1. identidade!
Periódico do Grupo de Identidade da Faculdades EST/IECLB - vol. 12, julho-dezembro/2007
ISSN 1676-9570
Pág. 6 Diferenciação racial e desigualdade social
Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes
Pág. 15 O estudo da História da África no resgate das origens do povo negro
e o desenvolvimento de processos pedagógicos em projetos sociais -
Luciana Marques Pereira e Margarete Fagundes Nunes
Pág. 22 Entre a malandragem e a sobrevivência: breves considerações sobre
os “capoeiras” - Anna Luiza de Moura Saldanha
Pág. 30 Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão (Elementos de uma Cristologia
afro-brasileira - Marcelo Barros
2. Expediente
Identidade!
Periódico do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB
Vol. 12, julho-dezembro/2007
Apoio: Federação Luterana Mundial – FLM
Periodicidade: Semestral
Tiragem: 2.000 exemplares
Revisão: Luís M. Sander
Diagramação e impressão: Con-Texto Gráfica e Editora www.est.com.br
Capa: Marcelo Ricardo Zeni
Coordenação/organização geral: Selenir C. Gonçalves Kronbauer
Responsável por este número: Selenir C. Gonçalves Kronbauer
Endereço para contato Grupo Identidade:
Escola Superior de Teologia
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Obs.: São de total responsabilidade dos autores os textos por eles escritos.
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Conselho Editorial
Afonso Maria Logório Soares - PUC/SP
Alceu Ravanello Ferraro - UNILASALLE/RS
Elaine Neuenfeldt - EST/RS
Gabriel Grabowski - FEEVALE/RS
Georgina Helena Lima Nunes - UFPEL/RS
José Ivo Follmann - UNISINOS/RS
Eunice Maria Nazarethe Nonato - IPA METODISTA/RS
Magna Lima Magalhães - FEEVALE/RS
Maricel Mena Lopez - Pontificia Universidad Javeriana - Colômbia
Marga Janete Stroher - EST/RS
Peter Theodo Nash - Wartburg College/EUA
Ricardo Willy Rieth - EST/RS
Indexação:
Qualis CAPES: A Local
Área de avaliação: Filosofia/Teologia: subcomissão Teologia
Qualis CAPES: B Local
Área de Avaliação: Educação
02
3. Editorial
O décimo segundo volume de identidade! aborda a
temática Negritude e Cultura, com enfoque no resgate e
valorização da cultura afro-brasileira.
Todos os assuntos aqui apresentados enriquecem a
discussão sobre a necessidade do estudo das culturas, suas
transformações, con-
tribuições dentro do
contexto social brasi-
leiro e, sua necessária
valorização, na medi-
da em que este estudo
servirá de base a um
processo pedagógico
adequado na busca de
um tratamento iguali-
tário da diversidade
cultural e da conse-
qüente inserção social.
Desejo a todos uma boa leitura!
Profª. Ms. Selenir C. Gonçalves Kronbauer
Coordenadora do Grupo Identidade da Faculdades EST/IECLB
03
4. Apresentação
O presente número de especificidade. Diferenciação racial
periódico identidade! traz a e desigualdade social leva a sério o
contribuição sobre a cultura afro- tema da desigualdade social em
negra brasileira. Cultura é um nosso país, demonstrando que ela
conceito muito amplo e de difícil está em relação direta com uma
definição. Ao se falar de uma hierarquização racializada da
cultura “negra”, afirmamos que sociedade. Segundo elas, “o critério
existem construções culturais racial opera como fator de dife-
específicas das populações negras, renciação e geração de desigual-
que surgem de sua condição sui dades”. Operacionalizando o con-
generis. Calvani afirma que o que ceito habitus racista, as autoras
caracteriza a cultura brasileira é o apresentam dados que comprovam
ecletismo e o sincretismo. Sem a exclusão da população negra,
negar essa característica, enten- problematizando as formas como as
demos que a cultura negra é Ciências Sociais têm argumentado
apropriada por outros segmentos da sobre a questão. É no contexto de
população, de modo que o sincre- exclusão e discriminação que a
tismo atue em favor das classes população negra elabora sua cul-
dominantes. Neste número do tura.
periódico, contamos com a colabo- No mesmo sentido, o artigo de
ração plural de pessoas oriundas de Luciana M. Pereira e Margarete F.
diversas disciplinas acadêmicas, Nunes apresenta o processo de
com caminhadas diferentes, para empoderamento de crianças negras
que nossos horizontes sejam de uma comunidade da periferia de
ampliados. Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul.
Um dos motores da cultura O estudo da História da África no
afro-negra é a sua condição social resgate das origens do povo negro e
específica. Nesse sentido, o artigo o desenvolvimento de processos
de Érica Pastori, Janine Prandini, pedagógicos em projetos sociais
Luciana Pêss e Rosiane Pontes problematiza a implantação da Lei
auxilia a compreender qual é essa 10.639/03. Na avaliação das autoras,
04
5. a Lei 10.639/03 está sendo implan- desse elemento cultural afro-negro é
tada lentamente, sugerindo projetos demonstrado durante todo o artigo,
de extensão universitária como sempre relacionado com as trans-
soluções viáveis em curto prazo. No formações sociais enfrentadas pela
Projeto Quizomba da Cidadania sociedade brasileira.
foram trabalhadas auto-estima, No último artigo desse volume
história, memória e cidadania. Esse de identidade!, Marcelo Barros
é um projeto que valoriza a cultura contribui para a discussão sobre
carnavalesca da comunidade e, a uma cristologia negra. Jesus de
partir dela, busca empoderar novos Nazaré, Orixá da Compaixão (Ele-
atores para o conhecimento da mentos de uma cristologia afro-
realidade e história coletiva. brasileira) analisa as transforma-
O artigo de Anna L. M. ções ocorridas no meio eclesiástico e
Saldanha faz um resgate histórico- teológico, com a (re)valorização das
bibliográfico de um elemento cultu- religiões afro-americanas e amerín-
ral afro-negro: a capoeira. Entre a dias. Diante do caráter sincrético do
malandragem e a sobrevivência: cristianismo trazido ao Brasil, o
breves considerações sobre os autor entende que na religiosidade
“capoeiras” trabalha o período entre popular há uma “aliança” entre
1850 (ano da promulgação da Lei diversas expressões religiosas. A
Eusébio de Queirós) e 1890 (ano da partir dessa constatação, apresenta
proibição da capoeira). Segundo a elementos para uma cristologia
autora, com o crescimento das cida- negra que valorize expressões cultu-
des, houve a organização de grupos rais distintas.
de resistência, como as maltas de Desejamos a todos e todas uma
capoeira cariocas. Os capoeiras são boa leitura, na esperança de que esse
apresentados como atuantes no seja mais um instrumento no cres-
cenário político-eleitoral do Segundo cimento epistemológico de nossas
Império. Diferenciando as obras comunidades, para a valorização de
sobre a capoeira em três blocos, a sua cultura e de sua história.
autora pretende situar espaço- Ezequiel de Souza
temporalmente seu objeto de estudo. Teólogo, mestrando em Teologia na
O caráter eminentemente político Faculdades EST, Bolsista CNPq
05
6. Diferenciação racial e desigualdade social
Érica Pastori, Janine Prandini, Luciana Pêss e Rosiane Pontes*
Um dos mais graves problemas do científico, ou seja, um lugar tido como
Brasil é a desigualdade social, supostamente de livre acesso e que
desigualdade essa na qual agora está sendo pensado como um
encontramos um grande fosso que lugar privilegiado de parte da
separa os mais ricos aqueles que têm população, parte da população branca
melhores oportunidades da classe do país. Ao apontarmos alguns
média e, principalmente, dos mais exemplos de negros bem-sucedidos
pobres. No entanto, trabalharemos estamos, não demonstrando como
neste artigo uma possibilidade vivemos numa sociedade sem
sociológica e, anteriormente, desigualdade racial, mas
epistemológica da existência da evidenciando a discriminação
geração de desigualdade social a existente, já que os referidos exemplos
partir do processo de diferenciação são imensamente valorizados
social. A negação do diferente barra o justamente por constituírem
acesso igualitário a mecanismos de exceções, por retratarem caminhos
ascensão social. que foram traçados de forma diferente
Podemos verificar que o critério do que era esperado.
racial opera como fator de Essa diferenciação que há em
diferenciação e geração de nossa realidade social tem sua base na
desigualdades ao observar que mesmo raça dos indivíduos. A partir da
entre as camadas populares, constatação de que o conceito de raça
constituintes da mesma classe social, é um dos mais importantes com o qual
os indivíduos negros encontram os cientistas sociais, sobretudo
maiores dificuldades de ascensão brasileiros, devem estar bem
social, devido à discriminação. habilitados a trabalhar, exploraremos
As questões raciais no Brasil e de melhor essa questão através de uma
discriminação, principalmente de revisão bibliográfica e um debate
negros e indígenas, acrescentadas à epistemológico em torno desse tema.
questão da implantação de ações O Brasil é um país racializado.
afirmativas em alguns setores da Esta é uma posição sociológica
sociedade, suscitam debates em torno passível de ser adotada a partir do
da disputa de poder no campo momento em que analisamos
06
7. distintos fenômenos sociais pelo capital simbólico carregado pelos
brasileiros que se configuram de uma sujeitos negros, mas também, entre
maneira tal que é perceptível a outras variáveis, pelo baixo nível de
variável raça incidindo capital cultural institucionalizado que
constantemente; daí a possibilidade esses indivíduos acumulam no
de inferirmos que o racismo é um decorrer de suas vidas, devido à sua
dispositivo de poder estruturante da difícil entrada e permanência em
vida brasileira. Ter a pele negra no instituições de ensino de níveis
Brasil significa carregar um capital superiores.
simbólico que provavelmente
delineará a existência individual de A violência está de tal modo
forma negativa, marcando trajetórias interiorizada nos corações e mentes
pela dificuldade de ascensão social. que alguém pode usar a frase “um
negro de alma branca" e não ser
Pode-se falar em um habitus racista,
considerado racista. Pode referir-se
delineando certo capital simbólico: cor
aos serviçais domésticos com a frase
da pele, forma dos cabelos, formato do “uma empregada ótima: conhece seu
nariz, entre outros, que se associam lugar” e considerar-se isento de
ao capital social destes agentes preconceito de classe. Pode dizer, como
sociais, reforçando expectativas disse certa vez Paulo Maluf, “a
sociais dos negros geralmente de professorinha não deve gritar por
“menor valor social”. Este habitus salário, mas achar um marido mais
estrutura, por sua vez, o destino social eficiente” e não ser considerado
machista. (CHAUÍ, 2007).
destes indivíduos. É o que se
identifica, por exemplo, nas
entrevistas de emprego, em que o peso Uma das tarefas das ciências
de uma “boa aparência” vale muito sociais é investigar quais são as
para a seleção. “Boa aparência” essa relações de força que produzem
que dificilmente se refere ao fenótipo nossas realidades sociais e seus
negro, traços como cabelos crespos, problemas específicos no caso
pele negra e nariz largo. Segundo brasileiro, a desigualdade social que
dados da PNAD/IBGE, a taxa de impede que os pobres ascendam
desemprego da população negra, em socialmente, como se estivéssemos em
2003, foi de 10,7% contra 8,8% da uma sociedade de castas,
população branca. Com certeza esse extremamente estruturada.
dado não pode ser explicado somente Mesmo tendo uma visão de mundo
07
8. classista, onde estudamos que a também particular ou específica, não
sociedade brasileira é dividida em conseguindo generalizar-se nem
classes sociais, em cuja ontologia universalizar-se. Um direito, ao
contrário de carências e privilégios,
também seja passado o “mito da
não é particular e específico, mas geral
democracia racial” e os preceitos de
e universal, seja porque é o mesmo e
um país republicano e democrático, válido para todos os indivíduos, grupos
mesmo que se discuta a falência das e classes sociais, seja porque, embora
instituições que fundamentam esse diferenciado, é reconhecido por todos
processo, isto é, ao pensar na (como é caso dos chamados direitos
democracia brasileira, não se das minorias).
consegue correspondência direta seja Uma das práticas mais importantes da
com a liberdade ou com a igualdade. política democrática consiste
justamente em propiciar ações
Existem grupos “minoritários" (os
capazes de unificar a dispersão e a
negros são incluídos nessa categoria,
particularidade das carências em
mesmo se tratando de quase metade
interesses comuns e, graças a essa
da população nacional: sendo negros generalidade, fazê-las alcançar a
= pretos + pardos, essa categoria esfera universal dos direitos. Em
compõe 48% da população brasileira, outras palavras, privilégios e carências
segundo dados da PNAD/IBGE de determinam a desigualdade
2005) cuja expressão se dá através de econômica, social e política,
protestos e movimentos que visam à contrariando o princípio democrático
conquista dos mesmos direitos dos da igualdade, de sorte que a passagem
das carências dispersas em interesse
demais cidadãos; esses grupos não
comuns e destes aos direitos é a luta
buscam seu representante
pela igualdade. Avaliamos o alcance da
parlamentar porque não se sentem cidadania popular quando tem força
representados no poder, não o vêem para desfazer privilégios, seja porque
como um lugar que possam ocupar. os faz passar a interesses comuns, seja
Esses grupos, ao protestarem, não porque os faz perder a legitimidade
lutam por privilégios para si. diante dos direitos e também quando
tem força para fazer carências
Um privilégio é, por definição, algo passarem à condição de interesses
particular que não pode generalizar-se comuns e, destes, a direitos universais.
nem universalizar-se sem deixar de (CHAUÍ, 2007).
ser privilégio. Uma carência é uma
falta também particular ou específica Numa perspectiva histórica, o
que desemboca numa demanda autor Aníbal Quijano reflete sobre a
08
9. experiência da colonização nas menor formalidade e menor proteção
Américas promovida por europeus social relativamente à população
que envolveu negros africanos. Este branca. Dados do IBGE, divulgados
processo histórico foi decisivo para a em 2002, mostram que a desigualdade
constituição do “sistema mundo por cor é a que mais pode ser
moderno”, que tem como base a identificada como geradora da
racialização dos indivíduos, princípio desigualdade existente no Brasil. Os
necessário para estruturar a realidade negros recebem metade do
social, discurso com uma força política rendimento de brancos em todos os
suficiente para transformar essas estados. Do total de pessoas que
representações racializadas em faziam parte do 1% mais rico da
realidade. Para Quijano, a idéia de população, 88% eram de cor branca,
raça é central para a naturalização enquanto que, entre os 10% mais
das relações coloniais de dominação pobres, quase 70% se declararam de
entre europeus e não europeus. É a cor preta ou parda.
articulação entre a distribuição Na colonização, europeus
racista de identidades e a distribuição tornaram negros e indígenas afásicos
racista do trabalho e das formas de (BHABHA, 1998), isto é, a
exploração do capitalismo colonial modernidade produz também a
que garante a dominação e exploração impossibilidade da enunciação desses
européia/branca. grupos. As ciências sociais,
Um dado interessante para especialmente a antropologia, surgem
refletir sobre a perduração dessa como lugar onde os brancos falam
relação entre trabalho e raça é que, deles e por eles. E hoje, vemos a
enquanto 42% dos brancos têm antropologia brasileira num debate
carteira assinada ou são funcionários acalorado acerca da pertinência das
públicos, entre os negros este cotas raciais nas universidades
percentual é de 31,4%. Ou seja, menos federais. Não estariam estes mesmos
de um terço dos trabalhadores negros antropólogos com receio de que os
tem acesso a direitos trabalhistas silenciados cuja voz é dada pelas boas
(PNAD/IBGE, 2003). Não apenas o intenções antropológicas ocupassem
desemprego é maior entre a população esse lugar de fala, de produção de
negra comparativamente à branca, conhecimento sobre si mesmos,
como também, em geral, a primeira colocando em xeque a autoridade
tem ocupações de pior qualidade, com branca da antropologia?
09
10. No modelo proposto por Homi mesma forma, os empresários nas
Bhabha, surge a ênfase na construção novelas são sempre representados por
histórica de uma estrutura outrem. atores brancos, ao passo que as
Partindo dessa concepção, na empregadas domésticas, seguranças,
modernidade pós-colonial, passamos a porteiros e ocupantes de cargos
ter este a priori histórico que “menos nobres” são
distingue o moderno do tradicional, majoritariamente não-brancos. Ao
sendo que os colonizados devem negociarmos permanentemente
“falar” deste lugar específico que nossas certezas no rosto do outro
ocupam no espaço social, um lócus vendo neste o mundo possível lemos o
afásico produzido pelo poder colonial. mundo no rosto do outro. Quando o
De tal forma, os cientistas sociais negro é um outro regido pelo branco
brasileiros não podem partir das (processo percebido, na década de
teorias européias ocidentais para 1950, pelo autor Guerreiro Ramos,
analisar sua realidade, pois a que via o “branco” brasileiro
constituição de sua historicidade é reivindicando uma pureza
distinta. Nós, sociólogos brasileiros, inexistente, ou seja, intelectuais
devemos considerar em nossa brasileiros “brancos” lendo o negro
reflexividade essa condição pós- como um indivíduo pitoresco/exótico),
colonial. Não podemos problematizar cabe a argumentação de Eduardo
nossos fenômenos apenas a partir do Viveiros de Castro, na obra Nativo
olhar dos teóricos do “norte”. Relativo, de que a estrutura cultural
A identidade do povo brasileiro do “ocidente” é altamente altrucida.
está fundamentada no rosto branco Essa percepção racializada e que
(Deleuze); nossas certezas estão toma o negro como anormal/regido faz
firmadas na branquitude; todo o parte de nossa estrutura ontológica
nosso sistema de representação tem o histórica, ou seja, de nosso arcabouço
branco como o superior e o ideal a ser lingüístico, o qual acaba por
atingido. Para ter exemplos disso, naturalizar nossas ações, já que, ao
basta que liguemos a televisão: falarmos por meio dessas categorias
poderemos então observar as (negro e branco ou mesmo pardo,
propagandas veiculadas, nas quais a mestiço e outras categorias possíveis)
família bem-sucedida é sempre socialmente aprendidas, aderimos
representada por um casal branco inconscientemente ao racismo:
com filhos igualmente brancos. Da percebemos a realidade a partir
10
11. dessas categorias que contêm maior de conhecimento comum nos
ou menor valor no mercado de bens conhecimentos científicos” (BACHE-
simbólicos, e acabamos reproduzindo LARD, 1984). Historicizar as práticas
o racismo em nossas relações. sociais, verificando quando ocorrem
Tornamo-nos racistas, mas não descontinuidades e realizando
identificamos esse racismo como um rupturas, é a maneira mais
problema nacional que gera a interessante de realizar ciência sem
desigualdade social, pois, ao necessitar de um filósofo para julgar
naturalizar essa ontologia racista, externamente as produções
citamos outros como os principais científicas.
problemas a serem combatidos para A reflexão histórica que
obtermos a diminuição da realizamos pode nos auxiliar num
desigualdade, tais como educação e esforço para sermos rigorosos nas
emprego. investigações científicas acerca da
Partilhamos da noção de ciência questão racial e não somente desta
proposta por Gaston Bachelard, esfera social, já que não é
segundo o qual a prática científica, ou propriamente um local, mas perpassa
seja, a criação de fenômenos em múltiplos espaços sociais.
laboratório, com a premissa da Delinearemos três posições atuais das
permanente retificação de erros, ciências humanas sobre a questão
sempre reordenando conceitualmente racial que, por partirem de pontos
as racionalizações e propondo novas epistemológicos distintos, chegaram a
organizações racionais, necessita de diferentes posições normativas/
uma superação das imagens políticas.
fenomênicas: temos de polemizar com Uma das possibilidades da
nossas idéias comuns, romper com a articulação entre o horizonte
forma partilhada socialmente de antropológico e o discurso político é
percepção da realidade. Além dessa representada por autores que
ruptura epistemológica, processada fornecem uma possibilidade
através de um “esforço constante de epistêmica antiessencialista que nega
dessubjetivação” (BACHELARD, o conceito de raça no Brasil, ao
apud BOURDIEU, 2001), é de percebê-lo como um epifenômeno
extrema importância a vigilância decorrente da desigualdade de classe.
epistemológica. “É permanentemente Para eles, nossa sociedade não
necessário mostrar o que permanece dicotomiza as raças em branco e
11
12. negro, porque se construiu através ainda mais porque não considera as
das múltiplas categorias raciais, num metamorfoses que os dispositivos
verdadeiro continuum de raças. Essa racistas podem ter sofrido.
proposta epistemológica desracializa Como nos mostra Muniz Sodré,
a sociedade brasileira e, assim, depois de dispositivos discursivos
neutraliza as lutas anti-racistas. racistas até os anos 1930 no Brasil,
Não nos filiamos a essa visão, pois, temos hoje dispositivos que
como já foi colocado acima, continuam funcionando com o
acreditamos que o nosso a priori objetivo de regular o crescimento da
histórico de percepções (maneira população negra. É a biopolítica
como nos percebemos (Foucault) que passou a operar no
historicamente) foi construído pelo Brasil, focalizando a raça negra,
poder colonial e reproduzido até hoje objetivando diluí-la, se não
de forma tal que percebemos a exterminá-la para poder constituir o
realidade social racializada. Quer corpo saudável da nação. É um
dizer, para legitimar a colonização, projeto latente, que vem funcionando
criou-se a idéia de que o povo sem que nos percebamos como
colonizador era superior à população racistas, sem nos posicionarmos como
nativa dos países colonizados; por tal porque não necessitamos expor-
exemplo, a população negra era tida nos em discursos racistas, já que o
como “sem alma”, e, por isso, processo de eliminação dos negros
justificava-se a escravidão. ainda se faz presente em nosso
Atualmente, embora cotidiano.
constitucionalmente todos sejam Enquanto há antropólogos e
iguais, através da observação da vida sociólogos defendendo a inexistência
cotidiana, percebemos que nem todos do problema da raça em nosso país e
são tratados como iguais, sendo a raça apontando o desenvolvimento
um dos principais fatores de econômico como o problema a ser
diferenciação. Portanto, enfrentado, processa-se um genocídio
consideramos essa perspectiva de negros e índios no Brasil. Seja
antiessencialista, que sugere que o quando um índio é confundido com um
Brasil não é um país racializado, como mendigo, e jovens, “brincando” com
um tanto leviana por tomar os marcos esse indivíduo, ateiam fogo a seu corpo;
do Estado-Nação como unívocos para seja quando um jovem negro é
a produção de categorias sociais, e confundido com um bandido e é morto;
12
13. ou então quando, por estarem racialização é efeito de políticas da
atrasados para o vestibular, jovens modernidade que produziram um ser
negros correm, e a polícia os confunde diaspórico, ou seja, um ser que
com ladrões e os prende, impedindo-os experimenta o mundo a partir da
de fazer a prova. diáspora; a “produção” do ser negro é
Tal proposta antiessencialista dada a partir da experiência da
demonstra significativa insuficiência escravidão (a experiência da dor), e
ao não perceber o funcionamento esta é sublimada através da
estrutural no qual a história reapropriação do corpo. O negro
permanece transcorrendo; não capta entrou na modernidade de uma forma
a latência do projeto racista. É a dilacerada, tornando-se o “ser em
história incorporada (encarnada nos estado de dor”: esta é a forma pela
corpos e externalizada nas qual os corpos negros incorporaram a
instituições), a qual não necessita da escravidão. Por isso, podemos
consciência para permanecer afirmar que a cultura dos negros é
funcionando. diaspórica, formada a partir do exílio
Uma segunda possibilidade de como temos no modelo bíblico.
articular uma posição epistemológica Embora a modernidade tenha
a uma posição política foi levada a produzido esse ser, não lhe concedeu
cabo por “afro-centristas”. Foram um lugar.
produções que propiciaram uma luta Segundo Gilroy, os descendentes
anti-racista, mas somente a partir de de africanos compartilham uma
discursos que naturalizavam uma condição em comum: a de terem sido
superioridade negra a ser escravos, posteriormente libertos e,
reivindicada e posta em luta. Logo, em conseqüência discriminados
não romperam com o essencialismo, racialmente pelo outro branco. O “eu”
pois, ao denunciar a supremacia negro não está livre de uma referência
branca, apenas inverteram as tradicional, este sujeito não possui
posições. possibilidades de escolhas livres, pois
Por fim, há uma terceira vertente, sua “identidade” está diretamente
promovida por Paul Gilroy, que relacionada a seu fenótipo, à cor de
assume um lugar epistemológico anti- sua pele. O indivíduo negro, embora
racista e antiessencialista, tenha poder de ação, não encontra
defendendo que inexiste uma essência liberdade para escolher seu caminho,
negra. Esta corrente afirma que a porque tem que lidar, ao longo de sua
13
14. historicidade pessoal, com o fato de ignoramos a desigualdade nem
ser um sujeito racializado. tentamos subestimá-la; no entanto, a
Estando imersos em uma realidade falácia de que vivemos num país
social na qual a visão de mundo que miscigenado e que sabe conviver
predomina é a branca, vemos-nos pacificamente com todas as diferenças
através das lentes das raças. Mesmo entre os povos que o constituem não é
sem notar, fazemos a distinção entre constatada após uma reflexão mais
branco e não-branco. Dessa forma, não apurada sobre nossa realidade social.
podemos deixar de enunciar as tensões Em vista disto, somos favoráveis a toda
latentes nessa sociedade, os conflitos forma de combate ao preconceito racial
que, antes de ser de classe ou gênero, e tentativas de diminuição dessa
são raciais. diferença que há entre brancos e não-
Observamos em nosso cotidiano as brancos.
relações racializadas que se Uma das formas encontradas
estabelecem. Em especial, percebemos pela sociedade é a implantação de ações
no ensino superior público esta afirmativas para esse grupo com maior
distinção que a sociedade brasileira dificuldade de acesso a direitos que,
impõe aos cidadãos. Seja entre o corpo teoricamente, são de todo cidadão
docente ou entre o corpo discente, os brasileiro: citamos a educação como o
negros não estão representados, isto é, principal deles, ante os debates que
notamos que o número de estudantes ocorrem sobre a adoção das cotas
negros nas universidades públicas do raciais pelas universidades federais.
país não é proporcional à população Segundo nossa reflexão, essa é uma
negra brasileira (48%, segundo o maneira de que a população negra,
IBGE), ao focalizarmos a reflexão assim como a indígena, tenha a
sobre a representatividade dos negros possibilidade real de freqüentar a
entre os professores de nossa universidade e, assim, tenhamos a
universidade, percebemos claramente diversidade encontrada nas ruas da
a quase inexistência dessa parcela da cidade também representada em
população. nossas salas de aula.
Acreditamos que a
diferenciação racial que é estabelecida Referências Bibliográficas
nas relações sociais no Brasil é um CHAUÍ, Marilena. Ética, violência e
fator determinante para a racismo. In: Repórter Diário Brasil, de
desigualdade social do mesmo. Não 6/4/2007
BACHELARD, Gaston. A filosofia do não.
14
15. O estudo da História da África no resgate das origens
do povo negro e o desenvolvimento de processos
pedagógicos em projetos sociais1
Luciana Marques Pereira2
Margarete Fagundes Nunes3
O estudo da história da África no no projeto Quizomba da Cidadania por
Brasil tornou-se obrigatório através da acadêmicas do curso de História da
Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003.4 Feevale, vincula-se a outras
Mas podemos nos perguntar se essa lei linguagens que fazem parte do
vem sendo cumprida e se os cotidiano dessas comunidades, como a
profissionais da educação estão musicalidade, a dança, as expressões
adequadamente preparados, se há artísticas ligadas ao universo do
material didático apropriado, já que o carnaval, presentes em suas
Brasil tem em sua história o experiências culturais, fortificadas
escravismo dos negros e uma pelas vivências em grupo e por uma
discriminação racial construída desde solidariedade étnico-racial.
os primórdios do descobrimento do A partir de projetos como o
país. Baseando-se na experiência do Quizomba da Cidadania, podemos
projeto de extensão Quizomba da avaliar as verdadeiras dificuldades que
Cidadania5 , desenvolvido junto às as escolas da rede formal de ensino
comunidades carnavalescas de Novo enfrentam para a implementação da
Hamburgo/RS e do qual a Feevale é lei 10.639 e, ao mesmo tempo, avaliar a
uma das entidades integrantes, ação conjunta de diversas entidades
buscamos analisar como os sociais: comunidades carnavalescas,
profissionais e acadêmicos se integram universidade, movimento social,
na construção de uma proposta organizações governamentais e não-
pedagógica extracurricular, isto é, governamen-tais. No caso da
trabalhando com crianças de idades e universidade, procuramos verificar
níveis de aprendizagem diferentes fora como o curso de História organiza-se
do ambiente escolar, e como vem sendo para a atender a demanda de formação
implementado o proposto na Lei de acadêmicos nessa temática
10.639 junto às comunidades específica.
carnavalescas. O processo de ensino- No ano de 2007, a Feevale, por
aprendizagem de história da África e meio do projeto de extensão Banda
cultura afro-brasileira, desenvolvido Mirim 6 , integrou-se ao projeto
15
16. Quizomba da Cidadania, que teve sua No projeto Banda Mirim /
primeira edição de março a setembro Quizomba da Cidadania, as
de 2007. Entre as oficinas que foram acadêmicas do curso de História
desenvolvidas nas comunidades participaram como oficineiras oficiais
carnavalescas música, dança, arte e ou voluntárias, envolvendo-se não
criação contou-se com a oficina de apenas na oficina de História,
História, Memória e Cidadania, na Memória e Cidadania 8 , mas
qual a Feevale, por meio do programa acompanhando as demais atividades,
NIGERIA, teve uma participação inclusive as de monitoramento e
direta na formulação e execução. avaliação do projeto. As oficinas foram
Nessas oficinas participaram desenvolvidas nas dependências das
acadêmicas do curso de História da escolas de samba de Novo Hamburgo.
Feevale. No caso da Sociedade Cruzeiro do Sul,
Nesta reflexão, pretendemos onde focaremos nesse relato, a
resgatar essa experiência, tendo como responsabilidade pelo contato com as
foco especialmente a Sociedade crianças e suas famílias cabia a um
Esportiva Cultural e Beneficente membro da própria comunidade, a
Cruzeiro do Sul7, localizada no bairro senhora Carmen Regina da Silva, que
Primavera, em Novo Hamburgo. atuou diretamente na oficina
Privilegiamos, num primeiro intitulada Integração da Comunidade.
momento, o relato dessa experiência e, As oficinas ocorriam todos os sábados
a seguir, apontamos questionamentos, pela manhã, e participavam cerca de
dúvidas, a fim de oferecer novos 30 crianças e adolescentes com idades
subsídios para pensar a relação ensino, entre 5 e 17 anos, quase todas
extensão e pesquisa, tão aclamada em residentes no entorno da Sociedade e
nosso meio universitário, mas ainda quase todas negras. Cada oficina tinha
limitada por nossas práticas cotidianas a duração de 60 minutos, com
que teimam em perpetuar a intervalo para o lanche. Os demais
fragmentação, a compartimentação da oficineiros desenvolviam trabalhos de
produção e socialização do artes, dança e percussão. Nestas
conhecimento. oficinas tinha-se o apoio pedagógico
dos professores da Feevale Norberto
Transitando entre o ensino, a Kuhn Junior e Margarete Fagundes
pesquisa e a extensão no projeto Nunes, além de várias palestras de
Banda Mirim/Quizomba da formação em conjunto com as
Cidadania entidades integrantes do projeto,
16
17. especialmente a partir da atuação do eram ministradas para crianças e
Comitê Pró-Ações Afirmativas de adolescentes no mesmo local,
Novo Hamburgo, o COPAA. tínhamos que fazer um trabalho de
O problema de pesquisa maneira descontraída, mas sem
construído a partir dessa experiência descuidar das informações a serem
foi o de questionar como está a passadas. Para reforçar a idéia de
aplicação da lei 10.639/2003 no espaço identidade, foi construído um jornal a
formal de ensino e como ela pode ser partir de fotos e outros materiais que
desenvolvida em um espaço informal, as crianças trouxeram de suas casas,
por exemplo, em uma escola de samba, no intuito de valorizar a sua história
por intermédio de projetos de cunho pessoal, que também faz parte da
comunitário. Através da observação- história do bairro, da escola de samba,
participante identificamos que ainda é da cidade.
restrito o contato de crianças e Para os objetivos específicos do
adolescentes, matriculados em escolas projeto, o foco era o desenvolvimento
de ensino público, com a lei 10.639, da auto-estima do afro-descendente,
pois nos currículos escolares, como essa criança, esse adolescente se
normalmente, a história da África é vê como cidadão de Novo Hamburgo,
abordada somente quando se estuda o uma cidade que reforça um mito de
período colonial do Brasil, com ênfase origem, o da colonização alemã:
no regime de mão-de-obra escrava. “como eu, negro, me vejo enquanto
Depois desse momento, a questão sujeito social e atuante dentro da
passa despercebida; inclusive, quando história da minha cidade, do meu
é estudada a história do Egito, esta é país”. Muitas das crianças e
apresentada em um formato que nos adolescentes não conhecem a Lei
deixa a sensação que o Egito não é no 10.639 ou a história do povo africano,
continente africano. Quando, na mas sabem como é a discriminação e
oficina, perguntamos às crianças onde os efeitos que ela pode causar em uma
ficava o Egito, elas não sabiam que era sociedade como a brasileira, que ainda
na África e tampouco sabiam que a supervaloriza os costumes e as
África é um continente com vários culturas européias e subestima as
países e povos diferentes. Então, para culturas africanas e ameríndias. Essa
desenvolvermos a proposta do projeto sabedoria que os jovens têm não é um
por meio de oficinas, para não haver o saber teórico, é um saber vivenciado
mesmo formato engessado da escola dia a dia na própria pele, com eles
formal, mesmo porque as oficinas próprios, com os familiares ou amigos.
17
18. A partir da história da família, que é pudessem entender. Foram usadas
normalmente numerosa, cujos pais também músicas, representação
têm baixo nível de escolarização – o através de desenhos, mapas, jogos,
que lhes proporciona, na maioria das passeios, proporcionando-lhes uma
vezes, empregos de baixos salários, visão mais ampla da realidade do povo
isso quando não ocorre o desemprego negro no Brasil e no mundo.
ou, ainda, pessoas próximas estão Como resultados concretos,
cumprindo pena em regime prisional mesmo em um curto espaço de tempo,
por algum tipo de crime ou delito – para além do aprendizado da história,
podemos constatar que essa criança ressaltamos o aumento da auto-
ou adolescente, muitas vezes, não estima dessas crianças e
aceita sua cor, porque vê nela um adolescentes. Tinham “gosto” em
obstáculo para a realização de seus fazer penteados em seus cabelos
sonhos, de hoje e do futuro. cacheados, sendo a estética corporal
Na oficina de História, Memória e um elemento importante e que deve
Cidadania, o foco era a história da ser destacado. Quando participavam
África e da cultura afro-brasileira. das apresentações de percussão –
Procuramos demonstrar a mesmo os que mal podiam com o peso
importância do trabalho do povo do instrumento –, percebíamos que
africano nas Américas e no Brasil, era o momento de glória de cada um,
como era a cultura do africano na momento em que esqueciam das suas
África, como era a sua forma de vida, dificuldades cotidianas. Nas oficinas
mostrar que o africano tinha suas procurávamos enfatizar que vivemos
estruturas socioeconômicas muito em um país marcado pela
bem articuladas e que, quando chegou diversidade e que, assim como os
ao Brasil, mesmo em cativeiro, povos europeus, os povos africanos
organizava-se em rebeliões, e que tiveram muita importância na
muitas tiveram sucesso. Tentamos, construção do nosso país e em outras
também, abordar a realidade do partes do mundo.
continente africano hoje, da mesma No que diz respeito ao curso de
forma, pontuando questões atuais História da Feevale e às possibilidades
sobre os descendentes de africanos no de experiência em projetos de
Brasil. extensão como o Banda
Os temas foram abordados Mirim/Quizomba da Cidadania,
através de filmes apropriados para as conclui-se que a questão é de extrema
idades, de maneira que todos relevância, pois é a partir deste olhar
18
19. vivenciado na prática que o universidades vêm buscando sanar
profissional vai poder fazer um elo com lacunas dessa formação, tanto pela
os conhecimentos teóricos trabalhados atuação direta no interior dos seus
dentro do ambiente acadêmico. A próprios cursos de licenciatura em
experiência da extensão propicia aos História como buscando atender uma
acadêmicos o entendimento do quão demanda da rede pública de ensino que
longe estão da realidade que é necessita de uma capacitação
mostrada nos livros e de que é possível permanente de seus professores, seja
vivenciar outros aprendizados fora através do fornecimento de materiais
dos espaços tradicionais de ensino. didático-pedagógicos, ou cursos de
Ao final desta etapa do projeto, formação, fóruns de reflexão e
podemos verificar que a lei 10.639 vem intercâmbios, entre outras atividades.
sendo aplicada ainda de modo muito O Centro Universitário Feevale,
parcimonioso, mas que o material por meio do Programa de Extensão
didático já está bastante adequado, NIGERIA, desde o ano de 2003 vem
tanto nos livros enviados pelo MEC realizando diversas ações nesse
como na literatura infanto juvenil e em sentido. Para isso, tem buscado
material bibliográfico para a área de parcerias e desenvolvido ações com
pesquisa e estudos mais avançados outras entidades, destacando-se a
sobre este assunto. O Projeto interlocução direta com o movimento
Quizomba da Cidadania mostrou que negro local, o Comitê Pró-Ações
no espaço da escola de samba também Afirmativas de Novo Hamburgo. Dessa
se pode desenvolver o estudo da primeira parceria surgiram outras,
cultura afro-brasileira, bem como o ampliando-se as possibilidades de
estudo da História da África, diálogo e de constituição de projetos de
envolvendo a comunidade do entorno maior impacto social.
que participa das atividades sociais da Aqui, interessa-nos, sobretudo,
escola, fato que fortalece, ainda mais, pontuar algumas questões tendo como
as ações do projeto. parâmetro nossa atuação num projeto
A Extensão universitária de caráter interinstitucional, o
como canal de interlocução para Quizomba da Cidadania, ao qual nos
a efetivação da Lei 10.639/2003 somamos em virtude de um projeto de
Um dos grandes entraves para a extensão que vínhamos desenvolvendo
implementação efetiva da Lei junto a essas comunidades, desde
10.639/2003 e seus desdobramentos diz 2003, o projeto Banda Mirim.
respeito à formação de professores. As Deixaremos para um próximo
19
20. momento a reflexão sobre outras risco que corremos de 'essencializar' a
interlocuções estabelecidas por causa chamada cultura afro? O que estamos
da Lei 10.639/2003, que diz respeito a aprendendo com essas comunidades?”.
algumas ações junto às redes públicas Caminhamos, assim, em direção a um
de ensino municipais e estadual. movimento, assinalado por José Jorge
O Quizomba da Cidadania de Carvalho (2005, p. 140), que é o de
destacou-se não só por proporcionar o “construir parâmetros para a
aprendizado da História da África e da legitimação de novos saberes”, isto é,
Cultura Afro-Brasileira em espaços abandonando uma visão etnocêntrica
informais, isto é, fora do espaço de sala e eurocêntrica dominante nas nossas
de aula formal, mas porque os espaços universidades e abrindo os espaços
eleitos para essa formação têm uma institucionais para a edificação de
importância fundamental para a novos saberes, que brotam da
identidade dos homens e mulheres interlocucação com as próprias
negros da cidade de Novo Hamburgo, comunidades, por intermédio do
que são os espaços das escolas de diálogo com muitos daqueles que, até
samba, tradicionalmente reconhecidos então, estiveram excluídos da
como espaços fundamentais para a produção de um saber acadêmico e
sociabilidade desses sujeitos negros, da que, na condição de objetos da
cidade e da região. produção desse conhecimento,
No entanto, esse espaço de almejam, sim, a condição de sujeitos.
aprendizado informal não está Sendo assim, a extensão torna-se
descolado daquilo que propõe a Lei um canal privilegiado, por permitir
10.639, na medida em que os que acadêmicos, professores e
acadêmicos do curso de História da instituição experimentem um
Feevale, que já atuam ou atuarão num estranhamento acerca dos seus saberes
futuro próximo nas escolas regulares, e das suas práticas. No caso da Lei
trazem para dentro da sala de aula a 10.639, é crucial este movimento de
reflexão sobre a sua vivência, as abertura das instituições de ensino,
relações intersubjetivas que se porque, infelizmente, não temos no
estabelecem nesses espaços, as ensino formal a tradição de uma
indagações sobre o conteúdo daquilo valorização do ensino da África e da
que será objeto da reflexão: “Que cultura afro-brasileira. Para realizar
África é essa? Existe a África ou com êxito essa tarefa, precisamos
existem Áfricas? O que é isso que dialogar constamente com outros
chamamos de 'afro-brasileiro?' Qual o sujeitos e outros grupos, estabelecendo
20
21. parcerias, redes, ouvindo ensino escolar. In: NUNES, Margarete F .
especialmente as organizações do (org). Diversidade e Políticas
próprio movimento negro. Não Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo
Hamburgo: Feevale, 2005.
podemos esquecer que nesse país,
LIMA, Ivan Costa. A pedagogia interétnica
historicamente, a militância negra
em Salvador: uma proposta pedagógica de
atuou em projetos educativos, combate ao racismo. In: NUNES,
construindo suas próprias propostas Margarete F. (org). Diversidade e
pedagógicas, desafiando o ensino Políticas Afirmativas: diálogos e
formal exatamente porque sabia dos intercursos. Novo Hamburgo: Feevale,
entraves estruturais deste, que, por 2005.
muito tempo, serviram para perpetuar MAGALHÃES, Magna Lima. Negras
o racismo e impossibilitar a expressão memórias: a trajetória da Sociedade
da diversidade étnico-racial da Cruzeiro do Sul. In: NUNES, Margarete F .
(org). Diversidade e Políticas
sociedade brasileira.9
Afirmativas: diálogos e intercursos. Novo
Pode-se dizer que a extensão
Hamburgo: Feevale, 2005.
universitária é também uma
passagem, uma ponte, um elo, ligando Notas
aqueles saberes técnicos, teórico- 1 Este trabalho foi apresentado na Feira de
metodológicos que alicerçam uma Iniciação Científica e Salão de Extensão do
identidade profissional com outros Centro Universitário Feevale, em outubro
de 2007, pela acadêmica Luciana Marques
saberes e outras vivências que
Pereira, sob a orientação da professora
fortalecem uma identidade cidadã, Margarete Fagundes Nunes.
contribuindo, sensivelmente, para a 2 Graduanda do curso de Licenciatura em
formação de um ser humano integral, História no Centro Universitário Feevale
comprometido com as questões sociais lucianamp@feevale.br.
3 Professora do Centro Universitário
e com a construção de uma vida Feevale, Mestra em Antropologia Social
melhor e mais justa, para todos. pela Universidade Federal de Santa
Catarina marga.nunes@feevale.br
Referências Bibliográficas 4 Para maiores informações sobre a Lei, ver
CARVALHO, José Jorge de. Inclusão trabalho de Chagas Neto (2005).
5 O projeto Quizomba da Cidadania foi
étnica e racial no Brasil: a questão das
gestado pela Horta Comunitária, em 2007,
cotas no ensino superior. São Paulo: Attar
e contou com as seguintes entidades:
Editorial, 2005.
Feevale, Comitê Pró-Ações Afirmativas de
CHAGAS NETO, João E. A construção Novo Hamburgo COPAA, Sociedade
identitária do afro-brasileiro e a Lei Cruzeiro do Sul, Escola de Samba Os
10.639/2003: desafios e possibilidades de Marujos, Império da São Jorge e
inclusão a partir do espaço institucional do Protegidos, todas de Novo Hamburgo,
Movimento de Consciência Negra
21
22. Entre a malandragem e a sobrevivência:
breves considerações sobre os “capoeiras”
Anna Luiza de Moura Saldanha*
Este artigo pretende apresentar, capoeira, muito embora já fosse objeto
de uma forma sucinta, uma revisão de censura, não figurou como delito
bibliográfica do tema “capoeira” e específico no Código Criminal do
analisar de que forma os capoeiras se Império de 1830.
inseriam na sociedade em que viviam, Nesse período, a sociedade
como era essa sociedade e quais seus brasileira passava por profundas
objetivos quando praticavam a dança- mudanças estruturais. Uma das
luta. Nota-se que há uma vasta principais mudanças ocorreu nas
historiografia sobre a capoeira carioca migrações internas e externas e no
e baiana, por terem sido as cidades de adensamento de populações nas
Salvador e Rio de Janeiro os maiores grandes cidades. Tal adensamento
focos da capoeira, porém, é difícil desorganizou a cidade, que não estava
encontrar alguma obra acadêmica que preparada em sua infra-estrutura
tenha aprofundado esse estudo. Há para receber um grande contingente
análises feitas sobre a capoeira e os populacional, e, assim, “as cidades
capoeiras dentro de temas mais cresceram na multiplicação da
amplos, como escravidão urbana ou pobreza, das precárias condições de
resistência, como veremos mais vida, e principalmente na diversidade
adiante. de tipos étnicos e sociais que
O período analisado tem como compunham as chamadas camadas
marcos temporais: 1850 Promulgação populares”1.
da Lei Eusébio de Queiroz, quando há O aumento da população urbana
o fim do tráfico de escravos e o começo provocou a formação de várias
da trajetória definitiva de declínio do organizações sociais entre a população
próprio sistema escravista, e 1890, de baixa renda, comunidades que
quando há a proibição oficial da viviam no mundo subterrâneo da
capoeira no Brasil, através do novo cidade longe dos olhos do Império,
Código Penal da República, integrando-se em redes de
transformando a capoeira de delito ou solidariedade, onde escravos e ex-
contravenção em crime. A prática da escravos, livres ou libertos
22
23. recompunham noções de capoeira, os trabalhos acadêmicos e
pertencimento que haviam se não-acadêmicos, para, logo após,
desintegrado nas senzalas. Entre entrar no tema de fato.
estas organizações estavam as maltas O grande pilar bibliográfico deste
de capoeira cariocas, que, num misto trabalho é, sem dúvida, a obra do
de identidade, pertencimento, professor Carlos Eugênio Líbano
resistência e sobrevivência, marcavam Soares, que se divide em dois livros
fortemente o cenário urbano, sendo onde o tema “capoeira” é estudado em
parte integrante da “cultura popular” sua profundidade e especificidade: A
de rua de então. Para conceituar a negregada instituição os capoeiras na
'cultura popular' feita por esses Corte Imperial, 1850-1890, e “A
indivíduos, nada melhor que esta capoeira escrava e outras tradições
passagem encontrada na introdução rebeldes no Rio de Janeiro (1808-
de Os Cativos e os Homens de Bem, do 1850). Nestas pesquisas, Líbano
professor Paulo Moreira: utiliza a vasta documentação
referente à capoeira carioca, por ter
Os costumes desses agentes noção sido ela o grande temor da elite
que, segundo Thompson, aproxima-se conservadora da época imperial.
da de Cultura devem ser analisados O primeiro livro trata, entre
dentro de contextos históricos
muitos aspectos, da capoeira com suas
específicos, para que se possa entender
maltas e sua geografia específica,
a sua “racionalidade” (legitimidades,
expectativas). Dentro de um jogo de
transcendendo o conceito de capoeira
relações sociais, numa arena de como luta negra de resistência para
exploração e resistência, dar espaço à ampla rede de relações
enfrentamentos e negociações, de sociais presente nos interstícios da
elaboração e reelaboração de aliados, é cidade do Rio de Janeiro. O autor
que se pode entender o significado também analisa a participação dos
dessas práticas sociais para os capoeiras na vida político-eleitoral,
diferentes grupos envolvidos.2
além da troca cultural intensa entra os
diferentes grupos étnicos que
Para uma melhor compreensão do
participavam das maltas. O segundo
tema a ser trabalhado, houve a
livro analisa o período imediatamente
necessidade de apresentar uma
anterior. Nesta obra, Líbano dá ênfase
revisão historiográfica sobre a
às origens da capoeira, sua etimologia,
23
24. às origens étnicas de seus praticantes suas qualidades de defesa e ginástica.
e à participação dos capoeiras na corte Diversos literatos passaram a ter a
de D. João, seja na Marinha ou nos capoeira entre seus personagens.
movimentos políticos de rua. Aluísio de Azevedo 5 , Machado de
É a partir de Líbano que se tem Assis6, Manuel Antonio de Almeida7
uma análise historiográfica inicial são alguns dos autores que tinham por
sobre a capoeira. Segundo ele, missão tirar a capoeira da
podemos dividir a historiografia em marginalidade.
três blocos: os cronistas, os folcloristas O segundo bloco, o dos folcloristas,
e os acadêmicos ou a nova fugiu da tentativa do resgate pela
historiografia, nas palavras do autor. “ginástica” para entrar no das
O primeiro bloco dos cronistas é “manifestações negras” ou
dividido entre aqueles denunciavam a “populares”. O primeiro desses
capoeira e os que buscavam um autores é Manuel Querino, que deu
“resgate” cultural, sobretudo após ênfase à capoeira baiana, em vez da
1890, data da proibição da prática. carioca. Segundo Líbano, é a partir de
Plácido de Abreu é pioneiro entre os Querino que o mito da capoeira baiana
cronistas com sua obra de 1886, tomou o país.
denominada Os capoeiras. “Esse
breve trabalho guarda recordações de O fato de as cidades nordestinas como
uma capoeira temida como arma de Recife e Salvador não terem sofrido
um processo de perseguição policial,
rua do negro e do pobre urbano” 3 ,
como aconteceu no Rio, transformou
tendo a vertente da denúncia como
esses centros urbanos em santuários
norte do livro. da capoeiragem antiga. Sua
Alexandre Melo Moraes Filho 4 hegemonia no século que se abria tem
também foi pioneiro em sua obra, pois nisso uma das explicações.8
foi o primeiro que trouxe a idéia de
“luta nacional” ou “ginástica Além de Querino, Edison Carneiro9
nacional” à capoeira. A partir de Mello e Luis da Câmara Cascudo10 tratam da
Moraes é que a temática passou a vir capoeira como folclore nacional, visão
com tom de resgate, o que iria ser que iria tomar conta dos livros após
seguido pela maioria dos literatos e 1930, quando da descriminalização da
acadêmicos. Os escritos sobre a capoeira e da valorização da cultura
capoeira transformara-se e realçara negra como genuinamente brasileira.
24
25. Dentro da linha do folclore podem- Renato Vieira16 e Letícia Vidor Reis17
se inserir os livros escritos pelos seguem essa linha para defender o seu
próprios mestres de capoeira. mestrado, sendo que o primeiro a
Destacam-se a obra de Vicente analisa na década de 1930, e a
Ferreira Pastinha, o Mestre Pastinha, segunda, a partir de 1960.
intitulada Capoeira Angola11, e a do Esta sucinta análise bibliográfica
Mestre Noronha 12 , resgatada por torna um pouco mais fácil enxergar a
Daniel Coutinho, por serem estas capoeira em seus espaços temporal e
fontes primárias para o estudo da luta. físico, ao mesmo tempo em que mostra
A partir do centenário da Abolição, o quanto esse campo de estudo ainda
as ciências humanas vão dar maior não foi explorado.
destaque aos estudos afro-brasileiros e
à capoeira. Entramos, com isso, no As “maltas” e o cenário social dos
terceiro bloco da historiografia. capoeiras
Geralmente, a temática da capoeira Na segunda metade do séc. XIX, a
vem acoplado com temas mais amplos, capoeira já era uma presença
como o da resistência ou da escravidão marcante entre a população
urbana. Este último é ocaso, de duas trabalhadora urbana, que reunia
das principais obras sobre a escravidão escravos e livres, brasileiros e
no Rio de Janeiro: a tese de Mary imigrantes, jovens e adultos, negros e
Karasch, A vida dos escravos no Rio de brancos. Sua tradição rebelde, desde a
Janeiro 1808-1850,13 traz um estudo chegada da Família Real Portuguesa
cheio de informações sobre a capoeira ao Brasil em 1808, já se tornara uma
carioca, desde sua origem até o seu dor de cabeça para a elite imperial e
caráter lúdico, passando pela análise seus órgãos de repressão. O declínio da
das imagens de Rugendas e pela agricultura e a expansão da cidade
documentação policial. A outra obra é geraram o aumento da circulação de
a de Thomas Holloway sobre a polícia escravos, tornando-se isso um
no Rio de Janeiro 14 . Ele analisa os “problema inevitável”18 com o qual as
processos criminais, onde “teria que autoridades passaram a se preocupar.
inevitavelmente esbarrar com a O temor social que essa camada da
sombra dos capoeiras”15. Outras teses população causava nas classes média e
referem-se ao embate dos dois estilos alta era maximizado, neste momento,
de capoeira: Angola e Regional. Luis pela união dessa população com as
25
26. outras camadas pobres, promovendo a ativamente das lutas políticas dentro
troca social e cultural entre elas. A dos grupos dominantes, como
figura típica do capoeira iria se tornar capangas de senhores da Corte, e
mesmo incorporava termos e trejeitos
símbolo deste momento.
do vocabulário pedante dos juízes e
Dentro da cidade, a capoeira
doutores da política da época.19
perdeu seu conceito inicial e vago de
resistência ao trabalho escravo para A capoeira ganhou grande
ampliar seu raio de ação. Os capoeiras importância política quando seus
agora eram forjadores de uma nova praticantes, individualmente ou nas
identidade popular, estabeleciam seus “maltas”, inserira-se nos conflitos
territórios, marcados por laços de político-partidários da Corte, na
parentesco ou de expressões culturais. segunda metade do século XIX.
As maltas eram a unidade da atuação Atuando individualmente como
dos praticantes da luta. Elas ficaram capangas políticos, os capoeiras
famosas pela destreza e a andavam em uma linha tênue entre a
malandragem de seus integrantes, resistência e a sobrevivência; atuando
que conheciam os quatro cantos da nas “maltas”, eram vistos como
cidade, fazendo arruaças e motins. A “exército das ruas”, oferecendo terror
formação das maltas no Rio de Janeiro ao partido político rival e à classe
contava com escravos e homens livres, média moradora da cidade
e pode ser interpretada como um
Em um artigo sobre o tema, Assis
chamariz dos segmentos sociais
Cintra distingue entre os capoeiras
excluídos por uma noção de
profissionais e os amadores. Os
pertencimento; nelas podiam profissionais são definidos como
recompor desde o sentido de família capangas políticos, que viviam às
até sua participação dentro da política custas dos cabos eleitorais ou como
da época. desordeiros e ladrões, que atacavam os
A forte presença deles nos conflitos transeuntes. Os amadores eram
urbanos fez com que tivessem uma meninos bonitos avalentoados, filhos
estranha relação com o poder. de gente rica e importante, ou mesmo
rapazes de boa família, que praticavam
Na realidade, ao mesmo tempo em que e aprendiam a capoeiragem por
enfrentava o aparato policial e a ordem simples esporte [...] É certo, porém,
escravista, a capoeira participava que os capoeiras profissionais alvo
26
27. principal da repressão formaram com que os capoeiras ressurgissem
desde sua origem verdadeiras intensamente, provocando pânico às
organizações de escravos e libertos, donas-de-casa e entusiasmo à classe
com uma dupla face a um tempo
política dominante. A partir desse
ameaçadora e instrumental para a
momento, a malta “Flor da Gente”
elite branca do Rio de Janeiro.20
iria se tornar o símbolo da violência
As maltas mais famosas por esse política conservadora.
tipo de prática foram os Nagoas e os Os capoeiras que retornaram da
Guaiamuns. Segundo Líbano, as duas Guerra do Paraguai lutavam mais
maltas agregaram, nos últimos 15 ferozmente pelos direitos adquiridos
anos do século XIX, as antigas maltas, na Guerra e por maior participação
que dividiam em muitas partes a política, fato que perdurou até 1890
geografia do Rio de Janeiro. Os em várias nuances, ora conservadora,
cronistas da época relatavam que uma ora liberal, ora republicana, ora
era ligada ao Partido Conservador e a monarquista, ora autônoma. Digo
outra ao Partido Liberal. autônoma porque a guerra criou uma
Apadrinhados pelos políticos, os consciência inconformista nos
capoeiras gozavam a impunidade de soldados negros, impondo-lhes novo
seus delitos. Porém, quando liberais e status na ordem social. Eles formaram
conservadores se uniam, as maltas então, o Partido Capoeira, durante a
sofria uma repressão cada vez mais conjuntura política de 1880, não sendo
forte e constante. uma instituição oficial, mas uma
O fim da Guerra do Paraguai em forma de fazer política nas ruas, ligada
1870 trouxe maior mobilidade para os a uma forma de identidade, livre de
capoeiras. O recrutamento qualquer padrinho e construtora de
“obrigatório” dos Voluntários da relações com a política dominante.
Pátria e as promessas de liberdade aos Envolveram-se também com a
escravos-soldados fizeram com que campanha abolicionista e a Guarda
muitos capoeiras fossem sentar praça. Negra, que tinha por função proteger
O retorno prestigioso dos “heróis” da a Princesa Isabel e impedir a
guerra fez com que eles retomassem o propaganda republicana. Esta foi
poder das ruas. A elite monárquica outra linha de conflito em que os
agora apoiava tais “heróis”, o que fez capoeiras eram agentes sociais ativos,
demonstrando sua politização perante
27
28. o cenário político do Rio de Janeiro e malandragem e a sobrevivência nas
da sociedade brasileira. ruas, esses agentes iam forjando sua
Após o Golpe Militar de 1889, o inclusão e sua participação social.
regime republicano, baseado no A historiografia tradicional mostra
militarismo e no autoritarismo, a capangagem e os conflitos político-
fechou o cerco aos capoeiras. Através partidários nos quais os capoeiras
do Código Penal, citado acima, o chefe estavam envolvidos, como estes
de polícia Sampaio Ferraz, que antes seriam manipulados para fins
de ser nomeado caçou capoeiras como eleitoreiros em troca de benefícios
promotor público, tinha carta branca individuais. Ao analisar a participação
de Deodoro da Fonseca para acabar de dos capoeiras na vida política da
vez com a capoeiragem carioca, cidade, percebe-se que eles exerciam
isolando seus integrantes de seus seu papel como uma opção política,
clientes e deportando-os para dentro de suas peculiaridades
Fernando de Noronha. culturais e de uma ânsia de
participação nas decisões eleitorais.
Considerações finais Após a Guerra do Paraguai, temos
Podemos notar, ao longo do texto, o essa visão mais clara. Os soldados
panorama social no qual os capoeiras voltam mais conscientes de seu poder
estavam inseridos, ou melhor, de decisão e colocam em prática essa
inseriam-se. Profundas mudanças visão na política das ruas: a formação
estruturais aconteciam na sociedade do Partido Capoeira demonstra que
brasileira da segunda metade do eles estavam dispostos a jogar em
século XIX; era época de igualdade de poder com a elite
questionamentos e lutas sangrentas dirigente. Mesmo a participação dos
pelo poder. capoeiras nos partidos das elites e na
A capoeira, com suas maltas, Guarda Negra demonstra o
inseria-se nesse contexto como centro pensamento político desse segmento.
agregador e construtor de laços de Paulo Moreira conceitua o “projeto
solidariedade entre os seus dos escravos” como ações com algum
praticantes e laços políticos com a objetivo predeterminado, que foi
classe dirigente do país. Em elaborado em função das experiências
permanente conflito entre a socioculturais em que estavam
imersos, sendo sua eficácia
28
29. de Janeiro. Revista do Brasil nº 4: Prefeitura
dependente de um jogo permanente de
Municipal do Rio de Janeiro, 1985.
mudanças de estratégia.21 FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir. 6. ed.
Não podemos atribuir somente aos Petrópolis: Vozes, 1988.
HOLLOWAY, Thomas. Policia no Rio de
capoeiras cariocas deste período Janeiro:repressão e resistência numa cidade do
analisado tal especificidade de luta e século XIX. Rio de Janeiro: FGV 1997.
,
KARASCH, MARY. A vida dos escravos no Rio
de relação com o poder. A capoeira em de Janeiro – 1808/1850. São Paulo: Cia das
qualquer momento é filha de seu Letras, 2000.
LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A
tempo e sempre fez parte do cotidiano
negregada instituição:os capoeiras no Rio de
tanto das camadas populares como dos Janeiro. Rio de Janeiro: SMC, Departamento
dirigentes da política. Tal o foi dentro Geral de Documentação e Informação Cultural,
1994.
das senzalas, foi na cidade, como LÍBANO SOARES, Carlos Eugenio. A capoeira
analisamos, e foi em 1930/40 período escrava e outras tradições rebeldes no Rio de
Janeiro (1808-1850). 2. ed. Campinas:
não analisado neste artigo, época em Unicamp, 2002.
que a capoeira foi liberada pelo então MOREIRA, Paulo Roberto S. Os cativos e os
homens de bem experiências negras no espaço
presidente Getúlio Vargas em seu
urbano. Porto Alegre: EST, 2003.
projeto nacionalista, e o é hoje, quando MOREIRA, Paulo Roberto S. entre o deboche e a
se insere dentro do sistema de rapina: os cenários sociais da criminalidade
popular em Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS,
mercado, quando o praticante se 1993. Dissertação de mestrado.
profissionaliza e vende as aulas de WISSEMBACH, Maria Cristina. Da escravidão
à liberdade: dimensões de uma privacidade
capoeira. possível. In: NOVAIS, Fernando. História da
vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das
Letras, 1998.
Referências bibliográficas
AREIAS, Almir. O que é capoeira. 3. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1983. Notas
CARVALHO, José Murilo. Os bestializados. São * Pós-graduanda em História Africana e Afro-
Paulo: Cia. das Letras, 1987. Brasileira pela FAPA – Faculdades Porto-
___________. Construção da Ordem: a elite Alegrenses.
política imperial; teatro de sombras: a política 1 Wissembach, 1998, p. 91
imperial. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. 2 Moreira, 2003, p. 21, citando Thompson, E. P.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade – Costumbres em común. Barcelona: Crítica,
uma história das últimas décadas da 1995, p. 17-22.
escravidão na corte. São Paulo: Cia. das Letras, 3 Líbano Soares, 1994, p.9.
1990. 4 Moraes Filho, Alexandre M. Festas e tradições
___________. Cidade febril – cortiços e populares do Brasil. Rio de Janeiro:
epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia Technoprint, s.d.
das Letras, 1996. 5 Azevedo, Aluísio. O cortiço. Rio de Janeiro:
DAMATTA, Roberto. Carnaval, malandros e Technoprint, s.d.
heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. 6 Assis, Machado. Crônicas:1878-1888. Rio de
DIAS Luis Sergio. Capoeira, morte e vida no Rio
29
30. Jesus de Nazaré, Orixá da Compaixão
(Elementos de uma Cristologia afro-brasileira
Marcelo Barros*
Apesar do rigoroso e prolongado inserem mais profundamente no
inverno eclesiástico e dos conjunto da população de matriz
fundamentalismos, expressos em africana e convivem de forma muito
notificações do Vaticano, como em mais justa com as crenças e rituais
sínodos confessionais que decidiram autóctones.
romper com organismos ecumênicos, Aqui, proponho-me a falar de
vivemos, na América Latina, um elementos cristológicos latentes nas
momento novo de revalorização das diversas devoções do Catolicismo
religiões afro-americanas e popular. Também abordarei uma
ameríndias. Para estas, a pessoa de evolução existente atualmente na
Jesus Cristo era respeitado e temido, forma como as comunidades do
mas de forma longínqua. O diálogo Candomblé vêem a Jesus, mas me
com cristãos de cultura afro que deterei mais na expressão de fé das
tentam aproximar Jesus e sua comunidades de matriz africana que
experiência de fé da tradição dos seus pertencem às Igrejas cristãs.
ancestrais afro tem mudado esta
realidade. Tanto as comunidades de 1. Um olhar sobre o Catolicismo
religiões autóctones como os grupos atual e popular
cristãos de cultura afro começam a Os colonizadores trouxeram da
reinterpretar a fé, transmitida pelo Europa um Cristianismo
Cristianismo imposto pelos profundamente sincrético, “resultado
colonizadores. Isso muda a forma de uma síntese entre a experiência
como o Candomblé e a Umbanda religiosa antiga dos gregos, romanos e
passam a olhar Jesus Cristo, mas bárbaros com a tradição judeu-
também a expressão de fé das próprias cristã” 1 . Os antigos Concílios que
comunidades cristãs populares que se definiram a fé cristológica vigente no
30
31. Cristianismo, além dos interesses de “primeira reencarnação”. Nada
políticos do momento, situaram-se tem a ver com o dogma cristão
dentro deste esforço de expressar a fé expresso nos Concílios antigos da
para os novos povos que entravam na Igreja.
Igreja. Hoje, uma primeira Esta realidade do Cristianismo
constatação necessária é que a fé popular não é, em si, totalmente
cristã vivida pelas comunidades diferente mesmo do catolicismo
católicas e evangélicas já não se oficial. Mesmo o modo como, muitas
expressa exatamente com a mesma vezes, papas, bispos e pastores se
formulação consagrada nos Concílios expressam sobre Jesus mistura
antigos. elementos de Nicéia e Calcedônia com
O Brasil é dos poucos países do mitos que foram inconscientemente
mundo no qual a doutrina espírita absorvidos no Cristianismo popular.
continua com muita vitalidade. Todos os católicos começam as orações
Dentro deste caldeirão de culturas e dizendo: “em nome do Pai, do Filho e
expressões teológicas, termos como do Espírito Santo”, e as Igrejas antigas
“Filho de Deus” e “encarnação” continuam fazendo as orações
denotam significados diversos do que litúrgicas ao Pai, pelo Filho, na
a tradição eclesial tinha lhes dado. unidade do Espírito. Entretanto, esta
Filho de Deus, sim. Porém, uma mãe teologia litúrgica parece pouco
de santo me perguntou: “Por que absorvida pela prática devocional.
único? O Budismo Tibetano diz que o Qualquer exame, mesmo rápido e
Dalai Lama é a encarnação do próprio superficial, nos hinários católicos e
Buda da Compaixão, e não tenho evangélicos, usados em nossas
dificuldade de crer nisso. Deus tem dioceses e paróquias, mostrará não
tantas formas de se manifestar. Mas somente uma espécie de monismo
por que dizer que só Jesus é Filho de cristológico (um Cristo Deus tomado
Deus?”. Do mesmo modo, quando, nas em si mesmo, no qual o humano
camadas mais populares, se fala em entrou apenas como revestimento
“encarnação”, facilmente as pessoas transitório), mas, o que é pior, uma
compreendem isso como uma espécie religião cujo Deus é o Cristo, sem
31
32. referência direta e vivencial ao Pai. expressão de fé que nem chega a ser
Mesmo orações e hinos oficiais da esta dos Concílios. É ainda mais
Liturgia contêm expressões duvidosas mítica, menos humanizada e capaz de
e pouco ortodoxas. Vejam esta prece do dialogar com outras expressões da fé.
Ofício da Tarde do Sábado Santo na Por isso, torna-se ainda mais
atual Liturgia das Horas: “Ó Deus do urgente e essencial o trabalho de
universo, que dominais todos os reencontrar outras formas de crer e
confins da terra e quisestes ser falar de Jesus. Mesmo em meio às
encerrado num sepulcro, livrai do ambigüidades inerentes ao tema,
inferno o gênero humano e dai-lhe a proponho-me a aprofundar alguns
2
glória da imortalidade”. elementos cristológicos que me
Ao orar esta prece, alguém pode parecem próprios, ou ao menos mais
recordar-se de Moltmann e de sua tese característicos, de muitas pessoas e
sobre “O Deus Crucificado”, segundo até de comunidades que vivem a fé
a qual o Pai está na cruz com Jesus. cristã a partir das culturas afro-
Mas estas preces litúrgicas não são brasileiras.
dirigidas ao Pai. São todas destinadas
a Jesus. 2. Uma espiritualidade popular
Um conhecimento maior e mais de aliança
crítico da história bem como o desafio Muitas vezes, na Teologia e
do pluralismo cultural e religioso nos Pastoral, o Catolicismo Popular em
fornecem razões teológicas e pastorais suas diversas formas foi acusado de
para questionar as expressões superstição e até de certa idolatria.
cristológicas dos Concílios antigos, já Em tempos de Cruzada por um
diferentes da fé expressa no Novo Cristocentrismo dogmático, não deixa
Testamento, que, em si, já é diversa da de ser interessante observar que
forma como o movimento de Jesus muitos grupos apoiados diretamente
propunha a fé no primeiro momento. por Roma e pela maioria da hierarquia
Entretanto, a maioria de nossas eclesiástica centram muito mais sua fé
comunidades religiosas, mesmo as não na devoção mariana e no culto aos
populares, mantêm sobre Jesus uma santos do que na fé e culto a Jesus.
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33. Nas últimas décadas, percebemos natureza (o Candomblé chama de
que, ao agir assim, os fiéis do Orixás e a tradição angolana de
Catolicismo mais popular refazem a Iquices).
espiritualidade da aliança proposta A pessoa consagrada a este ou a
pela fé bíblica. Como, na versão da fé aquele Orixá tem uma relação tão
que receberam, Deus lhes parecia íntima com ele que o recebe e é por ele
distante e separado da vida, transformado/a. O Senhor do Bonfim
aprofundaram uma aliança de em Salvador ou o Bom Jesus da Lapa
intimidade com as manifestações ou Jesus de Pirapora são santos como
divinas que lhes pareciam mais outros quaisquer. Mas, como santos,
próximas. Os santos e santas da são manifestações do amor divino.
devoção popular se tornaram Protegem seus devotos e os
“manifestações de Deus” como na acompanham em suas vidas.
cultura bíblica se fala da Torá Desde que, a partir das décadas
(Palavra), da Shekiná (Tenda), da mais recentes, as religiões afro são
Hokmá (Sabedoria), da Glória e valorizadas e não precisam mais ser
mesmo do “Anjo do Senhor”. ocultadas ou disfarçadas, as pessoas
Este tipo de versão religiosa da fé têm mais liberdade de adorar os
cristã existe nas mais diversas Orixás em si mesmos, sem precisar do
camadas do Catolicismo popular, de sincretismo no qual se dizia que
matriz negra, indígena ou mesmo de Iemanjá é Nossa Senhora. A partir
tradição européia. De certa forma, desta liberdade, muitos fiéis dos
está presente em algumas devoções na Orixás dividiram as águas e deixaram
Europa ou América do Norte. de ser de Igreja. Mas muitos e muitas
Entretanto, na América Latina, esta dos que honram os Orixás quiseram
teologia popular decorre das culturas continuar devotos de Jesus Cristo.
afro e indígenas. Na fé Ioruba e na Entretanto, este Jesus é recebido e
religião vinda de Angola, como em acreditado a partir de uma cultura
muitas comunidades indígenas, a religiosa própria e original. A história
relação de intimidade com Deus se dá contada nos Evangelhos e a pregação
através das manifestações divinas na tradicional dos padres e pastores são
ouvidas e até incorporadas. “Jesus é
33
34. filho de Maria Virgem, sofreu por nós, religião tradicional e a fé cristã.
foi crucificado para nos salvar” são Espantada com a própria pergunta, a
dados conhecidos, mas são velha respondeu com palavras e
compreendidos a partir de uma expressões que, para mim, foram
cosmovisão própria. Neste contexto de muito surpreendentes. Anotei tudo o
condenações e de debates que ela disse e tentei traduzir sua
cristológicos, é bom conhecermos resposta assim: “Não há nenhuma
melhor estas Cristologias populares, dificuldade de ligar Jesus e Kanambe.
principalmente na relação entre Jesus Jesus Cristo nos revela Deus presente
e os Orixás. na história, nos acontecimentos da
vida e nas pessoas e nos ajuda a
3. Jesus e Kanambe descobrir que Kanambe manifesta
Quando estive no Quênia, em Deus presente na natureza, na terra e
janeiro de 2007, procurei conhecer na água. As duas ordens não entram
alguma expressão atual das religiões em conflito e até se interpenetram.
africanas antigas e ver em que isso me Jesus é como uma espécie de plenitude
ajudava a compreender melhor as da fé em Kanambe, mas não na
tradições afro-brasileiras. Fui levado, medida em que a esvazia ou a substitui
a uns 100 km de Nairóbi, para por uma espécie de “cultura cristã
conhecer uma aldeia tradicional do ocidentalizada”, mas, ao contrário,
povo Kamba. Ali conheci uma senhora valoriza-a e dá a ela densidade
idosa, sacerdotisa da tradição de histórica”.
Kanambe, a deusa da Água. Depois de É claro que esta expressão de fé
ter escutado como ela expressa sua fé daquela cristã africana nunca seria
na religião tradicional, espantei-me aceita por uma Cristologia para a qual
quando me disseram que ali todos Jesus é único e, como todos os
eram cristãos, inclusive aquela colonizadores, substitui o que havia
sacerdotisa que, muitas vezes, nas antes dele, colocando-se como
missas, é chamada pelo padre para referência de fé exclusiva. De fato, ela
abençoar o seu povo. Perguntei, então, me contou a dificuldade que tem em
como ela formulava a relação entre a
34
35. valorizar a cultura (nem se fala da deste tempo promessas que exigiam
religião) tradicional do seu povo sacrifícios e dores, como subir
quando chegam ao local alguns grupos ladeiras de joelhos, humilhar-se em
neopentecostais que exigem o público, não comer em certos dias
abandono até das roupas, costumes, sagrados, não beber nem água e assim
músicas e danças culturais do povo. por diante.
O diálogo com aquela sacerdotisa
africana me ajudou a compreender 2. O sincretismo com Orixás
melhor a sabedoria do sincretismo tradicionais
afro-brasileiro. Ele teve uma evolução Com o fim da escravidão oficial,
ou processo que podemos resumir em nenhum pais indenizou os antigos
três fases. escravos ou cuidou de como este povo
poderia sobreviver, abandonado à
4. Do Senhor do Bonfim ao Orixá própria sorte. A partir deste tempo, as
Jesus de Nazaré comunidades negras começaram
O olhar sobre o Cristo vivido pelos lentamente a poder se reapropriar de
descendentes dos escravos teve uma seus símbolos e de sua religião própria.
evolução complexa com, ao menos, Para os que eram cristãos, isso
três etapas ou níveis: provocou certa evolução na
Cristologia. Não precisavam mais ver
1 . Tributo ao Senhor do Bonfim o Senhor do Bonfim ou o Bom Jesus da
Em tempos idos, devoções a Jesus Lapa como deuses do feitor branco.
como “Senhor do Bonfim”, Bom Não deixaram de ser brancos e de
Jesus da Lapa e outras representar símbolos sempre ligados
representavam uma espécie de ao colonizador. Mas, agora, podiam ser
tributo que o negro deveria pagar ao realmente reapropriados pelas
deus branco que não era amigo do comunidades de cultura afro. Para
escravo ou de seu descendente, mas limpá-los das roupas escravagistas, os
deveria ser adulado e cortejado para fiéis negros ou seus descendentes,
não castigá-lo, já que era um deus inconscientemente, os ligaram a
forte e protegia o senhor branco. São Oxalá ou Xangô. Houve muitos que
35
36. fizeram isso, não por ignorância ou passam a ver Jesus Cristo como
porque os confundissem com Orixás, alguém que viveu em tudo a existência
mas porque precisavam desta humana e, a partir de sua morte, foi
identificação (como para os latino- assumido por Deus e se tornou divino.
americanos comprometidos com a É como um Orixá. É um homem que,
revolução, a própria figura de Che por ter vivido de forma justa e santa,
Guevara se parece com a de Jesus foi divinizado, como toda pessoa
Cristo). É a Cristologia do sincretismo humana é chamada a ser.
de confusão ou de reapropriação.
4. A originalidade de Jesus de
3. O Orixá Jesus de Nazaré Nazaré
Nos anos mais recentes, passamos Expressar em conceitos a própria
a outro nível da Cristologia afro- fé é difícil, mas pretender expressar
brasileira. Desde os tempos depois do como crêem os outros é praticamente
Concilio Vaticano II, muita gente de impossível, sem o risco de ser injusto e
comunidades afro participa de grupos redutivo. No caso das culturas afro-
bíblicos e comunidades eclesiais de brasileiras, isso ainda é mais complexo
base. Nestes ambientes, aprende-se a por causa da diversidade de expressões
valorizar o Jesus histórico. O contato e culturas e pelo fato de serem
com os Evangelhos permite um tradições orais. Seja como for, todas
conhecimento maior de Jesus de estas formas de viver a fé se formaram
Nazaré em sua historicidade humana. em diálogo ou até inserção na tradição
Este conhecimento passou para as cristã popular e com a exigência de se
comunidades e mesmo para elementos defrontar com a pessoa e a missão de
do culto e da fé comum. Entretanto, Jesus Cristo.
assim como Xangô, Ogum, Oxalá e Há de tudo. Pode-se concluir uma
Oxossi foram antepassados, reis ou Cristologia própria da devoção ao
príncipes dos antigos reinos Ioruba e “Senhor Morto”, outra Cristologia do
se tornaram Orixás e associados ao Jesus mítico de narrativas orais que,
fogo, ao ferro, à terra e à mata virgem, no meio do povo, formam como que
assim também as comunidades negras novos evangelhos apócrifos cheios de
36
37. histórias que as pessoas contam sobre cristológica, quando ocorre, não é para
“quando Jesus e São Pedro andavam legitimar poderes hierárquicos ou
pelo mundo”. Quase todos os dominação de pessoas sobre outras
santuários populares nascem de pessoas (há Cristologias oficiais que
relatos fantásticos ligados a aparições foram pensadas para isso e disfarçam
de imagens ou milagres este fato). Por tudo isso, são
extraordinários. A maioria deles Cristologias a partir de baixo e ligadas
acontece com “Nossa Senhora”, que, à vida de quem sofre. São cristologias
na América Latina, substitui o culto à narrativas e fragmentadas que, por
Mãe Terra ou à deusa da fecundidade. não ser de caráter dogmático (contam
Mas, no Brasil, há alguns a Jesus histórias, não afirmam dogmas), não
(Bom Jesus de Pirapora, Bom Jesus da se envergonham de ser incompletas.
Lapa e assim por diante). Todos são a Ao contrário de quaisquer tendências
um Jesus humano e compassivo de um Cristocentrismo exclusivista,
(“Bom Jesus”) retratado na sua Jesus é o Cristo (Ungido de Deus), mas
Paixão como a figura da solidariedade. não é isolado de todos os seus irmãos e
Pelo fato de ser expressões de fé irmãs, nem das forças da natureza que
vividas por uma maioria de pessoas são sacramentos divinos, nem dos
pobres e sofredoras, a figura de Jesus personagens que, como Jesus, são
sempre aparece mais como sendo o para o povo Cristos ou Consagrados.
Cristo sofredor e humilhado. A Cruz Da caminhada de libertação, estas
recebe uma explicação de comunidades aprendem a valorizar
solidariedade: “Deu a vida por nós” que a própria pessoa e a missão de
(entregou-se no lugar dos discípulos Jesus podem ser resumidas em sua
aos inimigos) mais do que uma própria palavra: “Eu vim para que
justificativa de caráter sacrifical todos tenham vida, e vida em
(ofereceu-se ao Pai ou morreu pelos abundância” (Jo 10,10).
nossos pecados). Em 1996, em Bogotá, o 2º
Estes tipos de expressão de fé vêm Encontro Continental da Assembléia
de pessoas não ligadas à cultura do Povo de Deus propôs o
ocidental. Sua tentativa de síntese aprofundamento de uma
37