1) O documento analisa o relatório de um grupo de trabalho sobre educação especial criado por um despacho governamental.
2) O autor aponta várias contradições e falta de pragmatismo no relatório, como definições ambíguas de conceitos-chave e soluções contraditórias aos problemas identificados.
3) Também critica a manutenção da Classificação Internacional de Funcionalidade como referencial, apesar das críticas apontadas, e a visão preconceituosa sobre currículos.
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Breve apontamento relativo ao relatório do grupo de trabalho sobre educação especial criado pelo despacho n.º 706 C/ 2014
1. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
14-16. Lisboa: Associação Nacional de docentes de Educação especial.
BREVE APONTAMENTO RELATIVO AO RELATÓRIO DO GRUPO DE
TRABALHO SOBRE EDUCAÇÃO ESPECIAL CRIADO PELO DESPACHO N.º
706-C/2014
Joaquim Colôa
Começamos este breve apontamento por explicitar que não é nosso objetivo proceder a
uma análise aprofundada do muito que é dito no Relatório do Grupo de Trabalho sobre
Educação Especial, mas tão só tecer algumas considerações criticas sobre o mesmo.
Assim:
1 - Parece-nos que a sua grande extensão e vontade de pressuposta “abrangência”
(Despacho n.º 706-C/2014) infere à narrativa, de forma consciente ou inconsciente,
alguma falta de pragmatismo, alguma repetição de determinados tópicos abordados e
propostas de soluções nem sempre claras e, em alguns momentos, contraditórias com os
problemas referidos / identificados pelos muitos entrevistados.
2 - Se quiséssemos utilizar uma linguagem mais do senso comum, o que não é nosso
propósito, poderíamos dizer que em alguns momentos do discurso o referido relatório
nos dá uma franca ideia de bipolaridade. Por vezes, é a própria narrativa, que se
estabelece entre o apropriado e o concretizado, que emerge como ambígua e
contraditória. Damos como exemplo o discurso em redor do conceito de inclusão e o
entendimento do conceito de Necessidades Educativas Especiais (NEE). Sobre o
primeiro dispensamos qualquer referência. Quanto ao segundo é apropriado, no relatório
em causa, numa dimensão restrita e restritiva, quase sempre sobreposto e confundindo-
se com o conceito de deficiência, até mesmo pelos termos a que recorre (e.g. Baixa
frequência e alta intensidade – alta frequência e baixa intensidade). O mesmo parece-
nos acontecer, por exemplo, quando se diz que este conceito: “ tenha tido como intenção
ultrapassar os efeitos negativos da categorização decorrente do paradigma médico-
psicológico, tal não aconteceu” (Relatório do grupo de Trabalho sobre a Educação
Especial, 2014). No entanto, em contradição: (a) pouco se avança no que diz respeito ao
sistema altamente categorizador que é apanágio da Classificação Internacional de
2. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
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funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) e (b) muito a narrativa do relatório se
identifica com o modelo clinico quando se recorre a uma linguagem como:
Distinguir as necessidades de apoio educativo devidas às crianças que, sem
apresentarem qualquer disfuncionalidade permanente das estruturas ou funções
do corpo ou das capacidades intelectuais, são particularmente vulneráveis ao
insucesso e abandono escolar, as necessidades de educação especial que
apresentam as crianças com determinados tipos e graus de deficiência.
(Relatório do grupo de Trabalho sobre a Educação Especial, 2014)
Importa, por isso, clarificar quais os recursos dirigidos a alunos que apresentam
limitações que conduzem a necessidades educativas especiais de carácter
permanente as quais têm habitualmente uma baixa incidência na população
escolar, requerendo, no entanto, respostas educativas particulares e os recursos
dirigidos a alunos com necessidades educativas de caráter temporário, ou
dificuldades na aprendizagem, que se manifestam num grande número de
crianças em risco de insucesso - situações que requerem, antes de mais, uma
maior qualidade e diversidade pedagógica e didática. (Relatório do grupo de
Trabalho sobre a Educação Especial, 2014)
Ainda, neste ponto realçámos a enfase que é dada ao tópico “elegibilidade” quase
sempre numa perspetiva de eleger alunos para respostas/recursos e não como
teoricamente e na prática seria desejável. Aspeto também em contradição com os
discursos sobre inclusão a que recorre o grupo de trabalho.
Tópico que é também realçado na referência aos aspetos de Intervenção Precoce. O que
nos cria muitas dúvidas não só pelo já antes referido como pela pouca acriticidade
relativamente aos denominados critérios de elegibilidade agora em vigor no âmbito da
Intervenção precoce.
3 – No que reporta à CIF acrescentamos que pese as críticas de que mesma é alvo por
vários dos entrevistados. Ainda assim, a solução dada pelo grupo de trabalho é a sua
manutenção numa hipotética nova lei.
Manter o recurso à CIF-CJ como referencial organizador das avaliações que
sejam necessárias para a planificação da intervenção educativa, sem prejuízo
de recurso a outros instrumentos de acordo com o contexto da sua aplicação.
Ainda assim, propõe-se um trabalho de clarificação sobre a natureza deste
3. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
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instrumento, esclarecendo junto da comunidade educativa qual a sua natureza e
alcance, designadamente mediante formação contínua. (Relatório do grupo de
Trabalho sobre a Educação Especial, 2014)
Embora propondo-se formação relativamente à CIF ignora-se, estranhamente, quais os
custos e impactos nas práticas de outras formações já encetadas, neste âmbito, sobre a
égide do Ministério da Educação quando da promulgação do Decreto Lei 3/2008 de 7 de
Janeiro. Maior é a nossa surpresa quando verificamos que muitos dos relatores
estiveram técnica e/ou politicamente envolvidos não só neste Decreto-Lei, como na
formação e/ou noutras decisões educativas tomadas nos últimos anos.
4 - O que é claro, em nossa opinião, é que o relatório objeto destas palavras está eivado
de preconceitos, o que parece impedir o grupo de trabalho de olhar para a informação
recolhida, com o devido distanciamento e imparcialidade. Dá-se como exemplo a
informação que é recolhida relativamente à Portaria 275-A/2012 que é, por todos os
entrevistados que a abordam, encarada de forma critica propondo-se mesmo a sua
revogação. Pois a solução avançada é que a mesma venha a integrar uma nova
legislação.
5 – A nova legislação proposta, por alguns recortes do discurso do relatório, parece-nos
apontar para uma maior guetização e reforço da denominada Educação Especial como
subsistema educativo. Dá-se como exemplo a intenção dessa pressuposta legislação
poder apropriar-se das ações de desporto adaptado, até agora contempladas numa
legislação de âmbito mais alargado.
6 - Pese o mandato para a elaboração da avaliação consubstanciada neste relatório “não
se circunscrever a aspetos relacionados com a educação especial” (Despacho n.º 706-
C/2014), a verdade é que isso acontece frequentemente no relatório produzido.
Salientamos os tópicos relacionados com o currículo. A verdade é que o grupo de
trabalho parte de uma visão preconceituosa relativa à realidade existente quando se
refere à medida adequações curriculares como apresentando uma dimensão académica e
o currículo especifica individual uma dimensão prática. A nosso ver para além deste
preconceito o racional de partida sobre desenvolvimento curricular coloca-nos algumas
interrogações. Tendo em conta esta visão é normal que se acolha com pouco criticismo
4. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
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a proposta de introdução de uma outra medida denominada como “intermédia” das duas
antes referidas.
Criar uma figura intermédia entre o PEI e o CEI, semelhante à medida
Currículo Escolar Próprio constante no Decreto-Lei n.º 190/91, revogado pelo
Decreto-Lei n.º 3/2008. Esta figura intermédia poderia permitir adaptações
parciais na matriz curricular (alterações curriculares significativas em algumas
disciplinas), adaptações na avaliação sumativa e a certificação (eventualmente
parcial) da aprendizagem realizada, com a emissão de diploma.
Tendencialmente, estes alunos seriam encaminhados para ofertas
vocacionais/profissionais onde também seriam necessárias adequações
curriculares e a consequente certificação. Será de equacionar, neste caso, a
título de exemplo, a possibilidade de estes alunos obterem apenas a certificação
profissional nas ofertas de dupla certificação no ensino secundário.
Considerando o alargamento da escolaridade obrigatória, esta via intermédia
poderia permitir a conclusão do ensino secundário, embora sem possibilidade
de acesso ao ensino superior sem a realização de exames nacionais. (Relatório
do grupo de Trabalho sobre a Educação Especial, 2014)
Como nota à citação anterior, para além de muitas interrogações que poderíamos
formular, inscrevemos a nossa estranheza pela forma como é referido, no início da
mesma, a relação entre Programa Educativo Individual (PEI) e currículo Específico
Individual (CEI). Assim em vez da medida educativa CEI, constante do Decreto-Lei
3/2008 de 7 de janeiro, ser equacionada como podendo, ou não integrar o PEI, como
seria natural e a legislação obriga; o PEI (documento) e o CEI (medida educativa) são
apresentados como exclusivos e entendidos, pelo grupo de trabalho, teórica e
legalmente num mesmo plano. Acreditamos que esta situação só pode decorrer de um
erro de escrita do relator. Isto porque teoricamente e na prática nos recusamos a
acreditar que o grupo de trabalho pretende legitimar, por via de um relatório, um
discurso que, erradamente e por desconhecimento, é utilizado por alguns professores e
outros agentes educativos nomeadamente encarregados de educação.
7 – Embora o relatório seja critico da muita burocracia que, segundo a leitura feita da
informação recolhida pelo grupo de trabalho, atrasa os processos de intervenção. Muitas
5. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
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das soluções propostas parecem acentuar, com o argumento mais ou menos objetivo de
maior controlo, essa dimensão burocrática e mesmo administrativa. Ainda com base no
argumento de maior controlo, em alguns momentos relacionado com o argumento de
maior qualidade, muitas das soluções propostas parecem-nos armadilhadas pela ideia,
ultimamente tão em voga, de salientar uma narrativa sobre os resultados em detrimento
de uma outra sobre os processos.
8 – É interessante a referencia que se faz ao modelo de intervenção Reponse to
Intervention (RIT). No entanto, colocam-se-nos algumas interrogações não só relativas
ao modo como o mesmo pode/deve ser desenvolvido no contexto português. Embora
este modelo seja uma realidade em alguns estados dos Estados Unidos da América, em
todas as situações é acompanhado e monitorizado por instituições do ensino superior e
antes de ser posto em prática é feita uma avaliação de várias dimensões, nomeadamente
das atitudes de partida dos diversos profissionais. Este aspeto, de entre outros, leva a
que a literatura identifique que, embora os discursos dos diversos profissionais se
tenham adequado aos princípios do referido modelo, as práticas na maior parte dos
casos continua a ser desenvolvida por referência a um racional concetual que é oposto
ao mesmo. Mais que temos ainda presente a concetualização dos centros de recursos
para a inclusão que apelavam também a modelos concetuais de intervenção muito
concretos, no seu documento orientador, sendo que estes são completamente
desvirtuados não só em aspetos de operacionalização desses centros, no próprio
documento orientador, bem como, temos vindo a constatar, na sua ação diária. Ainda no
que se refere ao RTI, estranhamos a acriticidade, uma vez que se faz silêncio sobre as
diversas criticas que, sobre este modelo, se têm vindo a tecer em diversos artigos
científicos. Muitos deles originados por ações de avaliação e monitorização das práticas
que lhe são inerentes.
Para além destes pontos muito mais haveria a refletir no entanto nem o tempo o permite,
nem o relatório o facilita e nem é nosso objetivo aprofundarmos estes como outros
aspetos. No entanto, não resistimos a acrescentar algumas questões como:
6. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
14-16. Lisboa: Associação Nacional de docentes de Educação especial.
- Qual é o verdadeiro pensamento deste grupo de trabalho no que se refere aos aspetos
de avaliação e de certificação, mais quando relativamente aos aspetos pressupostamente
curriculares fala em “certificação parcial” e noutros momentos “certificação parcial ou
dupla”? Será esta certificação mais académica? Mais prática? Ou intermédia? Que
entende o grupo de trabalho por realização diferida de provas e exames para os alunos
com currículo específico individual?
- Afinal que avaliação é feita da ação dos centros de recursos para a inclusão? Que
verdadeiras soluções, para além de algumas ideias gerais que identificamos,
nomeadamente referindo apoio direto a alunos e formação bem como apoio indireto a
professores e famílias? Os profissionais dos centros de recursos não estão atualmente a
dar apoio direto aos alunos? De que modo e com que base (como e porquê?) é
equacionada essa formação? Porque não se refere os aspetos do trabalho em equipa
relativamente aos profissionais dos centros de recursos, professores e famílias?
- A que equipas multidisciplinares se referem os relatores que umas vezes as descreve
de forma idêntica ao verificado numa outra proposta de lei ensaiada há alguns anos, mas
que nunca foi concretizada e outras restringe a sua ação a só alguns alunos e mesmo
profissionais?
- Quando se sugere mais formação contínua para os professores tem-se em conta
avaliações realizadas a outras ações deste tipo realizadas sobre a égide do Ministério da
Educação, quando da promulgação do Decreto-Lei 3/2008 de 7 de janeiro? Esta
formação é vista como necessária para outros profissionais nomeadamente os que
desenvolvem a sua ação nos centros de recursos para a inclusão? Esta formação tem em
conta as mais recentes recomendações no que respeita ao olhar global e integrado que
deve haver, nesta área, relativamente à formação continua, especializada e inicial? A
formação é solução para todos os problemas identificados? Só para alguns?
Antes de terminarmos e em jeito de sugestão e meramente como ato de cidadania,
desejamos que a criação do próximo grupo de trabalho para que aponta este relatório
tivesse em consideração as mais elementares práticas de avaliação de programas e
politicas. Práticas tanto no que se refere a modelos gerais como específicos de avaliação
7. Colôa, J. (2014). Análise do Relatório do Grupo de Trabalho, sobre Educação Especial,
Criado pelo Despacho n.º 706-C/2014. In Revista de Educação Inclusiva, vol 5 (2), pp.
14-16. Lisboa: Associação Nacional de docentes de Educação especial.
(Stufflebeam e Shinkfield, 2007). Sobretudo que tenha em conta que, consoante o
modelo de avaliação que for adotado, do método e autor em que se basear para essa
avaliação, pode mudar o paradigma dominante, a finalidade da avaliação e o conteúdo
da avaliação. No entanto que preveja que, independentemente desse modelo, é
elementar que o(s) avaliadore(s) é sempre externo. Pode sim ser, consoante o modelo de
avaliação, mais ou menos árbitro externo ao debate e às necessidades do cliente, mais
ou menos facilitador externo de interpretações, mais ou menos facilitador das
interpretações pelos implicados (Escorza, 2003), o que implica clareza dos relatores
relativamente a estes aspetos que podem parecer menos importantes.
Referências
Escorza, T. E. (2003). Desde los Tests Hasta la Investigación Evaluativa Actual. Un
Siglo, el XX, de Intenso Desarrollo de la Evaluación en Educación. Relieve, Vol. 9, 1,
11-43.
Stufflebeam, D. L. & Shinkfield, A. J. (2007). Evaluation Theory, Models &
Applications. United States of America: Jossey-Bass.
Despacho n.º 706-C/2014. D.R. n.º 10, 2.º Suplemento, Série II de 2014-01-15
Relatório do Grupo de Trabalho sobre Educação Especial criado pelo despacho n.º 706-
C/2014.