1. I Prêmio Ecofuturo de Educação para a Sustentabilidade
AÇUDES: Patrimônio da
Comunidade de Santa Luzia
Erisdê da Silva Borges
Nessa ética da água, as articulações insti-
Uma nova ética tucionais são fundamentais. A participa-
para a água deve ção da comunidade de usuários associada
à tecnologia disponível pode mudar subs-
ser considerada. tancialmente a situação atual. Se o ge-
renciamento contar com a participação
ativa da comunidade, as perdas poderão
ser significativamente reduzidas.
( José Galizia Tundisi, Água no terceiro milênio:
perspectivas e desafios, p. 107)
16
TEMPO REI, Ó, TEMPO REI/ Ó, TEMPO REI!/ TRANSFORMAI AS VELHAS FORMAS/ DO VIVER/
ENSINAI-ME, Ó, PAI/ O QUE EU AINDA NÃO SEI/ MÃE SENHORA DO PERPÉTUO, SOCORREI
(Gilberto Gil, Tempo Rei)
2. Instituto Ecofuturo
Justificativa quer tratar — Açudes: patrimônio da comuni-
dade de Santa Luzia. É este o foco a ser trabalha-
do, tendo como fundamento os princípios básicos
dos Parâmetros Curriculares Nacionais, o livro A
E
m uma entre tantas visitas à Biblioteca vida que a gente quer depende do que a gente faz e a rea-
Comunitária Ler é Preciso de Joselândia lidade local, com o intuito de levar a comunidade a
(MA), lá estava majestosamente fixado no refletir sobre seus atos em relação aos açudes, sua
mural o convite para participar do I Prêmio Eco- importância para a sobrevivência da comunidade
futuro de Educação para a Sustentabilidade. E o quando prevalecia a escassez de água, o abandono,
aceitei imediatamente. No entanto, o dilema: o os perigos à saúde e o atual desperdício de água.
que fazer e como fazer? Então, em uma tarde, na É constrangedor percorrer diariamente o mes-
companhia de minha mãe, passando em frente mo trajeto e verificar o quanto a ação humana afeta
ao açudinho do povoado, nos deparamos com de forma negativa a paisagem natural, ameaçando
uma cena anormal: um ex-aluno meu, o Lázaro, os recursos disponíveis e a qualidade de vida, e sen-
diante do açude praticamente coberto por uma tir-se envolvida por uma sensação de impotência
vegetação aquática, tentava, sozinho, com as nos argumentos diante do desmatamento de nossos
próprias mãos, retirar as plantas que insistiam babaçuais e da poluição dos açudes.
em permanecer lá. Lembrei-me imediatamente Há de se enfatizar que esses açudes um dia fo-
da linda história do pequeno beija-flor tentando ram tão sonhados, tão almejados, fontes de vida a
salvar a sua floresta do fogo. abastecer a comunidade de Santa Luzia, que muito
Ver o adolescente fazendo a sua parte na tenta- sofria com a falta de água. Os moradores tinham de
tiva de salvar o seu açude levou-me a refletir sobre andar quilômetros e quilômetros para carregarem
tantas coisas, considerando a eficácia da prática na cabeça uma lata de água para suprir suas neces-
pedagógica como ação transformadora do meio sidades mínimas.
sociocultural, a partir de uma relação que envolve Este contexto sensibilizou os operários que
os conhecimentos adquiridos por nossos alunos nos anos 1970 estavam trabalhando na construção
em sala de aula e seu uso no cotidiano. Primeiro, da estrada de Joselândia ao povoado São Joaquim,
porque nem tudo o que transmitimos é totalmente e eles, nas horas vagas entre o espaço do almoço 17
absorvido. Segundo, porque a qualidade não está e antes da hora de dormir, trabalhavam para a
no excesso, mas em competências e habilidades comunidade. Tamanha generosidade construiu
que constroem aprendizagens significativas, por o único patrimônio comum da comunidade. Às
menores que sejam, mas capazes de libertar atos de margens da estrada localizam-se o açude do Seu
uma verdadeira consciência cidadã. João Aurora e o açude da Vó Inácia, cujos nomes
Resolvido o dilema em relação ao tema, inspi- homenageiam os moradores que doaram o terre-
rei-me a tocar na ferida de todos, mas que ninguém no para a construção.
3. I Prêmio Ecofuturo de Educação para a Sustentabilidade
Da gente que contribuiu para uma vida melhor
— os operários generosos — nunca mais se teve
notícia; Seu João Aurora hoje mora em Roraima, e
a Vó Inácia comemorou recentemente, em julho de
2009, seus 104 anos, bem lúcida, ao lado de filhos,
netos, bisnetos, parentes, amigos e o seu açude, que
ajudou a criar toda essa gente. Ela não se cansa de
dizer que a mensagem que quer deixar para novas
gerações é de preservação e de respeito:
“Preservar água que é uma coisa muito importante, só quem sofreu
muito com a falta de água é que sabe do que eu estou falando.
Sem água não existe vida. E o respeito é muito bom, respeite
sempre o branco e o negro, o rico e o pobre, o feio e o bonito,
respeite todo mundo. Só assim reina a paz.” (2006)
Isso tudo é importante, mas nem todo mundo
pensa assim e muita gente não cuida, não valoriza,
usufrui e destrói ao mesmo tempo sem ter noção do
que faz. Conscientizar, mobilizar uma comunidade
é muito difícil; nesse período não fizemos milagres
18 e, na medida das limitações, procuramos incansa-
velmente orientar a comunidade a se desprender
um pouco da busca desenfreada do capitalismo para
poder dedicar-se mais à valorização e à preservação
de suas conquistas por meio do redimensionamen-
to de suas práticas atuais.
O açude que a gente quer depende do que a gente faz. É só querer fazer!
4. Instituto Ecofuturo
Conteúdos Curriculares
Para alcançar tais objetivos, fez-se necessária a
Objetivos aplicação interdisciplinar dos respectivos conteúdos
curriculares, sedimentados em leitura, produção e
interpretação textual de bilhetes, anúncios, cartas,
paródias, músicas, poesias, entrevistas, relatos, car-
tazes, lendas, convites gráficos, tabelas, resolução
Geral: de situações e problemas que envolvem as quatro
operações; “Higiene pessoal e do ambiente”; “Água:
• Identificar-se como parte integrante do meio cuidados, poluição e desperdício”; “Lixo: cuidados,
em que vive e contribuir para sua conservação e ma- decomposição, coleta seletiva e reciclagem”; “Me-
nutenção de forma mais ativa e imediata, a partir do lhorar as condições de vida da comunidade: as oito
redimensionamento de atitudes e práticas tanto pes- metas do milênio”; Como se formou o povoado de
soais quanto coletivas com atividades que envolvam Santa Luzia? Aspectos Naturais e Ação.
tomadas de posição diante de situações relacionadas
à sustentabilidade dos açudes da comunidade.
Específicos:
M et o do l og ia
Ilustração: Rafaela Gomes Barbosa, Projeto Anchieta. (detalhe)
• Ler, produzir e interpretar textos diver-
sificados.
• Buscar coletar, organizar e registrar infor- O presente projeto didático, com o tema Açudes:
mações referentes ao ambiente em que vivemos por patrimônio da comunidade de Santa Luzia, tem
intermédio de entrevistas, visitas, desenhos, gráficos, como público-alvo um total de 12 alunos de 3ª e 19
tabelas, esquemas, listas de textos, maquetes, carta- 4ª séries (multisseriado) da Escola Municipal Santa
zes, concursos etc., sob orientação da professora. Luzia e seus respectivos familiares, e se estende, em
sua complexidade, a toda a comunidade de Santa
• Orientar a comunidade escolar para a impor- Luzia. Na verdade, a população local é basicamente
tância dos hábitos de autocuidado com a higiene e a constituída por duas famílias fundadoras do povoa-
saúde, respeitando as possibilidades e os limites do do. Como as pessoas do local geralmente casam-se
próprio corpo e do ambiente em que vive. entre si, de certo modo todos são como parentes.
5. I Prêmio Ecofuturo de Educação para a Sustentabilidade
Processos Enfatizados
Na elaboração do projeto foram uti- O ponto de partida para a inserção da pro-
lizados vários recursos e critérios de blemática a ser abordada em relação ao tema
desenvolvimento, entre os quais me- Açudes: patrimônio da comunidade de Santa
recem destaque: observações, rela- Luzia deu-se por meio da observação de uma
tos, leitura, produção e interpretação cena comum que me incomoda diariamente. An-
de textos selecionados; ilustrações tes de entrarmos na escola, sempre ficamos de dez
alusivas ao tema; confecção de mu- a quinze minutos sentados na calçada. Durante
rais; músicas, pesquisas, exercícios esse tempo, alunos, funcionários e alguns pais, en-
diversos relacionados ao tema, caça- quanto conversam, presenciam uma cena de total
palavras; jogos; maquetes, concursos desperdício: a caixa de água que abastece o povo-
e leitura de livros informativos e de ado se enche e fica, por horas, derramando água,
literatura, como: o que me deixa indignada. Um dia, não deu mais
para aguentar e convidei a pessoa responsável pelo
GOMBERT, Jean René. Eu protejo a natureza poço a vir até a escola e explicar o porquê de tanto
para salvar os animais e as plantas. São Paulo: desperdício. Sugerimos a colocação de uma boia,
Girafinha, 2007. mas o responsável disse que isso não resolveria
GOMBERT, Jean René. Eu fecho a torneira o problema, prometendo, no entanto, ficar mais
para economizar água. São Paulo: Girafinha, atento para evitar tanto desperdício. Realmente
2007. o problema foi amenizado, mas, até o momento,
SECCO, Patrícia Engle. Juca Brasileiro a água ainda não solucionado. Estou procurando uma
e a vida. Educar D. Paschoal, 2004. alternativa com o poder público local.
Depois de familiarizar a turma com a situação
A dinamização do trabalho deu-se através da do desperdício de água, enfatizei a importância de
20 I Feira de Higiene e Saúde Pessoal e Am- se preservar para não faltar, visto que num passado
biental, organizada pelos funcionários da Escola não tão distante o povoado Santa Luzia sofreu — e
Municipal Santa Luzia juntamente com a agente de muito — com a falta de água e que o açude do Seu
saúde do povoado, Socorro Aurora, e a enfermei- João Aurora e o açude da Vó Inácia foram muito
ra Joelma. Nessa ocasião, os alunos participaram importantes para a manutenção do povoado, mas
ativamente na confecção de cartazes, paródias e atualmente, com a construção do poço artesiano,
diversas apresentações sobre higiene, saúde, lixo, predomina um grande descaso com os açudes e
desperdício etc. reina o desperdício de água.
6. Instituto Ecofuturo
Convidamos Dona Maria Aurora, uma das pri- coletiva de purificação da água coletada no açude;
meiras moradoras do local e que ainda está aqui, para com material reciclável, construímos um filtro de
relatar um pouco da história do povoado — que garrafa PET com camadas de algodão, areia e casca-
recebeu este nome em homenagem a Santa Luzia, a lho. Acompanhamos todo o processo de filtração
padroeira —, seus habitantes, costumes, dificuldades e e, depois, fervemos a água filtrada. Comentamos a
conquistas, como os açudes, a estrada, a energia elétri- respeito disso: as poucas pessoas no povoado que
ca, a escola, o poço, a igrejinha e o orelhão. possuem filtro não o utilizam, alegando que a água
Sugeri aos alunos uma visita ao açude acompa- demora para filtrar.
nhados de um adulto para observarem a paisagem
e fazerem ilustrações, e pedi que cada um cole-
tasse água do açude em um frasco de garrafa PET Reservamos diariamente um
(“pitula”) e a levassem à escola no dia seguinte. tempo para leituras, produção,
Cada criança chegou com sua garrafinha de água interpretação e resolução de
suja, e eu, com a minha garrafa de água limpa, atividades referentes aos textos
filtrada e gelada. Servi aos alunos, que adoraram selecionados.
a gentileza. Perguntei às crianças quem gostaria
de beber um pouco da água que elas trouxeram. É • Músicas: Depende de nós, Ivan Lins; Planeta
claro que todas responderam “não” e fizeram uma água, Guilherme Arantes; Rap da limpeza,
cara de nojo e repúdio. Aproveitei esse momento Patrícia Engle Seco; Baila comigo, Rita Lee
para confrontá-los: “Mas eu servi uma água cuja (Som Livre, 1980).
origem vocês desconheciam e vocês aceitaram.
Por quê?”. As respostas foram unânimes: “A nossa • Poemas: Paraíso, José Paulo Paes; Esse
água nós sabemos que é dos açudes e está suja, pequeno mundo, Pedro Bandeira; Um poema
poluída, nojenta e imprópria para beber, e a sua piolhento, revista Amae Educando; Amigo
água é limpa. Além do mais, nós confiamos em Planeta e Tudo é Vida, José Augusto e Paulo
você, porque você é higiênica, gosta de limpeza e Sérgio Valle; A herança da criança, Paulo
jamais nos daria água poluída para beber”. César D. de Oliveira; Classificados poéticos,
Questionei os alunos: “Se a água está imprópria Roseana Murray, e outros. 21
para consumo humano, por que os vejo tomando
banho, pescando, e até suas mães lavando louças e
roupas nessas águas?”.
Assim, abri espaço para o debate, justifica-
tivas e o relato de suas experiências vivencia-
das nos açudes.
Realizamos em sala de aula uma experiência
7. I Prêmio Ecofuturo de Educação para a Sustentabilidade
Sugeri às crianças que dialogas- • Expliquei sobre o descarte inadequado do
sem com seus familiares sobre a lixo no meio ambiente, a decomposição dos
origem, a importância e o atual resíduos sólidos e a coleta seletiva.
descaso em relação aos açudes.
• Confeccionamos lixeiras com caixas de pa-
• Coletamos com a comunidade informações pelão e as distribuímos no povoado nos locais
relacionadas à quantidade de açudes, famílias, mu- mais movimentados: o “Pau da Mentira”, o Bar
lheres grávidas, idosos, banheiros em casa, pessoas do Seu Nazaro (onde o lixo vai parar dentro do
alfabetizadas e filtros existentes no povoado para a açude da Vó Inácia), a escola, a igreja e os arredo-
elaboração de gráficos, tabelas e resolução de cál- res do orelhão, com a permissão dos respectivos
culos matemáticos. responsáveis. Explicamos o porquê e pedimos a
colaboração de todos.
• Recebemos a visita da agente de saúde na
escola para explicar aos alunos hábitos de higiene • Dividi a turma em dois grupos para monta-
corporal e do ambiente, os diversos tipos de po- rem, com maquetes, dois tipos de ambiente:
luição, doenças e prevenção, além dos cuidados ao um poluído e outro natural.
ingerir, consumir ou manter contato com a água e a
constante necessidade de evitar o desperdício. • Organizamos álbuns sobre regras básicas de
higiene pessoal e do ambiente.
• Realizamos um concurso de frases relaciona-
das ao tema, com os seguintes critérios de avaliação: • Selecionamos rótulos de produtos de lim-
ortografia, caligrafia, criatividade, originalidade, peza e higiene pessoal para a realização de
ilustração e coerência com o tema. leituras, jogos, quebra-cabeças.
• Confeccionamos cartazes voltados à prática • Confeccionamos placas sobre limpeza para
de preservação dos diversos ambientes. colocar em vários locais da escola.
22 • Apoiamos o mutirão comunitário organiza- • Orientei os alunos a elaborar e distribuir
do pela comunidade para retirar parte do lixo às os convites para a I Feira de Higiene e Saúde
margens do açude e a vegetação que cobria pratica- Pessoal e Ambiental, ação que foi fortalecida
mente toda a superfície. pela direção da escola e pela agente de saúde do
povoado.
• Realizamos uma nova visita ao açude. Dessa
vez, os alunos foram acompanhados pela professora
para a fixação de cartazes.
8. Instituto Ecofuturo
A conclusão das atividades deu-se com uma ação sódio e explicavam seu uso correto para a pre-
interativa realizada em 27 de agosto de 2009, venção de doenças.
organizada pelos funcionários da escola e da área Por intermédio da enfermeira Joelma, solicita-
de saúde e direcionada à comunidade local. mos ao presidente da Câmara dos Vereadores
Foi um dia educativo que conciliou saúde e do município a implantação de fossas no povoado
lazer, iniciado às 8 horas da manhã com um ma- (poucas casas da comunidade possuem fossas; ge-
ravilhoso café da manhã na casa da professora ralmente as necessidades são feitas ao ar livre).
Erisdê, oferecido especialmente aos profissionais Realizamos o sorteio de um filtro doado pela
engajados no projeto. professora Erisdê.
Só então às 9 horas nos dirigimos à escola para Deu-se uma pequena pausa para o almoço, e as
a abertura do evento, que aconteceu com sauda- atividades só foram dadas por encerradas quando
ções de boas-vindas e agradecimentos a todos os não havia mais nenhum visitante.
presentes, pelo apoio e participação. Apresen-
tamos os profissionais de saúde e a verdadeira Um dia de saúde nunca antes proporcio-
finalidade do evento à comunidade. A enfermei- nado à comunidade — não nesta dimensão de
ra Joelma proferiu a palestra educativa Higiene e valorização da divulgação dos conhecimentos cons-
saúde pessoal e ambiental, seguida de apresentações truídos na escola e repassados para a comunidade,
dos alunos relacionadas ao tema. Encerrada as no sentido de orientação e participação ativa na
apresentações, os funcionários da escola intera- conservação de um ambiente limpo e saudável em
giram com os funcionários da saúde, a fim de casa, na escola e nos lugares públicos em geral.
auxiliá-los de forma significativa na realização
das atividades, de acordo com a função de cada Que seja um novo recomeço! Já plantamos
um em salas reservadas segundo a necessidade. a semente; que agora germine a higiene e que a
A secretaria da escola tornou-se o consultório comunidade a regue diariamente na tentativa de
da enfermeira Joelma, para a realização de exa- construir coletivamente a vida que a gente quer.
mes preventivos.
Socorro Aurora, em uma sala bem menor, dis- No dia seguinte, eu e os alunos participantes
tribuía preservativos aos adolescentes, enquanto do projeto brindamos ao sucesso do evento à 23
em outras salas se realizavam consultas médicas base de chocolate, com os deliciosos bombons
e aplicação de flúor, além de orientações sobre a Garoto. Tintim!!!
forma correta de escovação, uso do fio dental e
antisséptico bucal etc.
Algumas equipes orientavam as pessoas,
distribuindo kits de combate a piolhos, cáries e
verminoses, e outras distribuíam hipoclorito de