O artigo discute o filme Sinhá Moça produzido pela Vera Cruz em 1953, destacando como o filme revelou a crueldade da escravidão e o sofrimento dos escravos através da história de amor entre os protagonistas. O artigo também menciona que o filme teve um grande sucesso e ajudou a popularizar a cultura brasileira no exterior.
1. Com apoio:
1 ano
Comissão Nacional de
Moçambique
Director: Nelson Lineu | Editor: Eduardo Quive | Maputo, 08 de Junho de 2012 | Ano II | N°33 | E-mail: r.literatas@gmail.com
Entrevista a
Do tradicional
David Capelenguela ao moderno
passando
pelo popular
Alma minha gentil, que te partiste
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
Poema de Luís de Camões - considerado
pai da Língua Portuguesa
2. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 2
Editori@l
FICHA TÉCNICA Camões, o poeta que também já foi “marginalizado”!
Quando se aproxima o 10 de Junho, os mais atentos recordam-se logo de
Luís Vaz de Camões, esse enorme poeta, que já tinha morrido, quando
os portugueses lhe elevaram o nome a herói nacional. Bem tardia e pos-
tumamente chegou aonde era justo que chegasse. Diz-se que morreu
pobre, aguentando os seus derradeiros dias a expensas de amigos e
associações de beneficência.
Propriedade do Movimento Literário Kuphaluxa Sendo tão difícil dizer-se algo de novo sobre ele, melhor é guiarmo-nos
Direcção e Redacção por perguntas, apenas duas, cientes das escassas palavras exigidas nesta
Centro Cultural Brasil - Moçambique página. Então, vamos às duas: Quem foi Camões? E por que é que o
Av. 25 de Setembro, N°1728,
maior prémio da literatura lusófona carrega o seu nome?
C. Postal: 1167, Maputo Primeiro, não é muito o que se sabe da sua biografia. E a escassa informação existente é
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 duvidosa, e até, por vezes, produto de conjecturas. E tudo talvez por causa da
Tel: +258 82 27 17 645 / +258 84 57 78 117
117 “marginalização”, a que o poeta e seus escritos foram inicialmente votados. À semelhan-
Fax: +258 21 02 05 84
Fax: +258 21 02 05 84 ça de tantos outros escritores deste terráqueo planeta, que só depois da morte, vêem
E-mail: r.literatas@gmail.com
E-mail: r.literatas@gmail.comz reconhecidos os seus trabalhos. Aliás, nem chegam a ver, dado que já terão cessado de
Blogue: literatas.blogs.sapo.mz
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respirar, definitivamente. Até parece que nós só conseguimos reconhecer e enaltecer os
feitos dos falecidos, os trabalhos dos mortos! Estranha capacidade nossa!
De qualquer modo, sabemos que Camões é português, de pai e mãe.
DIRECTOR GERAL
Nelson Lineu A sua juventude chegou a ser turbulenta, dividida entre a “rebeldia”, a bravura militar e a
(nelsonlineu@gmail.com) escrita. E esta última é que o tornou no célebre poeta, que anualmente recordamos. A
Cel: +258 82 27 61 184
qualidade da escrita, do estilo e da profusão de citações eruditas, que engrandecem os
DIRECTOR COMERCIAL seus textos, leva-nos à hipótese de ele ter frequentado um curso superior, na Universida-
Japone Arijuane
(jarijuane@gmail.com) de de Coimbra. Mas, ao que parece, o seu nome não consta dos registos da universidade.
Cel: +258 82 35 63 201 Seja como for, ele teve grande instrução, institucional ou auto-instrucional.
EDITOR Nasceu talvez em 1524 e morreu a 10 de Junho de 1580. Foi militar das tropas portuguesas,
Eduardo Quive na Índia e em África, onde provavelmente terá perdido o olho direito, em batalha. Foi
(eduardoquive@gmail.com)
Cel: +258 82 27 17 645 em águas africanas que ele escapou de um naufrágio, e teve de nadar com um dos braços,
enquanto, com o outro, segurava o precioso manuscrito de Os Lusíadas. A poesia não
CHEFE DA REDACÇÃO
Amosse Mucavele podia dissolver-se em águas! A poesia ultrapassa adversidades. Mia Couto ensina-nos
(amosse1987@yahoo.com.br) que, na falta de outra tinta no mundo, o poeta usou o seu próprio sangue, e usou o seu
Cel: +258 82 57 03 750
próprio corpo, quando o papel inexistiu.
REPRESENTANTES PROVINCIAIS Cada ano, a 10 de Junho, celebra-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Dany Wambire - Sofala
Lino Sousa Mucuruza - Niassa Portuguesas. E é certo que a data está revestida de um carácter particular, nacional, des-
de a sua instituição, mais ou menos, durante o Estado Novo de Salazar, em 1933, até à
COLABORADORES FIXOS
Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974.
Pedro Do Bois (Brasil), Exalta(va)-se o patriotismo de Camões, a sua entrega militar ao Estado português, bem
João Tala - Angola
Mauro Brito (Maputo)
como a valorização e exaltação dos ideais portugueses da época, tendentes à consubs-
Izidro Dimande tanciação do nacionalismo. E esse patriotismo, essa valorização em demasia do povo
COLABORAM NESTA EDIÇÃO
lusitano, têm um privilegiado espaço n’Os Lusíadas. Esta Epopeia, uma das poucas na
Samuel da Costa - Brasil História Mundial, talvez tenha sido mesmo criada por encomenda, para contentar os
Fernando Aguiar - Portugal
Frederico Ningi - Angola
reis portugueses da época.
José dos Remédios Mas esse carácter particular e particularista da data não interessa muito a outros povos
dos países lusófonos. Interessa-lhes, sim, a qualidade da escrita, com que o autor d’Os
COLUNISTA Lusíadas abrilhanta os seus textos. Escrita, que não tem raça, não tem cor, não tem reli-
Marcelo Soriano (Brasil) gião nem região. Importa, sim, é a escrita que destrói fronteiras e galga terras. Até “Por
Nelson Lineu - Maputo
mares nunca dantes navegados”, como diria o próprio Camões.
FOTOGRAFIA Entretanto, demasiado tarde, ou seja, 408 anos após a sua morte (vejam só essa letargia,
Arquivo — Kuphaluxa
Eduardo Quive esse demorado esquecimento!), é instituído um prémio com seu nome. Por sinal o
maior da lusofonia, produto de um protocolo entre os governos de Lisboa e Brasília,
ARTE E DESIGN datado de 1988. E a quantia pecuniária dada anualmente ao vencedor do prémio é garan-
Eduardo Quive tida pelas contribuições desses dois Estados. E o prémio desta edição, a 24.ª, foi para o
PARCEIRO escritor brasileiro Dalton Trevisan, autor do livro “Vampiro de Curitiba”. E desde já, e
desde aqui, nós (Kuphaluxa) lhe endereçamos os nossos Parabéns.
Centro Cultural Brasil—Moçambique
Dany Wambire
danitoavelino@gmail.com
3. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 3
Destaque
10 de Junho. FESTA CAMÕES/Portugal
E se as musas de Luís de Camões fossem tripeiras?
No dia 10 de Junho, a Associação 10pt – Criação Lusófona no âmbito do proje- mia, , na rua de São Dionísio, 17, perto do Jardim São Lázaro, no Porto.
to ai Maria vai levar o poeta à rua para cantar as Marias do Porto, num evento de
poesia, música e gastronomia lusófonas. Vamos enaltecer as mulheres e a cidade, DIA 10 às 00h. INAUGURAÇÃO D’ ”o Muro dos Amores”
que é a diva inspiradora. Partimos da pena de Camões, antropólogo moderno, Poeta
O evento arranca à meia-noite de dia 10 na estação do metro do Bolhão, junto
maior, português do mundo, e que “em várias flamas variamente ardia”. Camões
à Exposição de Fotografia ai Maria. Convidamos os portuenses a declarar o seu amor
possuía um dom único para cantar a mulher… não só a portuguesa, como também a
às suas maravilhosas mulheres (ou às 25 Marias expostas nas paredes), com mensa-
africana, a indiana, a chinesa, … imortalizando os humores e a beleza feminina, des-
gens, desenhos, fotos, rabiscos, poesia, colagens, num mural apropriado para o evento).
de os “cabelos d‟ouro trançado” até à ”pretidão de amor”, que o próprio Camões
A inauguração d‟o Muro dos Amores contará com a estreia daperformance de poesia,
vivenciou com seu „saber experimentado‟.
drama e música “ardo Maria, ai”.
Vamos fazer do espaço da 10pt uma ilha dos Amores, uma espécie de Olimpo
camoniano, na celebração do seu 2º aniversário. É poesia, é dança, é música, é boé- Fonte: www.10pt.org
Olimpíadas de Língua Portuguesa com poucos concorrentes na Beira
Dany Wambire - Beira
Texto & Foto
D
ecorrem hoje, 8 de Junho de 2012, pelas 10 horas, no
Centro Universitário, Cultural e Artístico (CUCA) da
Universidade Pedagógica, Delegação da Beira (UP-
Beira), as Olimpíadas de Língua Portuguesa promovi-
das pelo Centro de Língua Portuguesa - Instituto Camões (CLP/IC)
Beira e a Universidade Pedagógica. Essas olimpíadas são organiza-
das no contexto da celebração do 10 de Junho, Dia de Camões, de
Portugal e das Comunidades Portuguesas.
As olimpíadas visam, como deu a conhecer à LITERATAS, a coorde-
nadora do centro, Mónica Bastos, impulsionar o desenvolvimento
das competências de expressão escrita na língua portuguesa, assim
como criar o gosto pela sua utilização correcta, tanto ao nível oral,
como ao nível escrito. “O concurso visa, no fundo, trazer à reflexão,
por parte dos estudantes, aspectos relativos à semântica, morfolo-
Vão concorrer a estas olimpíadas, todos estudantes universitários da cidade
gia, sintaxe, ortografia, bem como aspectos sobre a vida e obra de
da Beira, inscritos para tal, que não são muitos, o que deixa agastada a
Camões”, ajuntou a coordenadora.
4. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 4
Destaque
coordenadora do CLP/IC, que esperava um número considerável de estu- centro de Língua Portuguesa/instituto Camões, pólo na Beira, organizou há
dantes “tenho a lamentar que inscreveram-se às olimpíadas apenas vinte alguns meses atrás “oficinas de língua” para estudantes dos diferentes anos
(20) estudantes, não obstante eu ter andando por quase todas universi- do curso de português. Criaram-se duas turmas de 20 alunos cada, mas que
dades desta urbe para tornar público estas olimpíadas ”. E é, realmente, cada uma acabou com apenas metade dos alunos. “Eram oficinas de oralida-
de lastimar essa fraca adesão por parte dos estudantes, numa altura em de e de escrita da língua portuguesa para dotar os alunos de capacidades de
que se debatem com a escassez de concursos tanto literários como olim- discurso oral e escrito correcto, mas metade dos alunos é que chegaram ao
píadas de Língua portuguesa. Alias, lembrem-se que nesse país quando fim”, rematou Mónica Bastos. Depois, lembrou-nos que os resultados do con-
decorrem olimpíadas, muitas delas, senão todas, são para as áreas das curso serão conhecidos no dia 30 de corrente mês de Junho, a partir dessa
ciências naturais ou matemáticas. data é que os três vencedores receberão os seus certificados de honra e
Para mais, a coordenadora, falou em exclusivo à LITERATAS, que a prémios. Ou seja, 1.500 meticais para o 1º classificado, 1.000 meticais para
questão de adesão aos concursos parece-lhe ser repetitivo, visto que, o o segundo, e 500 meticais para o terceiro classificado.
SINHÁ MOÇA: A Ignomínia Filmada
A
Guido Bilharinho* - Brasil Cia. Cinematográfica Vera Cruz, Esse embate, de permeio à revelação da crueldade humana, do sofrimento do
fundada em São Bernardo do escravo, do amor entre o jovem casal de protagonistas, forma o esqueleto ou a
Campo/SP, em 1949, consistiu em espinha dorsal do filme.
tentativa de industrialização do Como o tratamento temático visa apenas contar estória recheada dos
cinema no Brasil. Não deu certo. Por uma ingredientes
série de razões, já bastante debatidas em necessários a torná-
livros, ensaios e artigos. la palatável a
A referência à produtora de cerca de 18 ou amplas plateias,
19 filmes, entre eles Sinhá Moça (1953), co- seu arcabouço
dirigido por Osvaldo Sampaio (São Paulo/SP, ficcional é frágil e
1912-1996), e Tom Payne (Lomas de banal. Nele ressalta
Zamora/Argentina, 1914-1996), é feita -se, contudo, como
apenas para ressaltar o aspecto único aspecto
infraestrutural dessa realização. positivo e válido, a
O filme, como todos os efetuados por reconstituição e
grandes estúdios, visa principalmente o êxito amostragem da
de público como meio para obter retorno, ignominiosa prática
remuneração e lucratividade do capital da escravidão do
investido. ser humano por seu
Constitui tema à parte, examinar, analisar, semelhante. Além
discutir e avaliar a justeza ou não desse da crueldade ínsita
desiderato, que transforma possível objeto nesse modo de
artístico e levantamento da realidade e da produção pré-
natureza humana em mero produto capitalista,
industrializado, agravado com o viés da sobrepõe-se a
conformação ideológica. injustiça de
Sinhá Moça, pois, não se destina e nem organização social
almeja a realização artística, pautando-se por e do trabalho
simples narrativa ficcional objetivando atingir baseada na
amplo e variado público. apropriação e
Desse propósito não resulta qualidade usurpação violenta
estética. Cena do filme: Sinhá Moça e coativa da
O problema, contudo, não se limita a essa capacidade de uns
questão. É mais sério, grave e profundo, visto questionar-se, antes de tudo, a em proveito de outros.
própria finalidade do cometimento, com o que se cai no debate acima aludido, Se até a exploração do trabalho dos animais ou o modo como é feita podem (e
cujos pressupostos e condicionantes refogem à análise específica do filme. devem) ser questionados, o que não se dizer da escravização do próprio ser
Não se pode, no entanto, deixar de enfocar ou ressaltar sua origem para poder humano?
entender porque existe, é desse modo e não de outro. O que se retira de uns (os escravos) transfere-se a outros (os senhores), do que
É assim, e não diverso, justamente por sua gênese e finalidade, do que resulta resulta tudo faltar aos primeiros e tudo sobejar aos segundos, no maior exemplo
tríplice característica. Plena base infraestrutural, de um lado; pífio tratamento possível de disparidade humana e social.
ficcional e evidente convencionalismo formal, de outro. Esse aspecto evidencia-se no filme, com força e ênfase, constituindo seu maior
O filme é tecnicamente bem feito e, sob esse prisma, até supreendente para a (e rigorosamente único) atributo.
época. Os décors ou cenários interiores são diversificados e apropriados. As No mais, em sua essência, estrutura e desenvolvimento, a trama é esquemática,
locações externas muito bem focalizadas em angulações e enquadramentos não superando o nível das novelas de rádio da época e da televisão de hoje, o
adequados. A direção e a interpretação de atores não fogem a padrões aceitáveis, que significa, em síntese, não preencher nenhum dos requisitos indispensáveis à
alcançando até alto nível no que se refere à heroína, que transmite eficazmente configuração da obra de arte.
nas expressões faciais o que lhe vai no íntimo, refletindo instantaneamente seu Sob o ponto de vista da linguagem cinematográfica, também padece de igual
estado de espírito. O número e a movimentação dos figurantes apresentam-se sorte (ou falta de), dados seu convencionalismo e falta de inventividade,
avultado no primeiro caso e com boa e correta mobilidade no segundo. conquanto técnica e profissionalmente utilizada corretamente, virtude contudo
Assentada sobre essa base técnica-estrutural, ergue-se estória edificante, pela não artística, conquanto indispensável para alcançar tal qualificação. Notando-se
qual, no cruzamento das ações dos bons e dos maus, padece uma humanidade ainda a influência da linguagem comercial hollywoodiana de cinema, visível (no
escravizada, vilipendiada e humilhada, transformada em simples animal de carga, duplo sentido) também no tratamento temático.
os escravos negros. *
A trama segue a urdidura de eficaz receituário. Estruturada sobre as evidências (do livro O Cinema Brasileiro Nos Anos 50 e 60, editado pelo Instituto Triangulino de
dos fatos, a abordagem temática processa-se superficialmente, explorando, hábil Cultura em 2009-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Foto anexa de cena do filme.
e maniqueísticamente, bons e maus sentimentos e ações. De um lado, o __________________________________
idealismo, a bondade, as retas intenções. De outro, a exploração do ser humano * Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba/Brasil e editor da revista internacional de
elevada à máxima potência e toda a estrutura mental, comportamental e poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema, história do
organizacional destinada a mantê-la a ferro e fogo. Brasil e regional. (Publicação autorizada pelo autor)
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Reflexão
As intrusões do narrador no conto "Momento" de Guilherme Afonso
D
José dos Remédios - Maputo e um modo Como pudemos notar, se o narrador nas suas intrusões enaltece as capacidades dos
geral, o conto escritores e poetas como se fossem as mais ideais para retratar a história de
Estudante de Literatura Moçambicana na UEM Mateus, mas depois substituindo -lhes por um pintor, deve-se ao facto de as palavras
"Momento"
retrata a história não serem susceptíveis de representar a imagem que consegue captar. E como é
de um rapaz que é agredido fisicamente por um homem, por este julgar através de uma imagem que o conto é construído, o narrador logo conclui que o pin-
tor é a entidade ideal pelo facto de trabalhar com imagens. Mas qual é o papel das
que o rapaz teria roubado um anel que lhe pertencia. No processo da intrusões do narrador na enunciação do discurso?
narração, com o intento de descrever os eventos e, sobretudo, o prota- Não acreditamos que as intrusões do narrador no conto "Momento" tenham a função
gonista da diegese, o narrador homodiegético, que é todo aquele que de exprimir os desejos, juízos de valor ou ideologias do narrador como tem aconteci-
participa na história que narra como personagem, recorre, constante- do em várias narrativas. Pelo contrário. As intrusões do narrador neste conto têm
mente no acto da enunciação do discurso a uma focalização externa. A outros papéis. Dito de outro modo, as intrusões do narrador no conto em análise
focalização externa é, segundo Reis e Lopes (2000: 168), "constituída exercem o importante papel de revelar, ainda que de forma subjectiva, a gravidade
pela escrita representativa das características superficiais e material- da agressão que Mateus, rapaz indefeso, sofre por alegado roubo de um anel. Nesta
mente observáveis de uma personagem, de um espaço ou de certas ordem de ideia, o narrador, ao lado dos escritores e dos poetas, coloca-se na condi-
acções". Neste sentido, usando a focalização externa, o narrador descreve, ção de incapaz de descrever as pancadas que Mateus sofre sem reagir, pois o
primeiro o rapaz que sofre a agressão e, posteriormente, tenta descrever a for- momento da agressão apenas as imagens de um quadro podem descrever com
ma como a agressão se materializa. No entanto, das várias vezes que o narra- exactidão. Através das intrusões do narrador, o narrador garante que o seu discurso
dor homodiegético esmera-se em narrar os eventos integrantes no universo possua informações relevantes sobre o passado e condições familiares em que
diegético onde está inserido como personagem (daí o termo narrador homodie- Mateus cresceu. Para o efeito, recorrendo à focalização omnisciente, que é a repre-
gético), abandona a focalização externa e promove maquinalmente o que Reis sentação da narrativa a partir de um conhecimento transcendente do enunciador do
e Lopes designam intrusões do narrador. Assim, as intrusões do narrador são discurso, o narrador recorre às suas capacidades criativas para conjecturar o que
"todas as manifestações da subjectividade do narrador projectada no enuncia- pode constituir o passado de Mateus. Apresentamos uma passagem que enfatiza a
do,". Uma das passagens textuais em que se nota uma intrusão do narrador é nossa posição: "Nada nos garante, contudo, que seria este o prosseguimento que o
a seguinte: "Naquele momento desejei ser escritor. Um grande escritor. Só uma escritor daria à vida do Mateus. Poderia optar por fazer dele um menino nostálgico e
dessas pessoas que dispõem de um vocabulário rico e são dotadas de capaci- então escrever, por exemplo: nos primeiros dias o Mateus foi bem tratado pelo
dades para usá-la em toda a sua gama de combinações possíveis, assim con- senhor branco que o tinha arrancado da sua palhota" (p. 24). O narrador conjectura o
seguindo obter a forma mais expressiva para a ideia ou sentimento que preten- que a certa altura acreditava que o escritor seria capaz de dizer e que ele, como
dem exteriorizar, poderia fixar aquele momento" (p. 21). Mais adiante encontra- sujeito de enunciação, não consegue. Todavia, esta mesma conjectura que se mate-
mos a seguinte passagem: "O escritor não veria mais nada. Só aquele momen- rializa no conto a partir de uma intrusão, permite que o leitor idealize ou procure criar
to. Mas o escritor não é apenas o homem de vocabulário e frases bonitas. É imagens relativas a Mateus.
também o homem de imaginação, de fantasia" (p. 21). Ora, enquanto a focalização externa no conto "Momento" exerce o papel de caracte-
Nestes dois segmentos, tal como nos sugerem Reis e Lopes, o sujeito de enun- rizar fisicamente a personagem Mateus, as intrusões do narrador exercem o papel
ciação do enredo proporciona ao conto, através das intrusões do narrador e a de o caracterizar psicologicamente. Portanto, há intenção do narrador "transmitir ao
fim de revelar os seus desejos, os seus juízos de valor e as ideias que tem em leitor a emoção daquele momento". Por isso, o narrador intromete-se constantemen-
relação aos escritores, um momento de pausa. Mas será que são estes os te no acto da enunciação do discurso a fim de que a história cause um impacto emo-
papéis das intrusões do narrador neste conto? Acreditamos que não, pois ainda tivo muito maior no leitor.
que o narrador exprima os seus desejos circunstanciais, os seus juízos de valor Finalizando, as intrusões do narrador no conto “momento”, de Guilherme Afonso,
e ideologias, nos parece que as razões das intrusões do narrador são outras, revelam, primeiro, que para além das intrusões terem a função de exprimir desejos,
pois as suas funções não estão centradas de forma alguma no narrador, mas juízos de valor ou ideologias do narrador, também podem servir para preencher lacu-
nos acontecimentos captados pelo narrador que a focalização externa não des- nas de informação que a história, como um universo diegético que precisa do discur-
creve na íntegra. so para se fazer representar, não oferece; segundo, as intrusões do narrador podem
Neste recurso constante às intrusões, o narrador usa o seu poder criativo para constituir uma estratégia discursiva na medida em que a partir delas o narrador pode
imaginar e/ou sugerir como é que a história que "não consegue contar" poderia dialogar com o leitor, permitindo que este sinta-se integrado na história; terceiro, as
ter sido desenrolada por um escritor, o que revela a sua "incapacidade" de con- intrusões do narrador podem constituir uma forma de o narrador consubstanciar o
cretizar uma das suas funções, a enunciação do discurso. Há aqui uma antíte- seu discurso, de modo a criar um impacto emotivo maior no leitor, e quarto, as intru-
se, pois à medida que o narrador sugere como um escritor iniciaria o relato da sões do narrador podem ter o papel de adiar as acções centrais da diegese e criar o
história do rapaz que é agredido, demonstra que mesmo não sendo escritor é suspense.
capaz de iniciar a história como se de um escritor se tratasse. Vejamos a seguir
algumas passagens que demonstram a ideia do narrador em relação à forma * Um dos contos que faz parte da obra “Circuito”, de Guilherme Afonso.
como um escritor iniciaria o relato dos eventos diegéticos: "Era uma vez um
rapaz cuja força começou a ser aproveitada mal ele se equilibrava ainda de pé.
Um rapaz a quem pouco foi permitido brincar, (…). Aos cinco anos já ajudava O Prémio Camões 2012, o mais importante da literatura lusófona, foi
os pais. Ia buscar pequenas latas de água e a procura de lenha para o concedido ao escritor brasileiro Dalton Trevisan, anunciou o secre-
lume" (p. 21). Em função deste excerto, o narrador comenta: "este poderia ser
para o escritor um dos princípios da história. Com outro estilo, está bem de ver,
tário de Estado português de Cultura, Francisco José Viegas.
porque eu não sou escritor" (p. 21).
Nestas passagens, enquanto, por um lado, o narrador contradiz a ideia de ser Nascido em 1925 em Curitiba, Dalton Trevisan é um autor enigmático conhe-
incapaz de narrar os eventos que se concretizam num momento que presencia cido por seus relatos, em particular "O vampiro de Curitiba" (1965).
(como fizemos referência há pouco), uma vez que sugere a forma que o escri-
tor usaria para iniciar o relato da história, por outro, o narrador contradiz-se por- A decisão do júri representa "uma escolha radical em favor da literatura
que ainda que o escritor seja dotado de capacidades de escrita, é ao narrador
que cabe a tarefa de contar a história. Logo, quando o narrador na primeira como arte da palavra", explicou seu presidente, o escritor brasileiro Silviano
passagem que citamos afirma que naquele momento desejou ser escritor, Santiago, destacando os "incessantes experimentos" do laureado com a lín-
fazendo nos entender que só um escritor era capaz de contar o que presencia- gua portuguesa e sua "dedicação ao saber literário sem concessão às dis-
va, na verdade pretende sugerir que não existem palavras que pudessem retra- tracções da vida pessoal e social".
tar exactamente a agressão que o rapaz, a quem chama Mateus, sofre. Esta
ideia é evidenciada quando, a partir de uma outra intrusão, o narrador, a certa O Prémio Camões, de 100 mil euros, foi criado em 1989 por Portugal e pelo
altura, afirma: "Mas aquele momento nem precisava de história. Quem nos diz Brasil para premiar autores que contribuam para o reconhecimento da língua
que o escritor, depois de uma bela história, não falharia em transmitir ao leitor a
emoção daquele momento?" (p. 25). E apresenta uma nova opinião a seguir: portuguesa.
"Um poeta…Talvez um poeta. Os poetas têm o dom de dizer muito em poucas
palavras" (p. 25). A opinião do narrador a esta altura da narrativa é de que só O prémio, concedido no ano passado ao poeta português Manuel António
um poeta conseguiria dizer o que ele e o escritor, afinal, eram incapazes. Pina, já foi entregue em edições anteriores aos portugueses António Lobo
Porém, muito rapidamente descarta o poeta, concluindo que apenas um pintor Antunes (2007) e José Saramago (1995), ao brasileiro Jorge Amado (1994)
seria capaz de descrever o quadro que presenciou. Citamos:" Um poeta tam- e ao angolano Pepetela (1997).
bém não, porque não deve haver palavras que nos sejam capazes de dar
aquele quadro. Quadro… pintura!... Achei! Um pintor, só um pintor" (p. 26).
7. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 7
Poesia MALANJINA
JOÃO TALA - Angola
Um “b” de ban- Novenario
Vou de camuflado vou imune
visitar a malanjina
dolim a disposição Judith Castañeda Suarí - México vou com a ciência dos amantes
não posso esperar
Dia um esperas criam cicatrizes
Dinis Muhai - Maputo Beijo tua mão de
e eu já estou ingurgitado
Pedra branca,
O barbeiro idoso Arestas douradas.
Brilhantes. ela engoliu-me a infância
dorme como um Frias. cabe ainda no cheiro
mufana burguês Uso um dedo
procuro-a na sombra ou na pedra
no seu rasgado Para provar tua alma de cinza.
banco de estar
onde quer que haja um lugar de leite.
Dia dois
espantosamente Eu te esperei a noite.
embalado pelas Dormi Do Poemário FORNO FEMININO
subtís sonatas Quando o sol
psicanalíticas e Começou a estender seus dedos sobre a Terra.
estrangeiras. Epá quem
Por quê você tarda tanto? Inegável
passa pela calçada junto Dia três
a sua barbearia, com causa Rua. Conceição Lima - São Tomé
atesta um velhote speed, na da Catedral.
Uma palavra no papel.
maior, a exibir seu estatuto Eu não posso esquecer tua ausência. Por dote recebi-te à nascença
de proprietário com preguiça
enraizada aos novelos em seus
A rosa branca em frente de teu rosto E conheço em minha voz a tua fala.
desfolhei.
cabelos de luz. -Bang, bang Duas letras: E, C. No teu âmago, como a semente na fruta
bate com raiva a porta Foram teus dedos?
o verso no poema, existo.
um cliente. Vai e abre Dia quatro
com despreso o velho Ontem, transportei
a porta, e mais de mil Pinceladas transparentes. Casa marinha, fonte não eleita!
golpes mentais formam Agora
no meu emprego: fabrico, A ti pertenço e chamo-te minha
um exército de núvens Cores iguais, penso em atingir o algodão.
em seu cérebro de cores. Não há palavras
como à mãe que não escolhi
açoitam-no com rancor para se – Mesmo elas são buracos. e contudo amo.
deliberar e epá! Um clarão de
pérolas surge. –São horas de Dia cinco
Eu sonhei,
fechar. E o cliente furioso sonhei que sonhava-te.
lá fora na calçada refila. Teu nome
O velho tranca-se e cochila. Entre palavras de um idioma morto.
Não vi-te,
mas. Visto-te.
SOBRAS Dia seis
Reencarnação:
eu uso tua partida
Pedro Du Bois - Brasil para escrever,
Prefiro as sobras do banquete lês-me?
o vinho quente na garrafa Podes perdoar-me?
o azedo da salada
Dia sete
o restante da carne
Morte de um dia,
junto ao osso mudança de nome:
dia do Vénus,
o guardanapo dia da Estrela tardia
usado com esforço cinquenta e dois lugares vazios
no calendário,
guardo a rolha junto ao sábado.
em confirmação: aguardo Fernando Aguiar - Portugal
o retorno Dia oito
inserido Tua voz de silêncio.
na minha vontade.Prefiro as sobras Ouvidos sem tímpano.
Pele de ar.
do banquete
Eu falo.
o vinho quente na garrafa Eu não escuto, muito menos toco.
o azedo da salada Beijo tua testa de pedra branca.
o restante da carne Deixo-te voar.
junto ao osso
Dia nove
o guardanapo Pergunta
usado com esforço a Deus:
porque,
guardo a rolha ao libertar seu corpo
em confirmação: aguardo você silencia minha pulsação?
o retorno
inserido
na minha vontade.
8. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 8
Entrevista | Por Eduardo Quive
“A tradição oral exige não só
plena adesão interior, mas a
perfeita exteriorização”
D
avid Capelenguesa, poeta angolano, de
expressão meramente contemporânea ape-
sar de ele próprio considerar-se dos anos
oitenta, é um contador/cantador de canções
populares através da poesia. A oralidade trás para este
poeta a bilha e a àgua da sua criação poética. Os seus
sujeitos poéticos não são fantasmas, estão de forma
física e são a sua gente, a história popular e outros inig-
mas sociais. Quaria descreve-lo com mais exactidão.
Queria dizer no meu pacato e possível modo da escrever
que ele é um entre vários poetas que fazem o emblemá-
tico esquema literário angolano. Aliás, ele próprio faz
questão de citar essas vedetas que são dentre vários:
Ana Paula Tavares, Lopito Feijóo, José Luís Mendonça,
João Maimona, Luís Kandjimbo, Frederico Ningi, Antó-
nio Panguila.
Mas eu, para além de ter comparado a sua escrita com a
de Ana Paula Tavares, de um lado, mas de outro, idênti-
ca a de Aires de Almeida Santos (autor de “Meu Amor
da Rua Onze”), outro emblemático escritor contador de
oralidades. Talvez encontremos em Capelenguela o
reflexo do seu eixo de vivência e convivência, ao nascer
no Huíla, naturalizar-se no Namibe atraído pelo deserto
de Kalahari e constantemente deslocando-se de provín-
cia em província, cidadela a cidadela, levando consigo
as estórias dos povos, os hábitos e costumes, dizeres e
cantares. Eis o composto da sua poesia que o torna
inconfundivelmente mwangolé. Nada melhor que o poe-
ta na sua viva voz para sabermos quem ele é.
Antes de mais, como é que me dirijo a si? Digo Sr. Professor, Sr. Jornalista ou Poeta? começo a apresentar na rádio Namibe foi romântico. Tinha eu um chefe de progra-
R: Risos…aqui e agora estou nas vestes de poeta. Embora, transversalmente corra em mim o mas muito exigente, no bom sentido, foi uma pessoa muito organizada e gostava de
sangue de jornalista que até certo ponto tem andado na minha poesia, impulsionando, dando ver as coisas nos seus devidos lugares, estou a falar de uma grande figura do jor-
sugestões e até mesmo inspirando-me para o outros voos no mundo da poesia. nalismo Angolano, o Sr. Alves António que é actualmente o director Provincial da
Rádio Huíla. E como é obvio em qualquer programa de rádio, antes do programa ir
O que significa cada uma dessas profissões para si? Sei que já está também a entrar para ao ar, deve-se fazer a realização do mesmo, coordenar os temas e as músicas. Foi
Direito. então que paulatinamente comecei a sentir o pulsar no meu lado poético-romântico.
R: como disse, elas todas fazem parte do percurso da minha vida. Com 17 anos de idade entrei Na verdade não tive uma formação específica como tal, mas através de uma entre-
para o Ministério da Educação concretamente na actividade de professorado, na brigada juvenil vista que eu fiz, já enquanto realizador e apresentador do programa cultural, a um
de ensino Cdte Dangereux na cidade do Namibe. Dei aulas de Língua portuguesa no ensino de grande poeta, cineasta e antropólogo angolano, estou a falar de Ruy Duarte de Car-
base IIº e IIIºs níveis, durante 12 anos. Três anos depois de estar a trabalhar como professor valho, daí partiu uma amizade com este grande homem de cultura e, muito cedo
entro para o jornalismo, na rádio local comecei por apresentar um programa romântico/relaxe, comecei a tomar contacto com as suas obras, convivemos muitos anos, viajamos e
durante um ano, depois um outro programa virado para a juventude onde fiquei durante um ano fez-me conhecer o Namibe a dentro, os seus povos e culturas, formas de estar e
também e por fim um programa cultural onde permaneci mais de cinco anos. Colaborei ainda no ser, danças, adágios, provérbios, máximas, adivinhas, cantos, ritos de puberdade,
jornal de Angola e Angop (Agência Angola Press) durante quatro anos. Passei pela ainda rádio formas de choro, sinais do rugir do leão e gestos até do ruminar do boi comum e do
Huíla, e actualmente estou na Rádio Cunene onde apresento um programa cultural também. boi grado e mais. Foi então que fui-me forjando, vou sendo forjado para esta coisa
Quanto ao Direito, é a formação que estou a seguir, se tudo correr bem termino a minha licen- de fazer poesia e devo mesmo dizer que é o grande ganho dos meus últimos 23
ciatura em Direito este ano de 2012. Estou muito entusiasmado, pois é o curso dos meus anos, pois faço da poesia a legítima confidência para o meu quer ser, para as coi-
sonhos, embora antes tivesse ingressado no ISCED - Instituto Superior de Ciências de Educa- sas animadas e inanimadas, o belo, o ruim, as sensibilidades, os sinais visíveis e
ção, onde fiz o primeiro ano de Linguística português. Relativamente a poesia, esta faz o meu inexplicáveis, mas procurando dar um rosto próprio e característico a poesia que
mundo, é a razão do meu viver, a força e o compasso que me tem mantido firme e fiel comigo tenho tentado ilustrar no quotidiano. Tenho tido ainda um grande apoio de aconse-
mesmo e com os meus próximos. lhamento poético, conversa e ensinamento de técnicas e outras formas de se cami-
nhar na poesia por parte de outros grandes nomes da poesia angolana. Falo por
Como foi o seu inicio na carreira poética? Teve alguma formação específica? Foi influen- exemplo do poeta e crítico literário Lopito Feijóo, uma pessoa que está sempre por
ciado por algum autor para despertar a sua atenção para o fazer poesia? Por que você perto e fazendo com que a minha poesia antes de sair ao público seja lida por ele e
escolheu ser poeta? outras pessoas. Tem sido muito gratificante. Embora poucas vezes mas vou con-
R: Eu entro para a poesia de forma implícita. Como disse a instante, o primeiro programa que versando ainda sempre que possível e nos encontramos em Angola ou em Lisboa
9. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 9
com o crítico literário Luís Kandjimbo, que me recomenda, aconselha e desperta-me em outro sentido, buscando uma reinvenção da sintaxe e a força mântrica das palavras. A
para muita leitura e consulta bibliográfica não só da poesia mas da literatura no geral, linguagem poética, tenta ser uma leitura crítica ou expoente descritiva da realidade cultural
como deves saber, Luís Kandjimbo não é crítico e poeta vulgar, é artista de manga angolana ou africana e não só, onde a transmissão oral ganha um espaço e transmite ener-
comprida, é académico, homem que ama profundamente a cultura, exigente, e pautado gia procurando coexistir com outras formas de realização poética.
de um rigor e disciplina. E orgulho-me profundamente por isso, embora consciente de
muito caminho por fazer e, lá vou indo.
Sente que a sua poesia, nos moldes que a faz (juntando estórias populares, línguas
O ser poeta, mas cantando as canções do povo, nas suas línguas, hábitos e locais) é entendida? Isso o tem preocupado?
costumes, como é que surge em si?
R: Sinto que é realmente entendida, embora por um público por vezes restrito e
R: Este estilo da elaboração poética, começa concretamente quando sobretudo àquela camada de leitores mais atentos. Por estes anos de exercício
passo a apresentar o programa cultural na rádio Namibe e, como vês poético baseado na cultura tradicional oral, eu tenho chegado cada vez mais a con-
mais uma vez o nome da rádio e o Namibe, …risos…aí comecei a clusão de que tudo o que existe provém de uma origem, mas a oralidade é mãe da
sentir a verdadeira responsabilidade do trabalho jornalístico, com o sua própria existência, pois para mim, a civilização negro-africana baseia-se na
agravante de ser um jornalismo quase investigativo, pois estava palavra; é essencialmente oral, aliais, na tradição africana, o mundo é dominado
perante um programa que se chamava “ Frente Cultural”. Começo pela palavra. A oralidade é completada por ritos e símbolos. Mas este sem a palavra,
a sair para reportagens dentro e fora da circunscrição do Namibe, sem a tradição torna-se ineficaz. A palavra ocupa o primeiro lugar nas manifestações
não só enquanto cidade mas também enquanto Província, pois a artísticas, no culto religioso, na magia e na vida social para além do seu grande valor
abrangência cultural da região se impunha. Foi desta forma dinâmico e vital, é praticamente o único meio de conservar e transmitir o património cultu-
que seguindo as normas tradicionais da nossa gente, muitas ral. Embora esta palavra deva ser interpretada de diversas formas, julgo ser um elemento
vezes tive de sentar-me no otyoto, ou para ser recebido que nos identifica. A minha preocupação não é de estar a ser ou não entendido, porque
enquanto jornalista visitante ou para a partir mesmo estou seguro que tenho sido entendido, pelo contrário a minha preocupação é servir e trans-
destes lugares, entrevistar, assistir cerimónias, mitir a realidade ao nível destes povos. De chamar atenção a sociedade de que na condição
conversar, julgamentos tradicionais, ou africana, não há centros urbanos sólidos sem uma origem cultural ou tradicional assente
mesmo uma simples sentada ao anoite- verdadeiramente nas suas raízes. Mas também é importante lembra aqui que, John Nacy,
cer a volta da lareira enquanto a noite citado por Jorge Macedo in “ ... Texto Literário” diz que” a literatura tende a criar para si
se faz adulta. Ouvi canções ao anoite- uma gíria a que insufla um ideal estético”. Isto para dizer que, a “gíria literária” de hoje
cer, recados e assobios de aviso no traduz fielmente os esforços de toda uma geração de escritores que primam por
percurso da vida em busca da vida. A exprimir-se com a arte, sobretudo na sua dimensão estético-subjectiva. A palavra,
tradição oral exige não só plena para estes poetas inovadores, é um mero símbolo que, no entanto, encerra uma plu-
adesão interior, mas a perfeita ralidade inesgotável de sentidos ao ponto de o seu significado contextual afigurar-se
exteriorização. A “memória muscu- ambíguo. Logo, para apreender a palavra poética e, por extensão à própria poesia
lar” é exercida nas festas, pois produzida nos nossos dias, é preciso vencer a tentação da aderência imediata e,
mobiliza e prescreve regras res- ultrapassar o sentido literal da palavra para, lá dela recriar a criação do poeta. Esta
tritas de comportamento. São recomendação e gestos verbais apontam para a necessidade de se corrigir o mito
os ritos e as regras que regem de que a poesia é uma leitura fácil, pois instado ao consumo da produ-
a nossa gente…, estar e ser ção poético diga-se de passagem, requer, como toda a arte que se preza
humilde deve ser sempre como tal, um esforço de interpretação, no desejo de andar próximo da con-
sagrado e bem visível aos vivência poética. Aliais “ao poeta pergunta-se como canta, não se lhe per-
olhos dos mais velhos, pois gunta o que canta”.
com a realização escrupulo-
sa dos ritos os homens atin- A propósito, qual é a razão para a sua cumplicidade com as tradi-
gem o mundo do ser. A forma ções?
de se sentar para mulheres e R: Porque acho é de lá onde viemos, onde estão as nossas raízes, onde
homens, a maneira de fazer teremos que regressar um dia…risos…
parte da conversa e tomar a
palavra, saudar, o coro do canto e o gesto Será também, essa, uma marca que quer deixar sendo um poeta fora da cidade
da dança quando chamado a fazer parte, o capital?
penteado feminino e masculino, o traje R: O mestre Ruy Duarte de Carvalho é assim como sempre o chamei e o continuarei a
tudo, tudo é feito com rigor e pormenoriza- chamar, viveu em Luanda capital de Angola, conviveu intensamente com o interior do
damente. Foi então que a questões da orali- País e não só, mas manteve-se fiel a sua forma de pensar e encarar a realidade poéti-
dade, começa a ganhar corpo na minha ca. Como em toda história da poesia, eu também inspiro-me do canto, mas canto puro,
poesia, assim mesmo podes ver o poema suave e de transmissão cultural, não canto em forma de gritaria como repúdio a um
“rito de puberdade”, da página 40 do meu assaltante de telemóvel ou carteiras das senhoras em pleno dia e em plena capital do
segundo livro de poesia “ O enigma da Wel- país, embora esta forma de canto me possa propor e inspirar algo para escrever, só
witschia” editado pela brigada jovem de lite- não sei se seria poesia ou não! Mas, como digo, estar na capital ou não, não faz-
ratura de Angola do Namibe em Abril de me muita diferença, aliais, eu vivo no Lubango, Província da Huíla, trabalho em
1997. Ondjiva, Província do Cunene todas cidades e Províncias do interior e sou estudan-
te Universitário em Luanda capital do País, onde passo muito tempo também. Mas
Como é reconciliar essa maneira de a convivência com este meio extra interior, ou melhor, “o choque de culturas” não
fazer a poesia com as barreiras linguísti- deve deixar-me desenraizado dos meus princípios, valores, reflexões, formas de
cas que separam os povos e às próprias pensar e pontos de vistas, interpretar e entender a estruturação e estra-
exigências da poesia? tificação dos meios urbanos e rurais, pois as raízes de um povo consti-
tuem a herança e o património sagrado que cada indivíduo e cada
R: Tudo quanto tenho tentado fazer é na comunidade recebem dos antepassados, contextualizando este mesmo
verdade uma demonstração e valorização testemunho para ser o seu alimento e razão profunda da sua existência.
cultural, que infelizmente o etnocentrismo
europeu negou, descuidou e deturpou, Isso tem influenciado na sua carreira literária e dos outros poetas
fazendo-se de esquecido que esta é a ver- do Namibe?
dadeira realidade cultural negro-africana. E R: Não, eu encaro o país no seu todo, transmito valores, desperto cons-
fruto disso mesmo, assistimos hoje, um ciências, critico, e deixo-me criticar, sou forjado por outros e muitos for-
processo de secularização da cultura tradi- jam-se da minha poesia. Penso que o ser social pressupõe-nos deveres/
cional, sobretudo nos meios urbanos, con- obrigações e direitos. Relativamente a poesia de outros poetas do Nami-
tradizendo-se com evidências de que a cul- be, julgo que não foge muito da realidade geral, embora a forma de pensar e trabalhar
tura tradicional oral informa e motiva princí- pios, valores, reflexões e estruturas que a poesia varia de poeta para poeta.
não se devem ignorar isto, pois constituem a especificidade da nossa identidade.
Nunca perdi de vista que todo o exercício cultural e não só, obedece normas e regras, O que Namibe significa para si?
mas mesmo assim ainda, julgo que as exigências que a poesia impõe fazem parte de
um todo percurso e etapas que tenho trilhado ao longo destes anos. A quando da apre-
sentação da minha mais recente obra poética no passado mês de Maio em Lisboa, a
R: Risos…o Namibe é o meu ponto de partida, onde um dia encontrei o sentido das almas
Dra. Ana Mafalda Leite, Professora de Literaturas Africanas de expressão Portuguesa
na teimosia das paragens impacientes, sem que a virgindade do vasto deserto do Kalahari e
disse-me uma coisa que parece simples mais muito profunda, onde para ela, eram feli-
a impressão do gesto firme na fineza dos actos tivesse-me negado o alcance do que preten-
zes aqueles poetas que tiveram o privilégio de passar de um século para o outro, no
dia. O Namibe enquanto interior é excessivamente denso na sua vastidão de arte, ternura,
caso do 20 ao 21. Esta afirmação levou-me a fazer uma reflexão a respeito da velha
adágios, contos e saberes. E fica-se com a sensação de que a corrente fria de Benguela
discussão sobre o conceito de geração. Para mim, e perante uma realidade diferente,
ainda nada levou e por desbravar é do que há de mais, pois a mobilidade do espaço-tempo-
onde Angola caminha a passos largos para diferentes tendências, queira cultural social
ser aguarda-nos na continuidade de outros partos. Sempre que vou ao Namibe, ao regres-
ou político, uma geração, literária neste caso, pressupõe ser uma integridade social de
sar volto com visões reelaboradas, comprometido com o seguimento do querer que nos con-
homens selectos, irmanados dos mesmos ideais e estratégias, pensamentos, possuido-
some na azáfama da seiva do verbo. O Namibe aguarda-me sempre guardando as mais
ra de uma linguagem característica, com alinhamento e desagregação da geração ante-
belas notas para serem cantadas em forma de poesia. Como disse, no princípio da minha
rior. Embora não seja tanto esse o meu caso, aliás porque eu identifico-me até certo
entrevista, foi ali onde comecei com as minhas profissões e conheci o Mestre Ruy Duarte de
ponto um pouco com a geração de 80, caso haja a posterior a esta, a minha forma de
Carvalho, que me apelou a riqueza do solo, falou-me da expressão do sapatear na dança
encarar as barreiras linguísticas que separam os povos é a de valorizar as línguas
Kuvale, afinou-me a sensibilidade para as diversas formas e mensagens vindas do som do
maternas ou nacionais como temos chamado cá em Angola, para a partir delas procu-
batuque, mostrou-me a legenda das ondas do mar e descreveu-me o interior até a fronteira
rarmos formar um juízo valorativo da sua cultura, personalidade, valores e identidades
com a vizinha República da Namíbia.
evidenciando-as de diversas formas até a este nível poético como tenho tentado fazer. É
nesta senda que, ao contrário da dicção mais discursiva, retórica, de conteúdo político
directo, que esteve em evidência nos anos 60 e 70, a minha poesia procura mover-se Qual tem sido o movimento da literatura nessa região?
10. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 10
dia 08 de Junho de 2012. Como dizeres e confirmo, depois de um período de reflexão,
R: O movimento literário nesta região tem sido mais baseado da gente que vem de fora, análise e maturação dos meus feitos poéticos, neste último compasso tenho procurado
digo de autores que socorrendo-se da frescura, da beleza da pequena cidade, vão até lá manifestar-me na poesia de uma forma mais profunda e interventiva, olhando as ques-
com finalidade de apresentação pública das suas obras. Existe um pequeno núcleo da bri- tões que desde sempre me preocuparam, procurando aqui e de viva voz, sempre que
gada jovem de literatura, onde com alguma periodicidade, realizam-se encontros, palestras posso e assim o entender deixar bem patente o dizer da minha gente. Eu me sinto bem
e debates a volta de um dado tema literário, e assim vai indo a vida literária por aquelas representá-los como tenho feito, sobretudo porque eles aceitam-me e cada vez mais ins-
paragens. piram e fornecem-me subsídios para estes feitos. A obra “Gravuras D‟outro sentido, pro-
cura” descrever vários estilos e formas de representação poética direccionados ao Nami-
Poetas como Aires de Almeida Santos e Ana Paula Tavares o que lhe dizem? Aliás, be, sobretudo, não fugindo a regra de sempre. Já a obra “Tipo- Grafia lavrada, é um pou-
acho a sua poesia um pouco semelhante á de Aires de Almeida Santos, onde o povo co mais solta, mais geral, na sua forma de estruturação e apresentação, embora, sejam
é objecto da vossa criação. Comenta. todas obras de uma mesma linha de orientação e do mesmo autor, com as mesmas pre-
tensões, visões e formas de pensamento.
R: São poetas de grande dimensão, sobretudo a poesia da Paula Tavares, aquém eu mais Esta pergunta já lhe tinha feito noutras conversas, mas ela ainda me incomoda a
leio, já que tenho lido muito pouco a poesia de Aires de Almeida Santos. Leio muito tam- dentro. Qual poderá ser o destino da sua poesia, tendo em conta a distancia que a
bém a poesia do Lopito Feijóo, José Luís Mendonça, João Maimona, Luís Kandjimbo, Fre- sociedade vai tendo com as suas raízes identitárias? Teme alguma falta de espa-
derico Ningi, António Panguila e outros mais, todos poetas de grande valor e julgo que con- ço?
quistam o seu espaço, cada um tem a sua forma de encarar e elaboração poética. Todavia, R: Pelo contrário, o espaço é conquistado pelo homem e, a poesia tem e terá sempre
o povo está sempre presente na poesia, não só na minha, mas como na de todos autores, espaço em qualquer parte do mundo. Um dia o escritor Angolano Abreu Paxe ao ser per-
pois quando escrevemos não só estamos a exercitar a nossa capacidade intelectual, mas guntado sobre a sua forma de fazer poesia, respondeu belamente dizendo, “penso que a
também nos comunicando com outros através do texto. Isto pressupõe a existência de dois poesia, como ato de criação, para mim não deve de forma objectiva nomear as coisas tal
pólos de comunicação, onde o emissor transmite a mensagem para o receptor ou até vice- qual como elas acontecem no cosmos, tal como se movem, tal como o cosmos as regula,
versa, como muitas vezes acontece na minha poesia, em que recebo, concebo, reelaboro e vistas, à vista desarmada ou macroscopicamente. A poesia deve constituir-se no mundo
volto a transmitir. alternativo, este funcionando como mundo não codificado ou convencionado numa visão
globalizante, senão como codificação singular do criador e do leitor. Ao serviço da arte, a
As suas duas últimas obras: “GRAVURAS D’OUTRO SENTIDO” e “TIPO-GRAFIA poesia deve-se construir com certa erudição, ou seja, a partir do que já existe, do que já
LAVRADA” são no meu entender, um símbolo da qualidade da sua poesia, mas no foi proposto nos matizes artísticos. A poesia deve convidar-nos a mergulhar no escuro,
entanto, nelas há sinais de transformação da sua escrita poética, quando comparado como dizia Gastão Cruz, não para o iluminar, mas para aprender a conhecê-lo, evocando
com a obra “VOZES AMBÍGUAS”. Comente esta interpretação, tecendo igualmente, todos os sentidos.” Eu estou perfeitamente de acordo com este poeta, e é nesta forma de
comentários sobre o que norteia a escrita dessas obras? encarar os desafios da caminhada poética que o mestre Lopito Feijóo sempre diz, poesia
é um mundo onde quando mais se caminha mais caminho há para se fazer, aliais, o poe-
R: Eu estruturo a minha poesia da seguinte maneira: 1 – compasso da reelaboração da ta, não tem fronteiras e nem se circunscreve só na sua pátria, e assim, mais uma vez
alma, onde incluo as obras “Planta da sede, O enigma da Welwitschia, Rugir do crivo”, 2 – voltando ao poeta Lopito Feijóo, dizia: “é sem fronteira a pátria do poeta/ minha pátria é a
compasso da travessia, onde incluo as obras “Vozes ambíguas e Acordanua”, 3 – compas- nossa casa/ É a minha campa (é dizer), m´bila iami! /chamar-se-ia Lucrécia, Mundo/ou
so do silêncio e tacto, onde incluo as três últimas obras, neste caso, “Gravuras d`outro sen- poesia, não fosse eu um apátrida!”.
L
tido, Tipo-grafia lavrada e Véu do Vento”, esta última que vamos apresentar ao público no
1
iteratas
ano
Informar é uma arte
Salão Internacional Prémio PT de Literatura
em Língua Portuguesa
do Livro do Piaui
A
escritora angolana Isabel Cinco autores portugueses, 54 brasileiros e uma san-
Ferreira estará presente no
Salão Internacional do
tomense compõem a lista dos 60 nomeados para o
Livro do Piaui SALIPI) nos Prémio PT de Literatura em Língua Portuguesa.
E
dias 10 a 17 de Junho no Complexo
C.Praça de Pedro II no Nordeste do ste ano, o prémio conta, pela primeira vez, com três cate-
Brasil. gorias: Poesia, Romance e Conto/Crónica. Nesta fase,
A escritora Isabel Ferreira levará estão nomeados os autores portugueses António Cabrita,
uma diversidade de material cultural “A maldição de Ondina” e Valter Hugo Mãe, “A máquina de
e para além da sua comunicação fazer espanhóis”, na categoria Romace; Alberto Xavier, “O escandi-
sobre o percurso do teatro universi- navo deslumbrado”, na categoria Conto/Crónica; Gastão Cruz,
tário angolano, terá encontros com “Escarpas”, e João Rasteiro, “Triptico da súplica”, na categoria Poe-
fundações culturais nordestinas.
sia.
Isabel Ferreira que é docente da
cadeira de Cinema e Literatura no Simultaneamente, os 274 jurados revelaram os nomes dos seis jura-
Instituto Superior Metropolitano de dos que seleccionarão os 12 finalistas da etapa intermediária e os
Angola estará presente no encontro onde também participaram os escritores grandes vencedores, que serão conhecidos em Novembro. Este Júri
brasileiros Adriano Lobão, Antônio Noronha, Bárbara Olímpio, Cineas San- será formado por: Alcides Villaça, Antonio Carlos Secchin, Benjamin
tos, Graça Targino, Paulo José Cunha, Arimatan Martins. Abdala Júnior, Leyla Perrone Moisés, Manuel da Costa Pinto e Maria
Os palestrantes brasileiros são Ignácio de Loyola Brandão, Cristovão Tezza, Esther Maciel.
José Castello, Sônia Rodrigues, José de Nicola, Marcelino Freire e Sérgio No ano em que se assinala o 10º aniversário do prémio, a primeira
Sant‟Anna. Outros palestrantes internacionais são, a cubana Roxana Pineda etapa contou com 502 livros inscritos: 165 obras na categoria Poe-
e a portuguesa Ana Luisa Amaral. sia, 139 em Conto/Crónica e 198 em Romance. Todas foram publi-
O evento será em homenagem aos escritores Luiz Gonzaga, Jorge Amado, e cadas no Brasil, no ano de 2011. Dos três vencedores, um por cate-
o jornalista Nelson Rodrigues
goria, será escolhido o vencedor do Grande Prémio de 2012.
Refira-se que a escritora tem tido uma participação cultural muito frequente
no exterior do país nomeadamente: Brasil, Canadá, Chile, Portugal, Moçam-
A edição de 2012 conta com uma curadoria formada pela curadora-
bique, Cabo Verde. coordenadora Selma Caetano, pelos especialistas José Castello
Isabel Ferreira é membro da União dos Escritores Angolanos. U.E.A. É Mem- (literatura brasileira) e Madalena Vaz Pinto (literatura portuguesa),
bro da Ordem dos Advogados de Angola (O.A.A.) e da União Nacional dos além da perita em literatura africana Tânia Celestino de Macedo. A
Artistas e Compositores Angolanos, (U.N.A.P.). É também membro da Socie- curadoria responde pelos resultados de todas as etapas do Prémio e
dade Portuguesa de Autores. (S.P.A.). participa da composição de todos os júris.
11. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 11
O passo certo
no caminho errado Filosofonias
A oralidade na escrita Marcelo Soriano - Brasil
Nelson Lineu - Maputo Quem sabe, "talvez"? - Análise de uma palavra indefinida
V A
eio mesmo a calhar a visita da avó palavra "talvez" é um coringa. Serve como sim, ou como não.
Margarida, Eugénio estava empolgado Talvez sim; talvez não. É a certeza sem convicção. A afirmação da
para dar a notícia segundo a qual era incerteza. O grande lance da palavra "talvez", é que ela é universal
o motivo do seu sorriso nos últimos e hipotética, tal como as grandes teorias da humanidade: o Big-
Bang, a Evolução das Espécies, as Leis de Murphy... Ela é o casamento su-
dias, mal entrasse de férias arrumava a mochila e bazava para a
jeito a divórcio entre o "Tal" (pron. adj. Semelhante, parecido, análogo) e a
localidade onde vivia a avó e nasceram os seus pais, visto que mais "Vez" (s. f. Ocasião; ensejo, tempo, época). O "talvez" não assume, em
tarde migraram para o local onde hoje inventam vidas, para ele era hipótese alguma, a responsabilidade sobre um futuro (breve, óbvio,
isso e não se discutia mais, tinha como justificação o facto da criati- possível, porém, irrevogavelmente desconhecido). O talvez pode perfeita-
vidade africana. Acontecera nas últimas semanas, viu no noticiário a mente se contradizer. É a dúvida sobre o porvir.
Sequer os dicionários são capazes de precisar esta palavra, a colocando
edição de um livro de estórias, as mesmas que ouvia na fogueira da
como sinônimo de "porventura", "quiçá", "provavelmente"... Pensando nisso,
sua avó e deixava-se embalar ou seja futurar nela, o seu maior decidi adotar o "talvez" como palavra de ordem. Assim como o "ou não" é o
medo é que elas morressem com o tempo, vendo a sua camada Princípio da Incerteza de Heisenberg (e não do Caetano Veloso - composi-
marimbando para elas ou quem de direito, seguir o mesmo itinerá- tor e cantor brasileiro, como muitos gostariam que fosse), o "talvez" pode
rio. ser mais abrangente e global, envolvendo, além do "ou não", o "ou sim".
Bom, não tenho certeza sobre a validade desta análise da palavra
Com edição desses livros tinha com que se orgulhar, não nos per- "talvez", mas isto, "talvez" seja algo a ser avaliado mais adiante. Quem sabe
deríamos num enredo que vem sendo traçado há séculos. Contando valha à pena? Quiçá?! É bem possível. Provavelmente. Quem seria tolo ao
ponto de limitar ou pré julgar um "talvez"?!
a avó sobre a boa nova, respondeu com as seguintes palavras: -------------------------------------------------------
- Meu neto, eu também gostaria de estar a sorrir como você, fazen- De Profundis
Velório: momento solene em que, enfim, seremos oferecidos ao povo como
do isso parece-me que estaria a rindo-me de mim mesmo. Olha que
um
fiquem bem claro, não me oponho a isso, ainda me chamam de banquete frio, à luz de velas... E seremos gentilmente recusados pelos mel-
ultrapassada como vocês adoram fazer. Com a edição dessas estó- ancólicos
rias que não aparecem como iniciativas nossas, como sempre, per- mortos de fome.
deremos o que mais significativo para nós tem nelas. Ora vejamos, ------------------------------------
elas acompanham-nos há séculos, cada um vai contando a sua
maneira adequando-se ao seu tempo e desafios. Com a escrita elas
estariam estáticas, contaremos apenas o que estiver lá escrito, esta-
remos presos as letras e as significações de quem conta. Se quere-
mos preservar essas estórias, não era melhor cada um dar-se a
missão de contar passando de geração em geração como temos
feito até agora? Mas é esse nosso dilema africano diário conviver
com esses dois mundos, mas escolha meu neto, não tem que ser
sempre feita a partir de conveniências.
Angélica, minha esposa * Izidro Dimande - Maputo
E
duardo Quive, meu confrade que me deu o direito de o chamar simplesmen-
te Quive, jovem de tenra idade que nem chega a minha, jovem das noites cada bairro e de cada pessoa em cada bairro, desculpem a redundância, o Quive percebe.
de palavras ao som de um cântico de se ouvir. Quive do seu jeito frugal que Reconta as pessoas e as acções e constrói-as para nós que nos esquecemos, Quive sai e
atrapalhou Angélica, filha do falecido manhembana. entra nas Literaturas Africanas Pós-Colonial que Ana Mafalda Leite titularizou para os nos-
Já estou inerte de tanto ler suas prosas e nada poder dizer em oito parágrafos sos escritos, do quotidiano.
sobre este meu amigo do meio, Xiguiane da Luz. Ou Quive, que apresenta-nos agora Quive não brinca com as palavras, escreve-as como são no seu verdadeiro sentido e aperce-
o seu inédito, cujo titulo pedi emprestado para este pensamento, e me pergunto com bemos que a escrita literária tem vida, tem construção, tem acção, tem moçambicanidade e
tanta idade, depois de eu ter lido todos os seus escritos, como consegue ele colocar- não tem separação de acção, espaço.
me em sintonia a uma vida de becos e ruelas do antigamente. Será que esta frase Nas suas obras por vezes Quive assusta-me quando entra na rua das miúdas, Era sexta-feira.
celebre ´´Quando a palavra cala-se o silêncio é o meu abrigo preferido. Em mim, Dia 13. Dia das bruxas. Bruxas femininas. Os machos são bruxos, por isso aparecerá um só
um fim, um mundo subjectivo! A Palavra com o poder de dizer o que sinto, o homem. Agora é assim mesmo. É emancipação até na bruxaria. Nos corredores daquela rua,
que acho. SOU EU, ESTOU AQUI, CONSIGO E COM NINGUÉM``, dele é suficiente pisavam-se as lágrimas silenciosas da Kotile, circulava com mine saias, cujo tamanho não era
para o conhecermos. Quive vive no Patríce Lumumba como ele descreve em suas digno de se chamar de mine saia. Parecia uma pura roupa interior. Pura porque era mesmo
prosas e poemas (não sei como consegues fugir da prosa ao poema, fumas mban- quase que um espelho lambido pelo orvalho. Se via tudo. Tudo mesmo. In O primeiro cliente,
gue?) mas este Lumumba não viu-o nascer nem ele viu-o crescer, o que Quive faz na a quem disse-me que o escritor escreve o que vive (não vamos confusionar este alguém), dei-
sua escrita é a interpretação daquilo que seu pai, seu irmão (que a alma descansa xe-me escrever o que penso desse alguém se fosse para o Quive, que na idade que ele tem
junto dos outros familiares e amigos), sua mãe, e, outras pessoas da minha idade seria um atirador das ruas da prostituição, porque Quive vive nestas ruas na sua escrita. Ima-
viveram no pós-colonial neste bairro e outros. O Xiguiana da Luz escreve o Lumumba ginem o Quive, magro, acabado pela escrita no seu escritório do Kuphaluxa, pensando como
da pós-paz. juntar os seus membros e o povo em geral, sem um tostão porque a escrita não lhe dá dinhei-
Quive vive em todos os bairros, Às tardes passava da Escola Industrial primeiro de ro em Moçambique e sem um almoço energético, para ter de ir a rua das miúdas viver. Não
Maio, na capital de Maputo, não estudava ali, mas gostava daquela esquina, é porrei- precisa o escritor viver algo para escrever.
ra. Basta pensar e juntar o enredo.
Havia um jovem, cujo nome ainda vou consultar, vendia rosas, talvez de todas as Ó Quive! O que achas que a sua escrita pode mais ensinar-me. Se já sei como vivíamos no
cores, será possível? Bem se é possível ou não, deixo de saber ou melhor não dava antigamente. Achas que eu sou teu confrade com capacidades de falar de ti. Ou devo ler mais
para perceber, porque sempre que olhava para aquele lado, coincidia com o olhar de suas obras e viver mais consigo.
uma mulher, bonita e elegante, na verdade parecia uma sereia que um simples peixe, Aos meus leitores, leiam o Quive sempre que o zénite literário vos chegar.
uma mulher que cativa qualquer olhar atento, com uma voz suave, um olhar bastante Porque o jornal do Quive é de pouca tiragem para aqui até próxima edição.
firme, com um tom de inocência, em fim, um cativeiro que cativa a todos, in a Assas-
sina das Rosas, não só neste, vive, conhece as vicissitudes de cada esquina em *Titulo da prosa de Eduardo Quive
12. SEXTA-FEIRA, 08 DE JUNHO DE 2012 | LITERATAS | LITERATAS.BLOGS.SAPO.MZ | 12
Frederico Ningi