1. Maria, o lindo sonho de Deus
Maria Emmir O. Nogueira
Co-Fundadora e Formadora Geral da Comunidade Shalom
Pregação ministrada no Fórum Carismático Shalom em novembro de 2002 – mantido o tom
coloquial
Neste Fórum temos falado sobre o fogo de Deus. Hoje eu gostaria de falar sobre como este
fogo pode ser vivido dentro de nós, na nossa humanidade, na nossa vida, como um homem
e uma mulher inteiros, na nossa história, no nosso espírito, no nosso amar, no nosso agir, no
nosso ser. Porque esse fogo, para se espalhar sobre a terra, precisa primeiro se espalhar em
mim. Para que esse fogo possa queimar a Terra, precisa primeiro queimar em mim, arder
em mim, purificar aquilo que sou.
Falaremos disso através da mediação da pessoa que mais inteiramente correspondeu ao
desejo de Deus de trazer o fogo sobre a Terra: Na verdade, ninguém trouxe o fogo sobre a
Terra como Nossa Senhora!
O livro do Gênesis fala que a Terra era sem forma e vazia. E a primeira coisa que Deus criou
foi a luz. Fogo e luz, na Bíblia, estão muito relacionados. E a cada nova criação, se
completava um dia, e a cada nova aurora Ele recomeçava a criação nesse hino litúrgico que
é o capítulo 1 do Gênesis.
A última criação de Deus foi o homem e a mulher. Ele entregou o homem à mulher e a
mulher ao homem para que vivessem um relacionamento de reciprocidade, para que se
amassem e se doassem um ao outro como um auxílio de felicidade. O homem ama a mulher,
se entrega por ela, se dá para que ela seja feliz e a mulher ama o homem, se entrega a ele e
se doa para o homem ser feliz. Dessa forma eles estariam reproduzindo na Terra a mesma
doação que a Trindade tem em si. O homem e a mulher foram criados à imagem e
semelhança de Deus para este tipo de amor, que tem o seu parâmetro na Trindade. É assim
que a Trindade ama, é assim que devemos nos amar.
Quantos tipos de amor existem no mundo? Só um. Só existe o amor de Deus. Só o amor de
Deus é amor! E esse amor de Deus se expressa de formas diferentes: no casamento, no
celibato, entre irmãos espirituais de sangue, no sacerdócio, entre amigos. É o amor de Deus
que se expressa de modos diferentes, mas é sempre o mesmo amor.
E o homem era muito feliz! Tudo era dia, no sentido de que no coração humano brilhava o
fogo do amor. Quanto mais o homem amava a mulher, mais este fogo brilhava nele. Quanto
mais a mulher amava o homem, mais este fogo brilhava nela e mais os dois viviam em
intimidade com Deus. A intimidade com Deus reside no amar, no orar para amar, no orar
para ser amor, no orar para amar o irmão.
Uma promessa
Até que sobre a terra o aconteceu o pecado de origem, o primeiro pecado. E se estabeleceu
no coração do homem a treva mais densa que pode existir. Mas Deus, na sua misericórdia,
fez uma promessa: “Colocarei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
descendência dela”. Ou seja, Deus prometeu que criaria uma mulher que essa mulher seria
novamente condutora da luz, seria a aurora, seria aquela que traria a luz, aquela que
anunciaria e que traria a luz. E a partir desse momento, Nossa Senhora passou a existir
como profecia.
Muitos e muitos séculos antes dela nascer, Nossa Senhora foi anunciada pelo próprio Deus e
se tornou uma profecia. O mundo será salvo e a salvação virá através de uma mulher. Diz o
Papa João Paulo II, na carta Mulheris Dignitatem, que é aí que reside a dignidade da mulher.
A dignidade mais alta da mulher reside no fato de ela ter sido aquela por quem, ou por cuja
raça, ou por cuja irmã, que é Maria, veio à Terra o próprio Deus. Daí, Nossa Senhora começa
a ser essa aurora, não tão bem entendida pelos que viviam naquela época, porém sempre
esperada, sempre anunciada.
“Uma virgem conceberá e dará à luz um filho e esse filho será o Emanuel, o Deus conosco”.
Os que viviam naquela época não entendiam, mas sabiam que o messias viria através de
uma mulher. Nossa Senhora foi profetizada como o sonho lindo de Deus.
2. Na promessa divina Nossa Senhora vai avançando como a aurora, brilhando como a lua,
precedendo o sol – isso contagia a todos nós! Precedemos a Jesus, vamos como
anunciadores e profetas, com a nossa vida, sendo aurora para Jesus.
Nossa Senhora e o fogo
E nas várias ocasiões em que a Palavra de Deus usa o fogo podemos já ver Maria. Como não
veríamos Maria grávida na imagem da sarça ardente, cheia de fogo, que queima sem
consumir? Como não poderíamos ver em Maria grávida, o brilho deste Deus que é o “Eu
Sou”, o “Deus Iahweh”? Quando Jesus foi encarnado, no seio de Maria, a chama viva do
amor de Deus passou a viver no seio dela. E Nossa Senhora, com toda a certeza, brilhava,
queimava de amor.
Como não veríamos Nossa Senhora na coluna de fogo que guiava o povo de Israel nas noites
no deserto? Essa que é aurora do novo sol, é coluna de fogo que vai conduzindo, no deserto,
o povo de Deus. na escuridão do deserto, no dia eles viam a nuvem, à noite viam a coluna
de fogo. Como posso olhar para Maria e não ver dentro dela o incêndio de amor causado
pela presença de Deus na sua alma, no seu corpo, na sua feminilidade, no seu serviço e nos
seus atos de amor? De maneira especial, como não ver a coluna de fogo em Maria, de pé,
aos pés da cruz? É a coluna que indica: “Eis o salvador, eis o caminho”. Do mesmo modo
que a coluna de fogo foi guiando o povo através do deserto, nas noites escuras e muito frias
do deserto, onde a coluna de fogo andava, também andava o povo; também Maria de pé,
aos pés de Jesus que agoniza, Maria se estica e se torna então a consoladora, o amor que se
dá, o amor que pensa mais na dor do outro do que na sua dor.
Também temos de ver o mistério de Nossa Senhora no carro de fogo de Ezequiel. Aquele
carro que Ezequiel nunca conseguiu descrever de maneira física, mas como um mistério de
amor, de entrega e de salvação.
Como nós não veríamos Nossa Senhora como a mulher louvor, na fornalha ardente? Essa
fornalha que arde sem queimar e enche de dança os três jovens e o anjo. Quando olhamos
para o Magnificat, com o coração, com o corpo, com a alma em chamas de amor e de
gratidão, Nossa Senhora também dança, glorifica, canta os louvores de Deus, ardendo sem
se queimar.
Podemos ainda ver Nossa Senhora no fogo que queima o sacrifício de Elias e que destrói a
idolatria. Sabemos que pelo amor de união e pelo poder de intercessão que Deus deu a
Nossa Senhora ela acaba a idolatria.
Como não veríamos Nossa Senhora como a mulher oração diante do fogo que queimava no
Templo, diante do santo dos santos, o fogo perpétuo?
Nossa Senhora é também a mulher acolhida no fogo do lar. Nossa Senhora é a mulher
oração, é a mulher aurora, é a mulher louvor, é a mulher com poder de intercessão, a
mulher aos pés da cruz e é também a mulher acolhimento, aquela que acolhe no fogo do lar.
No lar de Nazaré sempre havia fogo, porque sempre chegava alguém – um parente, um
amigo – então, sempre havia pão quente. Era, portanto, uma casa quente, uma casa pronta
para servir. Como o lar de Abraão e Sara, quando que fizeram pão para os anjos; como o de
Marta e Maria, que acolhiam Jesus com dois fogos diferentes, mas ambos muito eficazes:
Marta com o fogo do fogão e Maria com o fogo do coração.
Há uma passagem de Baruc 3 que diz assim: “Brilham as estrelas no céu, tu as olha e as
chama: „Senhor!‟ e elas pronta e alegremente dizem: „Eis-me aqui‟”. Como vocês sabem, a
estrela também é fogo e é impossível não vermos Maria nas estrelas do céu, às quais o
Senhor sustenta e para as quais o Senhor olha e chama, e elas, felizes, refulgem para o seu
criador dizendo, cada uma: “Eis-me aqui”. É Nossa Senhora a mulher adoração, que brilha
para o seu Criador sem esperar recompensa; a mulher gratuidade, que se dá sem ficar
pedindo, mas brilhando, amando, dando...
Como não veríamos Nossa Senhora no êxtase da mulher esposa do Espírito quando são
derramadas as línguas de fogo, quando o fogo que brilhava dentro dela brilhou também
fora?
Como não veríamos nos olhos de Nossa Senhora Assunta ao céu o brilho do Cordeiro que
ilumina o céu, que não precisa mais de luz, porque o Cordeiro é a própria luz?
3. Como poderíamos deixar de vê-la em cada homem e em cada mulher que se enche de luz
quando entra em contato com Cristo?
Como não ver, finalmente, Nossa Senhora na dignidade de cada mulher? Aqui cito João Paulo
II: “Cada mulher, cuja extraordinária dignidade é manifestada na plenitude dos tempos, em
Maria, elevada de forma sobrenatural à união com Deus, pela união entre mãe e filho que só
a mulher tem como viver”.
Nossa Senhora é feliz por ser mulher
Às vezes somos acostumados a ver nossa Senhora como uma pessoa que não é gente, mas
a graça a transforma na realização do sonho de Deus para você e para mim. E o que Deus
quer é que a sua glória brilhe dentro de você, dentro de mim, para que o mundo pegue
fogo.
Quando Moisés falava com Deus face a face tinha de esconder o rosto, porque se enchia de
brilho. Nossa Senhora fala com Deus dentro, de coração para coração, e na face dela brilha a
própria face de Deus.
Quais são as imagens de Nossa Senhora que vemos? Fátima, Lourdes, Rainha da Paz,
Loreto, Guadalupe... Tem algo que não sei se vocês acham estranho, mas eu acho. Vemos
as imagens de Nossa Senhora sozinha, como Fátima, Nossa Senhora das Graças, Guadalupe,
Lourdes... vemos as imagens de Nossa Senhora com Jesus no colo e depois pula para a
imagem de Nossa Senhora com Jesus morto, nos braços. Se eu fosse artista, queria pintar
Nossa Senhora assim no chão, dizendo: “Ei, nenê, vem cá com a mamãe”; queria pintá-la
levantando as perninhas de Jesus e mudando a fralda dele; embalando Jesus num balanço
ou levantando-o assim e dizendo: “Coisa linda da mãezinha!” e a babinha de Jesus caindo no
rosto dela, senão na boca, porque parece que menino acerta; queria pintar Nossa Senhora
dizendo: “Jesus, tá na hora de comer!” ou “Meu filho, você já escovou os dentes?” ou “Jesus,
não dá certo pentear o cabelo para esse lado, você tem um redemoinho bem aqui”; queria
pintar Nossa Senhora com Jesus adolescente, não só lá no Templo, mas travando com Jesus
um relacionamento de amizade. Essa mãe que dizia a São José: “José, pelo amor de Deus,
espera aí, calma, olha que o menino é filho de Deus... José, larga esse menino devagar...”.
Essa Nossa Senhora humana, mãe.
Essa Nossa Senhora que conversa com Jesus sobre as coisas de Deus, que conhece Jesus em
profundidade e tem com Ele um relacionamento profundamente humano. Tudo o que é
profundamente humano é profundamente divino e tudo que é profundamente divino, exceto
Deus, em si próprio é profundamente humano.
Precisamos entender que Nossa Senhora é feliz por ser mulher, por ser gente e é capaz de
entender essa dignidade da qual o Papa fala.
Nossa Senhora serve porque ama
Um dia perguntaram a um grande mestre: “Mestre, quando é que o amor é verdadeiro?” O
mestre respondeu: “Quando ele é fiel”. E perguntaram: “E quando é que o amor é
profundo?” O mestre respondeu: “Quando ele sofre”. E perguntaram: “E que língua fala o
amor?” O mestre respondeu: “O amor não fala, o amor ama”. Nossa Senhora foi serviço
porque amou.
Em geral, quando se vai falar do serviço de Nossa Senhora, colocam-na na casa de Santa
Isabel. Será que não podemos ver Nossa Senhora no serviço do ser e não no serviço do fazer
somente? Não podemos ver Nossa Senhora que ao ser mulher, ao ser mãe de Deus, amou e
amando serviu a Jesus e a José e aos irmãos e aos vizinhos? É preciso ver que o serviço vai
além do fazer. O amor de Deus em nós gera amor e atos de amor em nós.
O grande serviço de Nossa Senhora era amar. Nossa Senhora expressa o fogo de amor que
queima dentro dela através do serviço, através da acolhida. “Onde reina o amor, ali se
encontram olhos que sabem ver”.
Vamos todos aprender a ver com estes óculos, com o olho do coração. O que será acolher?
J.S. Helliot escreveu: “Ah! O indizível conforto de nos sentirmos seguros com uma pessoa.
Cresce a síndrome do pânico, cresce a desconfiança, cresce a insegurança, cresce a falta de
ternura, a falta de acolhida. O conforto de não termos de pesar os nossos pensamentos, o
conforto de não termos que medir as nossas palavras mas de podermos derramar as nossas
palavras tais como são. O joio e o trigo misturados, sabendo que mão fiel os irá apanhar e os
4. irá peneirar. Conservar o que merece ser conservado e depois, com o sopro da bondade,
soprar fora o resto”.
Você não gosta quando você pode chegar para uma pessoa e saber que ela não vai jogá-lo
fora? Você não gosta quando pode conversar com uma pessoa sem ter de medir os
pensamentos nem as palavras, pois sabe que ela vai acolhê-lo com o seu joio e com o seu
trigo? Saber que ela vai acolhê-lo como você é e depois peneirar o joio e o trigo e com o
sopro da bondade soprar fora o joio e se alegrar pelo trigo que ficou? A acolhida.
Temos vivido num mundo de desconfiança, de defesas. Não era assim. E não é assim a
acolhida de Nossa Senhora. Nossa Senhora Jesus jamais exigiram que alguém mudasse para
acolhê-los. Nossa Senhora, como Jesus, nos acolhem como somos, mas esquecemos essa
ternura. Esquecemos Nossa Senhora, esquecemos que queremos ser acolhidos e não
amamos os outros como gostaríamos de ser amados.
Nossa Senhora ensina a acolher
“Meu único desejo, homem, é ser o teu parente. Sejas tu negro ou acrobata, repouses ainda
nas profundezas da guarda materna, vibre no pátio o teu canto de menina e dirija as tuas
jangadas ao sopro do crepúsculo... conheço bem a angústia da harpista solitária, da tímida
mulher, no seio de uma família estranha. Conheço a solidão dos que envelhecem, mas
homem, eu quero só ser teu companheiro. Eu te pertenço. Como a qualquer outro homem,
eu te pertenço. Sem preconceito, sem desconfiança, sem medo. Eu te pertenço, como a
qualquer outro homem, como a qualquer outra mulher, eu te pertenço. Suplico-te, não te
recuses! Se isso pudesse acontecer meu irmão, ah! Se pudesse acontecer, que nós
finalmente caíssemos nos braços um do outro”.
Temos esquecido o acolhimento, temos esquecido a ternura. Temos feito dos nossos grupos
de oração e das nossas comunidades, verdadeiras empresas que se levam como negócios de
evangelização e se esquecem da ternura, se esquecem do olhar de ternura. Nem nos
trocamos mais olhares de ternura. E Nossa Senhora pode vir em nosso socorro.
As nossas famílias, as levamos como um trem que passa rápido e que tem de parar em
todas as estações, e nos esquecemos de olhar o outro com ternura, de acolhê-lo, de ver o
outro com os olhos do coração. Nossa Senhora vive este fogo de amor que queima no
coração dela como serviço, acolhida e agora Nossa Senhora vive a força deste amor que ama
nela, que a ama e a quem ela ama.
Nossa Senhora vive esse fogo na força do humilde amor. No livro “Os irmãos caramasol”, de
Dostoievsk, um monge russo diz as seguintes palavras: “Irmãos, não temais o pecado dos
homens, amai os homens mesmo no seu pecado”. Não fique exigindo que as pessoas
mudem ou sejam diferentes para você amar.
Se só existe um amor, Nossa Senhora amou com esse um amor que é o amor de Deus. E o
amor de Deus ama o homem pecador. E o amor de Nossa Senhora é esse fogo do amor de
Deus que queima nela ama o homem pecador.
“Amai os homens mesmo em seu pecado, porque esta imagem do amor de Deus é também o
cume do amor de Deus sobre toda a Terra. Amai toda a criação divina em seu conjunto e em
cada grão de areia. Amai toda a neve e todo o raio de sol. Os animais, as plantas, todas as
coisas. Amai particularmente as crianças, porque são como anjos, não têm pecado e existem
para nos ensinar a ternura, para purificar os nossos corações e são para nós como uma
profecia. Às vezes te vêm alguns pensamentos, especialmente quando tu te vês diante do
pecado do mundo. Tu ficas perplexo e te perguntas: „eu devo reagir com a força ou devo
escolher o humilde amor?‟, e eu te digo: decida-te sempre pelo humilde amor, e diga
sempre: „eu recorrerei ao humilde amor‟. Se tomares esta decisão de uma vez por todas,
poderás elevar o mundo inteiro. O amor humilde, o humilde amor é uma força formidável, a
maior de todas, incomparável a qualquer outra força.”
Nossa Senhora expressou este fogo de amor que arde no coração dela, esse fervor que Deus
pediu hoje, esse fervor que Deus pediu hoje não é o fervor de orar forte, que é muito bom,
mas este fervor que só existe e só é autêntico quando vem do amor, do amor concreto, do
amor em ato, do amor sem preconceito, do amor sem medo.