmbio bilateral entre Portugal e Estónia
O que eu achei do Gingando para Cidadania?
“Sou professor e nunca havia
participado de um intercâmbio
nestes moldes. Sou grato pela
oportunidade de ter dado esta
formação e torço para que o
projecto tenha continuidade.”
(Geraldo Junior)
“Nunca tinha saído de Lisboa no verão.
O Gingando para Cidadania me deu a
chance de conhecer outras cidades e
“Faço uso das palavras do grande poeta perceber que outros da minha idade têm
Fernando Pessoa: “de tudo ficaram três coisas: os mesmo problemas que eu.”
a certeza de que estava sempre começando, (Paulo Rubio)
a certeza de que era preciso continuar e
a certeza de que seria interrompido antes de
terminar. “O Juventude em Acção promove a
Fazer da interrupção um caminho novo, mobilidade dentro e fora das fronteiras
fazer da queda, um passo da dança, do medo, europeias, a educação não-formal, o
uma escada, do sonho, uma ponte, da procura, diálogo intercultural, e encoraja a
um encontro.” (Raquel Evangelista) inclusão de todos os jovens”.
10. “É simplesmente incrível que jovens tão
“Descobri que a capoeira pode ser muita diferentes e de lugares tão distantes
mais do que uma actividade física. Fiz tenham convivido este tempo todo e
amigos, perdi um pouco da timidez e aprendido tantas coisas. As aulas de
alinda conheci a cultura portuguesa.” capoeira foram sensacionais.”
(Hendrik Kukk) (Marina Tofantsuk)
“Já participei de outros projectos dentro
do Programa Juventude em Acção, mas
este foi o primeiro directamente
relacionado com a capoeira. Os
resultados foram incríveis”.
(Olena Wladenmaiier)
“Infelizmente, não tinha sido
“Com o Gingando para Cidadania
seleccionado como um dos participantes
aprendi sobre a cultura portuguesa e
para o intercâmbio, mas quando vi a
brasileira. As aulas de capoeira eram
programação de actividades pensei logo
actividades físicas, mas também
que era uma oportunidade imperdível.
culturais, o que eu não esperava.”
Trabalhei mais e consegui o dinheiro
(Kart Blumberg)
para participar também. Valeu a
pena!” (Alo Arro)
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11. Gingando para cidadania - Ensino não-formal
Por que não reconhecemos?
Sérgio Xavier*
Uma das principais dificuldades que nua a ser uma definição pouco precisa,
existem em Portugal para este reconhe- já que não refere uma componente, hoje
cimento é o facto sórdido de não existir em dia, essencial para a qualidade do
uma tradução adequada (e um conceito) youth work: a educação não-formal,
para o youth work. Se traduzirmos para outro conceito muitas vezes mal enten-
"trabalho juvenil" associa-se a "mão-de- dido e confundido, frequentemente até
obra", conota-se quase com "trabalho por profissionais de Educação.
infantil". Se traduzirmos para "trabalho De uma forma mais simples, e a títu-
com jovens" obtemos uma definição lo de exemplo, imagine o que seria expli-
demasiado lata que não descreve, de car o que é um bombeiro num país onde
todo, aquilo que é o youth work. não há bombeiros e onde se entende
O próprio Conselho Nacional de não haver forma de combater os incên- “O próprio Conselho Nacional de
Juventude depara-se com este proble- dios - aí está, a difícil tarefa de com- Juventude depara-se com este problema,
ma, como está patente no documento preender uma profissão que não existe. como está patente no documento ´20
intitulado “20 propostas jovens para A grande preocupação com este fac- propostas jovens para Portugal´ onde se
Portugal" onde se encontra o termo to não reside só entre os youth workers encontra o termo youth work em três
youth work em três destas propostas e a (que muitas vezes se queixam da inca- destas propostas e a tentativa de
tentativa de enquadrar esta actividade pacidade de fazer compreender a sua enquadrar esta actividade
na "animação socioeducativa". actividade aos seus próprios pais), ou na animação socioeducativa.”
A animação socioeducativa é com apenas em Portugal — é uma preocupa-
certeza parte do youth work, mas conti- ção comum e em grande parte dos
12. países Europeus, e mais além. É uma sericórdia de Viseu) promoveram um factos ilustrativos da utilidade do youth
preocupação que vai do youth worker intercâmbio de uma semana em Campo work de qualidade - há muito mais.
(que não vê o seu trabalho reconhecido de Besteiros. É por acreditar piamente na utilida-
e, portanto, sustentável) até à Comissão No final, em momento de avaliação, de deste trabalho que me dedico à Dína-
Europeia (que, apesar de reconhecer no foi feita a pergunta em inquérito anóni- mo, desde 2006; foi aliás uma descober-
youth work a grande prioridade para a mo a um dos jovens participantes "em ta tão importante que me fez trocar a
Juventude Europeia, não o vê a ser reco- risco" (e encaminhados para a Santa- vocação de Arquitecto por uma outra,
nhecido/implementado a nível local). Casa da Misericórdia por uma Comissão até hoje em sistema de voluntariado:
Mas o youth work já existe como de Protecção de Crianças e Jovens): "Até youth worker.
actividade profissional há muito tempo, que ponto é que este intercâmbio atin- É isso mesmo, fazemos coisas inacre-
as universidades britânicas têm cursos giu as tuas expectativas?" A sua resposta ditáveis - mas se está incrédulo, está
de youth work e no Norte da Europa (na foi: "Até ao ponto de me fazer chorar." também no caminho ideal para desco-
Finlândia, por exemplo) vemos casos em Outro resultado bastante concreto brir o que é a realidade do youth work er
que o youth work é uma profissão alta- da actividade youth work que tivemos da educação não-formal em Portugal. Às
mente reconhecida considerada funda- recentemente na Polónia foi o facto dos vezes, não dá para acreditar!
mental pela sociedade civil e pelo participantes portugueses terem regres-
Governo. sado cheios de motivação para partici-
É bastante evidente que não é isso par activamente na sociedade civil - dez
que acontece em Portugal - ou por ven- jovens da Dínamo produziram um pro-
tura, depois de ler este texto, já sabe o jecto e submeteram uma candidatura ao
que é o youth work e a educação não- Programa Comunitário "Juventude em
formal? Mas, afinal de contas, de que Acção", neste leque a jovem mais nova
forma é que o youth work é útil? tem apenas 16 anos e já tem experiência
Para responder a esta pergunta, em como solicitar 20.000 € { Comiss~o
conto um pequeno episódio que nos Europeia. Como mensurar este tipo de
aconteceu. Em Abril de 2010, a Dínamo aprendizado entre os jovens?
*Presidente da Dínamo - Associação de Dina-
e o "Convívio Jovem" (Santa Casa da Mi- Não pretendendo aqui estender-me mização Sociocultural, Portugal.
nos resultados, estes são apenas alguns sergiomiguelxavier@gmail.com
11
13. Gingando para Cidadania — O que é a AEJ?
1,2, 3 … Estamos Juntos!
A AEJ - Associação Estamos Juntos - comenta Armando Margalho.
foi fundada em 1986 na cidade de São Na verdade, para a juventude da
João da Madeira, Portugal. Suas activida- cidade de São João da Madeira, a AEJ
des principais envolvem a promoção da representa uma das melhores (senão a
cultura e do desporto para os jovens da melhor!) opções para a prática desporti-
região. Nesse âmbito, a organização va e o aprendizado cultural. “Fazemos
possui quatro secções desportivas: um grande esforço para manter nossa
capoeira, ténis, xadrez e natação. associação dinâmica e próxima dos
Além disso, a associação conta com jovens”, afirma Antonio Devill, actual
Acima: início de uma roda de capoeira na secção
uma secção voltada especificamente presidente da associação.
de capoeira da AEJ. Abaixo: jovens reunidos no para as questões da juventude, chamada Nos anos de 2006 e 2007, a AEJ este-
pavilhão desportivo durante o Campo de Férias. Comissão da Juventude. Uma das suas ve presente como organização convida-
principais actividades é a promoção do da em três projectos promovidos no
Campo de Férias que, no mês de Julho, âmbito do Programa Jovens em Acção,
envolve a volta de 400 jovens e crianças na Polónia. “Os projectos realizados no
de diferentes idades e origens sociais. campo Rodowo, na Polónia, ´Capoeira
Em 2010 foi realizada a sua 28ª edição. for all´ e ´Roda das Nações`, foram pro-
“A AEJ é minha história de vida nos jectos pioneiros da capoeira como ins-
últimos 30 anos. Sou um dos fundado- trumento de diálogo cultural e ferra-
res, minha esposa é a actual vice- menta de encontro de jovens no âmbito
presidente e meu filho é atleta do ténis e do programa Juventude em Acção. No
da nataç~o. É um compromisso de vida”, segundo projecto, publicamos a revista
14. Roda das Nações, que foi uma forma de seja, as quadras polidesportivas, a pisci-
expressar o sentimento colectivo de na interna aquecida e as piscinas exter-
integração proporcionado pela capoeira. nas. Além disso, houve uma festa de
Foi esta experiência que permitiu confraternização no café, ao lado das
desenvolver com satisfação, em Portu- piscinas, que proporcionou mais uma
gal, o Gingando para Cidadania”, conta momento de interacção social entre os
Ricardo Nascimento (ou professor Can- jovens do Gingando para Cidadania.
gaceiro, como é conhecido no Grupo “O interc}mbio nos surpreendeu de
Ginga Brasil) e responsável pela secção forma bastante positiva. Era perceptível
da capoeira na AEJ. o clima de camaradagem entre os
Embora já tenha realizado diversos jovens. Soma-se a isso a riqueza humana
eventos de capoeira nas instalações da gerada e a divulgação da técnica e da
associação, foi o Gingando para Cidada- prática da capoeira. A qualidade técnica
nia que concretizou o sonho de reunir da era mesmo alta!”, diz Armando Mar-
outros professores da Associação Cultu- galho. A visão positiva sobre a iniciativa
ral Ginga Brasil Capoeira de outros paí- é compartilhada pelo presidente da AEJ.
ses e promover os valores que são “O projecto conseguiu reunir jovens que
intrínsecos { capoeira. “Portugueses e falam línguas completamente diferentes
estonianos aprenderam que as diferen- e ainda assim as actividades foram reali-
ças culturais podem ser benéficas, que a zadas. Além disso, trouxe novas pessoas
capoeira também pode ser praticada até nós, o que sempre é óptimo”, acres-
por deficientes físicos e que a tolerância centa Antonio Devill.
só traz consequências positivas”, afirma Algumas secções da AEJ já estão a se
Ricardo Nascimento. mobilizar para preparar novas candida-
Durante o período do intercâmbio, turas ao Juventude em Acção, com total Mais três secções da AEJ representadas nestas
fotos: alunos do ténis, do xadrez e da natação.
todos os participantes e formadores apoio da direcção. A ideia é que em
puderam usufruir das instalações do 2011 a AEJ seja ainda mais dinâmica em
Complexo Desportivo Paulo Pinto, ou suas actividades.
13
15. Gingando para cidadania - Capoeira e inclusão social
Luiz Renato Vieira*
Capoeira, identidade e juventude
Utiliza-se a express~o “projectos sociais” para
nomear, genericamente, as iniciativas conduzidas
pelo poder público ou por organizações não governa-
mentais, ou pela colaboração de ambos, com o propó- Projecto Expresso Acção, no Distrito Federal, Brasil.
sito de resgate da cidadania e de combate à exclusão
social. Muito frequentemente, tais acções voltam-se
O potencial dessas modalidades e formas de
para públicos ou para objectivos específicos, como a
expressão artística advém de sua capacidade de
erradicação do trabalho infantil, o combate à SIDA e a
expressar os sentimentos próprios da juventude e de
diversas formas de violência. Invariavelmente, tais
intervir no processo de formação da identidade cultu-
projectos utilizam actividades culturais artísticas e
ral dos jovens. De alguma forma, essas manifestações
desportivas com o propósito de fortalecer o vínculo
valorizam a subjectividade, dão voz a uma juventude
dos jovens com a iniciativa e consolidar o compromis-
que busca diferenciação em um contexto sociocultural
so com sua comunidade. Actividades como hip hop,
que é cada vez mais difícil.
jogo, dança de rua, grafite, capoeira, música, danças
Nesse sentido, é importante observar pesquisas
típicas de cada região, artesanato e desportos diver-
que destacam a importância da capoeira na formação
sos são algumas das opções oferecidas com o objecti-
da identidade do adolescente, tendo em vista suas
vo de afastar as crianças e os jovens das drogas e de
características de actividade colectiva, permitindo a
outras actividades ilícitas.
afirmação do indivíduo perante ao grupo. De acordo
16. com a maioria das abordagens da psico- ção tradicional.
logia, a adolescência configura a fase Essa nova esfera pública não estatal
aguda da afirmação da identidade do se fortalece e encontra na cultura um
indivíduo. A cultura exerce papel rele- dos principais elementos para a concre-
vante nesse momento, pois apresenta tização de um projeto de mobilização da
estruturas e costumes sociais que ope- sociedade voltado para o fortalecimento
racionalizam a transição da infância à comunitário e para a valorização das
identidades e prática culturais locais.
vida adulta. A capoeira, tanto pela visibi-
lidade que adquiriu no cenário interna-
O combate ao uso de drogas tem
cional, quanto pelas características de Jovens aprendendo a ginga da capoeira.
sido uma das principais temáticas traba-
modalidade que reúne expressão corpo-
lhadas pelas ONGs com actuação em
ral, musicalidade e carácter combativo,
comunidades pobres. Parte-se, regra e valorizar a busca do adolescente pela
é um instrumento educacional riquíssi-
geral, do princípio de que o uso de dro- afirmação de sua identidade e viabilizar
mo nesse contexto.
gas entre jovens está fortemente asso- os meios para que essa dinâmica pes-
Os projetos sociais se destacam no
ciado a comportamentos determinados soal encontre alternativas de práticas
Brasil a partir do início da década de
pelos grupos a que pertencem. culturais compatíveis com o momento
1990, tendo como principal suporte
Portanto, mobilizar o grupo a partir vivido.
institucional as ONGs. Essas organi-
de seus próprios valores e interesses é Nesse sentido, a capoeira apresenta
zações surgem no cenário social e
considerado o melhor ponto de partida uma significativa compatibilidade, por
político brasileiro desde meados da
para enfrentar a questão. Essa aborda- suas características, com os chamados
década de 1980, em virtude da
gem, que adopta a perspectiva do jovem,
intensificação da luta por direitos que se
e não a do Estado repressor, serve de É fundamental reconhecer e valorizar a
seguiu ao fim do ciclo de governos
base para inúmeras iniciativas e tem se busca do adolescente pela afirmação de
militares. As ONGs encamparam a luta
mostrado muito mais eficaz no enfrenta- sua identidade e viabilizar os meios para
pelos direitos sociais em nova perspec-
mento do problema. que essa dinâmica pessoal encontre
tiva, voltando-se para temáticas como o
Esse é o princípio que estrutura as alternativas de práticas culturais
gênero e a questão ambiental, antes
acções relacionadas à capoeira nos pro- compatíveis com o momento vivido.
consideradas menos importantes pelo
jectos sociais. É fundamental reconhecer
movimento dos trabalhadores de forma- 15
17. projectos sociais. Afinal, na feliz expres- importante que a actuação dessas enti- imaginário dos professores e mestres e
são de Letícia Reis, reconhecida pesqui- dades seja mais bem articulada com os mesmo nas concepções de alguns pes-
sadora no campo da cultura, a capoeira órgãos do poder público. Se, por um quisadores, o que é necessário superar.
questiona os valores sociais e nos apre- lado, a informalidade que preside o tra- Fala-se, ainda, em uma espécie de resis-
senta “um mundo de pernas para o ar”. balho das ONGs permite flexibilidade na tência cultural, que estaria presente na
Algumas recomendações actuação e o enfrentamento rápido de capoeira pelo fato de essa modalidade
Há tempos pesquisadores chamam problemas sociais objectivos, por outro, ter surgido como oposição à violência e
a atenção para o fato de que, para além é grande o risco de subaproveitamento à cultura da escravidão.
da ocupação do tempo livre dos jovens, de recursos humanos e financeiros. Tal Na verdade, a capoeira, como qual-
é fundamental reflectir sobre a natureza fato decorre das limitações de planea- quer instituição social, é o que a prática
das actividades utilizadas nos progra- mento para sua actuação e da fiscaliza- social lhe impõe. Dessa forma, é funda-
mas. É fundamental, também, trabalhar ção da utilização dos recursos públicos mental que sua aplicação em iniciativas
aspectos da formação dos jovens de que são repassados a essas entidades. de combate às drogas seja acompanhada
forma que fortaleçam a auto-estima e o Faz-se necessário aperfeiçoar os de competente trabalho pedagógico e
protagonismo em suas comunidades. A mecanismos de qualificação dos profis- profunda reflexão sobre o contexto
cultura, a arte e o desporto são impor- sionais actuantes, tanto no que se refere sociocultural. Apenas assim poderemos
tantes ferramentas para isso, mas é in- à atividade-fim desempenhada quanto garantir que o ensino da capoeira seja
dispensável que as actividades sejam no que concerne à gestão. Podem os veículo de valores estruturantes para a
acompanhadas de orientação pedagógi- órgãos do Estado contribuir para o personalidade do jovem e fortalecedo-
ca e exercícios de reflexão. aperfeiçoamento profissional sem que res de sua identidade social.
Algumas recomendações são im- isso configure qualquer forma de inter-
portantes em um cenário em que as venção em sua actuação, que deve se
ONGs se firmam como interlocutores caracterizar pela independência e pela
privilegiados em comunidades pobres e defesa do interesse das comunidades *Sociólogo, mestre e doutor em sociologia da
ampliam sua capacidade de desenvolver em que actua. cultura. Consultor Legislativo do Senado Fede-
ral. Mestre de Capoeira do Grupo Beribazu.
actividades culturais, desportivas e ar- No que se refere à utilização da Coordenador do Projecto Capoeira Actividade
tísticas que, de fato, configuram formas capoeira em iniciativas destinadas a Comunitária da Universidade de Brasília.
eficazes de educação não-formal. É grupos de jovens em situação de risco mestreluizrenato@uol.com.br
19. Gingando para Cidadania — Capoeira em Portugal
A capoeira é da malta: os grupos/tribos de capoeira em Portugal
Ricardo Nascimento*
Segundo o dicionário da língua por- É provável que o sentido que lhe era poderíamos dizer que, em Portugal, as
tuguesa, a palavra malta significa: atribuído nos tempos idos do Brasil maltas de capoeira ainda existem. Não
“reunião de gente de baixa condição, colónia, salvo os contextos históricos, com o significado que lhes era dado
grupo de pessoas afins, bando, grupos fossem os mesmos que em terras lusas anteriormente, mas como ajuntamento
causadores de desordens com as suas ainda se atribui para denominar um de indivíduos que se unem para “fazer
diversões”. No português do Brasil, a ajuntamento de pessoas que se unem capoeira” num sentido neotribal e esté-
mesma é desconhecida e não consta do para um fim. Sendo a palavra malta de tico do termo.
vocabulário coloquial. Aqueles que a uso corrente no português de Portugal, Em 1850 entrava em vigor a proibi-
conhecem, sabem que ela alude às mal- e ainda que o dicionário lhe atribua um ção do tráfico de escravos, e 1888 a
tas de capoeiras, que eram grupos de sentido pejorativo de agrupamento de escravatura era abolida no Brasil. Este
indivíduos que ocupavam a cidade do pessoas para prática da desordem, num facto possibilitou a intensa entrada de
Rio de Janeiro, então capital do império, certo tipo de uso coloquial do vocábulo, europeus no país. Em 1881, eram mais
e a quem se atribuía a prática da luta que aproxima-se ao que atribuímos de 215 mil, entre portugueses, italianos
corporal denominada de capoeira. como sendo grupos e tribos sociais, bem e alemães. A condição escrava era muito
“O número de portugueses detidos por capoeira era muito representativo da presença lusa nas maltas. Para alguns pesquisadores,
a explicação desse facto devia-se ao forte intercâmbio com a população pobre da cidade.”
20. próxima do emigrante, cujos barcos de
vinda para o Brasil, na época, eram os
mesmo que haviam transportado os
negros escravos em outros tempos.
O número de portugueses detidos
por capoeira era muito representativo
da presença lusa nas maltas. Para alguns
pesquisadores, a explicação desse facto
devia-se ao forte intercâmbio com a
população pobre da cidade (negros e
mestiços) a partilha dos mesmos locais
de moradias, os cortiços, e das mesmas
condições de vida e trabalho. A capoeira e a escravidão no Brasil são elementos inseparáveis.
Há indícios de uma similitude entre
os dois tipos sociais distintos que guar-
fadista português eram um subproduto vos estavam os oriundos dos Açores, da
davam entre si fortes semelhanças, o
do meio social urbano do século XIX, região Norte de Portugal e Lisboa.
negro e mulato brasileiro e o fadista
que subsistia na marginalidade citadina. Alguns pesquisadores acreditam que
português. Este era uma personagem
Existiam ainda alguns emigrantes portu- estamos entrando num novo paradigma
clássica da crónica policial lisboeta, que
gueses oriundos de famílias abastadas cultural, deixando para trás os traços da
se caracterizava não apenas pelo canto
que tomaram parte nas práticas da modernidade, adoptando um ponto de
do fado, mas pela predilecção pelos
capoeira como amadores, eram os cha- vista mais emotivo, hedonista e dionisía-
ambientes nocturnos, pela boémia, fre-
mados cordões de elegantes. co em relação ao mundo.
quentada por vagabundos, prostitutas e
Consta que a presença dos portugue- Se seguirmos esta perspectiva, per-
marinheiros e pelo uso hábil da navalha,
ses na capoeira fazia-se muito cedo, ceberemos que h| uma “desafeiç~o”
instrumento de grande predilecção dos
rondando ainda a adolescência, ou seja, pelas grandes instituições sociais como
capoeiras, supostamente introduzido
logo quando estes chegavam ao Brasil, e os partidos políticos e os sindicatos. Nas
entre eles pelos imigrantes lusos. Tanto
entre os contingentes mais representati- grandes cidades as populações estão a
o negro e o mestiço brasileiro como o
19
21. agrupar-se em microtribos e a procurar sionista, ela enquanto linguagem cultu-
novas formas de solidariedade, que já ral que envolve o corpo e a música,
não encontramos nas grandes institui- difundiu-se naturalmente bem mais que
ções sociais habituais. O modelo racio- o Esperanto, cuja propósito era de servir
nal da Modernidade, que prega a ordem de língua universal. A parte do modelo
e o progresso ilimitado, esgotou-se. A de linguagem que separa o Esperanto da
razão cedeu lugar à emoção, ao sentir o capoeira, qualquer capoeirista, seja qual
colectivo das tribos urbanas. for a sua nacionalidade e língua poderá
As tribos de capoeira se espalharam dialogar na roda seguindo os seus pre-
pelo mundo e são, na actualidade, um ceitos rituais.
fenómeno surpreendente que tendo A capoeira em Portugal
origem nos meios populares e visto A capoeira em Portugal é um fenóme-
como marginais ganhou um carácter no recente e apesar do forte envolvi-
global. Parte da explicação que possibili- mento dos nacionais lusos nessa forma
ta compreender a actual expansão da de arte, jogo e luta, fazer-se em tempos
capoeira situa-se no domínio do sentir. remotos, não decorre daí o seu início
O momento do treino e da roda é uma nas terras de Camões.
grande catarse colectiva em que os indi- Os anos que se seguiram ao 25 de
víduos que partilham uma linguagem Abril de 1974 marcaram importantes
corporal e musical comum expressam mudanças na sociedade portuguesa. O
através dela o sentido da existência em pós 25 de Abril representou uma aber-
comunidade. Na roda de capoeira é pos- tura para os valores democráticos e um
sível rir, chorar, cantar, bater, dançar, espaço de alargamento cultural que
brincar, mas seja qual for a reacção, não permitiu desenlaçar, sem constrangi-
ficaremos indiferentes as emoções que mentos, as amarras moralistas do antigo
ela nos pode suscitar. Apesar dos seus regime.
progenitores não lhe terem atribuído, na Observa-se que o sufrágio eleitoral
sua gestação, nenhuma vocação expan-
22. feminino só ocorreu plenamente após o em Portugal, as práticas religiosas afro-
25 de Abril, assim como inúmeras brasileiras introduzidas por emigrantes
outras mudanças ao nível da organiza- portugueses que se tinham integrado
ção sindical, da massificação do ensino e nestes cultos religiosos no Brasil. Ainda
da abertura económica e social para um que a capoeira não tenha entrado em
novo modelo emergente na Europa e no território nacional a partir do retorno
mundo. Em 1986, Portugal entrava para de emigrantes nacionais vindos do Bra-
a Comunidade Europeia e passava a sil, o seu início e rápida penetração deu-
gozar de uma série de fundos comunitá- se pela abertura proporcionada pelas
rios que permitiram a sua modernização mudanças na sociedade portuguesa
e incremento. ocorridas nas décadas de 70 e 80 que
No início da década de 1990 criavam proporcionaram, por sua vez, a adesão a
-se as estações de televisão privadas e outras práticas de origem afro-
com elas a difusão de ideias, valores, brasileira, como o foi o caso do Candom-
hábitos e novas práticas de consumo. blé e da Umbanda acima referidos.
Inicialmente a população portuguesa Durante este período, Portugal transita-
sofreu um aumento substancial decor- va de um país emissor de emigrantes
rente do retorno dos seus emigrantes para um espaço receptor de imigrantes.
residentes nas ex-colónias mas também Cabe salientar o papel dos media e
de residentes no Brasil, cuja partida de da literatura na formação de um imagi-
Portugal fez-se por volta das décadas de nário da cultura dos trópicos, mas tam-
50 e 60. Para além do impacto demográ- bém nos hábitos sociais dos portugue-
fico, esta população trouxe consigo uma ses, como a difusão de telenovelas como
série de novos hábitos e costumes, uma Gabriela Cravo e Canela e Sinhá Moça e
forma de ver o mundo adquirida nos os livros Capitães de Areia e Tenda dos
recantos dos trópicos. Milagres de Jorge Amado. Era veiculada
Ainda na década de 70 iniciavam-se uma tropicalidade exótica, despida de
21
23. preconceitos e uma cultura alegre e realizado por Falcão, pesquisador e
etnicamente “bem resolvida”. Por isso, mestre de capoeira, contabilizava que
aquando da introdução da capoeira, existiam cerca de 35 professores brasi-
mesmo com o seu desconhecimento, ela leiros a dar aulas em Portugal entre
foi acolhida com facilidade numa socie- mestres, contra-mestres e instrutores.
dade sedenta por experimentar outras Segundo este estudo, a maioria destes
formas de pertença. profissionais é proveniente da região
Sabemos que formalmente a história Nordeste do Brasil, em especial das
da capoeira em Portugal começa com cidades de Recife e Salvador.
Afránio Gouveia Silveira, o Mestre Conforme o levantamento que reali-
Magôo. “Cheguei em Portugal no dia 19 zámos junto aos grupos, seus líderes e
de Setembro de 1987, e logo no mês alunos, contabilizamos cerca de 55 gru-
seguinte já ministrava aulas de capoeira pos espalhados por todo o território
numa sala na rua de Santa Catarina, nacional. Destes 55, 13 grupos foram
próximo ao Marquês de Pombal no Por- criados de raiz em Portugal e reflectem
to” , diz o mestre. No ano de 1991 regis- um crescimento endógeno do fenómeno
“Contabilizamos cerca de 55
tava-se, legalmente no Registo Comer- da capoeira. grupos espalhados por todo o
cial de Lisboa, a Associação de Capoeira Quanto ao número de profissionais a território nacional. Destes 55, 13
Negro Nagô de Angola, a primeira insti- ministrar aulas, estimamos que actual- grupos foram criados de raiz em
tuição vocacionada para a capoeira em mente se aproxima dos cem. Entre estes Portugal e reflectem um
Portugal. 100, julgamos que uma parte significati- crescimento endógeno do
Neste mesmo ano o mestre apresen- va seja de portugueses, provavelmente a fenómeno da capoeira. Quanto ao
tava um trabalho estruturado, com um maioria, resultado de um trabalho que já número de profissionais a ministrar
número significativo de alunos empe- dura, desde o seu início, há 23 anos em aulas, estimamos que actualmente
nhados na prática da capoeira, e em Portugal. Convém esclarecer que destes se aproxima dos cem.”
1992 realizou o seu primeiro encontro 13 grupos todos foram criados a partir
Nacional, que foi, na verdade, o primeiro de outros grupos preexistentes em Por-
a realizar-se formalmente em Portugal. tugal, sendo que destes, 3 apenas foram
Por volta de 2003 um levantamento criados por portugueses que tenciona-
24. vam sustentar os seus próprios traba- grande porte, muito internacionali-
lhos. Baseados neste levantamento acre- zados, que Nestor Capoeira caracterizou “Não podemos negligenciar que
ditamos que o número total de pratican- como mega-grupos ou grupos empresas,
Portugal jogou um papel importante
tes ronda os 3000 a 3500, número que tais como o grupo Muzenza e Abadá que
na junção dos povos que levou a
não é preciso, mas que, a confirmar-se é se instalaram no país na década de 90.
construção das práticas culturais
pouco significativo comparativamente a Não podemos negligenciar que Por-
afro-brasileiras, ainda que por razões
países como a França que em 2005 pos- tugal jogou um papel importante na
suía mais de 400 grupos em actividade. junção dos povos que levou a constru- negativas. A historia da capoeira em
A nossa estimativa sugere que cerca ção das práticas culturais afro- Portugal está ainda por fazer-se e
de 5 a 6 grupos se aproximem ou ultra- brasileiras, ainda que por razões negati- seus pioneiros protagonistas
passem a margem dos 200 alunos. vas. A historia da capoeira em Portugal brasileiros hoje somam-se ao muitos
Algumas características destes grupos está ainda por fazer-se e seus pioneiros portugueses que compõem a
podem ajudar a explicar os elevados protagonistas brasileiros hoje somam-se paisagem capoeirística lusa.”
números de alunos que possuem na ao muitos portugueses que compõem a
actualidade. Trata-se de grupos que já paisagem capoeirística lusa. Também
se encontram instalados a longo prazo devemos salientar o papel de Portugal
em Portugal, na maioria dos casos há no âmbito europeu como país de língua
mais de 10 anos, e ao longo desse portuguesa e influente no que tocam as
tempoformaram um conjunto de alunos políticas públicas do continente.
portugueses que constituem o seu corpo Como espaço de confluência das
docente e que ajudam a alargar o culturas lusófonas, Portugal poderá ter
número de locais onde o grupo actua. um papel efectivo na produção e divul-
Uma outra explicação prende-se com gação de uma arte, que no caso portu-
a estrutura prévia que o grupo possuía, guês, poderíamos tratar como luso-afro-
bem como um capital cultural agregado brasileira. *Sociólogo, mestre em Sociologia e Doutor em
ao longo de anos de existência no Brasil Antropologia. Professor de capoeira na Associa-
ção Ginga Brasil Capoeira.
ou em outros países e uma forma de cangaceiro16@hotmail.com
organização de cariz empresarial. Entre
estes grupos, encontramos alguns de de 23
25. Gingando para Cidadania — Capoeira na Estónia
Marina Tofantsuk
Olena Valdenmaiier*
Estonia and capoeira. What these words can have in
common? Estonia – a small country with short summers
and long winters, not the first place you would have in mind
for sunny and joyful martial art from Brazil. If you start
asking people on streets, what do they think about capoeira,
Some Estonians who learned capoeira with teacher Alpino, from Ginga Brasil
there will be many of them replying “what is it?”. However
Association in Taillinn.
all of those questions would be filled with the most sincere
interest and eagerness to learn what is this funny word
standing for. They would smile and come closer listening to
your excited explanations mixed with personal impressions
and experiences. Some would remember something similar
in movies, maybe even watching on TV.
You’d be asked if there is any chance it is practiced here
and after few days they might show up at the next training,
filled with excitement of a child going to school for the first
time. That is how you’ll get see reserved inhabitants of Es-
tonia joining “roda” and opening up for something new,
interfering with others, taking part in the building up game
of capoeira. A public performance in the streets of Taillinn.
26. Capoeira came here not many years ago, Although there are some difficulties that
brought as a souvenir from warmer countries, an local people can meet in capoeira., like singing,
idea so appealing and intriguing, that people just dancing, and simply being relaxed, is a problem
didn’t want to let it go. They got together, shared that many can’t overcome even after years of
knowledge they already had, trained and played practicing this sport. Other thing is that Estonian
together. As any other process is first of all move- and Russian people tend to be more involved into
ment and interaction, so did capoeira required to contact sports, like kickboxing, karate, where
be shared with people around. they can enjoy kicking each other, and get rid of
It was a great way to get people together, stress and aggression. And if you add to this
include everyone, help them to become part of widespread homophobia, then we can see the
something bigger, contribute to common goal. If result – such people don’t have too much respect
you try to put it into scientific social terms, it can to capoeira, naming it “dancing for softies or
be named social inclusion. A tool to involve those “Brazilian aerobics” etc. But capoeira came to
standing aside into something new, make them a Estonia, it survived for over 10 years and we look
willing part of some social process. For sure, ca- into future with a great hope. We are positive. We
poeira can be a good instrument for this. It has no love our capoeira.
language or nationality barrier, involving one
thing we all have – ability to move and react
towards others movement. So it does possess all
the quality of good tool – simplicity, universality
and mobility. It’s has taken its place in hearts of *Marina was the Estonian leader of Gingando para Ci-
dadania and Olena is youth worker in ONG Living for
many students, all over the world and even small
Tomorrow. marina.tof@mail.ru and
cold Estonia was not excluded from that list. waldenmayer@gmail.com
“Capoeira came here not many years ago, brought as a souvenir from warmer countries, an idea so appealing and intriguing,
that people just didn’t want to let it go”.
25
27. Gingando para Cidadania — Capoeira, comunidade e globalização
O fenómeno da Globalização
Pedro Abib*
No mundo globalizado, multiplicam-se as ses do centro, estabelecem a conduta e as for-
identidades. Os diversos grupos sociais, não mas de relações humanas e sociais que devem
importa qual a região do planeta, buscam cada prevalecer nos países da periferia.
vez mais afirmarem-se enquanto grupo a par- A partir deles, estamos assistindo à pro-
tir de ideologias, comportamentos, atitudes, moção de um consumismo exacerbado esti-
vestimentas, enfim, uma série de traços e mulado por campanhas publicitárias que
características que identifiquem seus mem- transformam produtos supérfluos em géneros
bros como integrantes de uma mesma “tribo”, de 1º necessidade; ao aumento em grande
assim como diria o sociólogo Maffesoli. escala de uma cultura de massa apoiada cada
Esse fenómeno tem sua importância, pois vez mais em produtos descartáveis (músicas,
não deixa de ser uma reacção ao próprio filmes, programas televisivos, shows, etc.…)
advento da globalização, que é responsável de alto potencial mercadológico e baixa quali-
por uma padronização em escala mundial, de dade artística; a uma folclorização das cultu-
modelos, valores e comportamento humanos, ras populares tradicionais, transformando-as
considerados desejáveis para uma sociedade em mais um produto de consumo superficial e
globalizada. Modelos que na grande maioria “exótico” para alimentar a indústria do turis-
das vezes são advindos de uma referência mo e o aumento cada vez maior do abismo
norte-americana ou europeia. Ou seja: os que separa os mais ricos e os mais pobres
modelos identitários estabelecidos pelos paí- entre outras tantas mazelas. Efeitos dessa
28. globalização, que o músico/compositor brasi- Capoeira e as lutas pela transformação da
leiro Tom Zé, chama de “globarbarização”. sociedade
Mas felizmente, esse processo não se dá
A capoeira surge como uma luta contra o
sem reações e o fortalecimento das identi-
sistema escravagista no Brasil, se tornando
dades de grupos sociais nesse contexto, abre
uma importante arma do negro escravo con-
perspectivas no que diz respeito ao
tra a violência opressora do branco domina-
estabelecimento de uma outra lógica, que
dor; e também como afirmação de uma cultu-
também é global, mas que passa pela
ra, e de um sistema de valores que se recusa a
construção de outras possibilidades de
ser subjugado por esse sistema desumano e
convívio social e humano, outros valores, em
opressor que foi a escravidão. Os poderes
que os princípios do modo capitalista de
constituídos no Brasil muito se esforçaram,
organização da sociedade contemporânea são
para combater qualquer possibilidade de afir- Foto Agência Estado
questionados e a partir disso, são criadas
mação da cultura e tradição negras. A repres-
condições para que possam ser superados por
são contra qualquer tipo de manifestação de
um outro modelo social, mais justo, humano e
origem afro-brasileira foi sempre violenta. O
solidário. Uma outra globalização é possível!
samba, as religiões afro-brasileiras e a capoei-
gritam os participantes dos Fóruns Sociais
ra eram os principais alvos dessa repressão,
Mundiais.
sendo essa última, incluída no Código Penal
Nessa perspectiva, a capoeira cumpre, a
Brasileiro de 1890, como crime passível de
nosso ver, um papel importantíssimo, pois ao
detenção na ilha de Fernando de Noronha, lei
espalhar-se pelo mundo, essa manifestação
essa que vigorou durante mais de 4 décadas.
oriunda da cultura afro-brasileira, tem levado
Mas apesar de tudo isso, a cultura afro-
consigo um sistema de valores, um ideal de
brasileira conseguiu resistir, não só adquirin-
conduta, um modelo de relação humana,
do espaço na sociedade, como ganhando res-
enfim, uma filosofia de vida, que tem
peito e valorização por parte das mais diver-
influenciado seus praticantes a adquirirem
sas camadas sociais. As religiões afro-
uma identidade própria, outros valores e um Foto Pierre Verger
brasileiras não param de crescer e hoje são
outro olhar sobre o mundo.
27
29. vistas com dignidade, o samba se tornou um alunos – que enfatiza somente os aspectos
“A capoeira, quem diria, hoje
dos mais importantes símbolos da identidade mercadológicos dessa manifestação, priori-
nacional, assim como a capoeira, que recente- ganhou status e valorização zando modismos e uma estética “especta-
mente recebeu do Instituto do Património e está presente em mais de cularizada” e superficial da pr|tica da capoei-
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o 170 países no mundo todo. ra, em detrimento de uma visão mais profun-
importante título de “Património da Cultura Outrora, era tida como coisa da, preocupada com a historicidade, a ances-
Brasileira”. de desocupados, vadios, tralidade, os aspectos rituais, a filosofia e os
A capoeira, quem diria, hoje ganhou status marginais. Hoje é vista como valores implícitos nessa prática, que tornam o
e valorização e está presente em mais de 170 praticante de capoeira, um sujeito mais cons-
importante meio de
países no mundo todo. Outrora, era tida como ciente sobre si mesmo, e sobre a sociedade da
educação”
coisa de desocupados, vadios, marginais. Hoje qual faz parte.
é vista como importante meio de educação, É justamente aí que reside o valor educati-
estando presente em escolas, universidades, lado, isso garante a divulgação vo da capoeira. Ela só pode servir como instru-
projectos sociais, academias, clubes, além de dessa manifestação para um mento de educação, se estiver voltada para
se fazer presente como tema de teses e disser- público cada vez maior, por outro esses valores mais profundos da existência
tações académicas, livros, filmes, poesia, artes faz com que ela perca muito dos humana, que a experiência africana no Brasil
plásticas e etc. seus traços identitários que a soube tão bem traduzir. Uma manifestação
Mas é claro que esse crescimento a nível caracterizam como cultura tradi- que foi capaz de resistir a séculos de violência
global traz também consequências negativas. cional de resistência. e soube preservar as formas tradicionais de
O capitalismo sabe muito bem como se apro- Não defendemos aqui uma transmissão dos saberes através da oralidade,
priar dos bens produzidos pela sociedade, visão essencialista de cultura, do respeito aos mais velhos e aos antepassa-
sejam eles materiais ou imateriais, para ade- nem muito menos defendendo o dos, do respeito ao outro (mesmo sendo ele
quá-los à sua lógica. Percebemos assim, uma discurso de que toda e qualquer adversário!), do sentido de solidariedade e da
tendência que vem crescendo nos últimos transformação das culturas tradi- vida em comunidade. Esses valores consti-
anos, de transformação da capoeira em mais cionais é vista como descaracteri- tuem-se em saberes riquíssimos que estão
uma mercadoria na prateleira dos “shopping zação, e as mudanças constata- presentes na capoeira e, que num processo
centers das culturas globalizadas”. Se por um das, vistas como contaminação educativo, têm muito a contribuir na formação
30. de sujeitos mais humanizados e conscientes pertencimento à uma comunidade: a comuni-
de seu papel na sociedade. dade da capoeira. E o mais interessante, é que
Por outro lado, se a capoeira for vista esse processo pode se dar em Salvador, na
apenas como uma estratégia de marketing, Bahia - local do Brasil onde a prática da
como prática corporal de modismos, disso- capoeira é mais intensa – como pode se dar
ciada de seus aspectos históricos e culturais, em Tel-Aviv, Tókio ou Amesterdão.
ou como mera mercadoria de consumo, volta- Um capoeirista, ao iniciar-se no universo
da para grandes massas que se satisfazem com da capoeira de forma profunda - e não superfi-
Pedro Abib em um workshop de capoeira
práticas superficiais e descompromissadas, cial como já criticamos acima - experimenta Angola, em São João da Madeira (2009).
feitas por corpos excessivamente musculosos um processo de transformação interna que o
e acrobáticos, ela então deixa de ter esse faz questionar valores e crenças, que o faz se
caráter de prática libertadora e contestadora abrir para novas formas de enxergar o mundo,
da ordem social injusta - característica que que o faz rever preconceitos, que o faz se sen-
sempre a acom-panhou desde sua origem - tir responsável pelo grupo do qual faz parte,
para transformar-se em mais uma mera desenvolvendo um forte sentido de compro-
atraç~o do parque de diversões da “feliz” e misso social, que o faz experimentar o sentido
“Os aspectos identitários
excludente sociedade de consumo capitalista. da vida em comunidade, que o faz solidarizar-
presentes na capoeira
Os aspectos identitários presentes na se com as lutas contra todas as opressões, já
capoeira aproximam o praticante de uma que a capoeira nasce daí.
aproximam o praticante de
experiência mais profunda no campo da exis- uma experiência mais
tência humana, das relações sociais, da estéti- Comunidade: um caminho posível profunda no campo da
ca do jogo fluido e solto, do prazer de movi- No âmbito mundial, com o enfraque- existência humana, das
mentar-se em diálogo com o outro, do respeito cimento de uma forma de organi-zação social relações sociais, da estética
à ancestralidade e à sabedoria dos velhos mes- baseada nas grandes massas, em que a luta do jogo fluido e solto, do
tres, da experiência sensorial da música e do pelas reivindicações era pautada nas grandes prazer de movimentar-se em
ritual de uma roda de capoeira. São aspectos mobilizações, um outro tipo de mobilização
diálogo com o outro”.
que dão a esse praticante um forte sentido de vem ganhando força.
29
31. Refiro-me àquele tipo de mobilização voltado rizam seus praticantes como pertencentes a
para reivindicações pontuais, de grupos um grupo social que partilha valores, ideais,
sociais específicos, que lutam por suas causas comportamentos, atitudes. Um grupo social
particulares, mas ao mesmo tempo, articulam ligado por redes articula-das a nível mundial,
-se numa grande rede mundial de que permite não só a comunicação e a troca
movimentos sociais contes-tatórios ao de informações entre os milhões de
modelo capitalista globa-lizante, tal qual o praticantes dessa arte-luta, como também a
Fórum Social Mundial, já citado. E é interação entre eles, a partir da participação
justamente aí que se tornam mais fortes. E é em eventos, cursos, oficinas, palestras,
nessa lógica que o sentido de “comunidade” workshops, encontros, seminários,
também ganha força e se torna uma possi- congressos, na maioria das vezes com a
bilidade concreta de se contrapor à lógica do presença de consagrados mestres de
individualismo, da competição, do consu- capoeira, que continuam cumprindo a missão
mismo exacer-bado, tão presentes no modelo de “guardiões da tradiç~o”.
atual de nossa sociedade. A capoeira pode se transformar em pouco
A comunidade passa a ser, nesse tempo, e já dá sinais evidentes disso, numa
momento histórico em que vivemos, uma referência a nível global, para a busca do en-
experiência de convivência humana que pode tendimento entre os povose um exemplo para
favorecer a construção de uma outra lógica, o exercício da solidariedade e da coopera-ção,
baseada numa possibilidade concreta de esta- do respeito à diversidade, enfim, uma refe-
belecer outras relações sociais, outras formas rência para a humanização. A roda de
de luta e reivindicação, outras formas de rela- capoeira, em sua circularidade, acaba sendo
cionar com o meio ambiente, enfim, outra uma metáfora do planeta Terra, onde
*Pedro Abib é professor da Faculdade
globa-lização. Outra globalização é possível! gerações de capoeiristas dos pontos mais de Educação da Universidade Federal
Nesse sentido, podemos afirmar que a distantes do globo, e de todas as épocas, se da Bahia, capoeirista formado pelo
Mestre João Pequeno e autor de
capoeira é hoje, uma comunidade global, uni- juntam para celebrar, reverenciar, cantar, diversos livros.
da por fortes laços identitários, que caracte- tocar e jogar. pedrabib@gmail.com
32. Gingando para Cidadania — Capoeira e festas populares
Carlos Eugênio Soares*
Frederico José Abreu *
Embora alguns (Deus há de querer muitos!) ainda insistam, algumas do Recôncavo baiano e outras do interior do Estado da
com certeza, para os “capoeiristas de antigamente” (express~o Bahia (como há festas nesses lugares!). Em todas, olha lá os
da lavra do mestre Daniel Coutinho, vulgo Noronha), os capoeiristas de antigamente se deslocando por vários bairros,
capoeiras de outrora eram viciados em festas. Pode-se dizer sem cidades, regiões atrás daquelas de sua predileção.
exagero: para alguns deles; brincar, festejar, vadiar era preciso, Matar a fome. Satisfazer o vício. Podiam ser festas de
viver; uma conseqüência disso. motivação religiosa, cívica, ou de outra natureza qualquer,
Eram viciados, principalmente, em festas populares. Das desde que parte delas tivesse como campo de celebração a rua.
realizadas nas ruas, pelas quais foram irresistivelmente sedu- O ar livre. Fizesse chuva ou sol. Por elas, a mesma predileção
zidos, e nas quais, pela constante presença, influíram nos mol- tinham os batuqueiros; o pessoal do samba, do candomblé e da
des, ritos e destinos. Cumpriam um ato de coerência histórica: arrelia, gente, assim como os capoeiras, fissurada por festa.
na luta contra as adversidades, os capoeiras não deixaram Podia chover canivete, que essa brava gente estava lá, mesmo
esmorecer os ímpetos de alegria, arrefecer a busca pelo prazer, que o ambiente estivesse minado de perigo.
fatores essenciais para manter em esguia alta o destino histórico Mesmo que por um triz de nada se provocasse um tumulto.
da capoeira. Como reclamavam das festas dos pretos a Tinha gente mesmo que só ia para isso: provocar briga, mostrar
imprensa, as autoridades policias e senhores de escravos, no serviço. Noronha (mestre de Capoeira Angola, parceiro de
Brasil colonial, imperial e republicano! Pastinha), sem hipocrisia, escolheu a palavra-conceito baderna
Tanto Noronha como Querino, em seus livros, para bem definir a capoeira das primeiras décadas do século XX,
diagnosticaram aspectos desse vício, apresentando taxativas na Bahia. No meio dela se quisessem um amigo até encontraria,
informações sobre ele. O primeiro reproduziu o calendário mas santo, nem pensar. Para o capoeirista daquela “era”, santo
completo das principais festas populares de Salvador, apontou só na Igreja ou nos Terreiros. Naquele ambiente se desconfiava
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33. até das sinházinhas, se andava de um defendendo o seu território, ou
passo para o outro escondendo a própria invadindo o do rival, na base da pedra-
sombra. da, cacetada, cabeçada, rabo de arraia e
Noronha, sabedor dessas coisas e ma-nobrando com outras artes da man-
freqüentador de festas com batuque, dinga. O cenário era o Centro Histórico
capoeira, samba, só ia até elas armado e de Salvador e ruas adjacentes. O Terrei-
de corpo fechado: patuá, orações em dia ro de Jesus era o palco principal dos
e cheio de coragem para enfrentar a acontecimentos, cotidianamente, api-
situação. O comportamento dos capoei- nhado de capoeiras, amadores ou profis-
ristas nas festas populares lhe deu sionais, conforme o testemunho dos
subsídios para proclamar esta sentença: jornais da época.
“o capoeirista de antigamente n~o Eis a razão do porque os capoeiras de
brincava em serviço”. outrora se estimulavam para os
Por sua vez, o outro sábio, Manuel combates, lendo ou ouvindo narrativas
Querino (um dos pioneiros dos estudos do cordel sobre guerreiros (moda da
sobre os costumes africanos no Brasil e época) e portassem nos “batalhões”,
cronista de mão cheia sobre aspectos da símbolos, adereços e outros troços de
Bahia do seu tempo), ratificou a pre- guerra. Pareciam já dormentes as
dileção para as festas dos capoeiras de agruras existências, as mutilações dos
outrora e os tumultos por eles provo- ex-combatentes da Guerra do Paraguai,
cados nessas ocasiões. Em termos de muitos dos quais foram forçosamente
calendário, menciona apenas as festas da recrutados naquele mesmo cenário.
Semana Santa e os locais – “campos de Se Noronha definiu como baderna a
batalha”- escolhidos pelos capoeiras para capoeira de antigamente, Querino se
se divertirem e digladiarem contra gru- valeu da gíria do capadocio para concei-
pos rivais e turmas de rua. tuar a de outrora (por ele obser-vada e
A “ideia”: afirmar-se belicamente – focada, nas suas publicações, entre 1860
quem manda aqui sou eu e minha turma, e 1923, no máximo). Para o capadocio
34. (arruaceiro mor das ruas do Brasil) a e focada apenas na popular (jogada nas
capoeira era o “brinquedo”. Quanta ruas e em alguns ginásios) percebe-se
delicadeza vinda de gente socialmente que ela permanece sendo como a de
tão áspera! Vinda de quem veio, todo outrora: brincadeira para quem
cuidado era pouco. Quem era esperto e “guenta” brincadeira, para quem topa
freqüentava o miolo ou as proximidades suas conseqüências. Esta capoeira,
do ambiente dos capadócios, só lidava coerente com o ambiente das ruas, já
com eles de olhos abertos, só entrava na teve mais vez, muito mais vez, nas festas
roda ligado, nada de transe, possessão de largo da cidade da Bahia, de
ou algo parecido. Pernambuco e Rio de Janeiro.
O conceito se aplicava mais apro- É para onde vamos, seguindo o
priadamente aos que eram mais dados a roteiro de Hilário Ferreira, uma figura
afeitos à capoeiragem. Aos que sabiam emblemática da cultura popular brasi-
aplicar maneirosamente a arte dos leira. Hilário nasceu em Pernam-buco e
venenos (malícias, maldades, falsidades morou em Salvador, onde se viciou
e mandingas) e também bloquear os culturalmente na observação e prática
efeitos malignos das suas propriedades. de artes tradicionais afro-baianas. Não
Veneno contra veneno, até um anular o só isso. Aprendeu a dar novos tratos e a
outro; cobra contra cobra, até uma imprimir os estilos culturais dos
morder a outra. Brincadeira cheia de homens pretos nas manifestações
brincadeiras de bom ou mau gosto, de originárias de outras etnias, como nos
enganos que se enganam, nunca defini- ternos e ranchos de origem ibérica, mas
da a priori; se será levada na base da que, no Brasil, as camadas populares se
mera brincadeira, ou se pelas circuns- apoderaram e tomaram conta. Neste
tâncias do seu enrolar e desenrolar vai caso, foram as Festas dos Reis Magos,
ficar à vera. que favoreceu o processo. Nisso Hilário
Deixando de lado a capoeira religião montou escola e virou professor.
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35. Como Salvador é uma cidade festeira da cidade do Rio. Alguns estudos sobre a
que só ela, dá para pensar e imaginar - e capoeira e o samba nessa cidade
disso se tem prova – a quantidade confirmaram a presença de capoeiristas
registada de processos de criação, baianos que foram passageiros da citada
conservação, invenção e reinvenções de migração.
tradições. Quantas misturas e “di|logos” A comunidade baiana no Rio se fixou
de elementos de culturas diversos se territorialmente próximo à zona
oportunizaram nos ambientes das festas portuária, onde parte significativa dela
Terreiro de Jesus, em Salvador, Bahia. populares. Essas se expressavam trabalhava. Nas proximidades estava o
“originalmente” apresentando fortes Morro da Providência, e, nele, a Casa Tia
manchas de sincretismos cultural e Ciata, “capital da Pequena África”, regi~o
religioso e cruzamentos dos campos do geocultural, que se estendia da Saúde
sagrado e do profano. até a Praça Onze, trecho durante muitos
Por volta de 1872, Hilário Jovino se anos transformado em passarela do
mudou para o Rio de Janeiro, capital do samba e do carnaval carioca.
Império. Nesta cidade, ainda permane- Tia Ciata foi uma baiana, que para o
ceu integrado à comunidade baiana, Rio de Janeiro também se mudara em
formada na sua maioria por homens e 1873, e com 16 anos de idade se tornou
mulheres pretas, que para o Rio uma lenda da memória popular desta
migraram na condição de escravos, e, cidade. Sua famosa e histórica casa foi
em maior quantidade, livres. De frequentada por muita gente ilustre da
“Como Salvador é uma cidade festeira passagem é bom que se diga que a cultura popular, a exemplo de Hilário
que só ela, dá para pensar e imaginar Bahia, na ocasião, já funcionava como Jovino, João da Baiana e outras tias
- e disso se tem prova – a quantidade uma “boca” para o tr|fico interpro- baianas “escoladas em muitas das artes
registrada de processos de criação, vincial de escravos, neste aspecto sendo e artesanato do Recôncavo Baiano, de
conservação, invenção e reinvenções um importante provedor de mão-de- onde vieram.
de tradições.” obra para as plantações de café do vale Donga, responsável pela primeira
da Parnaíba e para os serviços urbanos gravação de um samba em 1916, Pixin-
36. guinha, sambistas, capoeiristas, artistas, batuque era alvo das perseguições “O batuque era um genérico para
baianos e cariocas freqüentavam a “Casa policialescas. Não raro eles se escon- qualquer festa de pretos e pardos na
da Tia Ciata” que com seus saraus, diam nos zungus, casas de pretos que rua e sua influência no samba é
concertos, rodas de samba e batucada, serviam de abrigos para escravos e liber claríssima. E este termo também
alimentavam a vida cultural da cidade. -tos em becos e ruelas. O batuque era
relaciona-se com uma entre outras
O relevante desem-penho da comuni- um genérico para qualquer festa de
“nações” dos escravos africanos que
dade baiana foi tão influente na forma- pretos e pardos na rua e sua influência
ção da cultura popular carioca, no final no samba é claríssima. desembarcavam na cidade após
do século XIX , que a esta comunidade já Na Bahia e no Rio de Janeiro, para os pavorosa viagem.”
se quis atribuir a exclus-ividade do capoeiras, as festas, antigamente,
fenômeno e a primazia sobre o samba, podiam ser constituír em ocasiões
em qualquer das suas variações. eventuais de divertimento e briga. Ou
A super importância dos baianos foi mesmo uma chance para fazer da vida
refutada, sem, contudo, desfazer os um faz de conta. Ou também uma
méritos que tiveram. Tradicionalmente oportunidade para eles fazerem conta,
a Bahia fixou-se no coração da cultura ganhar uma grana, trocar um favor, se
popular do Rio de Janeiro, assim como jogar um contra o outro. De imediato,
este Estado, capital do Império e logo era um momento para demonstrar o
em seguida da República, foi para as vigor de seu bairro, sua freguesia, rua,
camadas popu-lares da Bahia um ponto praça, escada, tabique, buteco, suas
de destino, por nele se vislumbrar cores, sua bandeira, banda, categoria,
melhores condições para se levar a vida sua turma, garbo ou jogo. Poderia ser a
e também deixar pela vida se levar. hora de ganhar um amor, juntar amigos,
*Professor da Universidade Federal da Bahia,
Para se entender o que se passava preservar e comunicar valores e prin-
Doutor em História e escritor. Torcedor do
nas primeiras décadas do século XX, no cípios. Coisas que soletram a identidade. Esporte Clube Bahia e observador das coisas da
Rio, incluindo a questão sobre as capoeira. Este artigo foi escrito de forma não
uniforme por dois autores.
origens do samba, sugere-se recuar no fredeabreu@gmail.com
tempo para perceber como e quando o
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37. Gingando para Cidadania — Associação Cultural Ginga Brasil na Europa
Geraldo Junior*
A Associação Cultural Ginga Brasil Capoeira foi
fundada no Brasil, em 22 de Junho de 1992, por
Severino José Bezerra, também conhecido como
Mestre Nenê no meio capoeirístico. Desde então, o
grupo de professores e alunos desenvolvem pro-
jectos sociais em comunidades das cidades de São
Paulo e Recife.
Eu fui o primeiro representante desta associa-
ção a vir para Europa (Alemanha) em Novembro Contra-Mestre Bola entregando à Chocolate a primeira corda amarela-
de 2001. Naquela época, ouvia outros professores laranja do grupo Ginga Brasil na Europa.
a comentar sobre a capoeira na Europa, mas foi
preciso estar aqui para realmente perceber como as
aulas e os projectos funcionam. Dois anos depois, vim
para Portugal, onde até hoje continuo a viver.
Estabelecer um núcleo do Ginga Brasil aqui não foi
fácil. Começamos a trabalhar em Vila Nova de Gaia e
no Porto. Através da Fundação da Zona Histórica do
Porto e da Escola de Mira Gaia conseguimos promover
nosso primeiro projecto social, no qual ensinávamos
crianças e jovens da comunidade ribeirinha do Porto.
Workshop de capoeira, no Porto, em 2006. Foi o primeiro passo para eu ver o potencial de inclu-