O documento descreve a velha-do-postigo, que passa os dias sentada em um banco rendilhando uma renda e observando o mundo através de um postigo. Ela reflete sobre a natureza da renda, do postigo e do mundo que observa, questionando se estes objetos são realmente o que parecem ser.
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A SOMBRA DO PESSEGUEIRO
A VELHA-DOPOSTIGO
Jorge Barbosa - A Sombra do Pessegueiro, Histórias Verdadeiras, http://homepage.mac.com/jbarbo00/
2. A SOMBRA DO PESSEGUEIRO
A VELHA-DO-POSTIGO
JORGE NUNES BARBOSA
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A velha-do-postigo postigava o mundo, sentada num
banco, primeiro de pedra, depois de bronze, ferro e aço,
e agora de plástico almofadado, de esponja revestida.
Fazia renda, rendilhando o que via e o que não via pelo
postigo, de onde postigava o mundo. Para ela, velha sabida, de postiguência feita, o seu mundo não era só o
mundo que postigava. O mundo, ela sabia-o, era a renda
que rendilhava, o postigo que a iluminava e o mundo que
postigava.
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Ainda que pouco soubesse do mundo, como sabidamente reconhecia, as suas dúvidas diziam respeito ao
banco em que se sentava e onde rendilhava o que via e
o que não via.
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A renda que fazia, e por si se desfazia para que algo
fizesse, ainda que se fizesse e desfizesse, sem dúvida,
era renda. A respeito dela, sua mente não podia ter qualquer dúvida. Aquilo que era necessário desrendilhar era
o porquê de se fazer e desfazer. Não tendo, até agora,
melhor resposta, aceitava, do alto do seu banco almofadado, apelando a sua postiguência inquestionável, que,
da renda, a essência era precisamente o fazer-se e desfazer-se. Não era sem finalidade que tal acontecia: só
fazendo e desfazendo se poderia fazer o que quer que
fosse. Não se desfizesse o que feito estava e nada mais
haveria que fazer. Seria o fim, a morte da renda. Sendo a
renda uma das partes do mundo, a rendilhar e a desrendilhar, a morte da renda corresponderia à morte do mundo. Era vê-la, dedos trémulos, a desfazer a renda, quando ela, por si, não se desfazia. Assim, se a renda se não
desfizesse, uma vez que era a velha que a fazia, ela própria a desfaria para que a pudesse fazer. Enfim, a renda
era, sem qualquer margem para dúvida, renda.
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O postigo, esse, era também um postigo. Havia
quem dissesse que não, que o postigo era uma janela,
ou então um simples buraco na parede. Mas ela, velha e
sabida e amante de saber, desprezava querelas sem sentido. Fosse buraco ou janela, o postigo seria sempre um
postigo. De qualquer modo, todos os buracos são postigos e todas as janelas postigos são. À medida que a
renda se fazia ou desfazia, assim o postigo era janela ou
buraco. Era precisamente nesse movimento de fazer e
desfazer que se poderia descortinar que afinal, por detrás dos acidentes do que fica feito e do que fica desfeito, se encontrava o postigo. Que lhe chamassem janela
ou buraco, a ela, velha-do-postigo, dona de si como era,
pouca diferença fazia. O postigo era a luz da sua renda,
e ao iluminá-la dava sentido e definia-se a si mesmo.
Não iluminasse ele a renda, ou não se rendilhasse o que
ele iluminava, e então, sim, o postigo deixaria de ser
postigo, mas também não seria buraco nem janela. Em
muralha se transformaria, muralha que ruiria no preciso
instante em que se formasse, abrindo assim um novo
postigo.
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Então, o postigo era, de facto, um postigo, e um postigo para sempre seria, embora legítimo fosse reconhecer que, em momentos de sonolência, em que o aspirar
profundo de ar fresco elevasse as bochechas fechando
os olhos semicerrados e pesados de postigar o mundo,
o postigo se transformasse ou parecesse transformar-se
em muralha. Mesmo assim, o postigo era um postigo.
Assunto encerrado, este. Encerrado, aqui e agora, para
que dele nunca mais se fale.
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A história da velha-do-postigo acabaria aqui mesmo,
se alguma dúvida se levantasse a respeito do postigo. A
própria velha não existiria, o que, como todos facilmente
entenderão, não pode ser, uma vez que dela estamos a
falar. Mais grave ainda: esta história, que é verdadeira, e
bem poderia ser falsa que, para o caso, tanto faz, deixaria de ser uma história o que, como é óbvio, também não
pode ser. Ser falso ou verdadeiro é igual, o que importa é
que seja, e isso esta história é. Portanto, se é, é verdadeira, mesmo que seja falsa. Assim se conclui que se,
por artes do diabo, o postigo não é postigo, esta história
fará com que seja. E tranquilamente poderemos respirar
fundo. E que os deuses nos protejam de, com este acto
revigorante, fecharmos os olhos, como de quando em
vez acontece à velha-do-postigo.
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Agora sim, este assunto está encerrado, embora me
custe pensar que alguém ainda possa ter dúvidas sobre
ele. Que posso fazer eu? O destino me fez contador de
histórias, histórias verdadeiras, para que conste. Nem o
destino me pregaria a partida de me fazer contar históri-
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3. A SOMBRA DO PESSEGUEIRO
as que o não fossem. Humildemente, reconheço que o
destino as contaria melhor do que eu. Só que o destino
não conta, nem sabe contar. Se ao menos pudesse contar com ele, talvez tudo me fosse mais fácil…
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(…)
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Já sabemos, então, que a renda é, definitivamente,
renda e o postigo, sem qualquer margem de dúvida,
postigo.
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Do mundo que, do postigo, a velha postigava também não podia haver qualquer dúvida: era mundo. Não
todo o mundo, mas mundo. Era o mundo que a sua postiguência lhe assegurava ser postigável, e portanto susceptível de ser rendilhado e desrendilhado. Como já foi
dito, o mundo era mais do que o mundo: era também a
renda e o postigo. Mas o mundo postigável, embora fosse menos do que o mundo, era seguramente mundo. E
esta convicção lhe bastava para que, sem descanso, o
postigasse dia após dia. Não fosse, este mundo, mundo,
e de que lhe serviria a certeza de que o postigo é postigo? Assim, se concluia que o mundo postigado não era
todo o mundo, mas era todo o mundo postigável. A postigalidade do mundo postigável era a garantia do próprio
mundo, isto é, da renda, do postigo e do mundo.
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Agora, o banco onde a velha-do-postigo se sentava,
seria ele mesmo um banco? Isso, ela não podia garantir.
Postigável, não era. Rendilhável, também não. O máximo
que dele se podia dizer é que era sentável. Mas quem se
sentava era a velha e não o banco que, por sinal, nem
bancável se podia dizer que era. Já fora de pedra, de
bronze e agora era de plástico. Nem sequer pedrável,
bronzável ou pasticável se podia dizer que ele era. Que
outrável podia ele ainda ser, se é que era algo? Esta era
a verdadeira angústia da velha. Esta angústia, sim, era
uma angústia bancal e, portanto, rendilhável. Mas o que
podia ser rendilhado ou desrendilhado era essa angústia,
não o banco. A sua angústia tornava-se então numa angústia ultrabancal, porque, claramente definida como o
era, se definia em função de algo que não se sabia se
era ou não era. O mais certo é que não fosse, para maior
desconcerto da velha e da sua rendilhada postiguência.
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Onde raio se sentava então a velha? No banco não
sabia se era: Seria na angústia?
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Assim vivia a velha-do-postigo, postigando o mundo,
que rendilhava e desrendilhava ao ritmo a que a renda se
fazia e desfazia. Era uma postiáguia, esta velha. A sua
postigaria vinha-lhe da ampla e reconhecida postiguência, da renda e dos rendilhos e desrendilhos que dela
postiaguiamente obtinha e, sobretudo, do bom uso que
do postigo fazia.
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Vendo-a sentada ao seu postigo, poder-se-ia pensar
que estava de castigo, ou castigando o mundo. Mas não.
Sendo claro que postigo é postigo e só postigo pode ser,
castigo não é, tal como postigar castigar não pode ser.
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Foi nestes preparos que conheci a velha-do-postigo.
Entrara, por engano, no seu quarto, em busca de um
gato que, sentindo-se postigado (só depois o vim a entender) miava desesperado.
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O quarto era redondo. Tudo era redondo no quarto.
Só o postigo era quadrado. A própria velha era redonda,
tal como a renda que, rendilhando-se, se redondava nas
mãos redondas da velha. Era um espectáculo sublime
aquele. A velha, sentada no seu banco, rendilhando e
desrendilhando, postigava sem despostigar.
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Ouvia que murmurava. Como quem passa da luz
para a penumbra, precisei de algum tempo para entender os murmúrios que seus lábios, húmidos, mastigavam. O mundo que postigava, assim o fui entendendo à
medida que me fui habituando àquele silêncio murmurado, era um medronheiro que todos os dias medronhava.
O medronheiro era o mesmo que, medronhando, todos
os dias era outro. Tal como a renda se rendilhava e desrendilhava, e ao mesmo ritmo preciso com que os rendilhos e desrendilhos em renda se consumavam, assim o
medronheiro medronhava e desmedronhava sem se consumir nos medronhos e desmedronhos que em si se
conservavam.
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Este, se bem entendi os murmúrios da velha, era
todo o mundo postigável. E tanto havia para postigar,
que nem tempo se concedia para melhor se acomodar
no banco em que se sentava.
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(…)
A velha-do-postigo ainda dormia. Sonhava que postigava. De tempos a tempos, um sorriso abria-se-lhe na
boca e nos cantos dos olhos. Nunca fora tão feliz, a ve-
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4. A SOMBRA DO PESSEGUEIRO
lha-do-postigo, agora que dormia e a sua postiguência,
em sonho, se revelava ser uma douta postigaria. Dormindo como dormia, sonhando como sonhava, o postigo
aparecia-lhe dourado, postigando um mundo de ouro
emoldurado. Já podia luxar. E descansava de postigar,
como nunca antes havia descansado. Tomava chá e sentada contava o que postigava a quem a quisesse ouvir.
Havia mais quem ouvisse do que quem quisesse, mas
para ela, catequista do postigo, detentora de uma ampla
postigaria, era igual ouvir sem querer ou querer ouvir.
Demoníacos eram aqueles que, por querer ou sem querer, não ouviam. A esses ameaçava: “Um dia vos postigarei. Será tarde para vos arrependerdes. Nunca vos
perdoarei.” O postigo assim se transformou num castigo,
num sonho de castigo, ou num castigo de sonho.
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