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ARTE
00 março de 2010
Museu do Design e da Moda, em Lisboa, propõe uma viagem
pela arte apartir do cotidiano e dos costumes do século 20
Texto e fotos JOÃO CORREIA FILHO
Desfile do tempo
s paredes não têm reboque, os cabos da fia-
ção estão aparentes, o concreto tem arestas salientes, praticamente sem pintura. O
Museu do Design e da Moda, o MUDE, no centro da capital portuguesa, começa a dar sua
mensagem já na forma de se apresentar. Foi inaugurado em maio de 2009 sem que seu
grande salão de exposições estivesse totalmente finalizado, em uma clara metáfora de
que tudo ali faz parte de um contínuo processo.Tal intuito também fica evidente na dis-
posição e na escolha de seu acervo, que, desde sua abertura, exibe 170 peças que ajudam
a refletir sobre a evolução do design e da moda através dos tempos, e da relação dessas
duas áreas com a história, com os costumes e com a evolução estética de cada época.
A
Abaixo, poltrona First, criada pelo italiano
Michelle de Luchi em 1983. Na página
ao lado, vestidos da década de 1960
expostos no MUDE: versatilidade de estilos
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Logo na entrada da mostra, imagens projetadas na parede chamam a
atenção para uma cadeira exposta em uma discreta base de madeira. As
projeções mostram John F. Kennedy e Richard Nixon durante o primeiro
debate presidencial da história a ser transmitido ao vivo pela televisão, que
foi ao ar no dia 26 de setembro de 1960, nos Estados Unidos. As imagens
mostram os candidatos sentados em móveis exatamente iguais aos expos-
tos ali, como a cadeira Classic Model, desenhada pelo dinamarquês Hans
Wegner. A peça foi confeccionada com madeira e palha, tem formas arre-
dondadas, mas ao mesmo tempo dinâmicas e sóbrias.
Nessa mesma década, o homem dá importantes saltos tecnológicos:
em 1961, o russo Yuri Gagarin entra em órbita e , oito anos depois, em 20 de
julho de 1969, a tripulação da Apolo 11 pisa na Lua e faz com que todos
olhem com deslumbre para o céu e para o futuro.Não foi diferente na moda
e no design. Toda a criação dos anos 1960 foi dominada pelo sonho espa-
cial, em um arroubo de criatividade que proporcionou voos rumo a uma
estética futurista. A escrivaninha e a cadeira Boomerang, do escultor e
designer francês Frances Maurice Calka, é sem dúvida um dos exemplos
dessa tendência. Modernas até mesmo para os dias de hoje, as peças têm
desenho extremamente arrojado, que lembra uma nave espacial.
A exposição apresenta quatro vestidos da década de 1960, marcada
por grandes contradições. De um lado, o experimentalismo de Paco
Rabanne, com suas misturas de couro e metal; de outro, uma releitura de
Yves Saint Laurent para o espírito flower power, que expressava o repúdio
às guerras que eram deflagradas simbolicamente no espaço, entre russos
e americanos, e, na Terra, em diversos países. O estilista francês André
Courrèges também exibe exemplos da ousadia que o fez ser reconhecido
como um dos “inventores” da minissaia, inserindo em seus modelos formas
geométricas que revolucionaram o mundo da moda na década de 1960.
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ARTE
Em sentido horário:
cadeira Classic Model,
do dinamarquês Hans
Wegner; vestido criado por
Paco Rabanne; e escrivininha
e cadeira Boomerang,
inspirações futuristas de
Frances Maurice Calka
Abaixo, fachada do MUDE,
instalado em um edifício do
século 19 com 7 andares
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Acervo abrangente
A ideia dos diretores do MUDE é que nos próximos anos o espaço este-
ja totalmente adaptado e modernizado, de modo que as cerca de 2 mil
peças que compõem seu acervo possam ser distribuídas nos sete andares
do edifício do século 19 onde o museu está instalado hoje. Os 1.200 objetos
e mais de 1.000 peças de moda foram adquiridos pela Câmara Municipal de
Lisboa do colecionador português Francisco Capelo, que durante a década
de 1990 dedicou-se a reunir um grande espólio multicultural.
Hoje, as mostras ocupam dois andares do edifício. O térreo é dedicado
à exposição permanente, que, embora mantenha sua ideia central, tam-
bém se altera com a rotatividade das peças do acervo. O primeiro andar é
ocupado com mostras temporárias, em geral de estilistas e designers por-
tugueses de importância no cenário mundial, como é o caso de António
Garcia, que terá a partir de 29 de abril uma exposição sobre sua trajetória.
A exibição permanente salta dos polêmicos anos 1960 para a intrigan-
te década de 1980, que tem como destaque peças que pertenceram ao
Grupo Memphis, criado pelo austríaco Ettore Sottsass, e que reuniu arqui-
tetos e designers de vários países em torno de uma mistura de linguagens
e conceitos que se tornou tendência mais tarde. A primeira mostra do
grupo, em 1981, expôs um trabalho provocativo, que abusa das cores. Um
bom exemplo é a Poltrona First, de 1983, criada pelo italiano Michelle de
Luchi, que une um triângulo vermelho, um retângulo branco e um círculo
verde no mesmo móvel.
Seguindo o conceito pós-modernista da época, o armário Side, do desig-
ner japonês Shiro Kuramata, mescla formas modernas a uma base clássica,
resultando em uma peça que parece estar em movimento. A poucos metros
dali, chamam a atenção alguns objetos da década de 1990, mostram que o
design e a moda sabem ser também grandes fontes de ironia.
Foto:CristianoMascaro/Divulgação
Mais de 2 mil peças compõe o acervo do MUDE e apresentam a evolução
da moda e do design com o passar dos anos
Abaixo, objetos da
década de 1950:
telefone e ventilador
com design vintage
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Serviço:
Museu do Design e da Moda (MUDE): Rua Augusta, 24, Lisboa. De terça a quinta-feira, e aos domingos,
das 10h às 20h. Às sextas e sábados, das 10h às 22h. Site: www.mude.pt
O armárioYou Cant Lay DownYour Memory,deTejo Remy,criado em 1991,
é um bom exemplo do status de arte que o design conquistou com o passar
dos anos.Tal móvel,com suas gavetas empilhadas desordenadamente,poderia
ser facilmente exposto em uma galeria, como uma instalação artística.
Do outro lado da sala, mas seguindo a mesma linha, está a cadeira
Naked Confort,do inglês John Angelo Benson,produzida em 2003.Trata-se de
uma cadeira feita de palha, sem nenhum revestimento, referenciando o con-
ceito de conforto que sugere o próprio nome. O contato direto com a palha,
que incomoda e se desfaz, deixa claro que, muito mais de que um móvel para
ser usado, estamos diante de uma peça conceitual, para fazer refletir sobre a
própria função do design.
Os saltos no tempo que permeiam a mostra podem incluir uma passa-
gem por objetos da década de 1950,expostos no centro do andar térreo. Entre
eles está um simpático ventilador, rádios valvulados de estética vintage, bate-
deiras brutamontes, máquinas fotográficas e espremedores de laranja que
parecem secadores de cabelos.
Ainda vale uma visita aos móveis do escritório desenhado pelos arqui-
tetos franceses Le Corbusier e Charlotte Pérriand, que fizeram parte da Man-
são do Brasil, criada para a Cidade Universitária de Paris, em 1956. É, sem
dúvida, um ótimo exemplo da união entre funcionalidade e genialidade que
marca esses dois artistas da forma.
A visita ao museu pode terminar em uma mistura de anos 1960 e déca-
da de 2000, períodos que foram colocados estrategicamente próximo ao hall
de entrada. Têm como representantes, respectivamente, um vestido de 1960
desenhado por Coco Chanel, ao mesmo tempo dourado e sóbrio, e um vesti-
do criado por John Galliano, um dos mais importantes estilistas da atualida-
de, para a coleção de 2000 da Dior. São peças que encerram a exposição, mas
que também poderiam ser o início da mostra, pois provam que na moda e no
design o tempo é relativo, mas as marcas que deixam, não.
Abaixo, uma das salas de
exposição do museu.
Na página ao lado, de cima
para baixo: armárioYou Cant
Lay DownYour Memory,
criado porTejo Remy em
1991, e o Side, do designer
japonês Shiro Kuramata