Este documento discute os papéis do Estado e da Religião no contexto da criminalidade. Apresenta uma visão histórica da evolução do direito penal desde as sociedades antigas até os Estados modernos, destacando a transição do poder punitivo das mãos dos indivíduos e da religião para o Estado. Também discute fatores sociais que influenciam a criminalidade e o desafio de equilibrar o interesse punitivo do Estado com as liberdades individuais.
Os papeis normativos do Estado e da Religião, frente ao fenómeno da criminalidade
1. Os papeis normativos do Estado e da Religião,
frente ao fenómeno da criminalidade
A crescente onda de violência, inclusive criminal, é um complicado enigma
das sociedades contemporâneas que não poderá ser compreendido sem nos
afastarmos da mera retórica, das rivalidades corporativas ou científicas,
principalmente no âmbito do Direito e das Ciências Sócias frente a um certo
emocionalismo popular explicativo. Estamos perante um facto, que devido
à sua complexidade, deverá ser tratado com o rigor de um estudo
multidisciplinar. Ou seja, numa pesquisa de compreensão inteligente e
objectiva no âmbito da responsabilidade profissional de policias,
promotores, juízes, sociólogos psicólogos e outros peritos, sem excluir a
responsabilidade social de todos nós enquanto cidadãos interessados.
Factores condicionantes
Os factores do crime são múltiplos e de variada etiologia. Esta observação
leva-nos a concluir que a repressão por si só, não terá a força necessária,
nem mesmo com melhores e mais bem equipadas forças policiais, para
conter o crime. Sendo certo que é indispensável e preventiva em certos
casos. A punição, é no entanto, um paliativo apenas atenuador dos efeitos
do verdadeiro problema. Tal como advertiu, sem rodeios, o Secretário-geral
das Nações Unidas afirmando que “é quase universalmente reconhecido
que mais vale prevenir do que remediar, e que as estratégias de prevenção
devem atacar as raízes dos conflitos e não apenas os actos de violência que
são os seus sintomas.” 1
1
ANNAN, Kofi. in Relatório do Milénio. The Causes of conflict and the promotion of
durable peace and sustainable development in Africa: Report of the Secretary-General.
(documento A/52/871-S/1998/318)
Progress report of the Secretary-General on the implementation of the recommendations
contained in the report on the causes of conflict and the promotion of durable peace and
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Nesta visão vertical da problemática, talvez o único determinismo provável
seja o facto de o crime ser entendido como um fenómeno de carácter sócio
cultural. Ou seja, os seus elementos condicionantes têm essa etiologia. Com
efeito, o comportamento agressivo como principio activo da criminalidade,
deriva de factores inerentes à personalidade e de factores situacionais, tais
como: as frustrações, a influência de modelos agressivos, os efeitos
modeladores da permissividade sobretudo os veiculados pelos meios de
comunicação social e no seio da família, o relativismo moral e o declínio da
normatividade2, incluindo os juízos de valor transmitidos pela religião. São
todos factores que, se não se revelam determinantes são por certo
fortemente condicionantes.
Com tais factores presentes, a convivência social vê-se potencialmente
ameaçada. Situação ainda mais agravada quando as estruturas sociais e
éticas são abaladas por políticas injustas, mediante posturas da elite social e
política contrárias aos padrões comportamentais exigidos, ostentação
agressiva do poder e opulência, fraudes várias em corrupção dos valores
sociais, crimes impunes de ricos e poderosos, que se não são "dignificados",
pelo menos ficam livres da repreensão modeladora e preventiva dessas
“praxis” ameaçadoras do convívio social. A ordem social e a punição são
necessárias, sendo que a aplicação da punição só faz sentido para a
manutenção e consolidação da ordem.
Norma primitiva, punição ou vingança
A história do direito penal remonta ao surgimento da humanidade, datando-
se, daquilo que se tem notícia, há aproximadamente cinco mil anos atrás,
sustainable development in Africa. (documento S/1999/1008)
http://www.un.org/ecosocdev/geninfo/afrec/sgreport/index.html
2
Ver: HACHER, Friedrich.. Agressividade -A violência no mundo moderno. Cap. “A
mensagem oculta dos meios de comunicação. Bertrand: Lisboa. 1972. pp. 296-304
2
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isso sem entrarmos em conjecturas pré-históricas, sendo o Código de
Hamurabi o registro mais antigo que se conhece de regulamentação social e
codificação penal.
Na Antiguidade, a sociedade patriarcal compreendia o direito como o direito
da força, sendo a noção de crime bem diferente dos conceitos de hoje. O
direito confundia-se com a religião e com a moral, exercendo-se a punição
por meio da vingança privada e, consequentemente, o interesse punitivo era
sinónimo de vingança. A "justiça", em caso de delito, era sempre efectuada
pelas mãos da vítima ou em caso de morte ou incapacidade desta, era
aplicada pelo familiar varão mais próximo. Sendo esta Lei conhecida como
a Lei do Talião, conhecida pela máxima celebre: “olho por olho, dente por
dente”. O Talião, ao limitar a abrangência da acção punitiva, aplicando a
justa retribuição, significou um avanço na história do direito Penal. Vários
foram os documentos que o adoptaram: Por exemplo, o Código de
Hamurabi “Se alguém bate numa mulher livre e a faz abortar, deverá pagar
dez ciclos pelo feto” 3, e “Se essa mulher morre, então deverá matar o filho
dele” 4. Também a Bíblia Sagrada relata episódios onde se pode constatar
como era exercido o Direito entre o povo Hebreu. “Todo aquele que ferir
mortalmente um homem será morto” 5. Este era o caso do homicídio
voluntário6.
Os povos dos tempos primitivos foram decisivamente influenciados pela
religião, e o direito Penal, também sofreu dessa influência adquirindo um
carácter teocrático. A religião confundia-se com o Direito e as leis em vigor
originavam-se dos preceitos religiosos e morais; sendo assim, toda e
3
Código de Hamurabi art. 209
4
Idem. art. 210
5
Levítico 24, 17
6
Mais tarde Josué, substituto de Moisés na liderança do povo de Israel, instituiu por ordem
divina em todo o território da terra prometida, 6 cidades de refugio que funcionavam como
abrigos ao homicida involuntário, a fim de que o “vingador de sangue” não executasse a
punição da lei de Talião, até que se apurasse em julgamento a intencionalidade ou não do
acto praticado. (Ver Números 35:6-36)
3
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qualquer infracção das normas resultava numa perda de direitos, e em casos
extremos, da própria vida. Tais princípios eram típicos do Código de Manu
na Índia, mas também adoptados em Babilónia, no Egipto com os cinco
Livros, na China por meio do Livro das cinco Penas, na Pérsia na Avesta e
pelo povo de Israel através do Pentateuco, os cinco primeiros Livros da
Bíblia Sagrada, redigidos por Moisés.
Posteriormente, com o surgimento de uma maior organização,
especialmente em Roma, sentiu-se a necessidade de regulamentar as
relações entre os homens, principalmente no tocante aos delitos, aparecendo
o processo penal como instrumento para buscar na figura do "Estado", não
no sentido que possui hoje, um mediador entre a vítima e o delinquente, a
fim de solucionar os conflitos entre as partes.
O poder normativo do estado
O surgimento do Estado, personificado na pessoa do soberano, é o que
caracteriza a fase da Vingança Pública. Sob a justificativa de obediência
religiosa, o chefe, rei, príncipe ou regente assume o papel de punir, ditando
a pena aos indivíduos de acordo com a sua vontade, garantindo, assim, a sua
estabilidade.
A autoridade do soberano por “delegação” divina provocava terror às
pessoas, pois a aplicação arbitrária das penas, cruéis e severas, visava à
intimidação colectiva. A pena de morte era difundida por motivos que hoje
são considerados banais e insignificantes. A segurança do soberano
confundia-se com a segurança do Estado e, para garanti-la, valia-se de todas
as arbitrariedades: mutilação, confisco de bens e até mesmo extrapolação da
pena aos familiares do infractor.
4
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Apesar de ter sido considerada um avanço, a transformação da pena numa
sanção imposta por uma autoridade pública continuou a colidir com os
direitos fundamentais do indivíduo. Com a Revolução Francesa, marco
histórico no repúdio ao absolutismo e de todos os seus abusos, teve inicio a
era dos Estados Democráticos e das Constituições liberais, mostrando que as
antigas estruturas de poder enquanto manifestações da organização social
não representavam nem preenchiam eficazmente as necessidades da
sociedade moderna. Com efeito, a mudança de paradigma não só atingiu as
concepções referentes ao exercício do poder, como também o modo como
esse "Novo Estado" exerceria a sua força para proteger a sociedade
emergente, atingindo fatalmente o sistema do poder discricionário a quem
pertence o direito de punir.
Deste modo, assistiu-se a uma mudança radical na aplicação das penas
como retribuição da transgressão das normas sociais vigentes, transferindo-a
das figuras transcendentes para a figura do Estado. Não é mais Deus quem
estipula as regras e pune o transgressor, mas é o Estado quem passa a
desempenhar esse papel. Compete ao Estado o dever de repelir os
delinquentes causadores de perturbação social, protegendo a sociedade
daqueles que não podem conviver em grupo, estabelecendo um verdadeiro
conflito, em que de um lado se encontra o Estado com o interesse de punir,
e do outro o indivíduo transgressor procurando defender a sua liberdade.
Assim, o debate sobre a liberdade pública e o interesse punitivo decorre,
justamente, da opinião daqueles que vislumbram este antagonismo entre o
processo penal e o processo civil, gerando-se um conflito de interesses entre
a pretensão de um dos interessados, o Estado e a resistência do outro, o
cidadão. De imediato, o interesse punitivo passou a ser sinónimo de
pretensão punitiva, posto que se reduz à exigência de subordinação do
interesse de outrem, ou seja o seu direito de liberdade. Assim, na concepção
5
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clássica, a finalidade do processo penal passa a ser a solução desse conflito
de interesses.
É indiscutível que devido ao crescente aumento da criminalidade, este
assunto se torne de crucial relevância. A relação entre o interesse punitivo e
as liberdades públicas é hoje um tema de grande importância e actualidade,
em que a resposta à questão da contradição ou harmonização, pode mudar
radicalmente o modelo e a teoria do processo. Sendo também pertinente
notar, que apesar de vivermos numa sociedade dita laica, em que a
separação entre o Estado e a Igreja está consagrada na texto Constitucional,
o facto é que nestas questões das normas sociais e o exercício do poder
ficaram reminiscências das noções do Sagrado e do Político que se
inscrevem num sistema de representações revividas de uma “proto-
consciência colectiva” que remonta à era das teocracias, e que segundo
Balandier esta relação está carregada de sacralidade. Porque, segundo este
antropólogo, “toda a sociedade associa a ordem que lhe é própria a uma
ordem que a ultrapassa expandindo-se até ao cosmos no caso das
sociedades tradicionais. O poder é sacralizado porque toda a sociedade
afirma a sua vontade de eternidade e receia o retorno ao caos como
realização da sua própria morte” 7.
O poder normativo da religião
Desde as mais antigas civilizações, percebe-se o culto ao sobrenatural como
algo muito importante, mostrando que o espírito de religiosidade
acompanha o homem desde os primórdios. Cada povo tem o culto ao
sobrenatural como motivo de estabilidade social e de obediência às normas
sociais. As religiões e as liturgias variam, mas o aspecto religioso é comum
à maioria das sociedades e é bem evidente. A religião inclui a crença num
poder sobrenatural e a nível da consciência individual inscreve o princípio
7
BALANDIER, Georges. Ibiden. p.107
6
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de uma Lei Moral que abarca a totalidade do agir do crente8. Essa crença
está associada a sentimentos de respeito, temor e veneração, e expressa-se
em atitudes públicas destinadas a lidar com esses poderes. Geralmente,
todos se unem numa comunidade espiritual denominada igreja.
Por critérios meramente metodológicos, esta abordagem restringe-se ao
campo específico do fenómeno religioso, não sendo aqui a igreja
considerada no seu significado Teológico mais profundo, mas enquanto
instituição prescritora de uma moral e de uma ética assentes nos princípios
universais da dignidade humana, que pretende estar ao serviço das relações
sociais.
Hoje, muitos líderes religiosos ocidentais têm defendido a necessidade da
Igreja dominante lutar por maior justiça entre os homens, buscar uma
intervenção política cada vez maior nos problemas sociais ressaltando mais
o conteúdo ético do que os dogmas religiosos. No entanto, sectores mais
conservadores procuram impedir essas modificações defendendo o apego à
tradição.
Já em relação às igrejas protestantes, sem prejuízo da sua identidade
confessional, a carga da tradição é bem menor. O que na maioria dos casos
se traduz numa maior sensibilidade e consequente disponibilidade para
ministrar mais eficazmente entre os seus membros, uma moral e uma ética
subordinadas à releitura evangélica das imutáveis normas da Bíblia Sagrada,
assimiladas como princípios actualizados de uma conduta social humanista,
solidária com os que sofrem, tolerante com os que o maltratam.
8
Cf. PEIXOTO, Alberto e Américo Alves. Religião e Poder Normativo: Universidade dos
Açores, Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais. (Trabalho Monográfico)
2001. p. 9
7
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Sem entrar nas análises economicistas da sociologia da religião Weberiana 9,
referimo-nos a uma “moral tipo” da que foi ensinada por Jesus Cristo no
Sermão da Montanha. Com uma postura pacifista que se recusa a responder
à violência com violência seja ela física, psicológica ou verbal. Sendo que
este “pacifismo por convicção só se explica dentro de uma concepção
global do mundo. (…) só sendo inteligível este pacifismo cristão, quando
adquire o seu verdadeiro sentido com referencia à ideia, e aos valores
supremos aos quais adere.”
Conclusão
De facto há uma diferença entre a forma como é acatada a “norma”.
Enquanto que o poder normativo do estado tenta impor a norma pelo
“medo” à punição, o poder normativo da religião centra-se na convicção da
consciência individual da aceitação voluntária da “norma”.
Uma das explicações prováveis desta altitude íntima prende-se sem dúvida,
com a interiorização da “norma”. Por outras palavras, o respeito pela ética e
moral cristãs para o crente, não assenta na imposição exterior à norma social
vigente em consequência do medo à punição por via de uma alegada
transgressão, mas para o crente o respeito à “norma” é uma reverencia que
flúi do seu convencimento interior.
Buscando uma explicação para tal fenómeno, não podemos ficar
indiferentes à função pedagógica e transformadora do texto bíblico no que
respeita à modelação deste tipo de comportamento; basta lermos as palavras
do profeta Jeremias quando declara: “Mas este é o concerto que farei com a
casa de Israel depois daqueles dias, diz o SENHOR: porei a minha lei no
9
Ver: WEBER, Max. A Sociologia da religião. Citado por Raymond Aron in As Etapas do
Pensamento Sociológico. Martins Fontes Editora: S.Paulo.1982.p. 491
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seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles
serão o meu povo.”10.
Assim sendo, a norma interiorizada pela convicção do respeito e amor a um
Deus Supremo e ao próximo como a nós mesmos é o que marca a diferença.
Só assim as palavras de Cristo proferidas no sermão do monte, fazem
sentido: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e aborrecerás o teu
inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos
maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e
vos perseguem.”11
Artigo elaborado por Sidónio Lança, publicado no jornal Correio dos Açores para
cumprir os requisitos de avaliação da formação em “Criminalidade e Formas Sociais
de Controlo” ministrada pelo Dr. Alberto Peixoto na Universidade dos Açores.
10
Jeremias 31:33
11
Mateus 5:43-44
9