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Capítulo 1
“Sweet dreams are made of this
Who am I to disagree?
I travel the world
And the seven seas-Everybody's looking for something.
Some of them want to use you
Some of them want to get used by you
Some of them want to abuse you
Some of them want to be abused”
Sweet Dreams (Are made of this) – Eurythmics

C

urtir a adolescência na década perdida - leia-se anos 80 - parece ser um privilégio
para poucos. Eu sempre deixei isso bem claro para as minhas amigas, que em um
futuro próximo, as pessoas iriam ouvir falar muito da efervescência da época com um
ar sonhador e nostálgico. Eu me chamo Audrey Mantovani, tenho dezessete anos, filha

de pais divorciados, pertencente à classe média paulistana, estudante de Jornalismo e
aspirante a diplomata que grava relatos do dia-a-dia no Walkman enquanto masca chiclete de
morango. – completei meu discurso gravado ao apertar a tecla Stop do aparelho.
O dia lá fora estava tão bonito que não poderia ser desperdiçado ficando neste quarto
por tanto tempo, então havia decidido colocar o meu melhor biquíni rosa-pink, juntamente com
os óculos escuros Wayfarer com aro da mesma cor para combinar. Se ainda estivessem se
perguntando a razão de eu ter um nome estrangeiro na minha certidão de nascimento, deixaria
a justificativa da minha mãe a respeito: tratava-se de uma singela homenagem à atriz de
Hollywood Audrey Hepburn, em seu grande fascínio pela carreira dela desde a adolescência. A
verdade era que, até então, muitas pessoas tinham dificuldades em pronunciar o meu nome
corretamente, então acharam mais fácil me tratar por Audi que, à primeira vista, remetia a uma
conhecida marca de veículos de luxo. Não havia uma forma ideal de pronunciar meu nome, os
franceses falavam Audrey o equivalente a (ôdré); os americanos como (ódrui); já os britânicos
pronunciavam (ódrêi). Eu não gostava muito do meu nome, mas estava na moda importar
nomes dos Estados Unidos...
Enquanto eu deitava no chão protegido pela canga, peguei novamente o meu Walkman
e apertei a tecla Play para que começasse a tocar uma das músicas que eu mais gostava, o
Another brick in the wall de Pink Floyd, hit do momento que não poderia faltar na minha
playlist. Eu queria esquecer o sonho sinistro que tive na noite passada, mas seria impossível.
Até porque se tratava de uma pessoa notória demais para ignorar as circunstâncias, e só de
relembrar os detalhes, já me causava um arrepio gélido pelo corpo inteiro. Eu fechei meus olhos
cor de mel apenas por alguns instantes, quando senti que alguém estava parado em pé formando
uma sombra em minha frente, mas logo constatei que era apenas o meu namorado, Frederico
Fernandes. Ele usava uma roupa causal, mas sem deixar de lado aquele ar sexy e rebelde que
me conquistara totalmente há um ano, adotando uma calça jeans rasgada, camiseta branca,
jaqueta preta de couro e All Stars surrados. Definitivamente, aonde quer que eu fosse ele sempre
estava ao meu lado nas loucuras que fazíamos ao redor do mundo. Nossos pais eram diplomatas,
por isso nós viajávamos constantemente e tínhamos os passaportes repletos de carimbos com a
ânsia crescente de nos tornarmos cidadãos do mundo.
─ Olá, Audi. Sentiu muito a minha falta? – perguntou enquanto se sentava no chão ao
meu lado esboçando um sorriso malicioso.
─ A gente só ficou sem se ver por um dia e já não aguentava mais de ansiedade, porque
você é tão essencial para mim quanto o ar que eu respiro. – declarei, suspirando profundamente
com ar de deboche. ─ Isso soou brega demais, não é? – completei rindo ao mesmo tempo em
que o abraçava bem forte.
─ Algo está incomodando você, eu posso sentir... O que houve, Audi? Teve um daqueles
sonhos sinistros de novo? – indagou apreensivo sem tirar os olhos azuis de mim, o que tornava
impossível desviar a atenção.
─ Sim, eu sonhei mais uma vez com um fato que irá repercutir muito na mídia mundial...
John Lennon será assassinado em New York no final do ano. Nós precisamos ir até lá de
qualquer jeito e tentar impedir que isso aconteça. – respondi aflita.
─ Audi, nós dois não podemos mudar o curso da história só porque um ídolo seu está
correndo perigo. Já presenciamos tantas coisas e pela primeira vez você cogita a possibilidade
de interferir nisso. Acho muito arriscado tomar qualquer atitude agora. – retrucou sensatamente
enquanto me abraçava bem forte.
─ Você tem razão, mas e se realmente acontecer? Não acho justo ficarmos de braços
cruzados esperando pelo pior. Tenho consciência de que houve vezes em que estive errada nos
meus julgamentos e quase fiz besteira, mas eu sinto que a vida dele está mesmo por um fio... –
expliquei hesitante.
─ Está bem... – consentiu resignadamente. ─ Nós iremos até New York e vamos
acompanhar de perto toda a movimentação na casa dele, mas não vamos alardear a imprensa e
muito menos as autoridades. Você sabe muito bem o que aconteceu da última vez, ou precisarei
refrescar a sua memória?
─ Não precisa, Fred. Eu lembro muito bem do ocorrido como se tivesse sido ontem.
Pensei que eles estivessem a ponto de colocar uma camisa de força em mim e que me jogariam
no hospital psiquiátrico mais próximo. É por isso que eu prefiro participar de movimentos
ativistas ou manifestações políticas nas ruas. Posso até ser presa, mas jamais seria taxada como
louca pelas pessoas. – confidenciei divertida.
─ A gente chegou bem perto disso na ocasião em que fomos às ruas protestar contra a
censura, quando foram apreendidos em todo país os exemplares do Pasquim. Nossa, a gente
escapou por muito pouco mesmo! – relembrou com ar nostálgico após suspirar profundamente.
─ Por falar em jornal, eu ainda preciso finalizar um artigo para o periódico da faculdade.
Mas, a piscina está tão convidativa, que vou dar um mergulho primeiro. – falei sorrindo pra
Fred de maneira insinuante, embora eu soubesse que ele não estava vestido apropriadamente
para a ocasião.
─ Você não vai me tentar com esse olhar 43, Audi. – começou levantando-se, e em
seguida me encarando como se nem me reconhecesse mais. ─ Vou sair logo antes que cometa
uma loucura... – completou virando as costas para mim e se dirigindo ao portão contornando a
piscina sem olhar pra trás. Um grande erro em minha opinião.
Corri no mesmo instante e o alcancei a tempo de puxá-lo pela jaqueta só para provocálo. Não pensei duas vezes e projetei nossos corpos perfeitos na água doce e morna da piscina,
mas ao subirmos para a superfície, nós estávamos sem fôlego e fiquei esperando a sua reação
explosiva recriminando a minha atitude insensata. O semblante de Fred era duro e impassível a
princípio, mas depois ele deu uma sonora gargalhada que me surpreendeu de imediato. Em
seguida, ele me puxou pelo ombro para mais perto de si e uniu os seus lábios aos meus em um
beijo urgente. Entretanto, não seria possível prolongar o momento por mais que eu quisesse, e
tive que me conformar em vê-lo sair da minha casa com a promessa de retomar de onde nós
paramos na manhã seguinte.
Quando comecei a ter esses sonhos sinistros sobre eventos que aconteceriam em alguma
parte do mundo, eu era apenas uma criança e não fazia ideia da repercussão que isso geraria na
mídia. Em 1969, vi com perplexidade a chegada do homem à lua na televisão, no ano seguinte,
um maluco tentou assassinar o Papa e continuei sem entender porque estava sempre me
antecipando aos acontecimentos, sendo que o resto do mundo só tomava conhecimento após
eclodir a notícia nos jornais. O sonho premonitório que tive com John Lennon não foi diferente,
mas o amadurecimento proporcionou que eu enxergasse as coisas com mais clareza, já que
desta forma poderia tomar alguma atitude no sentido de mudar o curso dos acontecimentos. Vi
claramente o prédio onde o artista vivia perto do Central Park e só pude perceber que o assassino
em questão era um homem baixo, calvo e que estava bem acima do peso. Ele trazia nas mãos
um exemplar de “O apanhador no campo de centeio” de J.D. Salinger, seus passos pela calçada
eram tão incertos que talvez cogitasse desistir de seu intento. De qualquer forma, não fazia ideia
do seu nome, origem ou motivações que o levaram até lá, mas faria até o impossível para
descobrir.
Acordei assustada naquela noite, transpirando e respirando ofegante enquanto repassava
na mente o pesadelo que tive. Quais seriam as consequências caso eu intervisse naquele evento?
Minha cabeça fervilhava tanto de ideias sobre os variados desfechos que criava para o caso, que
eu até temia enlouquecer mesmo, de verdade.
Eu escolhi um look bem casual para ir à faculdade, vestindo calça legging preta, blusa
amarela com a Marylin Monroe de Andy Warhol estampada, a gola em estilo morcego que caía
levemente no ombro, acompanhada de uma faixa da mesma cor no cabelo, além de polainas de
lã e tênis All Star coloridos. Apesar de cursar o 2º período do curso de Jornalismo em uma
tradicional Instituição privada de Ensino Superior em São Paulo, eu tinha planos de seguir,
futuramente, a carreira do meu pai no concorrido curso de Preparação à Carreira de Diplomata
no Instituto Rio Branco. Querer é poder, as pessoas costumavam dizer, e por isso eu não
pensava em desistir de concretizar este sonho.
A aula de Análise do Discurso foi bem estimulante, mas na verdade eu não conseguia
parar de pensar no sonho que tive com o artista John Lennon. Acabei decidindo fazer um rápido
lanche na cantina, ao mesmo tempo em que buscava em uma maneira de evitar a iminente
tragédia que poderia se abater na comunidade musical dentro de poucos meses. Preferi me
sentar sozinha em uma mesa no canto e esperar pelo pedido que fiz à garçonete, enquanto
observava a movimentação constante dos estudantes pelo local, até que eu avistei Lorena
Tavares, a popular e arrogante colega de turma que tinha o costume de tratar as pessoas com
desprezo. Lorena parecia estar discutindo com uma funcionária da limpeza sem nenhum motivo
aparente.
Quando eu me levantei para chegar mais perto de onde elas estavam e assim poder ouvir
melhor a discussão, notei que a minha colega gritava com a infeliz funcionária chamando a
atenção total dos demais presentes. Eu cruzei meus braços instintivamente em um gesto de
repúdio, esperando uma chance de intervir caso fosse realmente necessário, mas a funcionária
decidiu virar as costas e se afastar dali, sem dar a Lorena a chance de humilhá-la por mais
tempo.
Lorena bufou de raiva, mas se manteve parada ao notar que a sua pequena plateia havia
se cansado de seu circo e começava a retomar seus caminhos para os prédios das aulas.
Aproveitei o momento para me aproximar mais e descobrir o motivo que justificasse aquela
atitude deplorável, mas após notar a minha presença, Lorena esboçou um sorriso falso nos
lábios parecendo estar surpresa ao me ver.
─ Audrey, você percebeu o quanto é lamentável lidar com pessoas pertencentes a uma
classe inferior a nossa? – indagou mordaz.
─ Por que você ainda insiste em tratar tão mal as pessoas, Lorena? – inquiri friamente.
─ Foi bem divertido constrangê-la na frente de todos, além do mais, eu tinha meus
motivos... O que não vem a caso agora porque não é da sua conta. – retrucou agressiva.
─ Achei a sua atitude lamentável e nada justifica o que você fez. Convenhamos também
que você adora um espetáculo e sente prazer em pisar e humilhar quem quer que seja, Lorena.
─ E você, adora comprar uma boa briga, não é mesmo? Eu não vou pedir desculpas, se
é isso o que você está pensando com essa sua pose de boa samaritana. – replicou friamente ao
cruzar os braços na defensiva.
─ Como você adivinhou, Lorena? Engraçado... Era mesmo isso que eu estava pensando
agora, além de outras coisas que eu sei a seu respeito, como por exemplo, que a sua mãe toma
remédios de tarja preta para tratar a depressão há algum tempo. – comecei eufórica, ao perceber
que havia acabado de descobrir tantas coisas a respeito de Lorena em um curto espaço de tempo.
Não sabia exatamente como a minha mente conseguiu processar essas informações sem precisar
recorrer a outras pessoas. Era aterrorizante a sensação de poder usufruir de informações
sigilosas, exatamente quando tinha um daqueles sonhos estranhos envolvendo um
acontecimento notório, mas apreciei bastante a oportunidade de encostar Lorena na parede. ─
Confessa para mim que o seu maior medo é que algum dia acabe como ela, porque seria cruel
lidar com as constantes internações em clínicas psiquiátricas, tratamentos longos e crises a
ponto de mantê-la em uma camisa de força... – continuei lentamente até que Lorena me
interrompeu bruscamente ao falar em um fio de voz.
─ Como você ficou sabendo de tudo isso, Audrey? – indagou hesitante com os olhos
começando a marejar a ponto de quase me fazer sentir pena dela. Talvez eu tivesse exagerado
um pouco na minha explanação. Ou talvez não?
─ Contente-se apenas em saber que eu sei o que você tanto teme, Lorena. Eu sinto muito
ter que te dizer isso, mas você precisa mesmo consertar os seus erros antes que seja tarde
demais. – respondi com sinceridade.
─ Você está me ameaçando, Audrey? Virou agora a defensora dos fracos e oprimidos e
está disposta a contar tudo o que sabe sobre a minha mãe para todo mundo? – inquiriu
secamente.
─ Eu jamais faria isso, Lorena. Não tenho o direito de manipular ninguém, eu só estou
te dando um conselho por imaginar que a doença da sua mãe fosse torná-la uma pessoa melhor.
Mas, ao contrário, prefere agir como uma adolescente irresponsável e mesquinha que se acha
no direito de maltratar as pessoas ao seu redor. – expliquei sensata.
Naquele mesmo instante, eu pude escutar um farfalhar de folhas atrás de mim e
subitamente ofeguei, cogitando a hipótese de alguém ter escutado a nossa conversa de maneira
furtiva atrás de alguma moita. Eu me virei para trás rapidamente, mas não vi ninguém por perto
e parecia que estávamos mesmo sozinhas no local por mais incrível que pudesse parecer.
Felizmente, o segredo de Lorena estava intacto e obviamente não pretendia tirar proveito do
que descobri, a não ser que fosse realmente necessário no caso de ela pisar na bola comigo mais
uma vez.
─ O que houve? Será que escutaram a nossa conversa? – indagou aflita olhando além
sobre o meu ombro. ─ Me escute bem: Se isso cair no conhecimento público, eu juro que você
irá se arrepender. Mas, para a sua satisfação, eu vou procurar a funcionária da limpeza e pedirei
desculpas a ela conforme me sugeriu tão delicadamente. Está bom assim para você? Será que
desta forma, poderá me deixar em paz? – completou lívida de raiva.
─ Eu vou com você e terá que me garantir que não vai importuná-la mais com as suas
intrigas. – respondi com firmeza.
Assim, acompanhei Lorena até um dos prédios de aulas onde provavelmente
encontraríamos a mulher, e mesmo aliviada após constatar que ela se esforçaria ao máximo para
me agradar, ainda tinha receios de que alguém tivesse escutado a nossa conversa e colocasse
tudo a perder. Ou acabaria me sentindo como o Daniel na cova dos leões.

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  • 1. Capítulo 1 “Sweet dreams are made of this Who am I to disagree? I travel the world And the seven seas-Everybody's looking for something. Some of them want to use you Some of them want to get used by you Some of them want to abuse you Some of them want to be abused” Sweet Dreams (Are made of this) – Eurythmics C urtir a adolescência na década perdida - leia-se anos 80 - parece ser um privilégio para poucos. Eu sempre deixei isso bem claro para as minhas amigas, que em um futuro próximo, as pessoas iriam ouvir falar muito da efervescência da época com um ar sonhador e nostálgico. Eu me chamo Audrey Mantovani, tenho dezessete anos, filha de pais divorciados, pertencente à classe média paulistana, estudante de Jornalismo e aspirante a diplomata que grava relatos do dia-a-dia no Walkman enquanto masca chiclete de morango. – completei meu discurso gravado ao apertar a tecla Stop do aparelho. O dia lá fora estava tão bonito que não poderia ser desperdiçado ficando neste quarto por tanto tempo, então havia decidido colocar o meu melhor biquíni rosa-pink, juntamente com os óculos escuros Wayfarer com aro da mesma cor para combinar. Se ainda estivessem se perguntando a razão de eu ter um nome estrangeiro na minha certidão de nascimento, deixaria a justificativa da minha mãe a respeito: tratava-se de uma singela homenagem à atriz de Hollywood Audrey Hepburn, em seu grande fascínio pela carreira dela desde a adolescência. A verdade era que, até então, muitas pessoas tinham dificuldades em pronunciar o meu nome corretamente, então acharam mais fácil me tratar por Audi que, à primeira vista, remetia a uma conhecida marca de veículos de luxo. Não havia uma forma ideal de pronunciar meu nome, os franceses falavam Audrey o equivalente a (ôdré); os americanos como (ódrui); já os britânicos pronunciavam (ódrêi). Eu não gostava muito do meu nome, mas estava na moda importar nomes dos Estados Unidos... Enquanto eu deitava no chão protegido pela canga, peguei novamente o meu Walkman e apertei a tecla Play para que começasse a tocar uma das músicas que eu mais gostava, o
  • 2. Another brick in the wall de Pink Floyd, hit do momento que não poderia faltar na minha playlist. Eu queria esquecer o sonho sinistro que tive na noite passada, mas seria impossível. Até porque se tratava de uma pessoa notória demais para ignorar as circunstâncias, e só de relembrar os detalhes, já me causava um arrepio gélido pelo corpo inteiro. Eu fechei meus olhos cor de mel apenas por alguns instantes, quando senti que alguém estava parado em pé formando uma sombra em minha frente, mas logo constatei que era apenas o meu namorado, Frederico Fernandes. Ele usava uma roupa causal, mas sem deixar de lado aquele ar sexy e rebelde que me conquistara totalmente há um ano, adotando uma calça jeans rasgada, camiseta branca, jaqueta preta de couro e All Stars surrados. Definitivamente, aonde quer que eu fosse ele sempre estava ao meu lado nas loucuras que fazíamos ao redor do mundo. Nossos pais eram diplomatas, por isso nós viajávamos constantemente e tínhamos os passaportes repletos de carimbos com a ânsia crescente de nos tornarmos cidadãos do mundo. ─ Olá, Audi. Sentiu muito a minha falta? – perguntou enquanto se sentava no chão ao meu lado esboçando um sorriso malicioso. ─ A gente só ficou sem se ver por um dia e já não aguentava mais de ansiedade, porque você é tão essencial para mim quanto o ar que eu respiro. – declarei, suspirando profundamente com ar de deboche. ─ Isso soou brega demais, não é? – completei rindo ao mesmo tempo em que o abraçava bem forte. ─ Algo está incomodando você, eu posso sentir... O que houve, Audi? Teve um daqueles sonhos sinistros de novo? – indagou apreensivo sem tirar os olhos azuis de mim, o que tornava impossível desviar a atenção. ─ Sim, eu sonhei mais uma vez com um fato que irá repercutir muito na mídia mundial... John Lennon será assassinado em New York no final do ano. Nós precisamos ir até lá de qualquer jeito e tentar impedir que isso aconteça. – respondi aflita. ─ Audi, nós dois não podemos mudar o curso da história só porque um ídolo seu está correndo perigo. Já presenciamos tantas coisas e pela primeira vez você cogita a possibilidade de interferir nisso. Acho muito arriscado tomar qualquer atitude agora. – retrucou sensatamente enquanto me abraçava bem forte. ─ Você tem razão, mas e se realmente acontecer? Não acho justo ficarmos de braços cruzados esperando pelo pior. Tenho consciência de que houve vezes em que estive errada nos meus julgamentos e quase fiz besteira, mas eu sinto que a vida dele está mesmo por um fio... – expliquei hesitante. ─ Está bem... – consentiu resignadamente. ─ Nós iremos até New York e vamos acompanhar de perto toda a movimentação na casa dele, mas não vamos alardear a imprensa e
  • 3. muito menos as autoridades. Você sabe muito bem o que aconteceu da última vez, ou precisarei refrescar a sua memória? ─ Não precisa, Fred. Eu lembro muito bem do ocorrido como se tivesse sido ontem. Pensei que eles estivessem a ponto de colocar uma camisa de força em mim e que me jogariam no hospital psiquiátrico mais próximo. É por isso que eu prefiro participar de movimentos ativistas ou manifestações políticas nas ruas. Posso até ser presa, mas jamais seria taxada como louca pelas pessoas. – confidenciei divertida. ─ A gente chegou bem perto disso na ocasião em que fomos às ruas protestar contra a censura, quando foram apreendidos em todo país os exemplares do Pasquim. Nossa, a gente escapou por muito pouco mesmo! – relembrou com ar nostálgico após suspirar profundamente. ─ Por falar em jornal, eu ainda preciso finalizar um artigo para o periódico da faculdade. Mas, a piscina está tão convidativa, que vou dar um mergulho primeiro. – falei sorrindo pra Fred de maneira insinuante, embora eu soubesse que ele não estava vestido apropriadamente para a ocasião. ─ Você não vai me tentar com esse olhar 43, Audi. – começou levantando-se, e em seguida me encarando como se nem me reconhecesse mais. ─ Vou sair logo antes que cometa uma loucura... – completou virando as costas para mim e se dirigindo ao portão contornando a piscina sem olhar pra trás. Um grande erro em minha opinião. Corri no mesmo instante e o alcancei a tempo de puxá-lo pela jaqueta só para provocálo. Não pensei duas vezes e projetei nossos corpos perfeitos na água doce e morna da piscina, mas ao subirmos para a superfície, nós estávamos sem fôlego e fiquei esperando a sua reação explosiva recriminando a minha atitude insensata. O semblante de Fred era duro e impassível a princípio, mas depois ele deu uma sonora gargalhada que me surpreendeu de imediato. Em seguida, ele me puxou pelo ombro para mais perto de si e uniu os seus lábios aos meus em um beijo urgente. Entretanto, não seria possível prolongar o momento por mais que eu quisesse, e tive que me conformar em vê-lo sair da minha casa com a promessa de retomar de onde nós paramos na manhã seguinte. Quando comecei a ter esses sonhos sinistros sobre eventos que aconteceriam em alguma parte do mundo, eu era apenas uma criança e não fazia ideia da repercussão que isso geraria na mídia. Em 1969, vi com perplexidade a chegada do homem à lua na televisão, no ano seguinte, um maluco tentou assassinar o Papa e continuei sem entender porque estava sempre me antecipando aos acontecimentos, sendo que o resto do mundo só tomava conhecimento após eclodir a notícia nos jornais. O sonho premonitório que tive com John Lennon não foi diferente, mas o amadurecimento proporcionou que eu enxergasse as coisas com mais clareza, já que
  • 4. desta forma poderia tomar alguma atitude no sentido de mudar o curso dos acontecimentos. Vi claramente o prédio onde o artista vivia perto do Central Park e só pude perceber que o assassino em questão era um homem baixo, calvo e que estava bem acima do peso. Ele trazia nas mãos um exemplar de “O apanhador no campo de centeio” de J.D. Salinger, seus passos pela calçada eram tão incertos que talvez cogitasse desistir de seu intento. De qualquer forma, não fazia ideia do seu nome, origem ou motivações que o levaram até lá, mas faria até o impossível para descobrir. Acordei assustada naquela noite, transpirando e respirando ofegante enquanto repassava na mente o pesadelo que tive. Quais seriam as consequências caso eu intervisse naquele evento? Minha cabeça fervilhava tanto de ideias sobre os variados desfechos que criava para o caso, que eu até temia enlouquecer mesmo, de verdade. Eu escolhi um look bem casual para ir à faculdade, vestindo calça legging preta, blusa amarela com a Marylin Monroe de Andy Warhol estampada, a gola em estilo morcego que caía levemente no ombro, acompanhada de uma faixa da mesma cor no cabelo, além de polainas de lã e tênis All Star coloridos. Apesar de cursar o 2º período do curso de Jornalismo em uma tradicional Instituição privada de Ensino Superior em São Paulo, eu tinha planos de seguir, futuramente, a carreira do meu pai no concorrido curso de Preparação à Carreira de Diplomata no Instituto Rio Branco. Querer é poder, as pessoas costumavam dizer, e por isso eu não pensava em desistir de concretizar este sonho. A aula de Análise do Discurso foi bem estimulante, mas na verdade eu não conseguia parar de pensar no sonho que tive com o artista John Lennon. Acabei decidindo fazer um rápido lanche na cantina, ao mesmo tempo em que buscava em uma maneira de evitar a iminente tragédia que poderia se abater na comunidade musical dentro de poucos meses. Preferi me sentar sozinha em uma mesa no canto e esperar pelo pedido que fiz à garçonete, enquanto observava a movimentação constante dos estudantes pelo local, até que eu avistei Lorena Tavares, a popular e arrogante colega de turma que tinha o costume de tratar as pessoas com desprezo. Lorena parecia estar discutindo com uma funcionária da limpeza sem nenhum motivo aparente. Quando eu me levantei para chegar mais perto de onde elas estavam e assim poder ouvir melhor a discussão, notei que a minha colega gritava com a infeliz funcionária chamando a atenção total dos demais presentes. Eu cruzei meus braços instintivamente em um gesto de repúdio, esperando uma chance de intervir caso fosse realmente necessário, mas a funcionária
  • 5. decidiu virar as costas e se afastar dali, sem dar a Lorena a chance de humilhá-la por mais tempo. Lorena bufou de raiva, mas se manteve parada ao notar que a sua pequena plateia havia se cansado de seu circo e começava a retomar seus caminhos para os prédios das aulas. Aproveitei o momento para me aproximar mais e descobrir o motivo que justificasse aquela atitude deplorável, mas após notar a minha presença, Lorena esboçou um sorriso falso nos lábios parecendo estar surpresa ao me ver. ─ Audrey, você percebeu o quanto é lamentável lidar com pessoas pertencentes a uma classe inferior a nossa? – indagou mordaz. ─ Por que você ainda insiste em tratar tão mal as pessoas, Lorena? – inquiri friamente. ─ Foi bem divertido constrangê-la na frente de todos, além do mais, eu tinha meus motivos... O que não vem a caso agora porque não é da sua conta. – retrucou agressiva. ─ Achei a sua atitude lamentável e nada justifica o que você fez. Convenhamos também que você adora um espetáculo e sente prazer em pisar e humilhar quem quer que seja, Lorena. ─ E você, adora comprar uma boa briga, não é mesmo? Eu não vou pedir desculpas, se é isso o que você está pensando com essa sua pose de boa samaritana. – replicou friamente ao cruzar os braços na defensiva. ─ Como você adivinhou, Lorena? Engraçado... Era mesmo isso que eu estava pensando agora, além de outras coisas que eu sei a seu respeito, como por exemplo, que a sua mãe toma remédios de tarja preta para tratar a depressão há algum tempo. – comecei eufórica, ao perceber que havia acabado de descobrir tantas coisas a respeito de Lorena em um curto espaço de tempo. Não sabia exatamente como a minha mente conseguiu processar essas informações sem precisar recorrer a outras pessoas. Era aterrorizante a sensação de poder usufruir de informações sigilosas, exatamente quando tinha um daqueles sonhos estranhos envolvendo um acontecimento notório, mas apreciei bastante a oportunidade de encostar Lorena na parede. ─ Confessa para mim que o seu maior medo é que algum dia acabe como ela, porque seria cruel lidar com as constantes internações em clínicas psiquiátricas, tratamentos longos e crises a ponto de mantê-la em uma camisa de força... – continuei lentamente até que Lorena me interrompeu bruscamente ao falar em um fio de voz. ─ Como você ficou sabendo de tudo isso, Audrey? – indagou hesitante com os olhos começando a marejar a ponto de quase me fazer sentir pena dela. Talvez eu tivesse exagerado um pouco na minha explanação. Ou talvez não?
  • 6. ─ Contente-se apenas em saber que eu sei o que você tanto teme, Lorena. Eu sinto muito ter que te dizer isso, mas você precisa mesmo consertar os seus erros antes que seja tarde demais. – respondi com sinceridade. ─ Você está me ameaçando, Audrey? Virou agora a defensora dos fracos e oprimidos e está disposta a contar tudo o que sabe sobre a minha mãe para todo mundo? – inquiriu secamente. ─ Eu jamais faria isso, Lorena. Não tenho o direito de manipular ninguém, eu só estou te dando um conselho por imaginar que a doença da sua mãe fosse torná-la uma pessoa melhor. Mas, ao contrário, prefere agir como uma adolescente irresponsável e mesquinha que se acha no direito de maltratar as pessoas ao seu redor. – expliquei sensata. Naquele mesmo instante, eu pude escutar um farfalhar de folhas atrás de mim e subitamente ofeguei, cogitando a hipótese de alguém ter escutado a nossa conversa de maneira furtiva atrás de alguma moita. Eu me virei para trás rapidamente, mas não vi ninguém por perto e parecia que estávamos mesmo sozinhas no local por mais incrível que pudesse parecer. Felizmente, o segredo de Lorena estava intacto e obviamente não pretendia tirar proveito do que descobri, a não ser que fosse realmente necessário no caso de ela pisar na bola comigo mais uma vez. ─ O que houve? Será que escutaram a nossa conversa? – indagou aflita olhando além sobre o meu ombro. ─ Me escute bem: Se isso cair no conhecimento público, eu juro que você irá se arrepender. Mas, para a sua satisfação, eu vou procurar a funcionária da limpeza e pedirei desculpas a ela conforme me sugeriu tão delicadamente. Está bom assim para você? Será que desta forma, poderá me deixar em paz? – completou lívida de raiva. ─ Eu vou com você e terá que me garantir que não vai importuná-la mais com as suas intrigas. – respondi com firmeza. Assim, acompanhei Lorena até um dos prédios de aulas onde provavelmente encontraríamos a mulher, e mesmo aliviada após constatar que ela se esforçaria ao máximo para me agradar, ainda tinha receios de que alguém tivesse escutado a nossa conversa e colocasse tudo a perder. Ou acabaria me sentindo como o Daniel na cova dos leões.