SlideShare une entreprise Scribd logo
1  sur  40
Télécharger pour lire hors ligne
identidade!
           Periódico do Grupo de Identidade da Faculdades EST/IECLB - vol. 12, julho-dezembro/2007
                                                                                   ISSN 1676-9570




Pág. 6 Diferenciação racial e desigualdade social
       Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes
Pág. 15 O estudo da História da África no resgate das origens do povo negro
        e o desenvolvimento de processos pedagógicos em projetos sociais -
        Luciana Marques Pereira e Margarete Fagundes Nunes
Pág. 22 Entre a malandragem e a sobrevivência: breves considerações sobre
        os “capoeiras” - Anna Luiza de Moura Saldanha
Pág. 30 Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão (Elementos de uma Cristologia
        afro-brasileira - Marcelo Barros
Expediente
Identidade!
Periódico do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB
Vol. 12, julho-dezembro/2007
Apoio: Federação Luterana Mundial – FLM
Periodicidade: Semestral
Tiragem: 2.000 exemplares
Revisão: Luís M. Sander
Diagramação e impressão: Con-Texto Gráfica e Editora               www.est.com.br
Capa: Marcelo Ricardo Zeni
Coordenação/organização geral: Selenir C. Gonçalves Kronbauer
Responsável por este número: Selenir C. Gonçalves Kronbauer
Endereço para contato Grupo Identidade:
Escola Superior de Teologia
Caixa Postal 14 – Tel. (51) 2111-1400 – CEP 93001-970 – São Leopoldo/RS
E-mail: identidade@est.edu.br – Site: www.est.edu.br
Obs.: São de total responsabilidade dos autores os textos por eles escritos.


Aceita-se permuta :: Exchange is requested :: Wir bitten um Austausch :: Pídese canje


Conselho Editorial
Afonso Maria Logório Soares - PUC/SP
Alceu Ravanello Ferraro - UNILASALLE/RS
Elaine Neuenfeldt - EST/RS
Gabriel Grabowski - FEEVALE/RS
Georgina Helena Lima Nunes - UFPEL/RS
José Ivo Follmann - UNISINOS/RS
Eunice Maria Nazarethe Nonato - IPA METODISTA/RS
Magna Lima Magalhães - FEEVALE/RS
Maricel Mena Lopez - Pontificia Universidad Javeriana - Colômbia
Marga Janete Stroher - EST/RS
Peter Theodo Nash - Wartburg College/EUA
Ricardo Willy Rieth - EST/RS

Indexação:
Qualis CAPES: A Local
Área de avaliação: Filosofia/Teologia: subcomissão Teologia
Qualis CAPES: B Local
Área de Avaliação: Educação


02
Editorial

      O décimo segundo volume de identidade! aborda a
temática Negritude e Cultura, com enfoque no resgate e
valorização da cultura afro-brasileira.
      Todos os assuntos aqui apresentados enriquecem a
discussão sobre a necessidade do estudo das culturas, suas
transformações, con-
tribuições dentro do
contexto social brasi-
leiro e, sua necessária
valorização, na medi-
da em que este estudo
servirá de base a um
processo pedagógico
adequado na busca de
um tratamento iguali-
tário da diversidade
cultural e da conse-
qüente inserção social.
      Desejo a todos uma boa leitura!


                          Profª. Ms. Selenir C. Gonçalves Kronbauer
   Coordenadora do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB


                                                                 03
Apresentação
     O presente número de              especificidade. Diferenciação racial
periódico identidade! traz a           e desigualdade social leva a sério o
contribuição sobre a cultura afro-     tema da desigualdade social em
negra brasileira. Cultura é um         nosso país, demonstrando que ela
conceito muito amplo e de difícil      está em relação direta com uma
definição. Ao se falar de uma          hierarquização racializada da
cultura “negra”, afirmamos que         sociedade. Segundo elas, “o critério
existem construções culturais          racial opera como fator de dife-
específicas das populações negras,     renciação e geração de desigual-
que surgem de sua condição sui         dades”. Operacionalizando o con-
generis. Calvani afirma que o que      ceito habitus racista, as autoras
caracteriza a cultura brasileira é o   apresentam dados que comprovam
ecletismo e o sincretismo. Sem         a exclusão da população negra,
negar essa característica, enten-      problematizando as formas como as
demos que a cultura negra é            Ciências Sociais têm argumentado
apropriada por outros segmentos da     sobre a questão. É no contexto de
população, de modo que o sincre-       exclusão e discriminação que a
tismo atue em favor das classes        população negra elabora sua cul-
dominantes. Neste número do            tura.
periódico, contamos com a colabo-            No mesmo sentido, o artigo de
ração plural de pessoas oriundas de    Luciana M. Pereira e Margarete F.
diversas disciplinas acadêmicas,       Nunes apresenta o processo de
com caminhadas diferentes, para        empoderamento de crianças negras
que nossos horizontes sejam            de uma comunidade da periferia de
ampliados.                             Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul.
     Um dos motores da cultura         O estudo da História da África no
afro-negra é a sua condição social     resgate das origens do povo negro e
específica. Nesse sentido, o artigo    o desenvolvimento de processos
de Érica Pastori, Janine Prandini,     pedagógicos em projetos sociais
Luciana Pêss e Rosiane Pontes          problematiza a implantação da Lei
auxilia a compreender qual é essa      10.639/03. Na avaliação das autoras,

04
a Lei 10.639/03 está sendo implan-      desse elemento cultural afro-negro é
tada lentamente, sugerindo projetos     demonstrado durante todo o artigo,
de extensão universitária como          sempre relacionado com as trans-
soluções viáveis em curto prazo. No     formações sociais enfrentadas pela
Projeto Quizomba da Cidadania           sociedade brasileira.
foram trabalhadas auto-estima,                No último artigo desse volume
história, memória e cidadania. Esse     de identidade!, Marcelo Barros
é um projeto que valoriza a cultura     contribui para a discussão sobre
carnavalesca da comunidade e, a         uma cristologia negra. Jesus de
partir dela, busca empoderar novos      Nazaré, Orixá da Compaixão (Ele-
atores para o conhecimento da           mentos de uma cristologia afro-
realidade e história coletiva.          brasileira) analisa as transforma-
      O artigo de Anna L. M.            ções ocorridas no meio eclesiástico e
Saldanha faz um resgate histórico-      teológico, com a (re)valorização das
bibliográfico de um elemento cultu-     religiões afro-americanas e amerín-
ral afro-negro: a capoeira. Entre a     dias. Diante do caráter sincrético do
malandragem e a sobrevivência:          cristianismo trazido ao Brasil, o
breves considerações sobre os           autor entende que na religiosidade
“capoeiras” trabalha o período entre    popular há uma “aliança” entre
1850 (ano da promulgação da Lei         diversas expressões religiosas. A
Eusébio de Queirós) e 1890 (ano da      partir dessa constatação, apresenta
proibição da capoeira). Segundo a       elementos para uma cristologia
autora, com o crescimento das cida-     negra que valorize expressões cultu-
des, houve a organização de grupos      rais distintas.
de resistência, como as maltas de             Desejamos a todos e todas uma
capoeira cariocas. Os capoeiras são     boa leitura, na esperança de que esse
apresentados como atuantes no           seja mais um instrumento no cres-
cenário político-eleitoral do Segundo   cimento epistemológico de nossas
Império. Diferenciando as obras         comunidades, para a valorização de
sobre a capoeira em três blocos, a      sua cultura e de sua história.
autora pretende situar espaço-                             Ezequiel de Souza
temporalmente seu objeto de estudo.      Teólogo, mestrando em Teologia na
O caráter eminentemente político             Faculdades EST, Bolsista CNPq

                                                                          05
Diferenciação racial e desigualdade social
 Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes*




   Um dos mais graves problemas do       científico, ou seja, um lugar tido como
Brasil é a desigualdade social,          supostamente de livre acesso e que
desigualdade essa na qual                agora está sendo pensado como um
encontramos um grande fosso que          lugar privilegiado de parte da
separa os mais ricos aqueles que têm     população, parte da população branca
melhores oportunidades da classe         do país. Ao apontarmos alguns
média e, principalmente, dos mais        exemplos de negros bem-sucedidos
pobres. No entanto, trabalharemos        estamos, não demonstrando como
neste artigo uma possibilidade           vivemos numa sociedade sem
sociológica e, anteriormente,            desigualdade          racial,       mas
epistemológica da existência da          evidenciando a discriminação
geração de desigualdade social a         existente, já que os referidos exemplos
partir do processo de diferenciação      são imensamente valorizados
social. A negação do diferente barra o   justamente por constituírem
acesso igualitário a mecanismos de       exceções, por retratarem caminhos
ascensão social.                         que foram traçados de forma diferente
   Podemos verificar que o critério      do que era esperado.
racial opera como fator de                  Essa diferenciação que há em
diferenciação e geração de               nossa realidade social tem sua base na
desigualdades ao observar que mesmo      raça dos indivíduos. A partir da
entre as camadas populares,              constatação de que o conceito de raça
constituintes da mesma classe social,    é um dos mais importantes com o qual
os indivíduos negros encontram           os cientistas sociais, sobretudo
maiores dificuldades de ascensão         brasileiros, devem estar bem
social, devido à discriminação.          habilitados a trabalhar, exploraremos
   As questões raciais no Brasil e de    melhor essa questão através de uma
discriminação, principalmente de         revisão bibliográfica e um debate
negros e indígenas, acrescentadas à      epistemológico em torno desse tema.
questão da implantação de ações             O Brasil é um país racializado.
afirmativas em alguns setores da         Esta é uma posição sociológica
sociedade, suscitam debates em torno     passível de ser adotada a partir do
da disputa de poder no campo             momento em que analisamos

06
distintos     fenômenos         sociais    pelo capital simbólico carregado pelos
brasileiros que se configuram de uma       sujeitos negros, mas também, entre
maneira tal que é perceptível a            outras variáveis, pelo baixo nível de
variável        raça        incidindo      capital cultural institucionalizado que
constantemente; daí a possibilidade        esses indivíduos acumulam no
de inferirmos que o racismo é um           decorrer de suas vidas, devido à sua
dispositivo de poder estruturante da       difícil entrada e permanência em
vida brasileira. Ter a pele negra no       instituições de ensino de níveis
Brasil significa carregar um capital       superiores.
simbólico que provavelmente
delineará a existência individual de          A violência está de tal modo
forma negativa, marcando trajetórias          interiorizada nos corações e mentes
pela dificuldade de ascensão social.          que alguém pode usar a frase “um
                                              negro de alma branca" e não ser
Pode-se falar em um habitus racista,
                                              considerado racista. Pode referir-se
delineando certo capital simbólico: cor
                                              aos serviçais domésticos com a frase
da pele, forma dos cabelos, formato do        “uma empregada ótima: conhece seu
nariz, entre outros, que se associam          lugar” e considerar-se isento de
ao capital social destes agentes              preconceito de classe. Pode dizer, como
sociais, reforçando expectativas              disse certa vez Paulo Maluf, “a
sociais dos negros geralmente de              professorinha não deve gritar por
“menor valor social”. Este habitus            salário, mas achar um marido mais
estrutura, por sua vez, o destino social      eficiente” e não ser considerado
                                              machista. (CHAUÍ, 2007).
destes indivíduos. É o que se
identifica, por exemplo, nas
entrevistas de emprego, em que o peso         Uma das tarefas das ciências
de uma “boa aparência” vale muito          sociais é investigar quais são as
para a seleção. “Boa aparência” essa       relações de força que produzem
que dificilmente se refere ao fenótipo     nossas realidades sociais e seus
negro, traços como cabelos crespos,        problemas específicos no caso
pele negra e nariz largo. Segundo          brasileiro, a desigualdade social que
dados da PNAD/IBGE, a taxa de              impede que os pobres ascendam
desemprego da população negra, em          socialmente, como se estivéssemos em
2003, foi de 10,7% contra 8,8% da          uma      sociedade     de     castas,
população branca. Com certeza esse         extremamente estruturada.
dado não pode ser explicado somente           Mesmo tendo uma visão de mundo


                                                                                  07
classista, onde estudamos que a                  também particular ou específica, não
sociedade brasileira é dividida em               conseguindo generalizar-se nem
classes sociais, em cuja ontologia               universalizar-se. Um direito, ao
                                                 contrário de carências e privilégios,
também seja passado o “mito da
                                                 não é particular e específico, mas geral
democracia racial” e os preceitos de
                                                 e universal, seja porque é o mesmo e
um país republicano e democrático,               válido para todos os indivíduos, grupos
mesmo que se discuta a falência das              e classes sociais, seja porque, embora
instituições que fundamentam esse                diferenciado, é reconhecido por todos
processo, isto é, ao pensar na                   (como é caso dos chamados direitos
democracia brasileira, não se                    das minorias).
consegue correspondência direta seja             Uma das práticas mais importantes da
com a liberdade ou com a igualdade.              política democrática consiste
                                                 justamente em propiciar ações
Existem grupos “minoritários" (os
                                                 capazes de unificar a dispersão e a
negros são incluídos nessa categoria,
                                                 particularidade das carências em
mesmo se tratando de quase metade
                                                 interesses comuns e, graças a essa
da população nacional: sendo negros              generalidade, fazê-las alcançar a
= pretos + pardos, essa categoria                esfera universal dos direitos. Em
compõe 48% da população brasileira,              outras palavras, privilégios e carências
segundo dados da PNAD/IBGE de                    determinam          a    desigualdade
2005) cuja expressão se dá através de            econômica, social e política,
protestos e movimentos que visam à               contrariando o princípio democrático
conquista dos mesmos direitos dos                da igualdade, de sorte que a passagem
                                                 das carências dispersas em interesse
demais cidadãos; esses grupos não
                                                 comuns e destes aos direitos é a luta
buscam       seu      representante
                                                 pela igualdade. Avaliamos o alcance da
parlamentar porque não se sentem                 cidadania popular quando tem força
representados no poder, não o vêem               para desfazer privilégios, seja porque
como um lugar que possam ocupar.                 os faz passar a interesses comuns, seja
Esses grupos, ao protestarem, não                porque os faz perder a legitimidade
lutam por privilégios para si.                   diante dos direitos e também quando
                                                 tem força para fazer carências
     Um privilégio é, por definição, algo        passarem à condição de interesses
     particular que não pode generalizar-se      comuns e, destes, a direitos universais.
     nem universalizar-se sem deixar de          (CHAUÍ, 2007).
     ser privilégio. Uma carência é uma
     falta também particular ou específica       Numa perspectiva histórica, o
     que desemboca numa demanda               autor Aníbal Quijano reflete sobre a

08
experiência da colonização nas            menor formalidade e menor proteção
Américas promovida por europeus           social relativamente à população
que envolveu negros africanos. Este       branca. Dados do IBGE, divulgados
processo histórico foi decisivo para a    em 2002, mostram que a desigualdade
constituição do “sistema mundo            por cor é a que mais pode ser
moderno”, que tem como base a             identificada como geradora da
racialização dos indivíduos, princípio    desigualdade existente no Brasil. Os
necessário para estruturar a realidade    negros recebem metade do
social, discurso com uma força política   rendimento de brancos em todos os
suficiente para transformar essas         estados. Do total de pessoas que
representações racializadas em            faziam parte do 1% mais rico da
realidade. Para Quijano, a idéia de       população, 88% eram de cor branca,
raça é central para a naturalização       enquanto que, entre os 10% mais
das relações coloniais de dominação       pobres, quase 70% se declararam de
entre europeus e não europeus. É a        cor preta ou parda.
articulação entre a distribuição              Na colonização, europeus
racista de identidades e a distribuição   tornaram negros e indígenas afásicos
racista do trabalho e das formas de       (BHABHA, 1998), isto é, a
exploração do capitalismo colonial        modernidade produz também a
que garante a dominação e exploração      impossibilidade da enunciação desses
européia/branca.                          grupos. As ciências sociais,
    Um dado interessante para             especialmente a antropologia, surgem
refletir sobre a perduração dessa         como lugar onde os brancos falam
relação entre trabalho e raça é que,      deles e por eles. E hoje, vemos a
enquanto 42% dos brancos têm              antropologia brasileira num debate
carteira assinada ou são funcionários     acalorado acerca da pertinência das
públicos, entre os negros este            cotas raciais nas universidades
percentual é de 31,4%. Ou seja, menos     federais. Não estariam estes mesmos
de um terço dos trabalhadores negros      antropólogos com receio de que os
tem acesso a direitos trabalhistas        silenciados cuja voz é dada pelas boas
(PNAD/IBGE, 2003). Não apenas o           intenções antropológicas ocupassem
desemprego é maior entre a população      esse lugar de fala, de produção de
negra comparativamente à branca,          conhecimento sobre si mesmos,
como também, em geral, a primeira         colocando em xeque a autoridade
tem ocupações de pior qualidade, com      branca da antropologia?


                                                                             09
No modelo proposto por Homi          mesma forma, os empresários nas
Bhabha, surge a ênfase na construção     novelas são sempre representados por
histórica de uma estrutura outrem.       atores brancos, ao passo que as
Partindo dessa concepção, na             empregadas domésticas, seguranças,
modernidade pós-colonial, passamos a     porteiros e ocupantes de cargos
ter este a priori histórico que          “menos            nobres”          são
distingue o moderno do tradicional,      majoritariamente não-brancos. Ao
sendo que os colonizados devem           negociarmos permanentemente
“falar” deste lugar específico que       nossas certezas no rosto do outro
ocupam no espaço social, um lócus        vendo neste o mundo possível lemos o
afásico produzido pelo poder colonial.   mundo no rosto do outro. Quando o
De tal forma, os cientistas sociais      negro é um outro regido pelo branco
brasileiros não podem partir das         (processo percebido, na década de
teorias européias ocidentais para        1950, pelo autor Guerreiro Ramos,
analisar sua realidade, pois a           que via o “branco” brasileiro
constituição de sua historicidade é      reivindicando         uma      pureza
distinta. Nós, sociólogos brasileiros,   inexistente, ou seja, intelectuais
devemos considerar em nossa              brasileiros “brancos” lendo o negro
reflexividade essa condição pós-         como um indivíduo pitoresco/exótico),
colonial. Não podemos problematizar      cabe a argumentação de Eduardo
nossos fenômenos apenas a partir do      Viveiros de Castro, na obra Nativo
olhar dos teóricos do “norte”.           Relativo, de que a estrutura cultural
    A identidade do povo brasileiro      do “ocidente” é altamente altrucida.
está fundamentada no rosto branco            Essa percepção racializada e que
(Deleuze); nossas certezas estão         toma o negro como anormal/regido faz
firmadas na branquitude; todo o          parte de nossa estrutura ontológica
nosso sistema de representação tem o     histórica, ou seja, de nosso arcabouço
branco como o superior e o ideal a ser   lingüístico, o qual acaba por
atingido. Para ter exemplos disso,       naturalizar nossas ações, já que, ao
basta que liguemos a televisão:          falarmos por meio dessas categorias
poderemos então observar as              (negro e branco ou mesmo pardo,
propagandas veiculadas, nas quais a      mestiço e outras categorias possíveis)
família bem-sucedida é sempre            socialmente aprendidas, aderimos
representada por um casal branco         inconscientemente ao racismo:
com filhos igualmente brancos. Da        percebemos a realidade a partir


10
dessas categorias que contêm maior        de conhecimento comum nos
ou menor valor no mercado de bens         conhecimentos científicos” (BACHE-
simbólicos, e acabamos reproduzindo       LARD, 1984). Historicizar as práticas
o racismo em nossas relações.             sociais, verificando quando ocorrem
Tornamo-nos racistas, mas não             descontinuidades e realizando
identificamos esse racismo como um        rupturas, é a maneira mais
problema nacional que gera a              interessante de realizar ciência sem
desigualdade social, pois, ao             necessitar de um filósofo para julgar
naturalizar essa ontologia racista,       externamente        as     produções
citamos outros como os principais         científicas.
problemas a serem combatidos para             A reflexão histórica que
obtermos       a   diminuição        da   realizamos pode nos auxiliar num
desigualdade, tais como educação e        esforço para sermos rigorosos nas
emprego.                                  investigações científicas acerca da
    Partilhamos da noção de ciência       questão racial e não somente desta
proposta por Gaston Bachelard,            esfera social, já que não é
segundo o qual a prática científica, ou   propriamente um local, mas perpassa
seja, a criação de fenômenos em           múltiplos        espaços      sociais.
laboratório, com a premissa da            Delinearemos três posições atuais das
permanente retificação de erros,          ciências humanas sobre a questão
sempre reordenando conceitualmente        racial que, por partirem de pontos
as racionalizações e propondo novas       epistemológicos distintos, chegaram a
organizações racionais, necessita de      diferentes posições normativas/
uma superação das imagens                 políticas.
fenomênicas: temos de polemizar com           Uma das possibilidades da
nossas idéias comuns, romper com a        articulação entre o horizonte
forma partilhada socialmente de           antropológico e o discurso político é
percepção da realidade. Além dessa        representada por autores que
ruptura epistemológica, processada        fornecem       uma     possibilidade
através de um “esforço constante de       epistêmica antiessencialista que nega
dessubjetivação” (BACHELARD,              o conceito de raça no Brasil, ao
apud BOURDIEU, 2001), é de                percebê-lo como um epifenômeno
extrema importância a vigilância          decorrente da desigualdade de classe.
epistemológica. “É permanentemente        Para eles, nossa sociedade não
necessário mostrar o que permanece        dicotomiza as raças em branco e


                                                                             11
negro, porque se construiu através         ainda mais porque não considera as
das múltiplas categorias raciais, num      metamorfoses que os dispositivos
verdadeiro continuum de raças. Essa        racistas podem ter sofrido.
proposta epistemológica desracializa           Como nos mostra Muniz Sodré,
a sociedade brasileira e, assim,           depois de dispositivos discursivos
neutraliza as lutas anti-racistas.         racistas até os anos 1930 no Brasil,
    Não nos filiamos a essa visão, pois,   temos hoje dispositivos que
como já foi colocado acima,                continuam funcionando com o
acreditamos que o nosso a priori           objetivo de regular o crescimento da
histórico de percepções (maneira           população negra. É a biopolítica
como          nos         percebemos       (Foucault) que passou a operar no
historicamente) foi construído pelo        Brasil, focalizando a raça negra,
poder colonial e reproduzido até hoje      objetivando diluí-la, se não
de forma tal que percebemos a              exterminá-la para poder constituir o
realidade social racializada. Quer         corpo saudável da nação. É um
dizer, para legitimar a colonização,       projeto latente, que vem funcionando
criou-se a idéia de que o povo             sem que nos percebamos como
colonizador era superior à população       racistas, sem nos posicionarmos como
nativa dos países colonizados; por         tal porque não necessitamos expor-
exemplo, a população negra era tida        nos em discursos racistas, já que o
como “sem alma”, e, por isso,              processo de eliminação dos negros
justificava-se       a    escravidão.      ainda se faz presente em nosso
Atualmente,                    embora      cotidiano.
constitucionalmente todos sejam                Enquanto há antropólogos e
iguais, através da observação da vida      sociólogos defendendo a inexistência
cotidiana, percebemos que nem todos        do problema da raça em nosso país e
são tratados como iguais, sendo a raça     apontando o desenvolvimento
um dos principais fatores de               econômico como o problema a ser
diferenciação.              Portanto,      enfrentado, processa-se um genocídio
consideramos essa perspectiva              de negros e índios no Brasil. Seja
antiessencialista, que sugere que o        quando um índio é confundido com um
Brasil não é um país racializado, como     mendigo, e jovens, “brincando” com
um tanto leviana por tomar os marcos       esse indivíduo, ateiam fogo a seu corpo;
do Estado-Nação como unívocos para         seja quando um jovem negro é
a produção de categorias sociais, e        confundido com um bandido e é morto;


12
ou então quando, por estarem             racialização é efeito de políticas da
atrasados para o vestibular, jovens      modernidade que produziram um ser
negros correm, e a polícia os confunde   diaspórico, ou seja, um ser que
com ladrões e os prende, impedindo-os    experimenta o mundo a partir da
de fazer a prova.                        diáspora; a “produção” do ser negro é
    Tal proposta antiessencialista       dada a partir da experiência da
demonstra significativa insuficiência    escravidão (a experiência da dor), e
ao não perceber o funcionamento          esta é sublimada através da
estrutural no qual a história            reapropriação do corpo. O negro
permanece transcorrendo; não capta       entrou na modernidade de uma forma
a latência do projeto racista. É a       dilacerada, tornando-se o “ser em
história incorporada (encarnada nos      estado de dor”: esta é a forma pela
corpos e externalizada nas               qual os corpos negros incorporaram a
instituições), a qual não necessita da   escravidão. Por isso, podemos
consciência para permanecer              afirmar que a cultura dos negros é
funcionando.                             diaspórica, formada a partir do exílio
    Uma segunda possibilidade de         como temos no modelo bíblico.
articular uma posição epistemológica     Embora a modernidade tenha
a uma posição política foi levada a      produzido esse ser, não lhe concedeu
cabo por “afro-centristas”. Foram        um lugar.
produções que propiciaram uma luta           Segundo Gilroy, os descendentes
anti-racista, mas somente a partir de    de africanos compartilham uma
discursos que naturalizavam uma          condição em comum: a de terem sido
superioridade       negra      a   ser   escravos, posteriormente libertos e,
reivindicada e posta em luta. Logo,      em conseqüência discriminados
não romperam com o essencialismo,        racialmente pelo outro branco. O “eu”
pois, ao denunciar a supremacia          negro não está livre de uma referência
branca, apenas inverteram as             tradicional, este sujeito não possui
posições.                                possibilidades de escolhas livres, pois
    Por fim, há uma terceira vertente,   sua “identidade” está diretamente
promovida por Paul Gilroy, que           relacionada a seu fenótipo, à cor de
assume um lugar epistemológico anti-     sua pele. O indivíduo negro, embora
racista      e    antiessencialista,     tenha poder de ação, não encontra
defendendo que inexiste uma essência     liberdade para escolher seu caminho,
negra. Esta corrente afirma que a        porque tem que lidar, ao longo de sua


                                                                             13
historicidade pessoal, com o fato de      ignoramos a desigualdade nem
ser um sujeito racializado.               tentamos subestimá-la; no entanto, a
    Estando imersos em uma realidade      falácia de que vivemos num país
social na qual a visão de mundo que       miscigenado e que sabe conviver
predomina é a branca, vemos-nos           pacificamente com todas as diferenças
através das lentes das raças. Mesmo       entre os povos que o constituem não é
sem notar, fazemos a distinção entre      constatada após uma reflexão mais
branco e não-branco. Dessa forma, não     apurada sobre nossa realidade social.
podemos deixar de enunciar as tensões     Em vista disto, somos favoráveis a toda
latentes nessa sociedade, os conflitos    forma de combate ao preconceito racial
que, antes de ser de classe ou gênero,    e tentativas de diminuição dessa
são raciais.                              diferença que há entre brancos e não-
    Observamos em nosso cotidiano as      brancos.
relações racializadas que se                      Uma das formas encontradas
estabelecem. Em especial, percebemos      pela sociedade é a implantação de ações
no ensino superior público esta           afirmativas para esse grupo com maior
distinção que a sociedade brasileira      dificuldade de acesso a direitos que,
impõe aos cidadãos. Seja entre o corpo    teoricamente, são de todo cidadão
docente ou entre o corpo discente, os     brasileiro: citamos a educação como o
negros não estão representados, isto é,   principal deles, ante os debates que
notamos que o número de estudantes        ocorrem sobre a adoção das cotas
negros nas universidades públicas do      raciais pelas universidades federais.
país não é proporcional à população       Segundo nossa reflexão, essa é uma
negra brasileira (48%, segundo o          maneira de que a população negra,
IBGE), ao focalizarmos a reflexão         assim como a indígena, tenha a
sobre a representatividade dos negros     possibilidade real de freqüentar a
entre os professores de nossa             universidade e, assim, tenhamos a
universidade, percebemos claramente       diversidade encontrada nas ruas da
a quase inexistência dessa parcela da     cidade também representada em
população.                                nossas salas de aula.
        Acreditamos         que       a
diferenciação racial que é estabelecida   Referências Bibliográficas
nas relações sociais no Brasil é um       CHAUÍ, Marilena. Ética, violência e
fator     determinante       para     a   racismo. In: Repórter Diário Brasil, de
desigualdade social do mesmo. Não         6/4/2007
                                          BACHELARD, Gaston. A filosofia do não.

14
O estudo da História da África no resgate das origens
     do povo negro e o desenvolvimento de processos
                     pedagógicos em projetos sociais1
                                                     Luciana Marques Pereira2
                                                    Margarete Fagundes Nunes3



      O estudo da história da África no     no projeto Quizomba da Cidadania por
  Brasil tornou-se obrigatório através da   acadêmicas do curso de História da
  Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003.4     Feevale, vincula-se a outras
  Mas podemos nos perguntar se essa lei     linguagens que fazem parte do
  vem sendo cumprida e se os                cotidiano dessas comunidades, como a
  profissionais da educação estão           musicalidade, a dança, as expressões
  adequadamente preparados, se há           artísticas ligadas ao universo do
  material didático apropriado, já que o    carnaval, presentes em suas
  Brasil tem em sua história o              experiências culturais, fortificadas
  escravismo dos negros e uma               pelas vivências em grupo e por uma
  discriminação racial construída desde     solidariedade étnico-racial.
  os primórdios do descobrimento do              A partir de projetos como o
  país. Baseando-se na experiência do       Quizomba da Cidadania, podemos
  projeto de extensão Quizomba da           avaliar as verdadeiras dificuldades que
  Cidadania5 , desenvolvido junto às        as escolas da rede formal de ensino
  comunidades carnavalescas de Novo         enfrentam para a implementação da
  Hamburgo/RS e do qual a Feevale é         lei 10.639 e, ao mesmo tempo, avaliar a
  uma das entidades integrantes,            ação conjunta de diversas entidades
  buscamos       analisar    como      os   sociais: comunidades carnavalescas,
  profissionais e acadêmicos se integram    universidade, movimento social,
  na construção de uma proposta             organizações governamentais e não-
  pedagógica extracurricular, isto é,       governamen-tais. No caso da
  trabalhando com crianças de idades e      universidade, procuramos verificar
  níveis de aprendizagem diferentes fora    como o curso de História organiza-se
  do ambiente escolar, e como vem sendo     para a atender a demanda de formação
  implementado o proposto na Lei            de acadêmicos nessa temática
  10.639 junto às comunidades               específica.
  carnavalescas. O processo de ensino-           No ano de 2007, a Feevale, por
  aprendizagem de história da África e      meio do projeto de extensão Banda
  cultura afro-brasileira, desenvolvido     Mirim 6 , integrou-se ao projeto

                                                                                15
Quizomba da Cidadania, que teve sua            No projeto Banda Mirim /
primeira edição de março a setembro       Quizomba da Cidadania, as
de 2007. Entre as oficinas que foram      acadêmicas do curso de História
desenvolvidas nas comunidades             participaram como oficineiras oficiais
carnavalescas música, dança, arte e       ou voluntárias, envolvendo-se não
criação contou-se com a oficina de        apenas na oficina de História,
História, Memória e Cidadania, na         Memória e Cidadania 8 , mas
qual a Feevale, por meio do programa      acompanhando as demais atividades,
NIGERIA, teve uma participação            inclusive as de monitoramento e
direta na formulação e execução.          avaliação do projeto. As oficinas foram
Nessas      oficinas    participaram      desenvolvidas nas dependências das
acadêmicas do curso de História da        escolas de samba de Novo Hamburgo.
Feevale.                                  No caso da Sociedade Cruzeiro do Sul,
        Nesta reflexão, pretendemos       onde focaremos nesse relato, a
resgatar essa experiência, tendo como     responsabilidade pelo contato com as
foco especialmente a Sociedade            crianças e suas famílias cabia a um
Esportiva Cultural e Beneficente          membro da própria comunidade, a
Cruzeiro do Sul7, localizada no bairro    senhora Carmen Regina da Silva, que
Primavera, em Novo Hamburgo.              atuou diretamente na oficina
Privilegiamos,      num       primeiro    intitulada Integração da Comunidade.
momento, o relato dessa experiência e,    As oficinas ocorriam todos os sábados
a seguir, apontamos questionamentos,      pela manhã, e participavam cerca de
dúvidas, a fim de oferecer novos          30 crianças e adolescentes com idades
subsídios para pensar a relação ensino,   entre 5 e 17 anos, quase todas
extensão e pesquisa, tão aclamada em      residentes no entorno da Sociedade e
nosso meio universitário, mas ainda       quase todas negras. Cada oficina tinha
limitada por nossas práticas cotidianas   a duração de 60 minutos, com
que teimam em perpetuar a                 intervalo para o lanche. Os demais
fragmentação, a compartimentação da       oficineiros desenvolviam trabalhos de
produção       e   socialização      do   artes, dança e percussão. Nestas
conhecimento.                             oficinas tinha-se o apoio pedagógico
                                          dos professores da Feevale Norberto
Transitando entre o ensino, a             Kuhn Junior e Margarete Fagundes
pesquisa e a extensão no projeto          Nunes, além de várias palestras de
Banda Mirim/Quizomba da                   formação em conjunto com as
Cidadania                                 entidades integrantes do projeto,

16
especialmente a partir da atuação do      eram ministradas para crianças e
Comitê Pró-Ações Afirmativas de           adolescentes no mesmo local,
Novo Hamburgo, o COPAA.                   tínhamos que fazer um trabalho de
     O problema de pesquisa               maneira descontraída, mas sem
construído a partir dessa experiência     descuidar das informações a serem
foi o de questionar como está a           passadas. Para reforçar a idéia de
aplicação da lei 10.639/2003 no espaço    identidade, foi construído um jornal a
formal de ensino e como ela pode ser      partir de fotos e outros materiais que
desenvolvida em um espaço informal,       as crianças trouxeram de suas casas,
por exemplo, em uma escola de samba,      no intuito de valorizar a sua história
por intermédio de projetos de cunho       pessoal, que também faz parte da
comunitário. Através da observação-       história do bairro, da escola de samba,
participante identificamos que ainda é    da cidade.
restrito o contato de crianças e               Para os objetivos específicos do
adolescentes, matriculados em escolas     projeto, o foco era o desenvolvimento
de ensino público, com a lei 10.639,      da auto-estima do afro-descendente,
pois nos currículos escolares,            como essa criança, esse adolescente se
normalmente, a história da África é       vê como cidadão de Novo Hamburgo,
abordada somente quando se estuda o       uma cidade que reforça um mito de
período colonial do Brasil, com ênfase    origem, o da colonização alemã:
no regime de mão-de-obra escrava.         “como eu, negro, me vejo enquanto
Depois desse momento, a questão           sujeito social e atuante dentro da
passa despercebida; inclusive, quando     história da minha cidade, do meu
é estudada a história do Egito, esta é    país”. Muitas        das crianças e
apresentada em um formato que nos         adolescentes não conhecem a Lei
deixa a sensação que o Egito não é no     10.639 ou a história do povo africano,
continente africano. Quando, na           mas sabem como é a discriminação e
oficina, perguntamos às crianças onde     os efeitos que ela pode causar em uma
ficava o Egito, elas não sabiam que era   sociedade como a brasileira, que ainda
na África e tampouco sabiam que a         supervaloriza os costumes e as
África é um continente com vários         culturas européias e subestima as
países e povos diferentes. Então, para    culturas africanas e ameríndias. Essa
desenvolvermos a proposta do projeto      sabedoria que os jovens têm não é um
por meio de oficinas, para não haver o    saber teórico, é um saber vivenciado
mesmo formato engessado da escola         dia a dia na própria pele, com eles
formal, mesmo porque as oficinas          próprios, com os familiares ou amigos.

                                                                              17
A partir da história da família, que é   pudessem entender. Foram usadas
normalmente numerosa, cujos pais         também músicas, representação
têm baixo nível de escolarização – o     através de desenhos, mapas, jogos,
que lhes proporciona, na maioria das     passeios, proporcionando-lhes uma
vezes, empregos de baixos salários,      visão mais ampla da realidade do povo
isso quando não ocorre o desemprego      negro no Brasil e no mundo.
ou, ainda, pessoas próximas estão             Como resultados concretos,
cumprindo pena em regime prisional       mesmo em um curto espaço de tempo,
por algum tipo de crime ou delito –      para além do aprendizado da história,
podemos constatar que essa criança       ressaltamos o aumento da auto-
ou adolescente, muitas vezes, não        estima      dessas      crianças      e
aceita sua cor, porque vê nela um        adolescentes. Tinham “gosto” em
obstáculo para a realização de seus      fazer penteados em seus cabelos
sonhos, de hoje e do futuro.             cacheados, sendo a estética corporal
    Na oficina de História, Memória e    um elemento importante e que deve
Cidadania, o foco era a história da      ser destacado. Quando participavam
África e da cultura afro-brasileira.     das apresentações de percussão –
Procuramos         demonstrar        a   mesmo os que mal podiam com o peso
importância do trabalho do povo          do instrumento –, percebíamos que
africano nas Américas e no Brasil,       era o momento de glória de cada um,
como era a cultura do africano na        momento em que esqueciam das suas
África, como era a sua forma de vida,    dificuldades cotidianas. Nas oficinas
mostrar que o africano tinha suas        procurávamos enfatizar que vivemos
estruturas socioeconômicas muito         em um país marcado pela
bem articuladas e que, quando chegou     diversidade e que, assim como os
ao Brasil, mesmo em cativeiro,           povos europeus, os povos africanos
organizava-se em rebeliões, e que        tiveram muita importância na
muitas tiveram sucesso. Tentamos,        construção do nosso país e em outras
também, abordar a realidade do           partes do mundo.
continente africano hoje, da mesma            No que diz respeito ao curso de
forma, pontuando questões atuais         História da Feevale e às possibilidades
sobre os descendentes de africanos no    de experiência em         projetos de
Brasil.                                  extensão       como       o     Banda
    Os temas foram abordados             Mirim/Quizomba da Cidadania,
através de filmes apropriados para as    conclui-se que a questão é de extrema
idades, de maneira que todos             relevância, pois é a partir deste olhar

18
vivenciado na prática que o               universidades vêm buscando sanar
profissional vai poder fazer um elo com   lacunas dessa formação, tanto pela
os conhecimentos teóricos trabalhados     atuação direta no interior dos seus
dentro do ambiente acadêmico. A           próprios cursos de licenciatura em
experiência da extensão propicia aos      História como buscando atender uma
acadêmicos o entendimento do quão         demanda da rede pública de ensino que
longe estão da realidade que é            necessita de uma capacitação
mostrada nos livros e de que é possível   permanente de seus professores, seja
vivenciar outros aprendizados fora        através do fornecimento de materiais
dos espaços tradicionais de ensino.       didático-pedagógicos, ou cursos de
    Ao final desta etapa do projeto,      formação, fóruns de reflexão e
podemos verificar que a lei 10.639 vem    intercâmbios, entre outras atividades.
sendo aplicada ainda de modo muito            O Centro Universitário Feevale,
parcimonioso, mas que o material          por meio do Programa de Extensão
didático já está bastante adequado,       NIGERIA, desde o ano de 2003 vem
tanto nos livros enviados pelo MEC        realizando diversas ações nesse
como na literatura infanto juvenil e em   sentido. Para isso, tem buscado
material bibliográfico para a área de     parcerias e desenvolvido ações com
pesquisa e estudos mais avançados         outras entidades, destacando-se a
sobre este assunto. O Projeto             interlocução direta com o movimento
Quizomba da Cidadania mostrou que         negro local, o Comitê Pró-Ações
no espaço da escola de samba também       Afirmativas de Novo Hamburgo. Dessa
se pode desenvolver o estudo da           primeira parceria surgiram outras,
cultura afro-brasileira, bem como o       ampliando-se as possibilidades de
estudo da História da África,             diálogo e de constituição de projetos de
envolvendo a comunidade do entorno        maior impacto social.
que participa das atividades sociais da       Aqui, interessa-nos, sobretudo,
escola, fato que fortalece, ainda mais,   pontuar algumas questões tendo como
as ações do projeto.                      parâmetro nossa atuação num projeto
    A Extensão universitária              de caráter interinstitucional, o
como canal de interlocução para           Quizomba da Cidadania, ao qual nos
a efetivação da Lei 10.639/2003           somamos em virtude de um projeto de
    Um dos grandes entraves para a        extensão que vínhamos desenvolvendo
implementação efetiva da Lei              junto a essas comunidades, desde
10.639/2003 e seus desdobramentos diz     2003, o projeto Banda Mirim.
respeito à formação de professores. As    Deixaremos para um próximo

                                                                               19
momento a reflexão sobre outras             risco que corremos de 'essencializar' a
interlocuções estabelecidas por causa       chamada cultura afro? O que estamos
da Lei 10.639/2003, que diz respeito a      aprendendo com essas comunidades?”.
algumas ações junto às redes públicas       Caminhamos, assim, em direção a um
de ensino municipais e estadual.            movimento, assinalado por José Jorge
     O Quizomba da Cidadania                de Carvalho (2005, p. 140), que é o de
destacou-se não só por proporcionar o       “construir parâmetros para a
aprendizado da História da África e da      legitimação de novos saberes”, isto é,
Cultura Afro-Brasileira em espaços          abandonando uma visão etnocêntrica
informais, isto é, fora do espaço de sala   e eurocêntrica dominante nas nossas
de aula formal, mas porque os espaços       universidades e abrindo os espaços
eleitos para essa formação têm uma          institucionais para a edificação de
importância fundamental para a              novos saberes, que brotam da
identidade dos homens e mulheres            interlocucação com as próprias
negros da cidade de Novo Hamburgo,          comunidades, por intermédio do
que são os espaços das escolas de           diálogo com muitos daqueles que, até
samba, tradicionalmente reconhecidos        então, estiveram excluídos da
como espaços fundamentais para a            produção de um saber acadêmico e
sociabilidade desses sujeitos negros, da    que, na condição de objetos da
cidade e da região.                         produção desse conhecimento,
      No entanto, esse espaço de            almejam, sim, a condição de sujeitos.
aprendizado informal não está                    Sendo assim, a extensão torna-se
descolado daquilo que propõe a Lei          um canal privilegiado, por permitir
10.639, na medida em que os                 que acadêmicos, professores e
acadêmicos do curso de História da          instituição     experimentem        um
Feevale, que já atuam ou atuarão num        estranhamento acerca dos seus saberes
futuro próximo nas escolas regulares,       e das suas práticas. No caso da Lei
trazem para dentro da sala de aula a        10.639, é crucial este movimento de
reflexão sobre a sua vivência, as           abertura das instituições de ensino,
relações intersubjetivas que se             porque, infelizmente, não temos no
estabelecem nesses espaços, as              ensino formal a tradição de uma
indagações sobre o conteúdo daquilo         valorização do ensino da África e da
que será objeto da reflexão: “Que           cultura afro-brasileira. Para realizar
África é essa? Existe a África ou           com êxito essa tarefa, precisamos
existem Áfricas? O que é isso que           dialogar constamente com outros
chamamos de 'afro-brasileiro?' Qual o       sujeitos e outros grupos, estabelecendo

20
parcerias,       redes,       ouvindo          ensino escolar. In: NUNES, Margarete F  .
especialmente as organizações do               (org). Diversidade e Políticas
próprio movimento negro. Não                   Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo
                                               Hamburgo: Feevale, 2005.
podemos esquecer que nesse país,
                                               LIMA, Ivan Costa. A pedagogia interétnica
historicamente, a militância negra
                                               em Salvador: uma proposta pedagógica de
atuou em projetos educativos,                  combate ao racismo. In: NUNES,
construindo suas próprias propostas            Margarete F. (org). Diversidade e
pedagógicas, desafiando o ensino               Políticas Afirmativas: diálogos e
formal exatamente porque sabia dos             intercursos. Novo Hamburgo: Feevale,
entraves estruturais deste, que, por           2005.
muito tempo, serviram para perpetuar           MAGALHÃES, Magna Lima. Negras
o racismo e impossibilitar a expressão         memórias: a trajetória da Sociedade
da diversidade étnico-racial da                Cruzeiro do Sul. In: NUNES, Margarete F .
                                               (org). Diversidade e Políticas
sociedade brasileira.9
                                               Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo
        Pode-se dizer que a extensão
                                               Hamburgo: Feevale, 2005.
universitária é também uma
passagem, uma ponte, um elo, ligando           Notas
aqueles saberes técnicos, teórico-             1 Este trabalho foi apresentado na Feira de
metodológicos que alicerçam uma                  Iniciação Científica e Salão de Extensão do
identidade profissional com outros               Centro Universitário Feevale, em outubro
                                                 de 2007, pela acadêmica Luciana Marques
saberes e outras vivências que
                                                 Pereira, sob a orientação da professora
fortalecem uma identidade cidadã,                Margarete Fagundes Nunes.
contribuindo, sensivelmente, para a            2 Graduanda do curso de Licenciatura em
formação de um ser humano integral,              História no Centro Universitário Feevale
comprometido com as questões sociais             lucianamp@feevale.br.
                                               3 Professora do Centro Universitário
e com a construção de uma vida                   Feevale, Mestra em Antropologia Social
melhor e mais justa, para todos.                 pela Universidade Federal de Santa
                                                 Catarina marga.nunes@feevale.br
Referências Bibliográficas                     4 Para maiores informações sobre a Lei, ver
CARVALHO, José Jorge de. Inclusão                trabalho de Chagas Neto (2005).
                                               5 O projeto Quizomba da Cidadania foi
étnica e racial no Brasil: a questão das
                                                 gestado pela Horta Comunitária, em 2007,
cotas no ensino superior. São Paulo: Attar
                                                 e contou com as seguintes entidades:
Editorial, 2005.
                                                 Feevale, Comitê Pró-Ações Afirmativas de
CHAGAS NETO, João E. A construção                Novo Hamburgo COPAA, Sociedade
identitária do afro-brasileiro e a Lei           Cruzeiro do Sul, Escola de Samba Os
10.639/2003: desafios e possibilidades de        Marujos, Império da São Jorge e
inclusão a partir do espaço institucional do     Protegidos, todas de Novo Hamburgo,
                                                 Movimento de Consciência Negra
                                                                                          21
Entre a malandragem e a sobrevivência:
 breves considerações sobre os “capoeiras”
 Anna Luiza de Moura Saldanha*


    Este artigo pretende apresentar,      capoeira, muito embora já fosse objeto
de uma forma sucinta, uma revisão         de censura, não figurou como delito
bibliográfica do tema “capoeira” e        específico no Código Criminal do
analisar de que forma os capoeiras se     Império de 1830.
inseriam na sociedade em que viviam,          Nesse período, a sociedade
como era essa sociedade e quais seus      brasileira passava por profundas
objetivos quando praticavam a dança-      mudanças estruturais. Uma das
luta. Nota-se que há uma vasta            principais mudanças ocorreu nas
historiografia sobre a capoeira carioca   migrações internas e externas e no
e baiana, por terem sido as cidades de    adensamento de populações nas
Salvador e Rio de Janeiro os maiores      grandes cidades. Tal adensamento
focos da capoeira, porém, é difícil       desorganizou a cidade, que não estava
encontrar alguma obra acadêmica que       preparada em sua infra-estrutura
tenha aprofundado esse estudo. Há         para receber um grande contingente
análises feitas sobre a capoeira e os     populacional, e, assim, “as cidades
capoeiras dentro de temas mais            cresceram na multiplicação da
amplos, como escravidão urbana ou         pobreza, das precárias condições de
resistência, como veremos mais            vida, e principalmente na diversidade
adiante.                                  de tipos étnicos e sociais que
    O período analisado tem como          compunham as chamadas camadas
marcos temporais: 1850 Promulgação        populares”1.
da Lei Eusébio de Queiroz, quando há          O aumento da população urbana
o fim do tráfico de escravos e o começo   provocou a formação de várias
da trajetória definitiva de declínio do   organizações sociais entre a população
próprio sistema escravista, e 1890,       de baixa renda, comunidades que
quando há a proibição oficial da          viviam no mundo subterrâneo da
capoeira no Brasil, através do novo       cidade longe dos olhos do Império,
Código Penal da República,                integrando-se      em     redes     de
transformando a capoeira de delito ou     solidariedade, onde escravos e ex-
contravenção em crime. A prática da       escravos,     livres    ou    libertos

22
recompunham            noções       de      capoeira, os trabalhos acadêmicos e
pertencimento que haviam se                 não-acadêmicos, para, logo após,
desintegrado nas senzalas. Entre            entrar no tema de fato.
estas organizações estavam as maltas            O grande pilar bibliográfico deste
de capoeira cariocas, que, num misto        trabalho é, sem dúvida, a obra do
de identidade, pertencimento,               professor Carlos Eugênio Líbano
resistência e sobrevivência, marcavam       Soares, que se divide em dois livros
fortemente o cenário urbano, sendo          onde o tema “capoeira” é estudado em
parte integrante da “cultura popular”       sua profundidade e especificidade: A
de rua de então. Para conceituar a          negregada instituição os capoeiras na
'cultura popular' feita por esses           Corte Imperial, 1850-1890, e “A
indivíduos, nada melhor que esta            capoeira escrava e outras tradições
passagem encontrada na introdução           rebeldes no Rio de Janeiro (1808-
de Os Cativos e os Homens de Bem, do        1850). Nestas pesquisas, Líbano
professor Paulo Moreira:                    utiliza a vasta documentação
                                            referente à capoeira carioca, por ter
  Os costumes desses agentes noção          sido ela o grande temor da elite
  que, segundo Thompson, aproxima-se        conservadora da época imperial.
  da de Cultura devem ser analisados            O primeiro livro trata, entre
  dentro de contextos históricos
                                            muitos aspectos, da capoeira com suas
  específicos, para que se possa entender
                                            maltas e sua geografia específica,
  a sua “racionalidade” (legitimidades,
  expectativas). Dentro de um jogo de
                                            transcendendo o conceito de capoeira
  relações sociais, numa arena de           como luta negra de resistência para
  exploração         e       resistência,   dar espaço à ampla rede de relações
  enfrentamentos e negociações, de          sociais presente nos interstícios da
  elaboração e reelaboração de aliados, é   cidade do Rio de Janeiro. O autor
  que se pode entender o significado        também analisa a participação dos
  dessas práticas sociais para os           capoeiras na vida político-eleitoral,
  diferentes grupos envolvidos.2
                                            além da troca cultural intensa entra os
                                            diferentes grupos étnicos que
   Para uma melhor compreensão do
                                            participavam das maltas. O segundo
tema a ser trabalhado, houve a
                                            livro analisa o período imediatamente
necessidade de apresentar uma
                                            anterior. Nesta obra, Líbano dá ênfase
revisão historiográfica sobre a
                                            às origens da capoeira, sua etimologia,

                                                                                23
às origens étnicas de seus praticantes       suas qualidades de defesa e ginástica.
e à participação dos capoeiras na corte      Diversos literatos passaram a ter a
de D. João, seja na Marinha ou nos           capoeira entre seus personagens.
movimentos políticos de rua.                 Aluísio de Azevedo 5 , Machado de
    É a partir de Líbano que se tem          Assis6, Manuel Antonio de Almeida7
uma análise historiográfica inicial          são alguns dos autores que tinham por
sobre a capoeira. Segundo ele,               missão tirar a capoeira da
podemos dividir a historiografia em          marginalidade.
três blocos: os cronistas, os folcloristas      O segundo bloco, o dos folcloristas,
e os acadêmicos ou a nova                    fugiu da tentativa do resgate pela
historiografia, nas palavras do autor.       “ginástica” para entrar no das
    O primeiro bloco dos cronistas é         “manifestações        negras”       ou
dividido entre aqueles denunciavam a         “populares”. O primeiro desses
capoeira e os que buscavam um                autores é Manuel Querino, que deu
“resgate” cultural, sobretudo após           ênfase à capoeira baiana, em vez da
1890, data da proibição da prática.          carioca. Segundo Líbano, é a partir de
Plácido de Abreu é pioneiro entre os         Querino que o mito da capoeira baiana
cronistas com sua obra de 1886,              tomou o país.
denominada Os capoeiras. “Esse
breve trabalho guarda recordações de            O fato de as cidades nordestinas como
uma capoeira temida como arma de                Recife e Salvador não terem sofrido
                                                um processo de perseguição policial,
rua do negro e do pobre urbano” 3 ,
                                                como aconteceu no Rio, transformou
tendo a vertente da denúncia como
                                                esses centros urbanos em santuários
norte do livro.                                 da capoeiragem antiga. Sua
    Alexandre Melo Moraes Filho 4               hegemonia no século que se abria tem
também foi pioneiro em sua obra, pois           nisso uma das explicações.8
foi o primeiro que trouxe a idéia de
“luta nacional” ou “ginástica                   Além de Querino, Edison Carneiro9
nacional” à capoeira. A partir de Mello      e Luis da Câmara Cascudo10 tratam da
Moraes é que a temática passou a vir         capoeira como folclore nacional, visão
com tom de resgate, o que iria ser           que iria tomar conta dos livros após
seguido pela maioria dos literatos e         1930, quando da descriminalização da
acadêmicos. Os escritos sobre a              capoeira e da valorização da cultura
capoeira transformara-se e realçara          negra como genuinamente brasileira.
24
Dentro da linha do folclore podem-     Renato Vieira16 e Letícia Vidor Reis17
se inserir os livros escritos pelos       seguem essa linha para defender o seu
próprios mestres de capoeira.             mestrado, sendo que o primeiro a
Destacam-se a obra de Vicente             analisa na década de 1930, e a
Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha,     segunda, a partir de 1960.
intitulada Capoeira Angola11, e a do          Esta sucinta análise bibliográfica
Mestre Noronha 12 , resgatada por         torna um pouco mais fácil enxergar a
Daniel Coutinho, por serem estas          capoeira em seus espaços temporal e
fontes primárias para o estudo da luta.   físico, ao mesmo tempo em que mostra
   A partir do centenário da Abolição,    o quanto esse campo de estudo ainda
as ciências humanas vão dar maior         não foi explorado.
destaque aos estudos afro-brasileiros e
à capoeira. Entramos, com isso, no        As “maltas” e o cenário social dos
terceiro bloco da historiografia.         capoeiras
Geralmente, a temática da capoeira           Na segunda metade do séc. XIX, a
vem acoplado com temas mais amplos,       capoeira já era uma presença
como o da resistência ou da escravidão    marcante entre a população
urbana. Este último é ocaso, de duas      trabalhadora urbana, que reunia
das principais obras sobre a escravidão   escravos e livres, brasileiros e
no Rio de Janeiro: a tese de Mary         imigrantes, jovens e adultos, negros e
Karasch, A vida dos escravos no Rio de    brancos. Sua tradição rebelde, desde a
Janeiro 1808-1850,13 traz um estudo       chegada da Família Real Portuguesa
cheio de informações sobre a capoeira     ao Brasil em 1808, já se tornara uma
carioca, desde sua origem até o seu       dor de cabeça para a elite imperial e
caráter lúdico, passando pela análise     seus órgãos de repressão. O declínio da
das imagens de Rugendas e pela            agricultura e a expansão da cidade
documentação policial. A outra obra é     geraram o aumento da circulação de
a de Thomas Holloway sobre a polícia      escravos, tornando-se isso um
no Rio de Janeiro 14 . Ele analisa os     “problema inevitável”18 com o qual as
processos criminais, onde “teria que      autoridades passaram a se preocupar.
inevitavelmente esbarrar com a            O temor social que essa camada da
sombra dos capoeiras”15. Outras teses     população causava nas classes média e
referem-se ao embate dos dois estilos     alta era maximizado, neste momento,
de capoeira: Angola e Regional. Luis      pela união dessa população com as

                                                                              25
outras camadas pobres, promovendo a              ativamente das lutas políticas dentro
troca social e cultural entre elas. A            dos grupos dominantes, como
figura típica do capoeira iria se tornar         capangas de senhores da Corte, e
                                                 mesmo incorporava termos e trejeitos
símbolo deste momento.
                                                 do vocabulário pedante dos juízes e
    Dentro da cidade, a capoeira
                                                 doutores da política da época.19
perdeu seu conceito inicial e vago de
resistência ao trabalho escravo para              A capoeira ganhou grande
ampliar seu raio de ação. Os capoeiras         importância política quando seus
agora eram forjadores de uma nova              praticantes, individualmente ou nas
identidade popular, estabeleciam seus          “maltas”, inserira-se nos conflitos
territórios, marcados por laços de             político-partidários da Corte, na
parentesco ou de expressões culturais.         segunda metade do século XIX.
As maltas eram a unidade da atuação            Atuando individualmente como
dos praticantes da luta. Elas ficaram          capangas políticos, os capoeiras
famosas pela destreza e a                      andavam em uma linha tênue entre a
malandragem de seus integrantes,               resistência e a sobrevivência; atuando
que conheciam os quatro cantos da              nas “maltas”, eram vistos como
cidade, fazendo arruaças e motins. A           “exército das ruas”, oferecendo terror
formação das maltas no Rio de Janeiro          ao partido político rival e à classe
contava com escravos e homens livres,          média moradora da cidade
e pode ser interpretada como um
                                                 Em um artigo sobre o tema, Assis
chamariz dos segmentos sociais
                                                 Cintra distingue entre os capoeiras
excluídos por uma noção de
                                                 profissionais e os amadores. Os
pertencimento;       nelas      podiam           profissionais são definidos como
recompor desde o sentido de família              capangas políticos, que viviam às
até sua participação dentro da política          custas dos cabos eleitorais ou como
da época.                                        desordeiros e ladrões, que atacavam os
   A forte presença deles nos conflitos          transeuntes. Os amadores eram
urbanos fez com que tivessem uma                 meninos bonitos avalentoados, filhos
estranha relação com o poder.                    de gente rica e importante, ou mesmo
                                                 rapazes de boa família, que praticavam
     Na realidade, ao mesmo tempo em que         e aprendiam a capoeiragem por
     enfrentava o aparato policial e a ordem     simples esporte [...] É certo, porém,
     escravista, a capoeira participava          que os capoeiras profissionais alvo


26
principal da repressão formaram        com que os capoeiras ressurgissem
   desde sua origem verdadeiras           intensamente, provocando pânico às
   organizações de escravos e libertos,   donas-de-casa e entusiasmo à classe
   com uma dupla face a um tempo
                                          política dominante. A partir desse
   ameaçadora e instrumental para a
                                          momento, a malta “Flor da Gente”
   elite branca do Rio de Janeiro.20
                                          iria se tornar o símbolo da violência
   As maltas mais famosas por esse        política conservadora.
tipo de prática foram os Nagoas e os          Os capoeiras que retornaram da
Guaiamuns. Segundo Líbano, as duas        Guerra do Paraguai lutavam mais
maltas agregaram, nos últimos 15          ferozmente pelos direitos adquiridos
anos do século XIX, as antigas maltas,    na Guerra e por maior participação
que dividiam em muitas partes a           política, fato que perdurou até 1890
geografia do Rio de Janeiro. Os           em várias nuances, ora conservadora,
cronistas da época relatavam que uma      ora liberal, ora republicana, ora
era ligada ao Partido Conservador e a     monarquista, ora autônoma. Digo
outra      ao     Partido     Liberal.    autônoma porque a guerra criou uma
Apadrinhados pelos políticos, os          consciência inconformista nos
capoeiras gozavam a impunidade de         soldados negros, impondo-lhes novo
seus delitos. Porém, quando liberais e    status na ordem social. Eles formaram
conservadores se uniam, as maltas         então, o Partido Capoeira, durante a
sofria uma repressão cada vez mais        conjuntura política de 1880, não sendo
forte e constante.                        uma instituição oficial, mas uma
   O fim da Guerra do Paraguai em         forma de fazer política nas ruas, ligada
1870 trouxe maior mobilidade para os      a uma forma de identidade, livre de
capoeiras.       O     recrutamento       qualquer padrinho e construtora de
“obrigatório” dos Voluntários da          relações com a política dominante.
Pátria e as promessas de liberdade aos        Envolveram-se também com a
escravos-soldados fizeram com que         campanha abolicionista e a Guarda
muitos capoeiras fossem sentar praça.     Negra, que tinha por função proteger
O retorno prestigioso dos “heróis” da     a Princesa Isabel e impedir a
guerra fez com que eles retomassem o      propaganda republicana. Esta foi
poder das ruas. A elite monárquica        outra linha de conflito em que os
agora apoiava tais “heróis”, o que fez    capoeiras eram agentes sociais ativos,
                                          demonstrando sua politização perante
                                                                               27
o cenário político do Rio de Janeiro e   malandragem e a sobrevivência nas
da sociedade brasileira.                 ruas, esses agentes iam forjando sua
   Após o Golpe Militar de 1889, o       inclusão e sua participação social.
regime republicano, baseado no              A historiografia tradicional mostra
militarismo e no autoritarismo,          a capangagem e os conflitos político-
fechou o cerco aos capoeiras. Através    partidários nos quais os capoeiras
do Código Penal, citado acima, o chefe   estavam envolvidos, como estes
de polícia Sampaio Ferraz, que antes     seriam manipulados para fins
de ser nomeado caçou capoeiras como      eleitoreiros em troca de benefícios
promotor público, tinha carta branca     individuais. Ao analisar a participação
de Deodoro da Fonseca para acabar de     dos capoeiras na vida política da
vez com a capoeiragem carioca,           cidade, percebe-se que eles exerciam
isolando seus integrantes de seus        seu papel como uma opção política,
clientes e deportando-os para            dentro de suas peculiaridades
Fernando de Noronha.                     culturais e de uma ânsia de
                                         participação nas decisões eleitorais.
Considerações finais                        Após a Guerra do Paraguai, temos
   Podemos notar, ao longo do texto, o   essa visão mais clara. Os soldados
panorama social no qual os capoeiras     voltam mais conscientes de seu poder
estavam inseridos, ou melhor,            de decisão e colocam em prática essa
inseriam-se. Profundas mudanças          visão na política das ruas: a formação
estruturais aconteciam na sociedade      do Partido Capoeira demonstra que
brasileira da segunda metade do          eles estavam dispostos a jogar em
século     XIX;     era   época    de    igualdade de poder com a elite
questionamentos e lutas sangrentas       dirigente. Mesmo a participação dos
pelo poder.                              capoeiras nos partidos das elites e na
   A capoeira, com suas maltas,          Guarda Negra demonstra o
inseria-se nesse contexto como centro    pensamento político desse segmento.
agregador e construtor de laços de       Paulo Moreira conceitua o “projeto
solidariedade      entre    os   seus    dos escravos” como ações com algum
praticantes e laços políticos com a      objetivo predeterminado, que foi
classe dirigente do país. Em             elaborado em função das experiências
permanente conflito entre a              socioculturais em que estavam
                                         imersos,     sendo      sua    eficácia

28
de Janeiro. Revista do Brasil nº 4: Prefeitura
dependente de um jogo permanente de
                                                   Municipal do Rio de Janeiro, 1985.
mudanças de estratégia.21                          FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. 6. ed.
    Não podemos atribuir somente aos               Petrópolis: Vozes, 1988.
                                                   HOLLOWAY, Thomas. Policia no Rio de
capoeiras cariocas deste período                   Janeiro:repressão e resistência numa cidade do
analisado tal especificidade de luta e             século XIX. Rio de Janeiro: FGV 1997.
                                                                                   ,
                                                   KARASCH, MARY. A vida dos escravos no Rio
de relação com o poder. A capoeira em              de Janeiro – 1808/1850. São Paulo: Cia das
qualquer momento é filha de seu                    Letras, 2000.
                                                   LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A
tempo e sempre fez parte do cotidiano
                                                   negregada instituição:os capoeiras no Rio de
tanto das camadas populares como dos               Janeiro. Rio de Janeiro: SMC, Departamento
dirigentes da política. Tal o foi dentro           Geral de Documentação e Informação Cultural,
                                                   1994.
das senzalas, foi na cidade, como                  LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A capoeira
analisamos, e foi em 1930/40 período               escrava e outras tradições rebeldes no Rio de
                                                   Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas:
não analisado neste artigo, época em               Unicamp, 2002.
que a capoeira foi liberada pelo então             MOREIRA, Paulo Roberto S. Os cativos e os
                                                   homens de bem experiências negras no espaço
presidente Getúlio Vargas em seu
                                                   urbano. Porto Alegre: EST, 2003.
projeto nacionalista, e o é hoje, quando           MOREIRA, Paulo Roberto S. entre o deboche e a
se insere dentro do sistema de                     rapina: os cenários sociais da criminalidade
                                                   popular em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS,
mercado, quando o praticante se                    1993. Dissertação de mestrado.
profissionaliza e vende as aulas de                WISSEMBACH, Maria Cristina. Da escravidão
                                                   à liberdade: dimensões de uma privacidade
capoeira.                                          possível. In: NOVAIS, Fernando. História da
                                                   vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das
                                                   Letras, 1998.
Referências bibliográficas
AREIAS, Almir. O que é capoeira. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1983.                          Notas
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São       * Pós-graduanda em História Africana e Afro-
Paulo: Cia. das Letras, 1987.                        Brasileira pela FAPA – Faculdades Porto-
___________. Construção da Ordem: a elite            Alegrenses.
política imperial; teatro de sombras: a política   1 Wissembach, 1998, p. 91
imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.       2 Moreira, 2003, p. 21, citando Thompson, E. P.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade –              Costumbres em común. Barcelona: Crítica,
uma história das últimas décadas da                  1995, p. 17-22.
escravidão na corte. São Paulo: Cia. das Letras,   3 Líbano Soares, 1994, p.9.
1990.                                              4 Moraes Filho, Alexandre M. Festas e tradições
___________. Cidade febril – cortiços e              populares do Brasil. Rio de Janeiro:
epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia          Technoprint, s.d.
das Letras, 1996.                                  5 Azevedo, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro:
DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e              Technoprint, s.d.
heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.               6 Assis, Machado. Crônicas:1878-1888. Rio de
DIAS Luis Sergio. Capoeira, morte e vida no Rio

                                                                                               29
Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão
 (Elementos de uma Cristologia afro-brasileira
 Marcelo Barros*




     Apesar do rigoroso e prolongado     inserem mais profundamente no
inverno      eclesiástico    e    dos    conjunto da população de matriz
fundamentalismos, expressos em           africana e convivem de forma muito
notificações do Vaticano, como em        mais justa com as crenças e rituais
sínodos confessionais que decidiram      autóctones.
romper com organismos ecumênicos,          Aqui, proponho-me a falar de
vivemos, na América Latina, um           elementos cristológicos latentes nas
momento novo de revalorização das        diversas devoções do Catolicismo
religiões      afro-americanas       e   popular. Também abordarei uma
ameríndias. Para estas, a pessoa de      evolução existente atualmente na
Jesus Cristo era respeitado e temido,    forma como as comunidades do
mas de forma longínqua. O diálogo        Candomblé vêem a Jesus, mas me
com cristãos de cultura afro que         deterei mais na expressão de fé das
tentam aproximar Jesus e sua             comunidades de matriz africana que
experiência de fé da tradição dos seus   pertencem às Igrejas cristãs.
ancestrais afro tem mudado esta
realidade. Tanto as comunidades de       1. Um olhar sobre o Catolicismo
religiões autóctones como os grupos      atual e popular
cristãos de cultura afro começam a         Os colonizadores trouxeram da
reinterpretar a fé, transmitida pelo     Europa        um        Cristianismo
Cristianismo       imposto       pelos   profundamente sincrético, “resultado
colonizadores. Isso muda a forma         de uma síntese entre a experiência
como o Candomblé e a Umbanda             religiosa antiga dos gregos, romanos e
passam a olhar Jesus Cristo, mas         bárbaros com a tradição judeu-
também a expressão de fé das próprias    cristã” 1 . Os antigos Concílios que
comunidades cristãs populares que se     definiram a fé cristológica vigente no

30
Cristianismo, além dos interesses        de “primeira reencarnação”. Nada
políticos do momento, situaram-se        tem a ver com o dogma cristão
dentro deste esforço de expressar a fé   expresso nos Concílios antigos da
para os novos povos que entravam na      Igreja.
Igreja.    Hoje,    uma     primeira        Esta realidade do Cristianismo
constatação necessária é que a fé        popular não é, em si, totalmente
cristã vivida pelas comunidades          diferente mesmo do catolicismo
católicas e evangélicas já não se        oficial. Mesmo o modo como, muitas
expressa exatamente com a mesma          vezes, papas, bispos e pastores se
formulação consagrada nos Concílios      expressam sobre Jesus mistura
antigos.                                 elementos de Nicéia e Calcedônia com
  O Brasil é dos poucos países do        mitos que foram inconscientemente
mundo no qual a doutrina espírita        absorvidos no Cristianismo popular.
continua com muita vitalidade.           Todos os católicos começam as orações
Dentro deste caldeirão de culturas e     dizendo: “em nome do Pai, do Filho e
expressões teológicas, termos como       do Espírito Santo”, e as Igrejas antigas
“Filho de Deus” e “encarnação”           continuam     fazendo     as   orações
denotam significados diversos do que     litúrgicas ao Pai, pelo Filho, na
a tradição eclesial tinha lhes dado.     unidade do Espírito. Entretanto, esta
Filho de Deus, sim. Porém, uma mãe       teologia litúrgica parece pouco
de santo me perguntou: “Por que          absorvida pela prática devocional.
único? O Budismo Tibetano diz que o      Qualquer exame, mesmo rápido e
Dalai Lama é a encarnação do próprio     superficial, nos hinários católicos e
Buda da Compaixão, e não tenho           evangélicos, usados em nossas
dificuldade de crer nisso. Deus tem      dioceses e paróquias, mostrará não
tantas formas de se manifestar. Mas      somente uma espécie de monismo
por que dizer que só Jesus é Filho de    cristológico (um Cristo Deus tomado
Deus?”. Do mesmo modo, quando, nas       em si mesmo, no qual o humano
camadas mais populares, se fala em       entrou apenas como revestimento
“encarnação”, facilmente as pessoas      transitório), mas, o que é pior, uma
compreendem isso como uma espécie        religião cujo Deus é o Cristo, sem


                                                                              31
referência direta e vivencial ao Pai.     expressão de fé que nem chega a ser
     Mesmo orações e hinos oficiais da    esta dos Concílios. É ainda mais
Liturgia contêm expressões duvidosas      mítica, menos humanizada e capaz de
e pouco ortodoxas. Vejam esta prece do    dialogar com outras expressões da fé.
Ofício da Tarde do Sábado Santo na           Por isso, torna-se ainda mais
atual Liturgia das Horas: “Ó Deus do      urgente e essencial o trabalho de
universo, que dominais todos os           reencontrar outras formas de crer e
confins da terra e quisestes ser          falar de Jesus. Mesmo em meio às
encerrado num sepulcro, livrai do         ambigüidades inerentes ao tema,
inferno o gênero humano e dai-lhe a       proponho-me a aprofundar alguns
                         2
glória da imortalidade”.                  elementos cristológicos que me
     Ao orar esta prece, alguém pode      parecem próprios, ou ao menos mais
recordar-se de Moltmann e de sua tese     característicos, de muitas pessoas e
sobre “O Deus Crucificado”, segundo       até de comunidades que vivem a fé
a qual o Pai está na cruz com Jesus.      cristã a partir das culturas afro-
Mas estas preces litúrgicas não são       brasileiras.
dirigidas ao Pai. São todas destinadas
a Jesus.                                  2. Uma espiritualidade popular
     Um conhecimento maior e mais         de aliança
crítico da história bem como o desafio       Muitas vezes, na Teologia e
do pluralismo cultural e religioso nos    Pastoral, o Catolicismo Popular em
fornecem razões teológicas e pastorais    suas diversas formas foi acusado de
para     questionar    as    expressões   superstição e até de certa idolatria.
cristológicas dos Concílios antigos, já   Em tempos de Cruzada por um
diferentes da fé expressa no Novo         Cristocentrismo dogmático, não deixa
Testamento, que, em si, já é diversa da   de ser interessante observar que
forma como o movimento de Jesus           muitos grupos apoiados diretamente
propunha a fé no primeiro momento.        por Roma e pela maioria da hierarquia
Entretanto, a maioria de nossas           eclesiástica centram muito mais sua fé
comunidades religiosas, mesmo as não      na devoção mariana e no culto aos
populares, mantêm sobre Jesus uma         santos do que na fé e culto a Jesus.


32
Nas últimas décadas, percebemos         natureza (o Candomblé chama de
que, ao agir assim, os fiéis do           Orixás e a tradição angolana de
Catolicismo mais popular refazem a        Iquices).
espiritualidade da aliança proposta          A pessoa consagrada a este ou a
pela fé bíblica. Como, na versão da fé    aquele Orixá tem uma relação tão
que receberam, Deus lhes parecia          íntima com ele que o recebe e é por ele
distante   e   separado      da   vida,   transformado/a. O Senhor do Bonfim
aprofundaram      uma      aliança   de   em Salvador ou o Bom Jesus da Lapa
intimidade com as manifestações           ou Jesus de Pirapora são santos como
divinas que lhes pareciam mais            outros quaisquer. Mas, como santos,
próximas. Os santos e santas da           são manifestações do amor divino.
devoção    popular    se    tornaram      Protegem      seus   devotos     e   os
“manifestações de Deus” como na           acompanham em suas vidas.
cultura bíblica se fala da Torá              Desde que, a partir das décadas
(Palavra), da Shekiná (Tenda), da         mais recentes, as religiões afro são
Hokmá (Sabedoria), da Glória e            valorizadas e não precisam mais ser
mesmo do “Anjo do Senhor”.                ocultadas ou disfarçadas, as pessoas
  Este tipo de versão religiosa da fé     têm mais liberdade de adorar os
cristã existe nas mais diversas           Orixás em si mesmos, sem precisar do
camadas do Catolicismo popular, de        sincretismo no qual se dizia que
matriz negra, indígena ou mesmo de        Iemanjá é Nossa Senhora. A partir
tradição européia. De certa forma,        desta liberdade, muitos fiéis dos
está presente em algumas devoções na      Orixás dividiram as águas e deixaram
Europa ou América do Norte.               de ser de Igreja. Mas muitos e muitas
Entretanto, na América Latina, esta       dos que honram os Orixás quiseram
teologia popular decorre das culturas     continuar devotos de Jesus Cristo.
afro e indígenas. Na fé Ioruba e na       Entretanto, este Jesus é recebido e
religião vinda de Angola, como em         acreditado a partir de uma cultura
muitas comunidades indígenas, a           religiosa própria e original. A história
relação de intimidade com Deus se dá      contada nos Evangelhos e a pregação
através das manifestações divinas na      tradicional dos padres e pastores são
                                          ouvidas e até incorporadas. “Jesus é
                                                                               33
filho de Maria Virgem, sofreu por nós,    religião tradicional e a fé cristã.
foi crucificado para nos salvar” são      Espantada com a própria pergunta, a
dados     conhecidos,        mas   são    velha respondeu com palavras e
compreendidos a partir de uma             expressões que, para mim, foram
cosmovisão própria. Neste contexto de     muito surpreendentes. Anotei tudo o
condenações       e     de     debates    que ela disse e tentei traduzir sua
cristológicos, é bom conhecermos          resposta assim: “Não há nenhuma
melhor estas Cristologias populares,      dificuldade de ligar Jesus e Kanambe.
principalmente na relação entre Jesus     Jesus Cristo nos revela Deus presente
e os Orixás.                              na história, nos acontecimentos da
                                          vida e nas pessoas e nos ajuda a
3. Jesus e Kanambe                        descobrir que Kanambe manifesta
     Quando estive no Quênia, em          Deus presente na natureza, na terra e
janeiro de 2007, procurei conhecer        na água. As duas ordens não entram
alguma expressão atual das religiões      em conflito e até se interpenetram.
africanas antigas e ver em que isso me    Jesus é como uma espécie de plenitude
ajudava a compreender melhor as           da fé em Kanambe, mas não na
tradições afro-brasileiras. Fui levado,   medida em que a esvazia ou a substitui
a uns 100 km de Nairóbi, para             por uma espécie de “cultura cristã
conhecer uma aldeia tradicional do        ocidentalizada”, mas, ao contrário,
povo Kamba. Ali conheci uma senhora       valoriza-a e dá a ela densidade
idosa, sacerdotisa da tradição de         histórica”.
Kanambe, a deusa da Água. Depois de          É claro que esta expressão de fé
ter escutado como ela expressa sua fé     daquela cristã africana nunca seria
na religião tradicional, espantei-me      aceita por uma Cristologia para a qual
quando me disseram que ali todos          Jesus é único e, como todos os
eram cristãos, inclusive aquela           colonizadores, substitui o que havia
sacerdotisa que, muitas vezes, nas        antes   dele,   colocando-se      como
missas, é chamada pelo padre para         referência de fé exclusiva. De fato, ela
abençoar o seu povo. Perguntei, então,    me contou a dificuldade que tem em
como ela formulava a relação entre a


34
valorizar a cultura (nem se fala da       deste tempo promessas que exigiam
religião) tradicional do seu povo         sacrifícios e dores, como subir
quando chegam ao local alguns grupos      ladeiras de joelhos, humilhar-se em
neopentecostais      que   exigem     o   público, não comer em certos dias
abandono até das roupas, costumes,        sagrados, não beber nem água e assim
músicas e danças culturais do povo.       por diante.
   O diálogo com aquela sacerdotisa
africana me ajudou a compreender          2. O sincretismo com Orixás
melhor a sabedoria do sincretismo         tradicionais
afro-brasileiro. Ele teve uma evolução       Com o fim da escravidão oficial,
ou processo que podemos resumir em        nenhum pais indenizou os antigos
três fases.                               escravos ou cuidou de como este povo
                                          poderia sobreviver, abandonado à
4. Do Senhor do Bonfim ao Orixá           própria sorte. A partir deste tempo, as
Jesus de Nazaré                           comunidades negras começaram
   O olhar sobre o Cristo vivido pelos    lentamente a poder se reapropriar de
descendentes dos escravos teve uma        seus símbolos e de sua religião própria.
evolução complexa com, ao menos,          Para os que eram cristãos, isso
três etapas ou níveis:                    provocou      certa    evolução      na
                                          Cristologia. Não precisavam mais ver
1 . Tributo ao Senhor do Bonfim           o Senhor do Bonfim ou o Bom Jesus da
   Em tempos idos, devoções a Jesus       Lapa como deuses do feitor branco.
como “Senhor do Bonfim”, Bom              Não deixaram de ser brancos e de
Jesus         da   Lapa    e   outras     representar símbolos sempre ligados
representavam uma espécie de              ao colonizador. Mas, agora, podiam ser
tributo que o negro deveria pagar ao      realmente     reapropriados       pelas
deus branco que não era amigo do          comunidades de cultura afro. Para
escravo ou de seu descendente, mas        limpá-los das roupas escravagistas, os
deveria ser adulado e cortejado para      fiéis negros ou seus descendentes,
não castigá-lo, já que era um deus        inconscientemente, os ligaram a
forte e protegia o senhor branco. São     Oxalá ou Xangô. Houve muitos que


                                                                               35
fizeram isso, não por ignorância ou        passam a ver Jesus Cristo como
porque os confundissem com Orixás,         alguém que viveu em tudo a existência
mas     porque    precisavam       desta   humana e, a partir de sua morte, foi
identificação (como para os latino-        assumido por Deus e se tornou divino.
americanos comprometidos com a             É como um Orixá. É um homem que,
revolução, a própria figura de Che         por ter vivido de forma justa e santa,
Guevara se parece com a de Jesus           foi divinizado, como toda pessoa
Cristo). É a Cristologia do sincretismo    humana é chamada a ser.
de confusão ou de reapropriação.
                                           4. A originalidade de Jesus de
3. O Orixá Jesus de Nazaré                 Nazaré
     Nos anos mais recentes, passamos         Expressar em conceitos a própria
a outro nível da Cristologia afro-         fé é difícil, mas pretender expressar
brasileira. Desde os tempos depois do      como crêem os outros é praticamente
Concilio Vaticano II, muita gente de       impossível, sem o risco de ser injusto e
comunidades afro participa de grupos       redutivo. No caso das culturas afro-
bíblicos e comunidades eclesiais de        brasileiras, isso ainda é mais complexo
base. Nestes ambientes, aprende-se a       por causa da diversidade de expressões
valorizar o Jesus histórico. O contato     e culturas e pelo fato de serem
com os Evangelhos permite um               tradições orais. Seja como for, todas
conhecimento maior de Jesus de             estas formas de viver a fé se formaram
Nazaré em sua historicidade humana.        em diálogo ou até inserção na tradição
Este conhecimento passou para as           cristã popular e com a exigência de se
comunidades e mesmo para elementos         defrontar com a pessoa e a missão de
do culto e da fé comum. Entretanto,        Jesus Cristo.
assim como Xangô, Ogum, Oxalá e               Há de tudo. Pode-se concluir uma
Oxossi foram antepassados, reis ou         Cristologia própria da devoção ao
príncipes dos antigos reinos Ioruba e      “Senhor Morto”, outra Cristologia do
se tornaram Orixás e associados ao         Jesus mítico de narrativas orais que,
fogo, ao ferro, à terra e à mata virgem,   no meio do povo, formam como que
assim também as comunidades negras         novos evangelhos apócrifos cheios de


36
histórias que as pessoas contam sobre     cristológica, quando ocorre, não é para
“quando Jesus e São Pedro andavam         legitimar poderes hierárquicos ou
pelo mundo”. Quase todos os               dominação de pessoas sobre outras
santuários populares nascem de            pessoas (há Cristologias oficiais que
relatos fantásticos ligados a aparições   foram pensadas para isso e disfarçam
de       imagens      ou     milagres     este fato). Por tudo isso, são
extraordinários. A maioria deles          Cristologias a partir de baixo e ligadas
acontece com “Nossa Senhora”, que,        à vida de quem sofre. São cristologias
na América Latina, substitui o culto à    narrativas e fragmentadas que, por
Mãe Terra ou à deusa da fecundidade.      não ser de caráter dogmático (contam
Mas, no Brasil, há alguns a Jesus         histórias, não afirmam dogmas), não
(Bom Jesus de Pirapora, Bom Jesus da      se envergonham de ser incompletas.
Lapa e assim por diante). Todos são a     Ao contrário de quaisquer tendências
um Jesus humano e compassivo              de um Cristocentrismo exclusivista,
(“Bom Jesus”) retratado na sua            Jesus é o Cristo (Ungido de Deus), mas
Paixão como a figura da solidariedade.    não é isolado de todos os seus irmãos e
     Pelo fato de ser expressões de fé    irmãs, nem das forças da natureza que
vividas por uma maioria de pessoas        são sacramentos divinos, nem dos
pobres e sofredoras, a figura de Jesus    personagens que, como Jesus, são
sempre aparece mais como sendo o          para o povo Cristos ou Consagrados.
Cristo sofredor e humilhado. A Cruz       Da caminhada de libertação, estas
recebe      uma      explicação     de    comunidades aprendem a valorizar
solidariedade: “Deu a vida por nós”       que a própria pessoa e a missão de
(entregou-se no lugar dos discípulos      Jesus podem ser resumidas em sua
aos inimigos) mais do que uma             própria palavra: “Eu vim para que
justificativa de caráter sacrifical       todos tenham vida, e vida em
(ofereceu-se ao Pai ou morreu pelos       abundância” (Jo 10,10).
nossos pecados).                               Em 1996, em Bogotá, o 2º
     Estes tipos de expressão de fé vêm   Encontro Continental da Assembléia
de pessoas não ligadas à cultura          do    Povo   de    Deus     propôs    o
ocidental. Sua tentativa de síntese       aprofundamento            de      uma


                                                                               37
Identidade
Identidade
Identidade

Contenu connexe

Tendances

Racismos e olhares plurais
Racismos e olhares pluraisRacismos e olhares plurais
Racismos e olhares pluraisSergiana Helmer
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01marcosfm32
 
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de Angola
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de AngolaAspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de Angola
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de AngolaREVISTANJINGAESEPE
 
Opará Revista vol. 2 julho/2014
Opará Revista vol. 2 julho/2014 Opará Revista vol. 2 julho/2014
Opará Revista vol. 2 julho/2014 Dorisvan Lira
 
Registros sobre mulheres surdas na História
 Registros sobre mulheres surdas na História Registros sobre mulheres surdas na História
Registros sobre mulheres surdas na HistóriaREVISTANJINGAESEPE
 
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...Mateus Lopes
 
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento   O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento André Luis Pereira
 
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...Aparecida De Jesus Ferreira
 
Questão racial
Questão racialQuestão racial
Questão racialMalu Rosan
 
Afinal, existe racismo no Brasil?
Afinal, existe racismo no Brasil?Afinal, existe racismo no Brasil?
Afinal, existe racismo no Brasil?André Santos Luigi
 
Literatura negra infanto juvenil
Literatura negra infanto juvenilLiteratura negra infanto juvenil
Literatura negra infanto juvenilJuciara Brito
 
Mulheres negras na primeira pessoa site
Mulheres negras na primeira pessoa siteMulheres negras na primeira pessoa site
Mulheres negras na primeira pessoa sitenatielemesquita
 
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículos
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículosRelações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículos
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículosLeandro De Moraes Oliveira
 

Tendances (18)

Racismos e olhares plurais
Racismos e olhares pluraisRacismos e olhares plurais
Racismos e olhares plurais
 
Raquel souza
Raquel souzaRaquel souza
Raquel souza
 
História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01História em movimento vol. 01
História em movimento vol. 01
 
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de Angola
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de AngolaAspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de Angola
Aspectos socio-históricos dos povos !kung (khoisan) de Angola
 
Opará Revista vol. 2 julho/2014
Opará Revista vol. 2 julho/2014 Opará Revista vol. 2 julho/2014
Opará Revista vol. 2 julho/2014
 
6705 34668-1-pb
6705 34668-1-pb6705 34668-1-pb
6705 34668-1-pb
 
Registros sobre mulheres surdas na História
 Registros sobre mulheres surdas na História Registros sobre mulheres surdas na História
Registros sobre mulheres surdas na História
 
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...
2013 encontro de história oral ne história de pessoas negras outras identidad...
 
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento   O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento
O pensamento social e político na obra de Abdias do Nascimento
 
Abdias
AbdiasAbdias
Abdias
 
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...
Ferreira, Aparecida de Jesus. Identidades sociais, letramento visual e letram...
 
Questão racial
Questão racialQuestão racial
Questão racial
 
Bicudo
BicudoBicudo
Bicudo
 
Afinal, existe racismo no Brasil?
Afinal, existe racismo no Brasil?Afinal, existe racismo no Brasil?
Afinal, existe racismo no Brasil?
 
Literatura negra infanto juvenil
Literatura negra infanto juvenilLiteratura negra infanto juvenil
Literatura negra infanto juvenil
 
Mulheres negras na primeira pessoa site
Mulheres negras na primeira pessoa siteMulheres negras na primeira pessoa site
Mulheres negras na primeira pessoa site
 
Fase I
Fase IFase I
Fase I
 
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículos
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículosRelações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículos
Relações Étnico-Raciais, educação e descolonização dos currículos
 

Similaire à Identidade

LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfLETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfKarlianaArruda1
 
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdf
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdfPreconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdf
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdfVIEIRA RESENDE
 
Ressignificando a história
Ressignificando a históriaRessignificando a história
Ressignificando a históriaprimeiraopcao
 
2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig
2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig
2011 rachel ruabaptistabakke_v_origThiago Borges
 
Cultura negra e educação
Cultura negra e educaçãoCultura negra e educação
Cultura negra e educaçãoGeraa Ufms
 
Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Fabiana Vallina
 
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e Hoje
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e HojeConceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e Hoje
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e HojeKatia Monteiro
 
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...Geraa Ufms
 
Desigualdades raciais
Desigualdades raciaisDesigualdades raciais
Desigualdades raciaisprimeiraopcao
 
Negritude sem etnicidade artigo
Negritude sem etnicidade artigoNegritude sem etnicidade artigo
Negritude sem etnicidade artigoFrancilis Enes
 

Similaire à Identidade (20)

LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdfLETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
LETRAMENTOS_DE_REEXISTENCIA_PRODUCAO_DE.pdf
 
Florentina Souza
Florentina SouzaFlorentina Souza
Florentina Souza
 
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
Literaturaafrobrasileira 130902150849-phpapp01 (1)
 
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdf
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdfPreconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdf
Preconceito Racial_ Modos, Temas e Tempos - Antonio Sérgio A. Guimarães.pdf
 
Ressignificando a história
Ressignificando a históriaRessignificando a história
Ressignificando a história
 
N21a03
N21a03N21a03
N21a03
 
2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig
2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig
2011 rachel ruabaptistabakke_v_orig
 
Raça. sexualidade e saude
Raça. sexualidade e saudeRaça. sexualidade e saude
Raça. sexualidade e saude
 
Cultura negra e educação
Cultura negra e educaçãoCultura negra e educação
Cultura negra e educação
 
Identidades brasileiras
Identidades brasileiras Identidades brasileiras
Identidades brasileiras
 
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e Hoje
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e HojeConceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e Hoje
Conceito de Raça Aplicado ao Contexto Brasileiro Ontem e Hoje
 
As relações etnico raciais
As  relações etnico raciaisAs  relações etnico raciais
As relações etnico raciais
 
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...
Raça", sexualidade e gênero na construção da identidade nacional: uma compara...
 
Desigualdades raciais
Desigualdades raciaisDesigualdades raciais
Desigualdades raciais
 
Monografia Ângela Pedagogia 2009
Monografia Ângela Pedagogia 2009Monografia Ângela Pedagogia 2009
Monografia Ângela Pedagogia 2009
 
Monografia Noêmia Pedagogia 2009
Monografia Noêmia Pedagogia 2009Monografia Noêmia Pedagogia 2009
Monografia Noêmia Pedagogia 2009
 
Negritude sem etnicidade artigo
Negritude sem etnicidade artigoNegritude sem etnicidade artigo
Negritude sem etnicidade artigo
 
RACISMO1.pptx
RACISMO1.pptxRACISMO1.pptx
RACISMO1.pptx
 
De olho na cultura
De olho na culturaDe olho na cultura
De olho na cultura
 
Entrevista
EntrevistaEntrevista
Entrevista
 

Plus de literatoliberato

Plus de literatoliberato (20)

Lei 11
Lei 11Lei 11
Lei 11
 
Lei 10
Lei 10Lei 10
Lei 10
 
Historia E Cultura Afro Brasileiro Vera Neusa Lopes
Historia E Cultura Afro Brasileiro  Vera  Neusa  LopesHistoria E Cultura Afro Brasileiro  Vera  Neusa  Lopes
Historia E Cultura Afro Brasileiro Vera Neusa Lopes
 
EducaçãO Anti Racista Caminhos Abertos Pela Lei 10639 03
EducaçãO Anti Racista Caminhos Abertos Pela Lei 10639 03EducaçãO Anti Racista Caminhos Abertos Pela Lei 10639 03
EducaçãO Anti Racista Caminhos Abertos Pela Lei 10639 03
 
Desigualdaderaciais Abolicao
Desigualdaderaciais AbolicaoDesigualdaderaciais Abolicao
Desigualdaderaciais Abolicao
 
Pcn 10.5 Tt OrientaçãO Sexual
Pcn   10.5   Tt OrientaçãO SexualPcn   10.5   Tt OrientaçãO Sexual
Pcn 10.5 Tt OrientaçãO Sexual
 
Pcn 10.4 Tt SaúDe
Pcn   10.4   Tt SaúDePcn   10.4   Tt SaúDe
Pcn 10.4 Tt SaúDe
 
Pcn 10.3 Tt Meio Ambiente
Pcn   10.3   Tt Meio AmbientePcn   10.3   Tt Meio Ambiente
Pcn 10.3 Tt Meio Ambiente
 
Pcn 10.2 Tt Pluralidade Cultural
Pcn   10.2   Tt Pluralidade CulturalPcn   10.2   Tt Pluralidade Cultural
Pcn 10.2 Tt Pluralidade Cultural
 
Pcn 10.1 Temas Transversais
Pcn   10.1   Temas TransversaisPcn   10.1   Temas Transversais
Pcn 10.1 Temas Transversais
 
Pcn 09 LíNgua Estrangeira
Pcn   09   LíNgua EstrangeiraPcn   09   LíNgua Estrangeira
Pcn 09 LíNgua Estrangeira
 
Pcn 08 EducaçãO FíSica
Pcn   08   EducaçãO FíSicaPcn   08   EducaçãO FíSica
Pcn 08 EducaçãO FíSica
 
Pcn 07 Arte
Pcn   07   ArtePcn   07   Arte
Pcn 07 Arte
 
Pcn 06 HistóRia
Pcn   06   HistóRiaPcn   06   HistóRia
Pcn 06 HistóRia
 
Pcn 05 Geografia
Pcn   05   GeografiaPcn   05   Geografia
Pcn 05 Geografia
 
Pcn 04 CiêNcias
Pcn   04   CiêNciasPcn   04   CiêNcias
Pcn 04 CiêNcias
 
Pcn 03 MatemáTica
Pcn   03   MatemáTicaPcn   03   MatemáTica
Pcn 03 MatemáTica
 
Pcn 02 LíNgua Portuguesa
Pcn   02   LíNgua PortuguesaPcn   02   LíNgua Portuguesa
Pcn 02 LíNgua Portuguesa
 
ResoluçãO 1 Diretrizes Curriculares
ResoluçãO 1 Diretrizes CurricularesResoluçãO 1 Diretrizes Curriculares
ResoluçãO 1 Diretrizes Curriculares
 
RepresentaçãO Do Negro No Livro DidáTico
RepresentaçãO Do Negro No Livro DidáTicoRepresentaçãO Do Negro No Livro DidáTico
RepresentaçãO Do Negro No Livro DidáTico
 

Dernier

Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoRicardo Azevedo
 
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptx
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptxLição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptx
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptxCelso Napoleon
 
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptx
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptxCópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptx
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptxLennySilva15
 
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdf
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdfO Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdf
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdfmhribas
 
As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)natzarimdonorte
 
o cristão e as finanças a luz da bíblia .
o cristão e as finanças a luz da bíblia .o cristão e as finanças a luz da bíblia .
o cristão e as finanças a luz da bíblia .Steffany69
 
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAEUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAMarco Aurélio Rodrigues Dias
 
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPaulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPIB Penha
 
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...PIB Penha
 
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxLição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxCelso Napoleon
 
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide Silva
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide SilvaVivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide Silva
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide SilvaSammis Reachers
 
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresOração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresNilson Almeida
 
Dar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealização
Dar valor ao Nada! No Caminho da AutorrealizaçãoDar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealização
Dar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealizaçãocorpusclinic
 

Dernier (14)

Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudoSérie Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
Série Evangelho no Lar - Pão Nosso - Cap. 132 - Em tudo
 
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptx
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptxLição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptx
Lição 5 - Os Inimigos do Cristão - EBD.pptx
 
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptx
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptxCópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptx
Cópia de Ideais - Desbravadores e Aventureiros.pdf.pptx
 
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdf
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdfO Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdf
O Livro dos Mortos do Antigo Egito_240402_210013.pdf
 
As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)As violações das leis do Criador (material em pdf)
As violações das leis do Criador (material em pdf)
 
o cristão e as finanças a luz da bíblia .
o cristão e as finanças a luz da bíblia .o cristão e as finanças a luz da bíblia .
o cristão e as finanças a luz da bíblia .
 
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRAEUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
EUBIOSOFIA - MEMÓRIAS DA SOCIEDADE TEOSÓFICA BRASILEIRA
 
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingoPaulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
Paulo é vítima de fake news e o primeiro culto num domingo
 
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA  AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
METODOLOGIA ELANA* – ENSINO LEVA AUTONOMIA NO APRENDIZADO. UMA PROPOSTA COMP...
 
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptxLição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
Lição 4 - Como se Conduzir na Caminhada.pptx
 
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
Centros de Força do Perispírito (plexos, chacras)
 
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide Silva
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide SilvaVivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide Silva
Vivendo a vontade de Deus para adolescentes - Cleide Silva
 
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos PobresOração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
Oração A Bem-Aventurada Irmã Dulce Dos Pobres
 
Dar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealização
Dar valor ao Nada! No Caminho da AutorrealizaçãoDar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealização
Dar valor ao Nada! No Caminho da Autorrealização
 

Identidade

  • 1. identidade! Periódico do Grupo de Identidade da Faculdades EST/IECLB - vol. 12, julho-dezembro/2007 ISSN 1676-9570 Pág. 6 Diferenciação racial e desigualdade social Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes Pág. 15 O estudo da História da África no resgate das origens do povo negro e o desenvolvimento de processos pedagógicos em projetos sociais - Luciana Marques Pereira e Margarete Fagundes Nunes Pág. 22 Entre a malandragem e a sobrevivência: breves considerações sobre os “capoeiras” - Anna Luiza de Moura Saldanha Pág. 30 Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão (Elementos de uma Cristologia afro-brasileira - Marcelo Barros
  • 2. Expediente Identidade! Periódico do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB Vol. 12, julho-dezembro/2007 Apoio: Federação Luterana Mundial – FLM Periodicidade: Semestral Tiragem: 2.000 exemplares Revisão: Luís M. Sander Diagramação e impressão: Con-Texto Gráfica e Editora www.est.com.br Capa: Marcelo Ricardo Zeni Coordenação/organização geral: Selenir C. Gonçalves Kronbauer Responsável por este número: Selenir C. Gonçalves Kronbauer Endereço para contato Grupo Identidade: Escola Superior de Teologia Caixa Postal 14 – Tel. (51) 2111-1400 – CEP 93001-970 – São Leopoldo/RS E-mail: identidade@est.edu.br – Site: www.est.edu.br Obs.: São de total responsabilidade dos autores os textos por eles escritos. Aceita-se permuta :: Exchange is requested :: Wir bitten um Austausch :: Pídese canje Conselho Editorial Afonso Maria Logório Soares - PUC/SP Alceu Ravanello Ferraro - UNILASALLE/RS Elaine Neuenfeldt - EST/RS Gabriel Grabowski - FEEVALE/RS Georgina Helena Lima Nunes - UFPEL/RS José Ivo Follmann - UNISINOS/RS Eunice Maria Nazarethe Nonato - IPA METODISTA/RS Magna Lima Magalhães - FEEVALE/RS Maricel Mena Lopez - Pontificia Universidad Javeriana - Colômbia Marga Janete Stroher - EST/RS Peter Theodo Nash - Wartburg College/EUA Ricardo Willy Rieth - EST/RS Indexação: Qualis CAPES: A Local Área de avaliação: Filosofia/Teologia: subcomissão Teologia Qualis CAPES: B Local Área de Avaliação: Educação 02
  • 3. Editorial O décimo segundo volume de identidade! aborda a temática Negritude e Cultura, com enfoque no resgate e valorização da cultura afro-brasileira. Todos os assuntos aqui apresentados enriquecem a discussão sobre a necessidade do estudo das culturas, suas transformações, con- tribuições dentro do contexto social brasi- leiro e, sua necessária valorização, na medi- da em que este estudo servirá de base a um processo pedagógico adequado na busca de um tratamento iguali- tário da diversidade cultural e da conse- qüente inserção social. Desejo a todos uma boa leitura! Profª. Ms. Selenir C. Gonçalves Kronbauer Coordenadora do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB 03
  • 4. Apresentação O presente número de especificidade. Diferenciação racial periódico identidade! traz a e desigualdade social leva a sério o contribuição sobre a cultura afro- tema da desigualdade social em negra brasileira. Cultura é um nosso país, demonstrando que ela conceito muito amplo e de difícil está em relação direta com uma definição. Ao se falar de uma hierarquização racializada da cultura “negra”, afirmamos que sociedade. Segundo elas, “o critério existem construções culturais racial opera como fator de dife- específicas das populações negras, renciação e geração de desigual- que surgem de sua condição sui dades”. Operacionalizando o con- generis. Calvani afirma que o que ceito habitus racista, as autoras caracteriza a cultura brasileira é o apresentam dados que comprovam ecletismo e o sincretismo. Sem a exclusão da população negra, negar essa característica, enten- problematizando as formas como as demos que a cultura negra é Ciências Sociais têm argumentado apropriada por outros segmentos da sobre a questão. É no contexto de população, de modo que o sincre- exclusão e discriminação que a tismo atue em favor das classes população negra elabora sua cul- dominantes. Neste número do tura. periódico, contamos com a colabo- No mesmo sentido, o artigo de ração plural de pessoas oriundas de Luciana M. Pereira e Margarete F. diversas disciplinas acadêmicas, Nunes apresenta o processo de com caminhadas diferentes, para empoderamento de crianças negras que nossos horizontes sejam de uma comunidade da periferia de ampliados. Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul. Um dos motores da cultura O estudo da História da África no afro-negra é a sua condição social resgate das origens do povo negro e específica. Nesse sentido, o artigo o desenvolvimento de processos de Érica Pastori, Janine Prandini, pedagógicos em projetos sociais Luciana Pêss e Rosiane Pontes problematiza a implantação da Lei auxilia a compreender qual é essa 10.639/03. Na avaliação das autoras, 04
  • 5. a Lei 10.639/03 está sendo implan- desse elemento cultural afro-negro é tada lentamente, sugerindo projetos demonstrado durante todo o artigo, de extensão universitária como sempre relacionado com as trans- soluções viáveis em curto prazo. No formações sociais enfrentadas pela Projeto Quizomba da Cidadania sociedade brasileira. foram trabalhadas auto-estima, No último artigo desse volume história, memória e cidadania. Esse de identidade!, Marcelo Barros é um projeto que valoriza a cultura contribui para a discussão sobre carnavalesca da comunidade e, a uma cristologia negra. Jesus de partir dela, busca empoderar novos Nazaré, Orixá da Compaixão (Ele- atores para o conhecimento da mentos de uma cristologia afro- realidade e história coletiva. brasileira) analisa as transforma- O artigo de Anna L. M. ções ocorridas no meio eclesiástico e Saldanha faz um resgate histórico- teológico, com a (re)valorização das bibliográfico de um elemento cultu- religiões afro-americanas e amerín- ral afro-negro: a capoeira. Entre a dias. Diante do caráter sincrético do malandragem e a sobrevivência: cristianismo trazido ao Brasil, o breves considerações sobre os autor entende que na religiosidade “capoeiras” trabalha o período entre popular há uma “aliança” entre 1850 (ano da promulgação da Lei diversas expressões religiosas. A Eusébio de Queirós) e 1890 (ano da partir dessa constatação, apresenta proibição da capoeira). Segundo a elementos para uma cristologia autora, com o crescimento das cida- negra que valorize expressões cultu- des, houve a organização de grupos rais distintas. de resistência, como as maltas de Desejamos a todos e todas uma capoeira cariocas. Os capoeiras são boa leitura, na esperança de que esse apresentados como atuantes no seja mais um instrumento no cres- cenário político-eleitoral do Segundo cimento epistemológico de nossas Império. Diferenciando as obras comunidades, para a valorização de sobre a capoeira em três blocos, a sua cultura e de sua história. autora pretende situar espaço- Ezequiel de Souza temporalmente seu objeto de estudo. Teólogo, mestrando em Teologia na O caráter eminentemente político Faculdades EST, Bolsista CNPq 05
  • 6. Diferenciação racial e desigualdade social Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes* Um dos mais graves problemas do científico, ou seja, um lugar tido como Brasil é a desigualdade social, supostamente de livre acesso e que desigualdade essa na qual agora está sendo pensado como um encontramos um grande fosso que lugar privilegiado de parte da separa os mais ricos aqueles que têm população, parte da população branca melhores oportunidades da classe do país. Ao apontarmos alguns média e, principalmente, dos mais exemplos de negros bem-sucedidos pobres. No entanto, trabalharemos estamos, não demonstrando como neste artigo uma possibilidade vivemos numa sociedade sem sociológica e, anteriormente, desigualdade racial, mas epistemológica da existência da evidenciando a discriminação geração de desigualdade social a existente, já que os referidos exemplos partir do processo de diferenciação são imensamente valorizados social. A negação do diferente barra o justamente por constituírem acesso igualitário a mecanismos de exceções, por retratarem caminhos ascensão social. que foram traçados de forma diferente Podemos verificar que o critério do que era esperado. racial opera como fator de Essa diferenciação que há em diferenciação e geração de nossa realidade social tem sua base na desigualdades ao observar que mesmo raça dos indivíduos. A partir da entre as camadas populares, constatação de que o conceito de raça constituintes da mesma classe social, é um dos mais importantes com o qual os indivíduos negros encontram os cientistas sociais, sobretudo maiores dificuldades de ascensão brasileiros, devem estar bem social, devido à discriminação. habilitados a trabalhar, exploraremos As questões raciais no Brasil e de melhor essa questão através de uma discriminação, principalmente de revisão bibliográfica e um debate negros e indígenas, acrescentadas à epistemológico em torno desse tema. questão da implantação de ações O Brasil é um país racializado. afirmativas em alguns setores da Esta é uma posição sociológica sociedade, suscitam debates em torno passível de ser adotada a partir do da disputa de poder no campo momento em que analisamos 06
  • 7. distintos fenômenos sociais pelo capital simbólico carregado pelos brasileiros que se configuram de uma sujeitos negros, mas também, entre maneira tal que é perceptível a outras variáveis, pelo baixo nível de variável raça incidindo capital cultural institucionalizado que constantemente; daí a possibilidade esses indivíduos acumulam no de inferirmos que o racismo é um decorrer de suas vidas, devido à sua dispositivo de poder estruturante da difícil entrada e permanência em vida brasileira. Ter a pele negra no instituições de ensino de níveis Brasil significa carregar um capital superiores. simbólico que provavelmente delineará a existência individual de A violência está de tal modo forma negativa, marcando trajetórias interiorizada nos corações e mentes pela dificuldade de ascensão social. que alguém pode usar a frase “um negro de alma branca" e não ser Pode-se falar em um habitus racista, considerado racista. Pode referir-se delineando certo capital simbólico: cor aos serviçais domésticos com a frase da pele, forma dos cabelos, formato do “uma empregada ótima: conhece seu nariz, entre outros, que se associam lugar” e considerar-se isento de ao capital social destes agentes preconceito de classe. Pode dizer, como sociais, reforçando expectativas disse certa vez Paulo Maluf, “a sociais dos negros geralmente de professorinha não deve gritar por “menor valor social”. Este habitus salário, mas achar um marido mais estrutura, por sua vez, o destino social eficiente” e não ser considerado machista. (CHAUÍ, 2007). destes indivíduos. É o que se identifica, por exemplo, nas entrevistas de emprego, em que o peso Uma das tarefas das ciências de uma “boa aparência” vale muito sociais é investigar quais são as para a seleção. “Boa aparência” essa relações de força que produzem que dificilmente se refere ao fenótipo nossas realidades sociais e seus negro, traços como cabelos crespos, problemas específicos no caso pele negra e nariz largo. Segundo brasileiro, a desigualdade social que dados da PNAD/IBGE, a taxa de impede que os pobres ascendam desemprego da população negra, em socialmente, como se estivéssemos em 2003, foi de 10,7% contra 8,8% da uma sociedade de castas, população branca. Com certeza esse extremamente estruturada. dado não pode ser explicado somente Mesmo tendo uma visão de mundo 07
  • 8. classista, onde estudamos que a também particular ou específica, não sociedade brasileira é dividida em conseguindo generalizar-se nem classes sociais, em cuja ontologia universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, também seja passado o “mito da não é particular e específico, mas geral democracia racial” e os preceitos de e universal, seja porque é o mesmo e um país republicano e democrático, válido para todos os indivíduos, grupos mesmo que se discuta a falência das e classes sociais, seja porque, embora instituições que fundamentam esse diferenciado, é reconhecido por todos processo, isto é, ao pensar na (como é caso dos chamados direitos democracia brasileira, não se das minorias). consegue correspondência direta seja Uma das práticas mais importantes da com a liberdade ou com a igualdade. política democrática consiste justamente em propiciar ações Existem grupos “minoritários" (os capazes de unificar a dispersão e a negros são incluídos nessa categoria, particularidade das carências em mesmo se tratando de quase metade interesses comuns e, graças a essa da população nacional: sendo negros generalidade, fazê-las alcançar a = pretos + pardos, essa categoria esfera universal dos direitos. Em compõe 48% da população brasileira, outras palavras, privilégios e carências segundo dados da PNAD/IBGE de determinam a desigualdade 2005) cuja expressão se dá através de econômica, social e política, protestos e movimentos que visam à contrariando o princípio democrático conquista dos mesmos direitos dos da igualdade, de sorte que a passagem das carências dispersas em interesse demais cidadãos; esses grupos não comuns e destes aos direitos é a luta buscam seu representante pela igualdade. Avaliamos o alcance da parlamentar porque não se sentem cidadania popular quando tem força representados no poder, não o vêem para desfazer privilégios, seja porque como um lugar que possam ocupar. os faz passar a interesses comuns, seja Esses grupos, ao protestarem, não porque os faz perder a legitimidade lutam por privilégios para si. diante dos direitos e também quando tem força para fazer carências Um privilégio é, por definição, algo passarem à condição de interesses particular que não pode generalizar-se comuns e, destes, a direitos universais. nem universalizar-se sem deixar de (CHAUÍ, 2007). ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica Numa perspectiva histórica, o que desemboca numa demanda autor Aníbal Quijano reflete sobre a 08
  • 9. experiência da colonização nas menor formalidade e menor proteção Américas promovida por europeus social relativamente à população que envolveu negros africanos. Este branca. Dados do IBGE, divulgados processo histórico foi decisivo para a em 2002, mostram que a desigualdade constituição do “sistema mundo por cor é a que mais pode ser moderno”, que tem como base a identificada como geradora da racialização dos indivíduos, princípio desigualdade existente no Brasil. Os necessário para estruturar a realidade negros recebem metade do social, discurso com uma força política rendimento de brancos em todos os suficiente para transformar essas estados. Do total de pessoas que representações racializadas em faziam parte do 1% mais rico da realidade. Para Quijano, a idéia de população, 88% eram de cor branca, raça é central para a naturalização enquanto que, entre os 10% mais das relações coloniais de dominação pobres, quase 70% se declararam de entre europeus e não europeus. É a cor preta ou parda. articulação entre a distribuição Na colonização, europeus racista de identidades e a distribuição tornaram negros e indígenas afásicos racista do trabalho e das formas de (BHABHA, 1998), isto é, a exploração do capitalismo colonial modernidade produz também a que garante a dominação e exploração impossibilidade da enunciação desses européia/branca. grupos. As ciências sociais, Um dado interessante para especialmente a antropologia, surgem refletir sobre a perduração dessa como lugar onde os brancos falam relação entre trabalho e raça é que, deles e por eles. E hoje, vemos a enquanto 42% dos brancos têm antropologia brasileira num debate carteira assinada ou são funcionários acalorado acerca da pertinência das públicos, entre os negros este cotas raciais nas universidades percentual é de 31,4%. Ou seja, menos federais. Não estariam estes mesmos de um terço dos trabalhadores negros antropólogos com receio de que os tem acesso a direitos trabalhistas silenciados cuja voz é dada pelas boas (PNAD/IBGE, 2003). Não apenas o intenções antropológicas ocupassem desemprego é maior entre a população esse lugar de fala, de produção de negra comparativamente à branca, conhecimento sobre si mesmos, como também, em geral, a primeira colocando em xeque a autoridade tem ocupações de pior qualidade, com branca da antropologia? 09
  • 10. No modelo proposto por Homi mesma forma, os empresários nas Bhabha, surge a ênfase na construção novelas são sempre representados por histórica de uma estrutura outrem. atores brancos, ao passo que as Partindo dessa concepção, na empregadas domésticas, seguranças, modernidade pós-colonial, passamos a porteiros e ocupantes de cargos ter este a priori histórico que “menos nobres” são distingue o moderno do tradicional, majoritariamente não-brancos. Ao sendo que os colonizados devem negociarmos permanentemente “falar” deste lugar específico que nossas certezas no rosto do outro ocupam no espaço social, um lócus vendo neste o mundo possível lemos o afásico produzido pelo poder colonial. mundo no rosto do outro. Quando o De tal forma, os cientistas sociais negro é um outro regido pelo branco brasileiros não podem partir das (processo percebido, na década de teorias européias ocidentais para 1950, pelo autor Guerreiro Ramos, analisar sua realidade, pois a que via o “branco” brasileiro constituição de sua historicidade é reivindicando uma pureza distinta. Nós, sociólogos brasileiros, inexistente, ou seja, intelectuais devemos considerar em nossa brasileiros “brancos” lendo o negro reflexividade essa condição pós- como um indivíduo pitoresco/exótico), colonial. Não podemos problematizar cabe a argumentação de Eduardo nossos fenômenos apenas a partir do Viveiros de Castro, na obra Nativo olhar dos teóricos do “norte”. Relativo, de que a estrutura cultural A identidade do povo brasileiro do “ocidente” é altamente altrucida. está fundamentada no rosto branco Essa percepção racializada e que (Deleuze); nossas certezas estão toma o negro como anormal/regido faz firmadas na branquitude; todo o parte de nossa estrutura ontológica nosso sistema de representação tem o histórica, ou seja, de nosso arcabouço branco como o superior e o ideal a ser lingüístico, o qual acaba por atingido. Para ter exemplos disso, naturalizar nossas ações, já que, ao basta que liguemos a televisão: falarmos por meio dessas categorias poderemos então observar as (negro e branco ou mesmo pardo, propagandas veiculadas, nas quais a mestiço e outras categorias possíveis) família bem-sucedida é sempre socialmente aprendidas, aderimos representada por um casal branco inconscientemente ao racismo: com filhos igualmente brancos. Da percebemos a realidade a partir 10
  • 11. dessas categorias que contêm maior de conhecimento comum nos ou menor valor no mercado de bens conhecimentos científicos” (BACHE- simbólicos, e acabamos reproduzindo LARD, 1984). Historicizar as práticas o racismo em nossas relações. sociais, verificando quando ocorrem Tornamo-nos racistas, mas não descontinuidades e realizando identificamos esse racismo como um rupturas, é a maneira mais problema nacional que gera a interessante de realizar ciência sem desigualdade social, pois, ao necessitar de um filósofo para julgar naturalizar essa ontologia racista, externamente as produções citamos outros como os principais científicas. problemas a serem combatidos para A reflexão histórica que obtermos a diminuição da realizamos pode nos auxiliar num desigualdade, tais como educação e esforço para sermos rigorosos nas emprego. investigações científicas acerca da Partilhamos da noção de ciência questão racial e não somente desta proposta por Gaston Bachelard, esfera social, já que não é segundo o qual a prática científica, ou propriamente um local, mas perpassa seja, a criação de fenômenos em múltiplos espaços sociais. laboratório, com a premissa da Delinearemos três posições atuais das permanente retificação de erros, ciências humanas sobre a questão sempre reordenando conceitualmente racial que, por partirem de pontos as racionalizações e propondo novas epistemológicos distintos, chegaram a organizações racionais, necessita de diferentes posições normativas/ uma superação das imagens políticas. fenomênicas: temos de polemizar com Uma das possibilidades da nossas idéias comuns, romper com a articulação entre o horizonte forma partilhada socialmente de antropológico e o discurso político é percepção da realidade. Além dessa representada por autores que ruptura epistemológica, processada fornecem uma possibilidade através de um “esforço constante de epistêmica antiessencialista que nega dessubjetivação” (BACHELARD, o conceito de raça no Brasil, ao apud BOURDIEU, 2001), é de percebê-lo como um epifenômeno extrema importância a vigilância decorrente da desigualdade de classe. epistemológica. “É permanentemente Para eles, nossa sociedade não necessário mostrar o que permanece dicotomiza as raças em branco e 11
  • 12. negro, porque se construiu através ainda mais porque não considera as das múltiplas categorias raciais, num metamorfoses que os dispositivos verdadeiro continuum de raças. Essa racistas podem ter sofrido. proposta epistemológica desracializa Como nos mostra Muniz Sodré, a sociedade brasileira e, assim, depois de dispositivos discursivos neutraliza as lutas anti-racistas. racistas até os anos 1930 no Brasil, Não nos filiamos a essa visão, pois, temos hoje dispositivos que como já foi colocado acima, continuam funcionando com o acreditamos que o nosso a priori objetivo de regular o crescimento da histórico de percepções (maneira população negra. É a biopolítica como nos percebemos (Foucault) que passou a operar no historicamente) foi construído pelo Brasil, focalizando a raça negra, poder colonial e reproduzido até hoje objetivando diluí-la, se não de forma tal que percebemos a exterminá-la para poder constituir o realidade social racializada. Quer corpo saudável da nação. É um dizer, para legitimar a colonização, projeto latente, que vem funcionando criou-se a idéia de que o povo sem que nos percebamos como colonizador era superior à população racistas, sem nos posicionarmos como nativa dos países colonizados; por tal porque não necessitamos expor- exemplo, a população negra era tida nos em discursos racistas, já que o como “sem alma”, e, por isso, processo de eliminação dos negros justificava-se a escravidão. ainda se faz presente em nosso Atualmente, embora cotidiano. constitucionalmente todos sejam Enquanto há antropólogos e iguais, através da observação da vida sociólogos defendendo a inexistência cotidiana, percebemos que nem todos do problema da raça em nosso país e são tratados como iguais, sendo a raça apontando o desenvolvimento um dos principais fatores de econômico como o problema a ser diferenciação. Portanto, enfrentado, processa-se um genocídio consideramos essa perspectiva de negros e índios no Brasil. Seja antiessencialista, que sugere que o quando um índio é confundido com um Brasil não é um país racializado, como mendigo, e jovens, “brincando” com um tanto leviana por tomar os marcos esse indivíduo, ateiam fogo a seu corpo; do Estado-Nação como unívocos para seja quando um jovem negro é a produção de categorias sociais, e confundido com um bandido e é morto; 12
  • 13. ou então quando, por estarem racialização é efeito de políticas da atrasados para o vestibular, jovens modernidade que produziram um ser negros correm, e a polícia os confunde diaspórico, ou seja, um ser que com ladrões e os prende, impedindo-os experimenta o mundo a partir da de fazer a prova. diáspora; a “produção” do ser negro é Tal proposta antiessencialista dada a partir da experiência da demonstra significativa insuficiência escravidão (a experiência da dor), e ao não perceber o funcionamento esta é sublimada através da estrutural no qual a história reapropriação do corpo. O negro permanece transcorrendo; não capta entrou na modernidade de uma forma a latência do projeto racista. É a dilacerada, tornando-se o “ser em história incorporada (encarnada nos estado de dor”: esta é a forma pela corpos e externalizada nas qual os corpos negros incorporaram a instituições), a qual não necessita da escravidão. Por isso, podemos consciência para permanecer afirmar que a cultura dos negros é funcionando. diaspórica, formada a partir do exílio Uma segunda possibilidade de como temos no modelo bíblico. articular uma posição epistemológica Embora a modernidade tenha a uma posição política foi levada a produzido esse ser, não lhe concedeu cabo por “afro-centristas”. Foram um lugar. produções que propiciaram uma luta Segundo Gilroy, os descendentes anti-racista, mas somente a partir de de africanos compartilham uma discursos que naturalizavam uma condição em comum: a de terem sido superioridade negra a ser escravos, posteriormente libertos e, reivindicada e posta em luta. Logo, em conseqüência discriminados não romperam com o essencialismo, racialmente pelo outro branco. O “eu” pois, ao denunciar a supremacia negro não está livre de uma referência branca, apenas inverteram as tradicional, este sujeito não possui posições. possibilidades de escolhas livres, pois Por fim, há uma terceira vertente, sua “identidade” está diretamente promovida por Paul Gilroy, que relacionada a seu fenótipo, à cor de assume um lugar epistemológico anti- sua pele. O indivíduo negro, embora racista e antiessencialista, tenha poder de ação, não encontra defendendo que inexiste uma essência liberdade para escolher seu caminho, negra. Esta corrente afirma que a porque tem que lidar, ao longo de sua 13
  • 14. historicidade pessoal, com o fato de ignoramos a desigualdade nem ser um sujeito racializado. tentamos subestimá-la; no entanto, a Estando imersos em uma realidade falácia de que vivemos num país social na qual a visão de mundo que miscigenado e que sabe conviver predomina é a branca, vemos-nos pacificamente com todas as diferenças através das lentes das raças. Mesmo entre os povos que o constituem não é sem notar, fazemos a distinção entre constatada após uma reflexão mais branco e não-branco. Dessa forma, não apurada sobre nossa realidade social. podemos deixar de enunciar as tensões Em vista disto, somos favoráveis a toda latentes nessa sociedade, os conflitos forma de combate ao preconceito racial que, antes de ser de classe ou gênero, e tentativas de diminuição dessa são raciais. diferença que há entre brancos e não- Observamos em nosso cotidiano as brancos. relações racializadas que se Uma das formas encontradas estabelecem. Em especial, percebemos pela sociedade é a implantação de ações no ensino superior público esta afirmativas para esse grupo com maior distinção que a sociedade brasileira dificuldade de acesso a direitos que, impõe aos cidadãos. Seja entre o corpo teoricamente, são de todo cidadão docente ou entre o corpo discente, os brasileiro: citamos a educação como o negros não estão representados, isto é, principal deles, ante os debates que notamos que o número de estudantes ocorrem sobre a adoção das cotas negros nas universidades públicas do raciais pelas universidades federais. país não é proporcional à população Segundo nossa reflexão, essa é uma negra brasileira (48%, segundo o maneira de que a população negra, IBGE), ao focalizarmos a reflexão assim como a indígena, tenha a sobre a representatividade dos negros possibilidade real de freqüentar a entre os professores de nossa universidade e, assim, tenhamos a universidade, percebemos claramente diversidade encontrada nas ruas da a quase inexistência dessa parcela da cidade também representada em população. nossas salas de aula. Acreditamos que a diferenciação racial que é estabelecida Referências Bibliográficas nas relações sociais no Brasil é um CHAUÍ, Marilena. Ética, violência e fator determinante para a racismo. In: Repórter Diário Brasil, de desigualdade social do mesmo. Não 6/4/2007 BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. 14
  • 15. O estudo da História da África no resgate das origens do povo negro e o desenvolvimento de processos pedagógicos em projetos sociais1 Luciana Marques Pereira2 Margarete Fagundes Nunes3 O estudo da história da África no no projeto Quizomba da Cidadania por Brasil tornou-se obrigatório através da acadêmicas do curso de História da Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003.4 Feevale, vincula-se a outras Mas podemos nos perguntar se essa lei linguagens que fazem parte do vem sendo cumprida e se os cotidiano dessas comunidades, como a profissionais da educação estão musicalidade, a dança, as expressões adequadamente preparados, se há artísticas ligadas ao universo do material didático apropriado, já que o carnaval, presentes em suas Brasil tem em sua história o experiências culturais, fortificadas escravismo dos negros e uma pelas vivências em grupo e por uma discriminação racial construída desde solidariedade étnico-racial. os primórdios do descobrimento do A partir de projetos como o país. Baseando-se na experiência do Quizomba da Cidadania, podemos projeto de extensão Quizomba da avaliar as verdadeiras dificuldades que Cidadania5 , desenvolvido junto às as escolas da rede formal de ensino comunidades carnavalescas de Novo enfrentam para a implementação da Hamburgo/RS e do qual a Feevale é lei 10.639 e, ao mesmo tempo, avaliar a uma das entidades integrantes, ação conjunta de diversas entidades buscamos analisar como os sociais: comunidades carnavalescas, profissionais e acadêmicos se integram universidade, movimento social, na construção de uma proposta organizações governamentais e não- pedagógica extracurricular, isto é, governamen-tais. No caso da trabalhando com crianças de idades e universidade, procuramos verificar níveis de aprendizagem diferentes fora como o curso de História organiza-se do ambiente escolar, e como vem sendo para a atender a demanda de formação implementado o proposto na Lei de acadêmicos nessa temática 10.639 junto às comunidades específica. carnavalescas. O processo de ensino- No ano de 2007, a Feevale, por aprendizagem de história da África e meio do projeto de extensão Banda cultura afro-brasileira, desenvolvido Mirim 6 , integrou-se ao projeto 15
  • 16. Quizomba da Cidadania, que teve sua No projeto Banda Mirim / primeira edição de março a setembro Quizomba da Cidadania, as de 2007. Entre as oficinas que foram acadêmicas do curso de História desenvolvidas nas comunidades participaram como oficineiras oficiais carnavalescas música, dança, arte e ou voluntárias, envolvendo-se não criação contou-se com a oficina de apenas na oficina de História, História, Memória e Cidadania, na Memória e Cidadania 8 , mas qual a Feevale, por meio do programa acompanhando as demais atividades, NIGERIA, teve uma participação inclusive as de monitoramento e direta na formulação e execução. avaliação do projeto. As oficinas foram Nessas oficinas participaram desenvolvidas nas dependências das acadêmicas do curso de História da escolas de samba de Novo Hamburgo. Feevale. No caso da Sociedade Cruzeiro do Sul, Nesta reflexão, pretendemos onde focaremos nesse relato, a resgatar essa experiência, tendo como responsabilidade pelo contato com as foco especialmente a Sociedade crianças e suas famílias cabia a um Esportiva Cultural e Beneficente membro da própria comunidade, a Cruzeiro do Sul7, localizada no bairro senhora Carmen Regina da Silva, que Primavera, em Novo Hamburgo. atuou diretamente na oficina Privilegiamos, num primeiro intitulada Integração da Comunidade. momento, o relato dessa experiência e, As oficinas ocorriam todos os sábados a seguir, apontamos questionamentos, pela manhã, e participavam cerca de dúvidas, a fim de oferecer novos 30 crianças e adolescentes com idades subsídios para pensar a relação ensino, entre 5 e 17 anos, quase todas extensão e pesquisa, tão aclamada em residentes no entorno da Sociedade e nosso meio universitário, mas ainda quase todas negras. Cada oficina tinha limitada por nossas práticas cotidianas a duração de 60 minutos, com que teimam em perpetuar a intervalo para o lanche. Os demais fragmentação, a compartimentação da oficineiros desenvolviam trabalhos de produção e socialização do artes, dança e percussão. Nestas conhecimento. oficinas tinha-se o apoio pedagógico dos professores da Feevale Norberto Transitando entre o ensino, a Kuhn Junior e Margarete Fagundes pesquisa e a extensão no projeto Nunes, além de várias palestras de Banda Mirim/Quizomba da formação em conjunto com as Cidadania entidades integrantes do projeto, 16
  • 17. especialmente a partir da atuação do eram ministradas para crianças e Comitê Pró-Ações Afirmativas de adolescentes no mesmo local, Novo Hamburgo, o COPAA. tínhamos que fazer um trabalho de O problema de pesquisa maneira descontraída, mas sem construído a partir dessa experiência descuidar das informações a serem foi o de questionar como está a passadas. Para reforçar a idéia de aplicação da lei 10.639/2003 no espaço identidade, foi construído um jornal a formal de ensino e como ela pode ser partir de fotos e outros materiais que desenvolvida em um espaço informal, as crianças trouxeram de suas casas, por exemplo, em uma escola de samba, no intuito de valorizar a sua história por intermédio de projetos de cunho pessoal, que também faz parte da comunitário. Através da observação- história do bairro, da escola de samba, participante identificamos que ainda é da cidade. restrito o contato de crianças e Para os objetivos específicos do adolescentes, matriculados em escolas projeto, o foco era o desenvolvimento de ensino público, com a lei 10.639, da auto-estima do afro-descendente, pois nos currículos escolares, como essa criança, esse adolescente se normalmente, a história da África é vê como cidadão de Novo Hamburgo, abordada somente quando se estuda o uma cidade que reforça um mito de período colonial do Brasil, com ênfase origem, o da colonização alemã: no regime de mão-de-obra escrava. “como eu, negro, me vejo enquanto Depois desse momento, a questão sujeito social e atuante dentro da passa despercebida; inclusive, quando história da minha cidade, do meu é estudada a história do Egito, esta é país”. Muitas das crianças e apresentada em um formato que nos adolescentes não conhecem a Lei deixa a sensação que o Egito não é no 10.639 ou a história do povo africano, continente africano. Quando, na mas sabem como é a discriminação e oficina, perguntamos às crianças onde os efeitos que ela pode causar em uma ficava o Egito, elas não sabiam que era sociedade como a brasileira, que ainda na África e tampouco sabiam que a supervaloriza os costumes e as África é um continente com vários culturas européias e subestima as países e povos diferentes. Então, para culturas africanas e ameríndias. Essa desenvolvermos a proposta do projeto sabedoria que os jovens têm não é um por meio de oficinas, para não haver o saber teórico, é um saber vivenciado mesmo formato engessado da escola dia a dia na própria pele, com eles formal, mesmo porque as oficinas próprios, com os familiares ou amigos. 17
  • 18. A partir da história da família, que é pudessem entender. Foram usadas normalmente numerosa, cujos pais também músicas, representação têm baixo nível de escolarização – o através de desenhos, mapas, jogos, que lhes proporciona, na maioria das passeios, proporcionando-lhes uma vezes, empregos de baixos salários, visão mais ampla da realidade do povo isso quando não ocorre o desemprego negro no Brasil e no mundo. ou, ainda, pessoas próximas estão Como resultados concretos, cumprindo pena em regime prisional mesmo em um curto espaço de tempo, por algum tipo de crime ou delito – para além do aprendizado da história, podemos constatar que essa criança ressaltamos o aumento da auto- ou adolescente, muitas vezes, não estima dessas crianças e aceita sua cor, porque vê nela um adolescentes. Tinham “gosto” em obstáculo para a realização de seus fazer penteados em seus cabelos sonhos, de hoje e do futuro. cacheados, sendo a estética corporal Na oficina de História, Memória e um elemento importante e que deve Cidadania, o foco era a história da ser destacado. Quando participavam África e da cultura afro-brasileira. das apresentações de percussão – Procuramos demonstrar a mesmo os que mal podiam com o peso importância do trabalho do povo do instrumento –, percebíamos que africano nas Américas e no Brasil, era o momento de glória de cada um, como era a cultura do africano na momento em que esqueciam das suas África, como era a sua forma de vida, dificuldades cotidianas. Nas oficinas mostrar que o africano tinha suas procurávamos enfatizar que vivemos estruturas socioeconômicas muito em um país marcado pela bem articuladas e que, quando chegou diversidade e que, assim como os ao Brasil, mesmo em cativeiro, povos europeus, os povos africanos organizava-se em rebeliões, e que tiveram muita importância na muitas tiveram sucesso. Tentamos, construção do nosso país e em outras também, abordar a realidade do partes do mundo. continente africano hoje, da mesma No que diz respeito ao curso de forma, pontuando questões atuais História da Feevale e às possibilidades sobre os descendentes de africanos no de experiência em projetos de Brasil. extensão como o Banda Os temas foram abordados Mirim/Quizomba da Cidadania, através de filmes apropriados para as conclui-se que a questão é de extrema idades, de maneira que todos relevância, pois é a partir deste olhar 18
  • 19. vivenciado na prática que o universidades vêm buscando sanar profissional vai poder fazer um elo com lacunas dessa formação, tanto pela os conhecimentos teóricos trabalhados atuação direta no interior dos seus dentro do ambiente acadêmico. A próprios cursos de licenciatura em experiência da extensão propicia aos História como buscando atender uma acadêmicos o entendimento do quão demanda da rede pública de ensino que longe estão da realidade que é necessita de uma capacitação mostrada nos livros e de que é possível permanente de seus professores, seja vivenciar outros aprendizados fora através do fornecimento de materiais dos espaços tradicionais de ensino. didático-pedagógicos, ou cursos de Ao final desta etapa do projeto, formação, fóruns de reflexão e podemos verificar que a lei 10.639 vem intercâmbios, entre outras atividades. sendo aplicada ainda de modo muito O Centro Universitário Feevale, parcimonioso, mas que o material por meio do Programa de Extensão didático já está bastante adequado, NIGERIA, desde o ano de 2003 vem tanto nos livros enviados pelo MEC realizando diversas ações nesse como na literatura infanto juvenil e em sentido. Para isso, tem buscado material bibliográfico para a área de parcerias e desenvolvido ações com pesquisa e estudos mais avançados outras entidades, destacando-se a sobre este assunto. O Projeto interlocução direta com o movimento Quizomba da Cidadania mostrou que negro local, o Comitê Pró-Ações no espaço da escola de samba também Afirmativas de Novo Hamburgo. Dessa se pode desenvolver o estudo da primeira parceria surgiram outras, cultura afro-brasileira, bem como o ampliando-se as possibilidades de estudo da História da África, diálogo e de constituição de projetos de envolvendo a comunidade do entorno maior impacto social. que participa das atividades sociais da Aqui, interessa-nos, sobretudo, escola, fato que fortalece, ainda mais, pontuar algumas questões tendo como as ações do projeto. parâmetro nossa atuação num projeto A Extensão universitária de caráter interinstitucional, o como canal de interlocução para Quizomba da Cidadania, ao qual nos a efetivação da Lei 10.639/2003 somamos em virtude de um projeto de Um dos grandes entraves para a extensão que vínhamos desenvolvendo implementação efetiva da Lei junto a essas comunidades, desde 10.639/2003 e seus desdobramentos diz 2003, o projeto Banda Mirim. respeito à formação de professores. As Deixaremos para um próximo 19
  • 20. momento a reflexão sobre outras risco que corremos de 'essencializar' a interlocuções estabelecidas por causa chamada cultura afro? O que estamos da Lei 10.639/2003, que diz respeito a aprendendo com essas comunidades?”. algumas ações junto às redes públicas Caminhamos, assim, em direção a um de ensino municipais e estadual. movimento, assinalado por José Jorge O Quizomba da Cidadania de Carvalho (2005, p. 140), que é o de destacou-se não só por proporcionar o “construir parâmetros para a aprendizado da História da África e da legitimação de novos saberes”, isto é, Cultura Afro-Brasileira em espaços abandonando uma visão etnocêntrica informais, isto é, fora do espaço de sala e eurocêntrica dominante nas nossas de aula formal, mas porque os espaços universidades e abrindo os espaços eleitos para essa formação têm uma institucionais para a edificação de importância fundamental para a novos saberes, que brotam da identidade dos homens e mulheres interlocucação com as próprias negros da cidade de Novo Hamburgo, comunidades, por intermédio do que são os espaços das escolas de diálogo com muitos daqueles que, até samba, tradicionalmente reconhecidos então, estiveram excluídos da como espaços fundamentais para a produção de um saber acadêmico e sociabilidade desses sujeitos negros, da que, na condição de objetos da cidade e da região. produção desse conhecimento, No entanto, esse espaço de almejam, sim, a condição de sujeitos. aprendizado informal não está Sendo assim, a extensão torna-se descolado daquilo que propõe a Lei um canal privilegiado, por permitir 10.639, na medida em que os que acadêmicos, professores e acadêmicos do curso de História da instituição experimentem um Feevale, que já atuam ou atuarão num estranhamento acerca dos seus saberes futuro próximo nas escolas regulares, e das suas práticas. No caso da Lei trazem para dentro da sala de aula a 10.639, é crucial este movimento de reflexão sobre a sua vivência, as abertura das instituições de ensino, relações intersubjetivas que se porque, infelizmente, não temos no estabelecem nesses espaços, as ensino formal a tradição de uma indagações sobre o conteúdo daquilo valorização do ensino da África e da que será objeto da reflexão: “Que cultura afro-brasileira. Para realizar África é essa? Existe a África ou com êxito essa tarefa, precisamos existem Áfricas? O que é isso que dialogar constamente com outros chamamos de 'afro-brasileiro?' Qual o sujeitos e outros grupos, estabelecendo 20
  • 21. parcerias, redes, ouvindo ensino escolar. In: NUNES, Margarete F . especialmente as organizações do (org). Diversidade e Políticas próprio movimento negro. Não Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo Hamburgo: Feevale, 2005. podemos esquecer que nesse país, LIMA, Ivan Costa. A pedagogia interétnica historicamente, a militância negra em Salvador: uma proposta pedagógica de atuou em projetos educativos, combate ao racismo. In: NUNES, construindo suas próprias propostas Margarete F. (org). Diversidade e pedagógicas, desafiando o ensino Políticas Afirmativas: diálogos e formal exatamente porque sabia dos intercursos. Novo Hamburgo: Feevale, entraves estruturais deste, que, por 2005. muito tempo, serviram para perpetuar MAGALHÃES, Magna Lima. Negras o racismo e impossibilitar a expressão memórias: a trajetória da Sociedade da diversidade étnico-racial da Cruzeiro do Sul. In: NUNES, Margarete F . (org). Diversidade e Políticas sociedade brasileira.9 Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo Pode-se dizer que a extensão Hamburgo: Feevale, 2005. universitária é também uma passagem, uma ponte, um elo, ligando Notas aqueles saberes técnicos, teórico- 1 Este trabalho foi apresentado na Feira de metodológicos que alicerçam uma Iniciação Científica e Salão de Extensão do identidade profissional com outros Centro Universitário Feevale, em outubro de 2007, pela acadêmica Luciana Marques saberes e outras vivências que Pereira, sob a orientação da professora fortalecem uma identidade cidadã, Margarete Fagundes Nunes. contribuindo, sensivelmente, para a 2 Graduanda do curso de Licenciatura em formação de um ser humano integral, História no Centro Universitário Feevale comprometido com as questões sociais lucianamp@feevale.br. 3 Professora do Centro Universitário e com a construção de uma vida Feevale, Mestra em Antropologia Social melhor e mais justa, para todos. pela Universidade Federal de Santa Catarina marga.nunes@feevale.br Referências Bibliográficas 4 Para maiores informações sobre a Lei, ver CARVALHO, José Jorge de. Inclusão trabalho de Chagas Neto (2005). 5 O projeto Quizomba da Cidadania foi étnica e racial no Brasil: a questão das gestado pela Horta Comunitária, em 2007, cotas no ensino superior. São Paulo: Attar e contou com as seguintes entidades: Editorial, 2005. Feevale, Comitê Pró-Ações Afirmativas de CHAGAS NETO, João E. A construção Novo Hamburgo COPAA, Sociedade identitária do afro-brasileiro e a Lei Cruzeiro do Sul, Escola de Samba Os 10.639/2003: desafios e possibilidades de Marujos, Império da São Jorge e inclusão a partir do espaço institucional do Protegidos, todas de Novo Hamburgo, Movimento de Consciência Negra 21
  • 22. Entre a malandragem e a sobrevivência: breves considerações sobre os “capoeiras” Anna Luiza de Moura Saldanha* Este artigo pretende apresentar, capoeira, muito embora já fosse objeto de uma forma sucinta, uma revisão de censura, não figurou como delito bibliográfica do tema “capoeira” e específico no Código Criminal do analisar de que forma os capoeiras se Império de 1830. inseriam na sociedade em que viviam, Nesse período, a sociedade como era essa sociedade e quais seus brasileira passava por profundas objetivos quando praticavam a dança- mudanças estruturais. Uma das luta. Nota-se que há uma vasta principais mudanças ocorreu nas historiografia sobre a capoeira carioca migrações internas e externas e no e baiana, por terem sido as cidades de adensamento de populações nas Salvador e Rio de Janeiro os maiores grandes cidades. Tal adensamento focos da capoeira, porém, é difícil desorganizou a cidade, que não estava encontrar alguma obra acadêmica que preparada em sua infra-estrutura tenha aprofundado esse estudo. Há para receber um grande contingente análises feitas sobre a capoeira e os populacional, e, assim, “as cidades capoeiras dentro de temas mais cresceram na multiplicação da amplos, como escravidão urbana ou pobreza, das precárias condições de resistência, como veremos mais vida, e principalmente na diversidade adiante. de tipos étnicos e sociais que O período analisado tem como compunham as chamadas camadas marcos temporais: 1850 Promulgação populares”1. da Lei Eusébio de Queiroz, quando há O aumento da população urbana o fim do tráfico de escravos e o começo provocou a formação de várias da trajetória definitiva de declínio do organizações sociais entre a população próprio sistema escravista, e 1890, de baixa renda, comunidades que quando há a proibição oficial da viviam no mundo subterrâneo da capoeira no Brasil, através do novo cidade longe dos olhos do Império, Código Penal da República, integrando-se em redes de transformando a capoeira de delito ou solidariedade, onde escravos e ex- contravenção em crime. A prática da escravos, livres ou libertos 22
  • 23. recompunham noções de capoeira, os trabalhos acadêmicos e pertencimento que haviam se não-acadêmicos, para, logo após, desintegrado nas senzalas. Entre entrar no tema de fato. estas organizações estavam as maltas O grande pilar bibliográfico deste de capoeira cariocas, que, num misto trabalho é, sem dúvida, a obra do de identidade, pertencimento, professor Carlos Eugênio Líbano resistência e sobrevivência, marcavam Soares, que se divide em dois livros fortemente o cenário urbano, sendo onde o tema “capoeira” é estudado em parte integrante da “cultura popular” sua profundidade e especificidade: A de rua de então. Para conceituar a negregada instituição os capoeiras na 'cultura popular' feita por esses Corte Imperial, 1850-1890, e “A indivíduos, nada melhor que esta capoeira escrava e outras tradições passagem encontrada na introdução rebeldes no Rio de Janeiro (1808- de Os Cativos e os Homens de Bem, do 1850). Nestas pesquisas, Líbano professor Paulo Moreira: utiliza a vasta documentação referente à capoeira carioca, por ter Os costumes desses agentes noção sido ela o grande temor da elite que, segundo Thompson, aproxima-se conservadora da época imperial. da de Cultura devem ser analisados O primeiro livro trata, entre dentro de contextos históricos muitos aspectos, da capoeira com suas específicos, para que se possa entender maltas e sua geografia específica, a sua “racionalidade” (legitimidades, expectativas). Dentro de um jogo de transcendendo o conceito de capoeira relações sociais, numa arena de como luta negra de resistência para exploração e resistência, dar espaço à ampla rede de relações enfrentamentos e negociações, de sociais presente nos interstícios da elaboração e reelaboração de aliados, é cidade do Rio de Janeiro. O autor que se pode entender o significado também analisa a participação dos dessas práticas sociais para os capoeiras na vida político-eleitoral, diferentes grupos envolvidos.2 além da troca cultural intensa entra os diferentes grupos étnicos que Para uma melhor compreensão do participavam das maltas. O segundo tema a ser trabalhado, houve a livro analisa o período imediatamente necessidade de apresentar uma anterior. Nesta obra, Líbano dá ênfase revisão historiográfica sobre a às origens da capoeira, sua etimologia, 23
  • 24. às origens étnicas de seus praticantes suas qualidades de defesa e ginástica. e à participação dos capoeiras na corte Diversos literatos passaram a ter a de D. João, seja na Marinha ou nos capoeira entre seus personagens. movimentos políticos de rua. Aluísio de Azevedo 5 , Machado de É a partir de Líbano que se tem Assis6, Manuel Antonio de Almeida7 uma análise historiográfica inicial são alguns dos autores que tinham por sobre a capoeira. Segundo ele, missão tirar a capoeira da podemos dividir a historiografia em marginalidade. três blocos: os cronistas, os folcloristas O segundo bloco, o dos folcloristas, e os acadêmicos ou a nova fugiu da tentativa do resgate pela historiografia, nas palavras do autor. “ginástica” para entrar no das O primeiro bloco dos cronistas é “manifestações negras” ou dividido entre aqueles denunciavam a “populares”. O primeiro desses capoeira e os que buscavam um autores é Manuel Querino, que deu “resgate” cultural, sobretudo após ênfase à capoeira baiana, em vez da 1890, data da proibição da prática. carioca. Segundo Líbano, é a partir de Plácido de Abreu é pioneiro entre os Querino que o mito da capoeira baiana cronistas com sua obra de 1886, tomou o país. denominada Os capoeiras. “Esse breve trabalho guarda recordações de O fato de as cidades nordestinas como uma capoeira temida como arma de Recife e Salvador não terem sofrido um processo de perseguição policial, rua do negro e do pobre urbano” 3 , como aconteceu no Rio, transformou tendo a vertente da denúncia como esses centros urbanos em santuários norte do livro. da capoeiragem antiga. Sua Alexandre Melo Moraes Filho 4 hegemonia no século que se abria tem também foi pioneiro em sua obra, pois nisso uma das explicações.8 foi o primeiro que trouxe a idéia de “luta nacional” ou “ginástica Além de Querino, Edison Carneiro9 nacional” à capoeira. A partir de Mello e Luis da Câmara Cascudo10 tratam da Moraes é que a temática passou a vir capoeira como folclore nacional, visão com tom de resgate, o que iria ser que iria tomar conta dos livros após seguido pela maioria dos literatos e 1930, quando da descriminalização da acadêmicos. Os escritos sobre a capoeira e da valorização da cultura capoeira transformara-se e realçara negra como genuinamente brasileira. 24
  • 25. Dentro da linha do folclore podem- Renato Vieira16 e Letícia Vidor Reis17 se inserir os livros escritos pelos seguem essa linha para defender o seu próprios mestres de capoeira. mestrado, sendo que o primeiro a Destacam-se a obra de Vicente analisa na década de 1930, e a Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, segunda, a partir de 1960. intitulada Capoeira Angola11, e a do Esta sucinta análise bibliográfica Mestre Noronha 12 , resgatada por torna um pouco mais fácil enxergar a Daniel Coutinho, por serem estas capoeira em seus espaços temporal e fontes primárias para o estudo da luta. físico, ao mesmo tempo em que mostra A partir do centenário da Abolição, o quanto esse campo de estudo ainda as ciências humanas vão dar maior não foi explorado. destaque aos estudos afro-brasileiros e à capoeira. Entramos, com isso, no As “maltas” e o cenário social dos terceiro bloco da historiografia. capoeiras Geralmente, a temática da capoeira Na segunda metade do séc. XIX, a vem acoplado com temas mais amplos, capoeira já era uma presença como o da resistência ou da escravidão marcante entre a população urbana. Este último é ocaso, de duas trabalhadora urbana, que reunia das principais obras sobre a escravidão escravos e livres, brasileiros e no Rio de Janeiro: a tese de Mary imigrantes, jovens e adultos, negros e Karasch, A vida dos escravos no Rio de brancos. Sua tradição rebelde, desde a Janeiro 1808-1850,13 traz um estudo chegada da Família Real Portuguesa cheio de informações sobre a capoeira ao Brasil em 1808, já se tornara uma carioca, desde sua origem até o seu dor de cabeça para a elite imperial e caráter lúdico, passando pela análise seus órgãos de repressão. O declínio da das imagens de Rugendas e pela agricultura e a expansão da cidade documentação policial. A outra obra é geraram o aumento da circulação de a de Thomas Holloway sobre a polícia escravos, tornando-se isso um no Rio de Janeiro 14 . Ele analisa os “problema inevitável”18 com o qual as processos criminais, onde “teria que autoridades passaram a se preocupar. inevitavelmente esbarrar com a O temor social que essa camada da sombra dos capoeiras”15. Outras teses população causava nas classes média e referem-se ao embate dos dois estilos alta era maximizado, neste momento, de capoeira: Angola e Regional. Luis pela união dessa população com as 25
  • 26. outras camadas pobres, promovendo a ativamente das lutas políticas dentro troca social e cultural entre elas. A dos grupos dominantes, como figura típica do capoeira iria se tornar capangas de senhores da Corte, e mesmo incorporava termos e trejeitos símbolo deste momento. do vocabulário pedante dos juízes e Dentro da cidade, a capoeira doutores da política da época.19 perdeu seu conceito inicial e vago de resistência ao trabalho escravo para A capoeira ganhou grande ampliar seu raio de ação. Os capoeiras importância política quando seus agora eram forjadores de uma nova praticantes, individualmente ou nas identidade popular, estabeleciam seus “maltas”, inserira-se nos conflitos territórios, marcados por laços de político-partidários da Corte, na parentesco ou de expressões culturais. segunda metade do século XIX. As maltas eram a unidade da atuação Atuando individualmente como dos praticantes da luta. Elas ficaram capangas políticos, os capoeiras famosas pela destreza e a andavam em uma linha tênue entre a malandragem de seus integrantes, resistência e a sobrevivência; atuando que conheciam os quatro cantos da nas “maltas”, eram vistos como cidade, fazendo arruaças e motins. A “exército das ruas”, oferecendo terror formação das maltas no Rio de Janeiro ao partido político rival e à classe contava com escravos e homens livres, média moradora da cidade e pode ser interpretada como um Em um artigo sobre o tema, Assis chamariz dos segmentos sociais Cintra distingue entre os capoeiras excluídos por uma noção de profissionais e os amadores. Os pertencimento; nelas podiam profissionais são definidos como recompor desde o sentido de família capangas políticos, que viviam às até sua participação dentro da política custas dos cabos eleitorais ou como da época. desordeiros e ladrões, que atacavam os A forte presença deles nos conflitos transeuntes. Os amadores eram urbanos fez com que tivessem uma meninos bonitos avalentoados, filhos estranha relação com o poder. de gente rica e importante, ou mesmo rapazes de boa família, que praticavam Na realidade, ao mesmo tempo em que e aprendiam a capoeiragem por enfrentava o aparato policial e a ordem simples esporte [...] É certo, porém, escravista, a capoeira participava que os capoeiras profissionais alvo 26
  • 27. principal da repressão formaram com que os capoeiras ressurgissem desde sua origem verdadeiras intensamente, provocando pânico às organizações de escravos e libertos, donas-de-casa e entusiasmo à classe com uma dupla face a um tempo política dominante. A partir desse ameaçadora e instrumental para a momento, a malta “Flor da Gente” elite branca do Rio de Janeiro.20 iria se tornar o símbolo da violência As maltas mais famosas por esse política conservadora. tipo de prática foram os Nagoas e os Os capoeiras que retornaram da Guaiamuns. Segundo Líbano, as duas Guerra do Paraguai lutavam mais maltas agregaram, nos últimos 15 ferozmente pelos direitos adquiridos anos do século XIX, as antigas maltas, na Guerra e por maior participação que dividiam em muitas partes a política, fato que perdurou até 1890 geografia do Rio de Janeiro. Os em várias nuances, ora conservadora, cronistas da época relatavam que uma ora liberal, ora republicana, ora era ligada ao Partido Conservador e a monarquista, ora autônoma. Digo outra ao Partido Liberal. autônoma porque a guerra criou uma Apadrinhados pelos políticos, os consciência inconformista nos capoeiras gozavam a impunidade de soldados negros, impondo-lhes novo seus delitos. Porém, quando liberais e status na ordem social. Eles formaram conservadores se uniam, as maltas então, o Partido Capoeira, durante a sofria uma repressão cada vez mais conjuntura política de 1880, não sendo forte e constante. uma instituição oficial, mas uma O fim da Guerra do Paraguai em forma de fazer política nas ruas, ligada 1870 trouxe maior mobilidade para os a uma forma de identidade, livre de capoeiras. O recrutamento qualquer padrinho e construtora de “obrigatório” dos Voluntários da relações com a política dominante. Pátria e as promessas de liberdade aos Envolveram-se também com a escravos-soldados fizeram com que campanha abolicionista e a Guarda muitos capoeiras fossem sentar praça. Negra, que tinha por função proteger O retorno prestigioso dos “heróis” da a Princesa Isabel e impedir a guerra fez com que eles retomassem o propaganda republicana. Esta foi poder das ruas. A elite monárquica outra linha de conflito em que os agora apoiava tais “heróis”, o que fez capoeiras eram agentes sociais ativos, demonstrando sua politização perante 27
  • 28. o cenário político do Rio de Janeiro e malandragem e a sobrevivência nas da sociedade brasileira. ruas, esses agentes iam forjando sua Após o Golpe Militar de 1889, o inclusão e sua participação social. regime republicano, baseado no A historiografia tradicional mostra militarismo e no autoritarismo, a capangagem e os conflitos político- fechou o cerco aos capoeiras. Através partidários nos quais os capoeiras do Código Penal, citado acima, o chefe estavam envolvidos, como estes de polícia Sampaio Ferraz, que antes seriam manipulados para fins de ser nomeado caçou capoeiras como eleitoreiros em troca de benefícios promotor público, tinha carta branca individuais. Ao analisar a participação de Deodoro da Fonseca para acabar de dos capoeiras na vida política da vez com a capoeiragem carioca, cidade, percebe-se que eles exerciam isolando seus integrantes de seus seu papel como uma opção política, clientes e deportando-os para dentro de suas peculiaridades Fernando de Noronha. culturais e de uma ânsia de participação nas decisões eleitorais. Considerações finais Após a Guerra do Paraguai, temos Podemos notar, ao longo do texto, o essa visão mais clara. Os soldados panorama social no qual os capoeiras voltam mais conscientes de seu poder estavam inseridos, ou melhor, de decisão e colocam em prática essa inseriam-se. Profundas mudanças visão na política das ruas: a formação estruturais aconteciam na sociedade do Partido Capoeira demonstra que brasileira da segunda metade do eles estavam dispostos a jogar em século XIX; era época de igualdade de poder com a elite questionamentos e lutas sangrentas dirigente. Mesmo a participação dos pelo poder. capoeiras nos partidos das elites e na A capoeira, com suas maltas, Guarda Negra demonstra o inseria-se nesse contexto como centro pensamento político desse segmento. agregador e construtor de laços de Paulo Moreira conceitua o “projeto solidariedade entre os seus dos escravos” como ações com algum praticantes e laços políticos com a objetivo predeterminado, que foi classe dirigente do país. Em elaborado em função das experiências permanente conflito entre a socioculturais em que estavam imersos, sendo sua eficácia 28
  • 29. de Janeiro. Revista do Brasil nº 4: Prefeitura dependente de um jogo permanente de Municipal do Rio de Janeiro, 1985. mudanças de estratégia.21 FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. 6. ed. Não podemos atribuir somente aos Petrópolis: Vozes, 1988. HOLLOWAY, Thomas. Policia no Rio de capoeiras cariocas deste período Janeiro:repressão e resistência numa cidade do analisado tal especificidade de luta e século XIX. Rio de Janeiro: FGV 1997. , KARASCH, MARY. A vida dos escravos no Rio de relação com o poder. A capoeira em de Janeiro – 1808/1850. São Paulo: Cia das qualquer momento é filha de seu Letras, 2000. LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A tempo e sempre fez parte do cotidiano negregada instituição:os capoeiras no Rio de tanto das camadas populares como dos Janeiro. Rio de Janeiro: SMC, Departamento dirigentes da política. Tal o foi dentro Geral de Documentação e Informação Cultural, 1994. das senzalas, foi na cidade, como LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A capoeira analisamos, e foi em 1930/40 período escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas: não analisado neste artigo, época em Unicamp, 2002. que a capoeira foi liberada pelo então MOREIRA, Paulo Roberto S. Os cativos e os homens de bem experiências negras no espaço presidente Getúlio Vargas em seu urbano. Porto Alegre: EST, 2003. projeto nacionalista, e o é hoje, quando MOREIRA, Paulo Roberto S. entre o deboche e a se insere dentro do sistema de rapina: os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, mercado, quando o praticante se 1993. Dissertação de mestrado. profissionaliza e vende as aulas de WISSEMBACH, Maria Cristina. Da escravidão à liberdade: dimensões de uma privacidade capoeira. possível. In: NOVAIS, Fernando. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1998. Referências bibliográficas AREIAS, Almir. O que é capoeira. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. Notas CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São * Pós-graduanda em História Africana e Afro- Paulo: Cia. das Letras, 1987. Brasileira pela FAPA – Faculdades Porto- ___________. Construção da Ordem: a elite Alegrenses. política imperial; teatro de sombras: a política 1 Wissembach, 1998, p. 91 imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. 2 Moreira, 2003, p. 21, citando Thompson, E. P. CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade – Costumbres em común. Barcelona: Crítica, uma história das últimas décadas da 1995, p. 17-22. escravidão na corte. São Paulo: Cia. das Letras, 3 Líbano Soares, 1994, p.9. 1990. 4 Moraes Filho, Alexandre M. Festas e tradições ___________. Cidade febril – cortiços e populares do Brasil. Rio de Janeiro: epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia Technoprint, s.d. das Letras, 1996. 5 Azevedo, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro: DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e Technoprint, s.d. heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 6 Assis, Machado. Crônicas:1878-1888. Rio de DIAS Luis Sergio. Capoeira, morte e vida no Rio 29
  • 30. Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão (Elementos de uma Cristologia afro-brasileira Marcelo Barros* Apesar do rigoroso e prolongado inserem mais profundamente no inverno eclesiástico e dos conjunto da população de matriz fundamentalismos, expressos em africana e convivem de forma muito notificações do Vaticano, como em mais justa com as crenças e rituais sínodos confessionais que decidiram autóctones. romper com organismos ecumênicos, Aqui, proponho-me a falar de vivemos, na América Latina, um elementos cristológicos latentes nas momento novo de revalorização das diversas devoções do Catolicismo religiões afro-americanas e popular. Também abordarei uma ameríndias. Para estas, a pessoa de evolução existente atualmente na Jesus Cristo era respeitado e temido, forma como as comunidades do mas de forma longínqua. O diálogo Candomblé vêem a Jesus, mas me com cristãos de cultura afro que deterei mais na expressão de fé das tentam aproximar Jesus e sua comunidades de matriz africana que experiência de fé da tradição dos seus pertencem às Igrejas cristãs. ancestrais afro tem mudado esta realidade. Tanto as comunidades de 1. Um olhar sobre o Catolicismo religiões autóctones como os grupos atual e popular cristãos de cultura afro começam a Os colonizadores trouxeram da reinterpretar a fé, transmitida pelo Europa um Cristianismo Cristianismo imposto pelos profundamente sincrético, “resultado colonizadores. Isso muda a forma de uma síntese entre a experiência como o Candomblé e a Umbanda religiosa antiga dos gregos, romanos e passam a olhar Jesus Cristo, mas bárbaros com a tradição judeu- também a expressão de fé das próprias cristã” 1 . Os antigos Concílios que comunidades cristãs populares que se definiram a fé cristológica vigente no 30
  • 31. Cristianismo, além dos interesses de “primeira reencarnação”. Nada políticos do momento, situaram-se tem a ver com o dogma cristão dentro deste esforço de expressar a fé expresso nos Concílios antigos da para os novos povos que entravam na Igreja. Igreja. Hoje, uma primeira Esta realidade do Cristianismo constatação necessária é que a fé popular não é, em si, totalmente cristã vivida pelas comunidades diferente mesmo do catolicismo católicas e evangélicas já não se oficial. Mesmo o modo como, muitas expressa exatamente com a mesma vezes, papas, bispos e pastores se formulação consagrada nos Concílios expressam sobre Jesus mistura antigos. elementos de Nicéia e Calcedônia com O Brasil é dos poucos países do mitos que foram inconscientemente mundo no qual a doutrina espírita absorvidos no Cristianismo popular. continua com muita vitalidade. Todos os católicos começam as orações Dentro deste caldeirão de culturas e dizendo: “em nome do Pai, do Filho e expressões teológicas, termos como do Espírito Santo”, e as Igrejas antigas “Filho de Deus” e “encarnação” continuam fazendo as orações denotam significados diversos do que litúrgicas ao Pai, pelo Filho, na a tradição eclesial tinha lhes dado. unidade do Espírito. Entretanto, esta Filho de Deus, sim. Porém, uma mãe teologia litúrgica parece pouco de santo me perguntou: “Por que absorvida pela prática devocional. único? O Budismo Tibetano diz que o Qualquer exame, mesmo rápido e Dalai Lama é a encarnação do próprio superficial, nos hinários católicos e Buda da Compaixão, e não tenho evangélicos, usados em nossas dificuldade de crer nisso. Deus tem dioceses e paróquias, mostrará não tantas formas de se manifestar. Mas somente uma espécie de monismo por que dizer que só Jesus é Filho de cristológico (um Cristo Deus tomado Deus?”. Do mesmo modo, quando, nas em si mesmo, no qual o humano camadas mais populares, se fala em entrou apenas como revestimento “encarnação”, facilmente as pessoas transitório), mas, o que é pior, uma compreendem isso como uma espécie religião cujo Deus é o Cristo, sem 31
  • 32. referência direta e vivencial ao Pai. expressão de fé que nem chega a ser Mesmo orações e hinos oficiais da esta dos Concílios. É ainda mais Liturgia contêm expressões duvidosas mítica, menos humanizada e capaz de e pouco ortodoxas. Vejam esta prece do dialogar com outras expressões da fé. Ofício da Tarde do Sábado Santo na Por isso, torna-se ainda mais atual Liturgia das Horas: “Ó Deus do urgente e essencial o trabalho de universo, que dominais todos os reencontrar outras formas de crer e confins da terra e quisestes ser falar de Jesus. Mesmo em meio às encerrado num sepulcro, livrai do ambigüidades inerentes ao tema, inferno o gênero humano e dai-lhe a proponho-me a aprofundar alguns 2 glória da imortalidade”. elementos cristológicos que me Ao orar esta prece, alguém pode parecem próprios, ou ao menos mais recordar-se de Moltmann e de sua tese característicos, de muitas pessoas e sobre “O Deus Crucificado”, segundo até de comunidades que vivem a fé a qual o Pai está na cruz com Jesus. cristã a partir das culturas afro- Mas estas preces litúrgicas não são brasileiras. dirigidas ao Pai. São todas destinadas a Jesus. 2. Uma espiritualidade popular Um conhecimento maior e mais de aliança crítico da história bem como o desafio Muitas vezes, na Teologia e do pluralismo cultural e religioso nos Pastoral, o Catolicismo Popular em fornecem razões teológicas e pastorais suas diversas formas foi acusado de para questionar as expressões superstição e até de certa idolatria. cristológicas dos Concílios antigos, já Em tempos de Cruzada por um diferentes da fé expressa no Novo Cristocentrismo dogmático, não deixa Testamento, que, em si, já é diversa da de ser interessante observar que forma como o movimento de Jesus muitos grupos apoiados diretamente propunha a fé no primeiro momento. por Roma e pela maioria da hierarquia Entretanto, a maioria de nossas eclesiástica centram muito mais sua fé comunidades religiosas, mesmo as não na devoção mariana e no culto aos populares, mantêm sobre Jesus uma santos do que na fé e culto a Jesus. 32
  • 33. Nas últimas décadas, percebemos natureza (o Candomblé chama de que, ao agir assim, os fiéis do Orixás e a tradição angolana de Catolicismo mais popular refazem a Iquices). espiritualidade da aliança proposta A pessoa consagrada a este ou a pela fé bíblica. Como, na versão da fé aquele Orixá tem uma relação tão que receberam, Deus lhes parecia íntima com ele que o recebe e é por ele distante e separado da vida, transformado/a. O Senhor do Bonfim aprofundaram uma aliança de em Salvador ou o Bom Jesus da Lapa intimidade com as manifestações ou Jesus de Pirapora são santos como divinas que lhes pareciam mais outros quaisquer. Mas, como santos, próximas. Os santos e santas da são manifestações do amor divino. devoção popular se tornaram Protegem seus devotos e os “manifestações de Deus” como na acompanham em suas vidas. cultura bíblica se fala da Torá Desde que, a partir das décadas (Palavra), da Shekiná (Tenda), da mais recentes, as religiões afro são Hokmá (Sabedoria), da Glória e valorizadas e não precisam mais ser mesmo do “Anjo do Senhor”. ocultadas ou disfarçadas, as pessoas Este tipo de versão religiosa da fé têm mais liberdade de adorar os cristã existe nas mais diversas Orixás em si mesmos, sem precisar do camadas do Catolicismo popular, de sincretismo no qual se dizia que matriz negra, indígena ou mesmo de Iemanjá é Nossa Senhora. A partir tradição européia. De certa forma, desta liberdade, muitos fiéis dos está presente em algumas devoções na Orixás dividiram as águas e deixaram Europa ou América do Norte. de ser de Igreja. Mas muitos e muitas Entretanto, na América Latina, esta dos que honram os Orixás quiseram teologia popular decorre das culturas continuar devotos de Jesus Cristo. afro e indígenas. Na fé Ioruba e na Entretanto, este Jesus é recebido e religião vinda de Angola, como em acreditado a partir de uma cultura muitas comunidades indígenas, a religiosa própria e original. A história relação de intimidade com Deus se dá contada nos Evangelhos e a pregação através das manifestações divinas na tradicional dos padres e pastores são ouvidas e até incorporadas. “Jesus é 33
  • 34. filho de Maria Virgem, sofreu por nós, religião tradicional e a fé cristã. foi crucificado para nos salvar” são Espantada com a própria pergunta, a dados conhecidos, mas são velha respondeu com palavras e compreendidos a partir de uma expressões que, para mim, foram cosmovisão própria. Neste contexto de muito surpreendentes. Anotei tudo o condenações e de debates que ela disse e tentei traduzir sua cristológicos, é bom conhecermos resposta assim: “Não há nenhuma melhor estas Cristologias populares, dificuldade de ligar Jesus e Kanambe. principalmente na relação entre Jesus Jesus Cristo nos revela Deus presente e os Orixás. na história, nos acontecimentos da vida e nas pessoas e nos ajuda a 3. Jesus e Kanambe descobrir que Kanambe manifesta Quando estive no Quênia, em Deus presente na natureza, na terra e janeiro de 2007, procurei conhecer na água. As duas ordens não entram alguma expressão atual das religiões em conflito e até se interpenetram. africanas antigas e ver em que isso me Jesus é como uma espécie de plenitude ajudava a compreender melhor as da fé em Kanambe, mas não na tradições afro-brasileiras. Fui levado, medida em que a esvazia ou a substitui a uns 100 km de Nairóbi, para por uma espécie de “cultura cristã conhecer uma aldeia tradicional do ocidentalizada”, mas, ao contrário, povo Kamba. Ali conheci uma senhora valoriza-a e dá a ela densidade idosa, sacerdotisa da tradição de histórica”. Kanambe, a deusa da Água. Depois de É claro que esta expressão de fé ter escutado como ela expressa sua fé daquela cristã africana nunca seria na religião tradicional, espantei-me aceita por uma Cristologia para a qual quando me disseram que ali todos Jesus é único e, como todos os eram cristãos, inclusive aquela colonizadores, substitui o que havia sacerdotisa que, muitas vezes, nas antes dele, colocando-se como missas, é chamada pelo padre para referência de fé exclusiva. De fato, ela abençoar o seu povo. Perguntei, então, me contou a dificuldade que tem em como ela formulava a relação entre a 34
  • 35. valorizar a cultura (nem se fala da deste tempo promessas que exigiam religião) tradicional do seu povo sacrifícios e dores, como subir quando chegam ao local alguns grupos ladeiras de joelhos, humilhar-se em neopentecostais que exigem o público, não comer em certos dias abandono até das roupas, costumes, sagrados, não beber nem água e assim músicas e danças culturais do povo. por diante. O diálogo com aquela sacerdotisa africana me ajudou a compreender 2. O sincretismo com Orixás melhor a sabedoria do sincretismo tradicionais afro-brasileiro. Ele teve uma evolução Com o fim da escravidão oficial, ou processo que podemos resumir em nenhum pais indenizou os antigos três fases. escravos ou cuidou de como este povo poderia sobreviver, abandonado à 4. Do Senhor do Bonfim ao Orixá própria sorte. A partir deste tempo, as Jesus de Nazaré comunidades negras começaram O olhar sobre o Cristo vivido pelos lentamente a poder se reapropriar de descendentes dos escravos teve uma seus símbolos e de sua religião própria. evolução complexa com, ao menos, Para os que eram cristãos, isso três etapas ou níveis: provocou certa evolução na Cristologia. Não precisavam mais ver 1 . Tributo ao Senhor do Bonfim o Senhor do Bonfim ou o Bom Jesus da Em tempos idos, devoções a Jesus Lapa como deuses do feitor branco. como “Senhor do Bonfim”, Bom Não deixaram de ser brancos e de Jesus da Lapa e outras representar símbolos sempre ligados representavam uma espécie de ao colonizador. Mas, agora, podiam ser tributo que o negro deveria pagar ao realmente reapropriados pelas deus branco que não era amigo do comunidades de cultura afro. Para escravo ou de seu descendente, mas limpá-los das roupas escravagistas, os deveria ser adulado e cortejado para fiéis negros ou seus descendentes, não castigá-lo, já que era um deus inconscientemente, os ligaram a forte e protegia o senhor branco. São Oxalá ou Xangô. Houve muitos que 35
  • 36. fizeram isso, não por ignorância ou passam a ver Jesus Cristo como porque os confundissem com Orixás, alguém que viveu em tudo a existência mas porque precisavam desta humana e, a partir de sua morte, foi identificação (como para os latino- assumido por Deus e se tornou divino. americanos comprometidos com a É como um Orixá. É um homem que, revolução, a própria figura de Che por ter vivido de forma justa e santa, Guevara se parece com a de Jesus foi divinizado, como toda pessoa Cristo). É a Cristologia do sincretismo humana é chamada a ser. de confusão ou de reapropriação. 4. A originalidade de Jesus de 3. O Orixá Jesus de Nazaré Nazaré Nos anos mais recentes, passamos Expressar em conceitos a própria a outro nível da Cristologia afro- fé é difícil, mas pretender expressar brasileira. Desde os tempos depois do como crêem os outros é praticamente Concilio Vaticano II, muita gente de impossível, sem o risco de ser injusto e comunidades afro participa de grupos redutivo. No caso das culturas afro- bíblicos e comunidades eclesiais de brasileiras, isso ainda é mais complexo base. Nestes ambientes, aprende-se a por causa da diversidade de expressões valorizar o Jesus histórico. O contato e culturas e pelo fato de serem com os Evangelhos permite um tradições orais. Seja como for, todas conhecimento maior de Jesus de estas formas de viver a fé se formaram Nazaré em sua historicidade humana. em diálogo ou até inserção na tradição Este conhecimento passou para as cristã popular e com a exigência de se comunidades e mesmo para elementos defrontar com a pessoa e a missão de do culto e da fé comum. Entretanto, Jesus Cristo. assim como Xangô, Ogum, Oxalá e Há de tudo. Pode-se concluir uma Oxossi foram antepassados, reis ou Cristologia própria da devoção ao príncipes dos antigos reinos Ioruba e “Senhor Morto”, outra Cristologia do se tornaram Orixás e associados ao Jesus mítico de narrativas orais que, fogo, ao ferro, à terra e à mata virgem, no meio do povo, formam como que assim também as comunidades negras novos evangelhos apócrifos cheios de 36
  • 37. histórias que as pessoas contam sobre cristológica, quando ocorre, não é para “quando Jesus e São Pedro andavam legitimar poderes hierárquicos ou pelo mundo”. Quase todos os dominação de pessoas sobre outras santuários populares nascem de pessoas (há Cristologias oficiais que relatos fantásticos ligados a aparições foram pensadas para isso e disfarçam de imagens ou milagres este fato). Por tudo isso, são extraordinários. A maioria deles Cristologias a partir de baixo e ligadas acontece com “Nossa Senhora”, que, à vida de quem sofre. São cristologias na América Latina, substitui o culto à narrativas e fragmentadas que, por Mãe Terra ou à deusa da fecundidade. não ser de caráter dogmático (contam Mas, no Brasil, há alguns a Jesus histórias, não afirmam dogmas), não (Bom Jesus de Pirapora, Bom Jesus da se envergonham de ser incompletas. Lapa e assim por diante). Todos são a Ao contrário de quaisquer tendências um Jesus humano e compassivo de um Cristocentrismo exclusivista, (“Bom Jesus”) retratado na sua Jesus é o Cristo (Ungido de Deus), mas Paixão como a figura da solidariedade. não é isolado de todos os seus irmãos e Pelo fato de ser expressões de fé irmãs, nem das forças da natureza que vividas por uma maioria de pessoas são sacramentos divinos, nem dos pobres e sofredoras, a figura de Jesus personagens que, como Jesus, são sempre aparece mais como sendo o para o povo Cristos ou Consagrados. Cristo sofredor e humilhado. A Cruz Da caminhada de libertação, estas recebe uma explicação de comunidades aprendem a valorizar solidariedade: “Deu a vida por nós” que a própria pessoa e a missão de (entregou-se no lugar dos discípulos Jesus podem ser resumidas em sua aos inimigos) mais do que uma própria palavra: “Eu vim para que justificativa de caráter sacrifical todos tenham vida, e vida em (ofereceu-se ao Pai ou morreu pelos abundância” (Jo 10,10). nossos pecados). Em 1996, em Bogotá, o 2º Estes tipos de expressão de fé vêm Encontro Continental da Assembléia de pessoas não ligadas à cultura do Povo de Deus propôs o ocidental. Sua tentativa de síntese aprofundamento de uma 37