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A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA E DAS ARTES PLÁSTICAS
              NO CONTEXTO DA CULTURA ANGOLANA*



                                                       Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco

                                                  Professora de Literaturas Africanas de Língua
                                    Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
                                                                                       Brasil


       A literatura e a pintura se inserem no domínio das artes. Suas linguagens, portanto,
não são referenciais, encontrando-se na esfera dos discursos metafóricos. Sendo espaços
artísticos, são lugares privilegiados, locais tanto de fruição estética, como de projeção
identitária. Assim, ao estudar a literatura e a pintura angolanas, é importante que os valores
artísticos dialoguem sempre e estejam em constante interação com os substratos culturais
implícitos na dimensão simbólica e alegórica da linguagem literária e pictórica. Tanto a
literatura como as artes plásticas de um país se acham, desse modo, estreitamente ligadas a
seus lugares de enunciação. Por conseguinte, fatores geográficos, históricos, culturais,
antropológicos, étnicos, econômicos, políticos, perpassam os discursos artísticos, estando em
íntima correlação com as estruturas sócio-culturais. Os “saberes locais” podem, desse modo,
ser apreendidos tanto nas malhas metafóricas dos textos literários, como nas metáforas
cromáticas presentes na pintura..
       Na tradição oral africana, literatura e moral encontravam-se em conexão. Atualmente,
entretanto, alguns desses elos se diluem, pois não só a sociedade, mas também a literatura e a
pintura se inscrevem sob o signo do fugaz. Tudo se esgarça e, como preveniu Marx, “o que
era sólido desmancha no ar”.
       De acordo com o historiador e crítico de arte angolano Adriano Mixinge1, as metáforas
literárias e as plásticas, hoje, em Angola, são metáforas híbridas, herdeiras tanto do


*
  Parte deste texto já foi publicado no Catálogo Mitos e Sonhos, do pintor Jorge Gumbe, cuja
exposição foi realizada em Luanda em setembro de 2005. O texto integralmente foi
apresentado no Fórum dos Angolanistas realizado na UERJ, em 3/09/2005 e será publicado
nos Anais do referido encontro.
1
 MIXINGE, Adriano. Metáforas angolanas. Paris: Embaixada da República de Angola em
Paris, 2001.
patrimônio das línguas e culturas africanas locais, como do imaginário português que, durante
séculos, se entrecruzaram e se transformaram em múltiplas combinações. Cada texto literário,
cada tela tem um estilo próprio e traz em si fragmentos de heranças e memórias, expressando
metaforicamente, como se fosse um palimpsesto, diversos tecidos culturais subjacentes.
       Para Mixinge, a condição angolana da arte atual não é só a busca do passado, mas o
resultado de uma dialética entre o outrora e o agora, entre concepções filosóficas africanas e
as modernidades líquidas que, conforme Zigmunt Bauman,caracterizam o mundo globalizado
contemporâneo. Segundo Adriano Mixinge, há que serem pensadas, hoje, a literatura e as
artes angolanas em uma tensão permanente entre angolanidade e transcontinentalidade.
       Mixinge, na introdução ao catálogo da exposição “Metáforas Angolanas” por ele
organizada, cita o filósofo camaronês Jean Bidima que afirma haver uma nova geopolítica das
artes africanas, onde as africanidades são entendidas como um processo, sempre em travessia.
O filósofo defende, desse modo, que não há uma essência africana, mas saberes locais
africanos em diálogo que estão sempre se reatualizando, em permanentes transformações.
Claro que os traços contextuais de cada etnia contam, porém as matrizes identitárias se
ressemantizam num presente sempre em interação com o passado e o futuro. De acordo com o
pensamento de Bidima, não pode haver uma adoração mítica e cega do outrora, pois isso
provoca um imobilismo cultural. É preciso entender que os campos metafóricos das artes em
geral se encontram em entrelaçamentos intermináveis que fundem e recriam, sem parar,
tradições e modernidade.
       Passemos, então, a exemplos práticos, demonstrando como algumas obras literárias e
pictográficas angolanas recuperam e reinventam certos mitos. Por exemplo: a Kianda aparece
em diversos textos literários e em várias telas de pintores de Angola. Metáfora de uma
angolanidade em trânsito, a divindade alegoriza, em vários romances atuais, o país em crise.
         Em O Desejo de Kianda, de Pepetela, a divindade é alegoricamente apropriada pelo
discurso ficcional. O maravilhoso invade a narrativa e o grito rebelde de Kianda ressoa na
dimensão mítica e literária.
       A “síndrome de Luanda” expressa o esgarçamento das utopias culturais e políticas dos
tempos de lutas libertárias. Kianda, nesse livro, alerta para a perda dos elos com a ordem
cósmica que regulava as tradições do imaginário popular. Ela, na narrativa de Pepetela,
apresenta-se como metáfora das fendas identitárias, da busca desesperada de preservação das
raízes angolanas soterradas por contradições que perpassam pelo tecido social angolano. O
lado demoníaco de Kianda posto em cena representa a poetização mitológica da realidade que
se converte em fonte de reação do imaginário angolano insatisfeito com o clima de corrupções
que dominam a cidade e o país nessa época.
       Também em obras do escritor Manuel Rui, como Rioseco e Um anel na areia, a figura
da kianda surge, trazendo alegorizado o universo mítico luandense, onde a deusa das águas
marinhas é a encarnação de uma angolanidade problemática, porque indecisa entre a realidade
e a ficção. Um anel na areia não narra apenas uma história de amor; traz à tona a imagem de
uma Luanda em crise onde os jovens viviam imersos em contradições, mas não isentos
totalmente das fantasias míticas que caracterizam a literatura e certas tradições luandenses.
Assim, por causa de um anel que se perdeu na areia, o casal de namorados ressemantiza o
mito da Kianda, inventando estórias, discutindo o cerne da literatura, ou seja, a questão da
fantasia. Ao retrabalhar a figura da divindade, esse texto do escritor Manuel Rui teoriza sobre
o próprio fazer literário, cuja tecelagem se faz de metáforas e fantasias:


                        Ora, é justamente esse jogo em que abundam as dúvidas sobre a
                        figura da Kianda e a fé na mesma, que se questiona mais
                        profundamente a realidade e a ficção. Temos, dessa forma, uma hábil
                        sobreposição de planos que enriquece sobremaneira o texto, já que
                        não se trata apenas de narrar uma belíssima historia de amor, mas
                        também de trazer à baila a realidade que os jovens angolanos
                        enfrentam hoje, assim como tematizar as crenças e valores dos mais
                        velhos e o choque entre as gerações. Mas, especialmente, de
                        questionar a relação entre realidade e ficção em todos esses planos,
                        e, portanto, do fazer artístico. Ou, parafraseando o texto de Manuel
                        Rui: “Por causa de um anel que se perdeu na areia, inventar mais
                        estórias sobre fantasias de uma coisa verdadeira”.

                         (MACEDO, Tânia. Apud: http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=48 )



       Diversas são as obras da literatura angolana que retrabalham mitos das tradições
locais. A kianda também aparece em textos de Luandino Vieira e de outros escritores
angolanos. Às vezes, surgem apenas referências a ela, como ocorre no romance Mãe Materno
Mar, do escritor Boaventura Cardoso, onde o protagonista Manecas é o menino das águas, o
menino encantado enviado da divindade angolana do mar.
      A imagem da Kianda aparece em poetas angolanos. João Melo, por exemplo, associa,
num poema, a fêmea aquática à deusa das águas de Luanda, figura mítica que,
alegoricamente, representa a busca profunda de "angolanidade".
O MARINHEIRO
                                        Navego à vontade no teu dongo
                                        aliso-lhe como se fosse uma mulher
                                        primeiro o dorso as curvas
                                        perfeitas da embarcação
                                        por fim as pernas balançando
                                        nervosas como palmeiras
                                        ah amada o azul terrível do mar
                                        está todo nos teus olhos negros
                                        eu oiço o grito da Kianda
                                        e ximbico sem parar sem parar.

                                                (O Caçador de nuvens, 1993. p. 46)

      Na poesia de John Bella, jovem poeta, oriundo das Brigadas Jovens de Literatura, esse
mito da deusa angolana do mar também é presente. É retrabalhado a partir do duplo sentido
do próprio título de um dos poemas de seu livro Água da Vida: "Noite [Ki]anda". Uma noite
que traz Kianda, mas também uma "noite que anda" e sugere movimento, possiblidades de
mudança. Nessa obra de John Bella, o mar também se mostra ambíguo: ao mesmo tempo que
se apresenta como túmulo de esqueletos, detém poderes mágicos reveladores da ainda viva
religiosidade africana:

                                  NOITE [KI]ANDA

                                        Gritos do muzonge

                                        confundem-se com viuvinhas na mulemba



                                        “ Botessar” do feijão

                                        é dança circulante nos coqueiros.



                                        Batucada de peixes na maré

                                        desbrava rede axilwanda.
Misanga da besangana

                                         “ xinguilam” sob “ calundús” de águas passadas.



                                         Kyanda que anda da ponta ao cuidado

                                         procura Kalunga

                                         que deu wanga kalumba.



                                         Na noite Kyanda

                                         besa molho de ngana axilwanda

                                         oferecendo kixilwanda à Kyanda.

                                                       ( Água da vida, 1995, p.32)

       A atual pintura angolana também opera com tecidos míticos, polifônicos que,
oniricamente, oscilam entre temporalidades e memórias, recriando mitos que, por vezes, se
superpõem em uma espécie de palimpsestos literários e pictográficos. Nesse sentido, literatura
e artes plásticas, ao retrabalharem importantes marcas identitárias da cultura, se colocam
como elementos engendradores de uma angolanidade em processo.
       Para exemplificar no campo das artes plásticas, escolhi falar de telas do pintor Jorge
Gumbe, que tem uma fase onde ressemantiza o universo mítico luandense relacionado à
Kianda.
     A água, o ar, o fogo, a terra e divindades de alguns dos sistemas mitológicos angolanos
são recorrentes em sua pintura, principalmente na sua produção pós-1997, designada como “a
fase dos embondeiros e das Yàndà”. Podemos aí depreender intensa preocupação crítica tanto
em relação ao contexto angolano contemporâneo, quanto às religiosidades do imaginário
ancestral. Nas obras de Gumbe desse período, os elementos primordiais da natureza são
reinventados segundo um estilo próprio e original. Com domínio das técnicas, o pintor recria
mitos, tempos e temporalidades; gera, com traços leves, rápidos e com a dispersão das cores,
figuras em rotação ascensional, que, em ritmo de fuga e antifuga, parecem se mover em
rodopios centrípetas que metaforizam o movimento giratório da criação, sempre em
constantes mutações e metamorfoses dentro do universo.
     Estruturada a partir de míticas metáforas – a dos embondeiros e a das Yàndà –, esta fase
da pintura de Jorge Gumbe pode ser lida como uma grande oferenda estética à deusa angolana
do mar, visando ao restabelecimento das energias cósmicas de Angola, cujas paisagens,
tradições e raízes foram, durante séculos, obliteradas, em grande parte, por opressões, guerras
e racismos.
         É interessante lembrar que Yàndà, plural de Kyàndà, vem do verbo uanda que, em
quimbundo, significa sonhar3. A deusa angolana das águas e da vida traz, desse modo,
etimologicamente expressa em seu nome a semântica dos sonhos. Estes, de acordo com
crenças africanas, são formas de comunicação com o mundo ancestral dos antepassados, com
as forças vitais da natureza responsáveis pelo equilíbrio do cosmo.
        O culto às Yàndà, nas populações quimbundas de Angola é milenar, tendo continuado a
existir secretamente, mesmo após a colonização, como forma de sobrevivência do imaginário
mítico angolano. As Yàndà são entidades reguladoras de tudo que se relaciona ao oceano.
Segundo Ruy Duarte de Carvalho, manifestam-se de formas diferentes: a de lençóis de luz
sob as águas, formando feixes de fitas coloridas; a de patos nadando; a de pombos
sobrevoando as praias, a dos gêmeos (denominados jingongos em quimbundo) brincando sob
a sombra de embondeiros, entre outras.
        Ruy Duarte, no livro Ana a Manda: os filhos da rede, chama atenção para o fato de que
a Kyàndà, embora senhora do mar, também pode estar na terra. O embondeiro é sua árvore
predileta. Seu poder é ilimitado; rege as marés, as vagas, os peixes, a pesca, a fome, as
doenças e as mortes. Gosta de ser lembrada, retribuída, homenageada. Se a esquecem, retém
os peixes, tornando o mar bravio e ameaçador.
        De acordo com o antropólogo Virgílio Coelho3, a Kyàndà é um gênio da natureza criado
por Nzàmbì e se diferencia do mito da sereia. As Yàndà são apresentadas como portadoras de
luz e vida, tendo coloração alva, luminosa e, por vezes, aspecto humano, tanto que, em
algumas versões do mito, é descrita com uma longa cabeleira branca à volta do corpo. Na
mitologia quimbunda, são consideradas entes benéficos que alertam as pessoas para os
perigos vindouros. Tanto podem ser representadas por peixes como por embondeiros ou,
também, pelo arco-íris e pelos flamingos (denominados ndeles em quimbundo), aves que

3
         COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de
        Letras da UFRJ, em outubro de 2001.
3
    COELHO, Virgílio. “Imagens, Símbolos e Representações “Quiandas, Quitutas, Sereias!”:
       Imaginários locais, identidades regionais e alteridades. Reflexões sobre o quotidiano
       urbano luandense na publicidade e no universo do marketing”. In: NGOLA - Revista de
       Estudos Sociais ( ASA). Luanda: 1 ( 1 ), jan.-dez. de 1997. pp. 127-191.
metaforicamente simbolizam a esperança e o sonho, pois empurram a noite para o outro lado
da Terra, de onde trazem o sol para iluminar os dias.
     Em algumas regiões de Angola, as Yàndà são chamadas Quitutas, termo que, conforme
explicação de Virgílio Coelho, vem do verbo cututa (do quimbundo), cujo sentido é o de ir de
um lado para o outro4. Significativamente, esta é a função das Yàndà e Quitutas, seres míticos
encarregados do intercâmbio entre os vivos e os antepassados, entre o úmido e o seco, entre o
mundo terreno e o sobrenatural.
     Nos quadros de Jorge Gumbe, freqüentes espirais configuram a idéia de movimento em
torno de embondeiros que, antropomorfizados, bailam com galhos para o alto. Incorporando a
sacralidade própria das Yàndà, a pintura de Gumbe realiza plasticamente um ritual telúrico de
cores e míticas ofertas. Muitas são as obras que focalizam variados ângulos de embondeiros,
cuja reduplicação espelhada cria uma sensação de vertigem que, visualmente, expressa o
permanente giro das Yàndà, entes mágicos geradores de energia vital.
     Vários críticos já ressaltaram esse vertiginoso movimento das imagens projetadas no
espaço abstraizante das telas de Gumbe5, como se as figuras pintadas captassem as
ininterruptas metamorfoses do cosmo. A presença das vertigens e espirais pode também ser
interpretada como uma espécie de barroquismo pictural que nada tem a ver com o barroco
religioso europeu, aproximando-se do neobarroco assim designado e conceituado por Severo
Sarduy: barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida.6
Esse neobarroquismo representa, pois, subversão e discordância em relação ao centro, ao
Logus absoluto, à razão imposta pela Europa aos continentes periféricos, como a África e a
América Latina.
       Caracterizado por traços vertiginosos, o neofigurativismo alegórico praticado por
Gumbe se mostra rebelde e transgressor. Há nele uma consciência de ludicidade e um
erotismo anímico que funde contrários em espirais de prazer e gozo estético, construindo,



4

COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de Letras da
UFRJ, em outubro de 2001.
5
  CARVALHO, Ruy Duarte de. Jorge Gumbe: catálogo da exposição montada por Tirso do
     Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p.6.
6
  SARDUY, Severo. “O Barroco e o Neobarroco”. In: MORENO, César Fernández.
     América latina em sua literatura. SP: Ed. Perspectiva, 1979. p. 178.
7
  OLIVEIRA, José António de. "A Pintura Recente de Jorge Gumbe". In: Jorge Gumbe:
     catálogo da exposição montada por Tirso do Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria
     de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p. 8.
picturalmente, paisagens surreais e mitopoéticas profundamente angolanas. Segundo o pintor
António Ole, um tecido espiralístico, quase convulsivo, agita todo o espaço pictórico7 das
obras de Gumbe. Tal cinetismo, além de expressar a recusa do lugar comum em relação à
"angolanidade" representada exoticamente pela pintura anterior, revela um exercício
constante de genuína procura identitária. Na pintura de Gumbe, há multidões solitárias de
seres humanos e de animais míticos, cuja dispersão evidencia a perda dos elos originários. Ao
mesmo tempo que essa dissolução é denunciada, se repete o tema do ventre gerador da terra
angolana, apontando, recorrentemente, para a necessidade de recuperação das tradições.
Assim, são convocados para o centro dessa pintura elementos cósmicos e mitológicos: o sol,
fonte de energia ígnea; o chão telúrico; as águas da Kyàndà; o metafórico ar da imaginação
criadora. Neste, se projetam seres humanos em acrobacia e espirais, cujo sentido é,
significativamente, o de: rodopiar, gerar, criar, servir de estrutura-mãe a todas as outras
estrutura8 .
         A etnofilosofia angolana pode, desse modo, ser depreendida em várias telas de
Gumbe: em Homenagem aos Jingongos (acrílico sobre tela), referência aos gêmeos míticos
da tradição, espécie de andróginos primordiais, habitantes dos embondeiros e símbolos da
própria criação; em Apoteose para a Kiàndà (óleo sobre tela) e Oferendas para Kiàndà
(acrílico sobre tela), que focalizam um típico ritual de ofertas à deusa angolana do mar; em A
Mística do Imbondeiro (acrílico sobre tela), onde é clara a alusão à árvore sagrada da Kiàndà
e dos gêmeos. Observamos, assim, que o pintor ressignifica pela arte o mundo das águas,
local da felicidade eterna, do branco dos sonhos, onde vivem as Yàndà. De acordo com
crenças quimbundas, dar de comer às Yàndà é uma maneira de restaurar a harmonia animista
encontrada na natureza9. A obra do pintor, trazendo plasticamente recriado o espaço aquático
de Quitutas e Yàndà, funciona, pois, metaforicamente, como um ritual de oblação em
agradecimento à recente paz vivida por Angola.
        Em Estórias sobre a Kyanda (acrílico sobre tela), um imenso flamingo azul contracena
com um embondeiro humanizado que tem braços para cima e se agita ao vento. Tanto a
árvore, como o pássaro são duplos míticos da Kyàndà e, como ela, simbolizam os sonhos,
8


8
    MIXINGE, Adriano. “Quando os pincéis ‘tchisokam’ vários universos”. Jornal de Angola..
       Caderno Vida & Cultura. Luanda, outubro de 2000.
9
    COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de Letras da
       UFRJ, em outubro de 2001.
remetendo, por conseguinte, à busca dos sentidos poéticos da vida, à paz e à leveza da
imaginação criadora. No coração do embondeiro, nada uma tartaruga enorme, metáfora da
ancestral sabedoria africana. Em acrobática posição, um ser humano tenta galgar uma escada
para alcançar o azulado onírico do ndele, ave que, como o arco-íris, traz a magia das Yàndà.
      Também povoadas de cacussos e bagres, peixes emissários de Kyàndà, diversas telas de
Gumbe, apreendem, pela intensa imaginação criadora, esse fluir mágico e sacralizado das
míticas águas do mar angolano.
      Concluindo, ressaltamos a importância crítica da literatura e das artes plásticas, pois, ao
recriar tradições locais em confronto com o presente, as obras literárias e as telas se oferecem
como formas de resistência à perda dos laços ancestrais, alertando para a urgência de Angola
não deixar de cultivar seus mitos e sonhos.




                                      BIBLIOGRAFIA


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   Edition Michalon, 1998.

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     http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=48 )

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A importância da literatura e das artes plásticas angolanas

  • 1. A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA E DAS ARTES PLÁSTICAS NO CONTEXTO DA CULTURA ANGOLANA* Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco Professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Brasil A literatura e a pintura se inserem no domínio das artes. Suas linguagens, portanto, não são referenciais, encontrando-se na esfera dos discursos metafóricos. Sendo espaços artísticos, são lugares privilegiados, locais tanto de fruição estética, como de projeção identitária. Assim, ao estudar a literatura e a pintura angolanas, é importante que os valores artísticos dialoguem sempre e estejam em constante interação com os substratos culturais implícitos na dimensão simbólica e alegórica da linguagem literária e pictórica. Tanto a literatura como as artes plásticas de um país se acham, desse modo, estreitamente ligadas a seus lugares de enunciação. Por conseguinte, fatores geográficos, históricos, culturais, antropológicos, étnicos, econômicos, políticos, perpassam os discursos artísticos, estando em íntima correlação com as estruturas sócio-culturais. Os “saberes locais” podem, desse modo, ser apreendidos tanto nas malhas metafóricas dos textos literários, como nas metáforas cromáticas presentes na pintura.. Na tradição oral africana, literatura e moral encontravam-se em conexão. Atualmente, entretanto, alguns desses elos se diluem, pois não só a sociedade, mas também a literatura e a pintura se inscrevem sob o signo do fugaz. Tudo se esgarça e, como preveniu Marx, “o que era sólido desmancha no ar”. De acordo com o historiador e crítico de arte angolano Adriano Mixinge1, as metáforas literárias e as plásticas, hoje, em Angola, são metáforas híbridas, herdeiras tanto do * Parte deste texto já foi publicado no Catálogo Mitos e Sonhos, do pintor Jorge Gumbe, cuja exposição foi realizada em Luanda em setembro de 2005. O texto integralmente foi apresentado no Fórum dos Angolanistas realizado na UERJ, em 3/09/2005 e será publicado nos Anais do referido encontro. 1 MIXINGE, Adriano. Metáforas angolanas. Paris: Embaixada da República de Angola em Paris, 2001.
  • 2. patrimônio das línguas e culturas africanas locais, como do imaginário português que, durante séculos, se entrecruzaram e se transformaram em múltiplas combinações. Cada texto literário, cada tela tem um estilo próprio e traz em si fragmentos de heranças e memórias, expressando metaforicamente, como se fosse um palimpsesto, diversos tecidos culturais subjacentes. Para Mixinge, a condição angolana da arte atual não é só a busca do passado, mas o resultado de uma dialética entre o outrora e o agora, entre concepções filosóficas africanas e as modernidades líquidas que, conforme Zigmunt Bauman,caracterizam o mundo globalizado contemporâneo. Segundo Adriano Mixinge, há que serem pensadas, hoje, a literatura e as artes angolanas em uma tensão permanente entre angolanidade e transcontinentalidade. Mixinge, na introdução ao catálogo da exposição “Metáforas Angolanas” por ele organizada, cita o filósofo camaronês Jean Bidima que afirma haver uma nova geopolítica das artes africanas, onde as africanidades são entendidas como um processo, sempre em travessia. O filósofo defende, desse modo, que não há uma essência africana, mas saberes locais africanos em diálogo que estão sempre se reatualizando, em permanentes transformações. Claro que os traços contextuais de cada etnia contam, porém as matrizes identitárias se ressemantizam num presente sempre em interação com o passado e o futuro. De acordo com o pensamento de Bidima, não pode haver uma adoração mítica e cega do outrora, pois isso provoca um imobilismo cultural. É preciso entender que os campos metafóricos das artes em geral se encontram em entrelaçamentos intermináveis que fundem e recriam, sem parar, tradições e modernidade. Passemos, então, a exemplos práticos, demonstrando como algumas obras literárias e pictográficas angolanas recuperam e reinventam certos mitos. Por exemplo: a Kianda aparece em diversos textos literários e em várias telas de pintores de Angola. Metáfora de uma angolanidade em trânsito, a divindade alegoriza, em vários romances atuais, o país em crise. Em O Desejo de Kianda, de Pepetela, a divindade é alegoricamente apropriada pelo discurso ficcional. O maravilhoso invade a narrativa e o grito rebelde de Kianda ressoa na dimensão mítica e literária. A “síndrome de Luanda” expressa o esgarçamento das utopias culturais e políticas dos tempos de lutas libertárias. Kianda, nesse livro, alerta para a perda dos elos com a ordem cósmica que regulava as tradições do imaginário popular. Ela, na narrativa de Pepetela, apresenta-se como metáfora das fendas identitárias, da busca desesperada de preservação das raízes angolanas soterradas por contradições que perpassam pelo tecido social angolano. O lado demoníaco de Kianda posto em cena representa a poetização mitológica da realidade que
  • 3. se converte em fonte de reação do imaginário angolano insatisfeito com o clima de corrupções que dominam a cidade e o país nessa época. Também em obras do escritor Manuel Rui, como Rioseco e Um anel na areia, a figura da kianda surge, trazendo alegorizado o universo mítico luandense, onde a deusa das águas marinhas é a encarnação de uma angolanidade problemática, porque indecisa entre a realidade e a ficção. Um anel na areia não narra apenas uma história de amor; traz à tona a imagem de uma Luanda em crise onde os jovens viviam imersos em contradições, mas não isentos totalmente das fantasias míticas que caracterizam a literatura e certas tradições luandenses. Assim, por causa de um anel que se perdeu na areia, o casal de namorados ressemantiza o mito da Kianda, inventando estórias, discutindo o cerne da literatura, ou seja, a questão da fantasia. Ao retrabalhar a figura da divindade, esse texto do escritor Manuel Rui teoriza sobre o próprio fazer literário, cuja tecelagem se faz de metáforas e fantasias: Ora, é justamente esse jogo em que abundam as dúvidas sobre a figura da Kianda e a fé na mesma, que se questiona mais profundamente a realidade e a ficção. Temos, dessa forma, uma hábil sobreposição de planos que enriquece sobremaneira o texto, já que não se trata apenas de narrar uma belíssima historia de amor, mas também de trazer à baila a realidade que os jovens angolanos enfrentam hoje, assim como tematizar as crenças e valores dos mais velhos e o choque entre as gerações. Mas, especialmente, de questionar a relação entre realidade e ficção em todos esses planos, e, portanto, do fazer artístico. Ou, parafraseando o texto de Manuel Rui: “Por causa de um anel que se perdeu na areia, inventar mais estórias sobre fantasias de uma coisa verdadeira”. (MACEDO, Tânia. Apud: http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=48 ) Diversas são as obras da literatura angolana que retrabalham mitos das tradições locais. A kianda também aparece em textos de Luandino Vieira e de outros escritores angolanos. Às vezes, surgem apenas referências a ela, como ocorre no romance Mãe Materno Mar, do escritor Boaventura Cardoso, onde o protagonista Manecas é o menino das águas, o menino encantado enviado da divindade angolana do mar. A imagem da Kianda aparece em poetas angolanos. João Melo, por exemplo, associa, num poema, a fêmea aquática à deusa das águas de Luanda, figura mítica que, alegoricamente, representa a busca profunda de "angolanidade".
  • 4. O MARINHEIRO Navego à vontade no teu dongo aliso-lhe como se fosse uma mulher primeiro o dorso as curvas perfeitas da embarcação por fim as pernas balançando nervosas como palmeiras ah amada o azul terrível do mar está todo nos teus olhos negros eu oiço o grito da Kianda e ximbico sem parar sem parar. (O Caçador de nuvens, 1993. p. 46) Na poesia de John Bella, jovem poeta, oriundo das Brigadas Jovens de Literatura, esse mito da deusa angolana do mar também é presente. É retrabalhado a partir do duplo sentido do próprio título de um dos poemas de seu livro Água da Vida: "Noite [Ki]anda". Uma noite que traz Kianda, mas também uma "noite que anda" e sugere movimento, possiblidades de mudança. Nessa obra de John Bella, o mar também se mostra ambíguo: ao mesmo tempo que se apresenta como túmulo de esqueletos, detém poderes mágicos reveladores da ainda viva religiosidade africana: NOITE [KI]ANDA Gritos do muzonge confundem-se com viuvinhas na mulemba “ Botessar” do feijão é dança circulante nos coqueiros. Batucada de peixes na maré desbrava rede axilwanda.
  • 5. Misanga da besangana “ xinguilam” sob “ calundús” de águas passadas. Kyanda que anda da ponta ao cuidado procura Kalunga que deu wanga kalumba. Na noite Kyanda besa molho de ngana axilwanda oferecendo kixilwanda à Kyanda. ( Água da vida, 1995, p.32) A atual pintura angolana também opera com tecidos míticos, polifônicos que, oniricamente, oscilam entre temporalidades e memórias, recriando mitos que, por vezes, se superpõem em uma espécie de palimpsestos literários e pictográficos. Nesse sentido, literatura e artes plásticas, ao retrabalharem importantes marcas identitárias da cultura, se colocam como elementos engendradores de uma angolanidade em processo. Para exemplificar no campo das artes plásticas, escolhi falar de telas do pintor Jorge Gumbe, que tem uma fase onde ressemantiza o universo mítico luandense relacionado à Kianda. A água, o ar, o fogo, a terra e divindades de alguns dos sistemas mitológicos angolanos são recorrentes em sua pintura, principalmente na sua produção pós-1997, designada como “a fase dos embondeiros e das Yàndà”. Podemos aí depreender intensa preocupação crítica tanto em relação ao contexto angolano contemporâneo, quanto às religiosidades do imaginário ancestral. Nas obras de Gumbe desse período, os elementos primordiais da natureza são reinventados segundo um estilo próprio e original. Com domínio das técnicas, o pintor recria mitos, tempos e temporalidades; gera, com traços leves, rápidos e com a dispersão das cores, figuras em rotação ascensional, que, em ritmo de fuga e antifuga, parecem se mover em rodopios centrípetas que metaforizam o movimento giratório da criação, sempre em constantes mutações e metamorfoses dentro do universo. Estruturada a partir de míticas metáforas – a dos embondeiros e a das Yàndà –, esta fase da pintura de Jorge Gumbe pode ser lida como uma grande oferenda estética à deusa angolana
  • 6. do mar, visando ao restabelecimento das energias cósmicas de Angola, cujas paisagens, tradições e raízes foram, durante séculos, obliteradas, em grande parte, por opressões, guerras e racismos. É interessante lembrar que Yàndà, plural de Kyàndà, vem do verbo uanda que, em quimbundo, significa sonhar3. A deusa angolana das águas e da vida traz, desse modo, etimologicamente expressa em seu nome a semântica dos sonhos. Estes, de acordo com crenças africanas, são formas de comunicação com o mundo ancestral dos antepassados, com as forças vitais da natureza responsáveis pelo equilíbrio do cosmo. O culto às Yàndà, nas populações quimbundas de Angola é milenar, tendo continuado a existir secretamente, mesmo após a colonização, como forma de sobrevivência do imaginário mítico angolano. As Yàndà são entidades reguladoras de tudo que se relaciona ao oceano. Segundo Ruy Duarte de Carvalho, manifestam-se de formas diferentes: a de lençóis de luz sob as águas, formando feixes de fitas coloridas; a de patos nadando; a de pombos sobrevoando as praias, a dos gêmeos (denominados jingongos em quimbundo) brincando sob a sombra de embondeiros, entre outras. Ruy Duarte, no livro Ana a Manda: os filhos da rede, chama atenção para o fato de que a Kyàndà, embora senhora do mar, também pode estar na terra. O embondeiro é sua árvore predileta. Seu poder é ilimitado; rege as marés, as vagas, os peixes, a pesca, a fome, as doenças e as mortes. Gosta de ser lembrada, retribuída, homenageada. Se a esquecem, retém os peixes, tornando o mar bravio e ameaçador. De acordo com o antropólogo Virgílio Coelho3, a Kyàndà é um gênio da natureza criado por Nzàmbì e se diferencia do mito da sereia. As Yàndà são apresentadas como portadoras de luz e vida, tendo coloração alva, luminosa e, por vezes, aspecto humano, tanto que, em algumas versões do mito, é descrita com uma longa cabeleira branca à volta do corpo. Na mitologia quimbunda, são consideradas entes benéficos que alertam as pessoas para os perigos vindouros. Tanto podem ser representadas por peixes como por embondeiros ou, também, pelo arco-íris e pelos flamingos (denominados ndeles em quimbundo), aves que 3 COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de Letras da UFRJ, em outubro de 2001. 3 COELHO, Virgílio. “Imagens, Símbolos e Representações “Quiandas, Quitutas, Sereias!”: Imaginários locais, identidades regionais e alteridades. Reflexões sobre o quotidiano urbano luandense na publicidade e no universo do marketing”. In: NGOLA - Revista de Estudos Sociais ( ASA). Luanda: 1 ( 1 ), jan.-dez. de 1997. pp. 127-191.
  • 7. metaforicamente simbolizam a esperança e o sonho, pois empurram a noite para o outro lado da Terra, de onde trazem o sol para iluminar os dias. Em algumas regiões de Angola, as Yàndà são chamadas Quitutas, termo que, conforme explicação de Virgílio Coelho, vem do verbo cututa (do quimbundo), cujo sentido é o de ir de um lado para o outro4. Significativamente, esta é a função das Yàndà e Quitutas, seres míticos encarregados do intercâmbio entre os vivos e os antepassados, entre o úmido e o seco, entre o mundo terreno e o sobrenatural. Nos quadros de Jorge Gumbe, freqüentes espirais configuram a idéia de movimento em torno de embondeiros que, antropomorfizados, bailam com galhos para o alto. Incorporando a sacralidade própria das Yàndà, a pintura de Gumbe realiza plasticamente um ritual telúrico de cores e míticas ofertas. Muitas são as obras que focalizam variados ângulos de embondeiros, cuja reduplicação espelhada cria uma sensação de vertigem que, visualmente, expressa o permanente giro das Yàndà, entes mágicos geradores de energia vital. Vários críticos já ressaltaram esse vertiginoso movimento das imagens projetadas no espaço abstraizante das telas de Gumbe5, como se as figuras pintadas captassem as ininterruptas metamorfoses do cosmo. A presença das vertigens e espirais pode também ser interpretada como uma espécie de barroquismo pictural que nada tem a ver com o barroco religioso europeu, aproximando-se do neobarroco assim designado e conceituado por Severo Sarduy: barroco que recusa toda instauração, que metaforiza a ordem discutida.6 Esse neobarroquismo representa, pois, subversão e discordância em relação ao centro, ao Logus absoluto, à razão imposta pela Europa aos continentes periféricos, como a África e a América Latina. Caracterizado por traços vertiginosos, o neofigurativismo alegórico praticado por Gumbe se mostra rebelde e transgressor. Há nele uma consciência de ludicidade e um erotismo anímico que funde contrários em espirais de prazer e gozo estético, construindo, 4 COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de Letras da UFRJ, em outubro de 2001. 5 CARVALHO, Ruy Duarte de. Jorge Gumbe: catálogo da exposição montada por Tirso do Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p.6. 6 SARDUY, Severo. “O Barroco e o Neobarroco”. In: MORENO, César Fernández. América latina em sua literatura. SP: Ed. Perspectiva, 1979. p. 178. 7 OLIVEIRA, José António de. "A Pintura Recente de Jorge Gumbe". In: Jorge Gumbe: catálogo da exposição montada por Tirso do Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p. 8.
  • 8. picturalmente, paisagens surreais e mitopoéticas profundamente angolanas. Segundo o pintor António Ole, um tecido espiralístico, quase convulsivo, agita todo o espaço pictórico7 das obras de Gumbe. Tal cinetismo, além de expressar a recusa do lugar comum em relação à "angolanidade" representada exoticamente pela pintura anterior, revela um exercício constante de genuína procura identitária. Na pintura de Gumbe, há multidões solitárias de seres humanos e de animais míticos, cuja dispersão evidencia a perda dos elos originários. Ao mesmo tempo que essa dissolução é denunciada, se repete o tema do ventre gerador da terra angolana, apontando, recorrentemente, para a necessidade de recuperação das tradições. Assim, são convocados para o centro dessa pintura elementos cósmicos e mitológicos: o sol, fonte de energia ígnea; o chão telúrico; as águas da Kyàndà; o metafórico ar da imaginação criadora. Neste, se projetam seres humanos em acrobacia e espirais, cujo sentido é, significativamente, o de: rodopiar, gerar, criar, servir de estrutura-mãe a todas as outras estrutura8 . A etnofilosofia angolana pode, desse modo, ser depreendida em várias telas de Gumbe: em Homenagem aos Jingongos (acrílico sobre tela), referência aos gêmeos míticos da tradição, espécie de andróginos primordiais, habitantes dos embondeiros e símbolos da própria criação; em Apoteose para a Kiàndà (óleo sobre tela) e Oferendas para Kiàndà (acrílico sobre tela), que focalizam um típico ritual de ofertas à deusa angolana do mar; em A Mística do Imbondeiro (acrílico sobre tela), onde é clara a alusão à árvore sagrada da Kiàndà e dos gêmeos. Observamos, assim, que o pintor ressignifica pela arte o mundo das águas, local da felicidade eterna, do branco dos sonhos, onde vivem as Yàndà. De acordo com crenças quimbundas, dar de comer às Yàndà é uma maneira de restaurar a harmonia animista encontrada na natureza9. A obra do pintor, trazendo plasticamente recriado o espaço aquático de Quitutas e Yàndà, funciona, pois, metaforicamente, como um ritual de oblação em agradecimento à recente paz vivida por Angola. Em Estórias sobre a Kyanda (acrílico sobre tela), um imenso flamingo azul contracena com um embondeiro humanizado que tem braços para cima e se agita ao vento. Tanto a árvore, como o pássaro são duplos míticos da Kyàndà e, como ela, simbolizam os sonhos, 8 8 MIXINGE, Adriano. “Quando os pincéis ‘tchisokam’ vários universos”. Jornal de Angola.. Caderno Vida & Cultura. Luanda, outubro de 2000. 9 COELHO, Virgílio. Informações fornecidas no curso ministrado na Faculdade de Letras da UFRJ, em outubro de 2001.
  • 9. remetendo, por conseguinte, à busca dos sentidos poéticos da vida, à paz e à leveza da imaginação criadora. No coração do embondeiro, nada uma tartaruga enorme, metáfora da ancestral sabedoria africana. Em acrobática posição, um ser humano tenta galgar uma escada para alcançar o azulado onírico do ndele, ave que, como o arco-íris, traz a magia das Yàndà. Também povoadas de cacussos e bagres, peixes emissários de Kyàndà, diversas telas de Gumbe, apreendem, pela intensa imaginação criadora, esse fluir mágico e sacralizado das míticas águas do mar angolano. Concluindo, ressaltamos a importância crítica da literatura e das artes plásticas, pois, ao recriar tradições locais em confronto com o presente, as obras literárias e as telas se oferecem como formas de resistência à perda dos laços ancestrais, alertando para a urgência de Angola não deixar de cultivar seus mitos e sonhos. BIBLIOGRAFIA BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2001. BELLA, John. Água da vida. Luanda: Delegação Provincial de Luanda da Cultura; Brigada Jovem da Literatura de Angola, 1995. BIDIMA, Jean-Godofroy. Palabre, une juridiction de la parole. Paris: Edition Michalon, 1998. _________________. L'art négro-africain. Paris: PUF, 1997. CARDOSO, Boaventura. Mãe, materno mar. Porto: Ed. Campo das Letras, 2001. CARVALHO, Ruy Duarte de. Jorge Gumbe: catálogo da exposição montada por Tirso do Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p.6. _______________________. Ana a Manda:os filhos da rede. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical,1989.pp.284-285. COELHO, Virgílio. “Imagens, Símbolos e Representações “Quiandas, Quitutas, Sereias!”: Imaginários locais, identidades regionais e alteridades. Reflexões sobre o quotidiano urbano luandense na publicidade e no universo do marketing”. In: NGOLA - Revista de Estudos Sociais ( ASA). Luanda: 1 ( 1 ), jan.-dez. de 1997. pp. 127-191.
  • 10. GUMBE, Jorge. Catálogo da Exposição Mitos e Sonhos, do pintor Jorge Gumbe, realizada em Luanda de 14 a 30 de setembro de 2005. Porto: Greco Artes Gráficas, 2005. LABAN, Michel. Encontro com escritores(Angola). Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1989. 2 v. MACEDO, Tânia. “Um Anel na Areia”, uma narrativa que se afasta do dogmatismo. http://www.uea-angola.org/artigo.cfm?ID=48 ) MELO, João. O Caçador das nuvens. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1993. MIXINGE, Adriano. “Quando os pincéis ‘tchisokam’ vários universos”. Jornal de Angola.. Caderno Vida & Cultura. Luanda, outubro de 2000. _________________. Metáforas angolanas. Paris: Embaixada da República de Angola em França, 2001. OLIVEIRA, José António de. "A Pintura Recente de Jorge Gumbe". In: Jorge Gumbe: catálogo da exposição montada por Tirso do Amaral. Luanda: Edições Asa; Secretaria de Estado da Cultura; UNAP, 1989. p. 8. PEPETELA. O Desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995. RUI, Manuel. Rioseco. Lisboa: Ed. Cotovia, 1997. _________. Um Anel na areia. Luanda: Nzila, 2002. SARDUY, Severo. “O Barroco e o Neobarroco”. In: MORENO, César Fernández. América latina em sua literatura. SP: Ed. Perspectiva, 1979. p. 178. VIEIRA, Luandino. João Vêncio: os seus amores.Lisboa: Caminho, 2004.