Este documento resume quatro edições anteriores do jornal O Correio, abordando questões de poder e política na América Latina, África de língua portuguesa e no Brasil. Os textos discutem crises políticas, sociais e econômicas nessas regiões, assim como os jogos de poder autoritários e perversos. Além disso, refletem sobre transições democráticas e desafios para o futuro destes territórios.
1. PODER E POLÍTICA
1
Poder e
política
EDITORA
ÁGORA DA ILHA
EDIÇÕES ANTERIORES - Volume 2
Org. Dalma Nascimento
2. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
2
COPYRIGHT: Ágora da Ilha Livraria e Editora Ltda/Jornal
O Correio
RIO DE JANEIRO - RJ. TEL.: 0 XX 21 - 393 4212
DIREITOS DESTA EDIÇÃO RESERVADOS À EDITORA. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
TOTAL OU PARCIAL DESTA OBRA SEM SUA AUTORIZAÇÃO EXPRESSA.
CAPA: Editora Ágora da Ilha. Ilustração: Escravo, do artista mexicano
José Clemente Orozco
RIO DE JANEIRO, DEZEMBRO DE 1999
EDITOR: PAULO FRANÇA
EDITORA ÁGORA DA ILHA - TEL.FAX: 0 XX 21 393 4212
E-mailagorailh@ruralrj.com.br
EDIÇÕESANTERIORESVOL.II/Poder e política
Org. Dalma Nascimento
Editor responsável: Paulo França
RiodeJaneiro,dezembrode1999
156páginas
Editora Ágora da Ilha - ISBN 86854
Literatura brasileira CDD - 869B
Ensaiosemportuguês 869.4
FICHA CATALOGRÁFICA
3. PODER E POLÍTICA
3
Aediçãodojornal“Paraqueserveopoder”teveaeficiente
colaboraçãodoantropólogo,professorJoséSávio Leopoldi,
daUFF,empenhadoemcontactararticulistasquediscutissem
questõesrelativasaotema.
Para“OcaldeirãodaAméricaLatina”, OCorreiocontou
comoauxíliodasprofessoras-doutorasLeilaRoedel,deHistó-
ria,daUFRJ,eMárciaParaquett,deLínguaeLiteraturaLati-
no-americana,daUFF.Ambasconvidaramespecialistasefize-
ramocopidesquedealgunstextos.
Quantoà“ÁfricadeLínguaPortuguesa”,foiintensooapoio
daprofessora-doutoraCarmenLúciaTindóSecco,coordena-
dora do Setor de Literaturas Africanas, da UFRJ, indicando
nomes,enviando-nosinformaçõessobrefatoshistóricos,além
de copidescar textos de seus alunos e participar do processo
editorialdaquelenúmero.
Parao“Brasilemtransição”,agrandecolaboraçãoveioda
doutoraMariaAntonietaLeopoldi,professoradoProgramade
Pós-graduaçãoemAntropologiaeCiência, daUFF, edoPro-
gramadeApoioaNúcleosdeExcelência,aosugeriroassuntoe
articulistaseselecionartextosdeseusorientandos.
Aosprofessoresacimamencionados,osagradecimentosda
EditoriadeOCorreio.
Agradecimentos
4. PODER E POLÍTICA
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Parapreservaramemóriadesignificativostextosdeantigos
númerosdeOCorreio–umjornalculturalque,comoumfórum
dedebateepesquisa,visaadiscutirtemasdecandenteatualidade
– o editor chefe deste periódico, Paulo França, com a lucidez
costumeira,resolveutransformá-losemlivros.Ocomprovadoêxito
doprimeirovolume,intituladoTempomítico,comquefoiaberta
acoleçãoEdiçõesAnterioresedoqualconstaramosartigospu-
blicadosem“AfascinanteIdadeMédia”,“Oscaminhosdosa-
grado”,“Eraumavez”(sobreLiteraturaInfantil)e“Oenigmado
mito”,levou-oaprosseguirnesteauspiciosoprojeto,certodas
suasressonânciasnopensamentocríticodosleitores,voltadospara
visõesmaisabrangentesemdiversificadosâmbitosdoconheci-
mento.
Cadavolume–ejáestãoprogramadosmaisde15–reunirá
semprequatroedições,havendoentreelas,apesardasdiferenças
dostemasdiscutidos,umaidentidaderadicalarticuladoraemtor-
nodaqualosartigos,diretaouindiretamente,secongreguem.
Assim,variadosmatizesdeidéiasdiversas,masconvergentes,irão
reviver,noamplomosaicodacoletânea,ospassosemarcosdeO
Correio,esteperiódicoderesistência,cuja atuaçãoquinzenal
ininterruptacompletaráquatroanosemabrilpróximo,quandoserá
lançadooterceirovolumedasEdiçõesAnteriores.
Prosseguindo,pois,nopropósitodeanalisaraspectos,porvezes
submersosnasdobras,atalhoseavessosdosprocessosculturais,
estesegundotomoversasobreoPoder,seussignosereflexosnos
paísesemergentesdaAméricaLatina–Brasileasnaçõesdeco-
lonizaçãoespanhola–alémdosrecém-criadosgovernosdaÁfri-
calusófona,ouseja,dascinconações:Angola,Moçambique,
SãoToméePríncipe,CaboVerdeeGuiné-Bissau.Sobotítulo
O viés da Política
5. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
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Poder e política, esta obra reproduz os escritos de “Para que
serveopoder?”(NºLXII)aqueseuniramosdasedições“Brasil
emtransição”(NºLII),“Áfricadelínguaportuguesa”(NºLXI)e
“OcaldeirãodaAméricaLatina”(NºLIV).
Aindaqueostextosapareçamdivididosnosblocos,pertinen-
tesaosjornaisespecíficos,emquasetodospulsaomesmointuito
de pensar crises e conflitos étnicos, políticos, sociais e
mercadológicosqueturbilhonameseespraiamnessesterritórios
comsituaçõestãosemelhantes,aoconviveremcomademocracia
eaeconomianofiodanavalha.Driblesemaquiavélicosjogosda
duplamoralidadecomqueoPoderseimpõedeformaautocráti-
ca e perversa se dão a ler, explícitos ou nas entrelinhas destas
escritasquestionadorasdiantedetantasinjustiçaseopressões.
Algumasdasnaçõesfocalizadasaindavivenciamgolpesmi-
litares ou se lembram das recentes cenas dramáticas, onde o
eternofantasmadoLeviatãdizimouvidasesonhos.Entretanto,
aselitesaindacontinuamencasteladasempreservadosbolsões,
enquantooshumilhadoseofendidosdaTerraaguardamoque
“Deusquer”.NocasodoBrasil,amilagrosacestabásica.
Sãoveiaspulsantesquenãosefecharamnosangrantecorpo
socialdaAméricaLatinaedaÁfricaportuguesaemincandescente
ebulição,àbuscadeumPaiSalvadorcomutópicosdesejosde
preenchercarênciasfundamentais.Ofervilhantecaldeirãolatino-
americano,ondesecozinhaopassadoesetemperaofuturocom
oscondimentosdopresente,continuanoimpasse:Mercosulou
Alca?Hádoisanos,emSantiagodoChile,houveareuniãoda
CúpuladasAméricascom34paísesparticipantes,excetoCuba,
maspermaneceumgritoparadonoar:quaisassuasdiretrizes
colocadasemprática?
Portudoisso,nocalordahora,opresentelivroPoderepolí-
ticavemremexernestecaldocultural,reeditandoreflexõesque
provaram/provocaramnovasreceitasetemperoseengrossaram
poções/soluçõesrevitalizadorasparanossaAméricadesnutrida.
Eemmeioatantaspolêmicas,constata-sequeomundosetrans-
forma.AEuropaficouprontaparaoeuro,porémocontinente
americanofervilhaemencruzilhadas,aguardandoinsuspeitados
rumos.
Assimtambém,asex-colôniasportuguesasdaÁfrica,entre
6. PODER E POLÍTICA
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elas,Angola,queatualmentevivefortesconvulsõespolíticas.Em
Guiné,oconflitovoltoueopaíscontinuamenteseencontranum
caos.MoçambiqueeCaboVerdeestãocomcertapaz,intentan-
doareconstituiçãonacional,comintensasdificuldades.Nestatran-
sição,conturbadaepletórica,asnaçõesafricanasdelínguaportu-
guesalutamparasairdoatraso,paraafirmar-seemsuaindepen-
dência e reanimar as raízes, em grande parte, soterradas ou
esmaecidaspelosinetedodominador.
PortugalchegouàÁfricanaexplosãoexpansionistadoséculo
XV,entretanto,preocupadocomotráficonegreiro,sócolonizou
aquelasterrasemmeadosdoXIX.De1926a1974,aditadura
deSalazarexerceunelasgranderepressão,porém,nosanos60,
iniciou-seaguerracolonialcontraodomínioportuguês.Após74,
comaRevoluçãodosCravoseaconseqüentequedadoditador
português,sãoproclamadasasindependênciasdascolônias,à
exceçãodeGuiné-Bissau,ocorridaem24desetembrode1973.
AdeMoçambiquedeu-seem5dejulho,adeSãoToméePrín-
cipeem12dejulhoeadeAngolaem11denovembro,todasno
mesmoano.Taisrevoluções,deorientaçãomarxista,foramlide-
radasporAgostinhoNeto,deAngola,AmílcarCabral,deCabo
VerdeeGuinéBissau,eEduardoMondlane,deMoçambique.
EmboraestelivrodasEdiçõesAnteriorestangenciequestões
político-sociaisdacorajosaÁfricalusófonaemseus“caminhose
descaminhosdeutopiaseresistência”,amaioriadostextos,publi-
cados na edição de 22 de agosto de 98, neste livro reeditados,
centrou-se,sobretudo,emdiscussõessobreaLínguaeaLiteratu-
ra daquelas regiões. Duas razões nortearam tal enfoque: a
oficializaçãodaNovaReformaOrtográficadosPaísesdeLíngua
Portuguesa, em Cabo Verde, a 17 de julho de 98, e a vinda ao
Brasil,exatamentenaquelesdias,dosescritoresmoçambicanos
MiaCoutoeVírgiliodeLemos.
Jáonúmero“Brasilemtransição”tentouequacionarquestões
relativasaocidadãobrasileironoterceiromilênioeosde-safios
políticosaseremenfrentadosparaatransiçãodoBrasildianteda
globalizaçãofinanceiraehegemoniaamericana.Discutiupossíveis
reformasdoEstadoedosistemafinanceiro,apolíticadeteleco-
municação,osnovosparâmetrosparaaEducaçãoedosmodelos
industriais,oMercosuleoempresariado,osrumosdoDireitona
8. PODER E POLÍTICA
9
Ondehouverdoissereshumanos,umtentarásubjugarooutro.
Éalutapelopoder.Paraconsegui-lo,ohomemsevaledequalquer
estratagemaeimpõesuapolítica.Devezemquandoumgovernante
vemapúblicodizerquecomandaréumatarefadificílima,solitária.
Então, perguntamos: por que as pessoas arriscam tudo para
alcançaremcargos?Paraagrandemaioria,arespostaéóbvia:
pelavaidadedepodermandaredeserobedecido.
Costuma-sedizerqueoBrasiléabençoadoporDeus,mas
que não avança por causa do povo. E este mesmo povo é o
responsávelpelaconduçãodospéssimospolíticosemtodasas
esferasdepoder.Defato,aclassemédiaéquemfazpolítica,a
classericaindicaamaioriadoscandidatoseaclassepobreelege
oscandidatosdaclasserica,quenadatêmemcomumcomestes
eleitores.
Oproblemaéagravadopelobaixoíndiceeducacionaldopovo,
gerado,emgrandeparte,pelapoucaimportânciaqueosgovernos
dão-deliberadamente,ounão-aocrescimentointelectualdos
seuscomandados.Assim,atelevisãotorna-seomestredemilhões
debrasileiros.Esuaimportâncianapolíticaenadivisãodopoder
noBrasiléimensa.
Mas,comotelevisãoéconcessãopública,seus“proprie-tários”
dirigemaprogramaçãoparashows,esportes,entreteni-mentoe
notíciasgerais,semaprofundamentopolítico.Destemodo,evitam
atritoscomoPoderquelhesconcedeuatrans-missãoe,dequebra,
aindaganhambilhõesdereaisempublicidade.Semcontaros
favores. Só quem perde, claro, é quem paga por tudo isto, ou
seja,opovo.
O poder da informação é superior ao poder político em si,
fazendoprefeitos,governadoresepresidentes,edestituindo-os
Pior do que a bomba atômica
9. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
10
doscargos,quandonãomaisservemaosnegóciosdapolíticada
comunicação.Sobobrilhodanovela,dosjogos,dosprogramas
deauditórioedosfilmes,temperadoscomimagensdaviolência
humana,queultrapassamospesadelosmaisbizarros,eafúriada
Natureza,atelevisãobrasileiradesinformaedificultaaeducação
dopovo.Comisto,opoderpúblicoeoprivadounem-senapolítica
demandarnoBrasil,desviandoocaudalosoriodedinheiropúblico
paraseusinteressespessoais.
OséculoXXseráconhecidocomoaEradaTecnologia,onde
acomunicaçãoevoluiuassustadoramente.Masserá,também,a
EradaMorte,poisduasguerrasmundiais,dezenasdeoutrasen-
trepaísesvizinhoseascivis,aspioresdetodasasguerras,levaram
àexplosãodebombasatômicaseaofimdavidademilhõesde
sereshumanosedemaiscriaturasnoplaneta.OséculoXXI, no
entanto,podesermenostraumático,e,paraisso,osquedetêmo
Poderecontrolam aPolíticaprecisamsermaisvoltados para a
coletividade.
O que se vê, contudo, são fusões aceleradas de poderosos
manipuladoresdamídiamundial.
Eistoépiordoqueabombaatômica.
Paulo França - Jornalista, Editor chefe de O Correio.
10. PODER E POLÍTICA
11
Parte I
Para que serve o poder? 13
Parte II
OcaldeirãodaAméricaLatina 49
Parte III
África de língua portuguesa 87
Parte IV
Brasil em transição 131
12. PODER E POLÍTICA
15
Índice da Parte I
O poder e a definição de política
Eduardo Raposo 17
Osimbolismomágicodopoder
José Carlos Rodrigues 19
Poder e chefia na sociedade indígena
José Sávio Leopoldi 21
Poderes distantes, arrogantes e triunfantes
João Luiz Duboc Pinaud 23
O poder escondido
Léa da Cruz 25
EleiçãoecidadanianoBrasil
José Eduardo Pereira Filho 27
Até não poder mais
Lena Jesus Ponte 29
Os matizes do poder
Lauro Gomes de Araújo 31
Meuanarquistafavorito
Latuf Isaías Mucci 33
Poderevigilância
José Lisboa Mendes Moreira 35
13. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
16
O paletó do governador
Lula Basto 37
Cuidado com os picaretas
Sérgio Caldieri 39
O poder como personagem na Literatura Infantil
Márcia Lisboa 41
Afaixapresidencial
Jorge Picanço Siqueira 43
A encenação do poder
Isidoro Alves 45
A coruja e a fênix
José Américo de Lacerda Júnior 47
14. PODER E POLÍTICA
17
Apolíticavemsendodefinida,atravésdostempos,pordife-
rentesreferênciasteóricasehistóricas.Noqueconcerneànos-
satradiçãoocidental,depoisdesuainauguralinserçãonouni-
versoreflexivodaAntigüidadeGrega,éconsideradacomoa
afirmaçãodainterdependênciadocidadãoparacomasuacida-
de, espaço onde recebe sua educação, realiza sua vocação e
encontraseusignificadomaisamplo.
Éassimquechamamdeidiotésocidadãosolitárioeegoísta
quenãooferecenenhumacontribuiçãoàcidadee,portanto,aos
seussemelhantes.Talconcepção–segundoaqualsedescrevia
maisoqueoshomensdeveriamfazer(colaboradoresdacida-
de)emenosoqueporvezesfaziam(estrategistasdeseuspró-
prios benefícios) – atravessa a Antigüidade Grega e a Idade
Média,desembocandonoRenascimento.
Apartirdeentão,NicolauMaquiavelinauguraumextraordi-
nário trabalho – prosseguido e desenvolvido por autores dos
séculosposteriores–nosentidodereverosignificadodo“espí-
ritopolítico”,oquenoslevouadescobrirereconhecerdimen-
sõesecaracterísticas,atéàquelaépoca,inéditasdoquesehavia
pensadosobrepolítica.Todaumaliteraturapassaadedicar-sea
refletirmaissobreaeficáciadapolíticaemenossobrearazão
moral.Pelascontribuiçõesque,desdeentão,foramfornecidas,
apolíticacontinuaaserobjetodediversasconcepções,todas,
porém,convergindoparaanoçãodepoderemseusentidomais
específico.Naorigemdessaconcepçãodepoderencontra-sea
separaçãoentregovernantes,lídereseliderados,oquesemani-
festanassociedadesmodernasatravésdeumvigorosoproces-
sodedivisãosocialdotrabalhoenaesferapública,daconstru-
çãodoEstadoedossistemas,cadavezmaisinstitucionalizados.
O PODER E A DEFINIÇÃO DE POLÍTICA
EduardoRaposo
15. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
18
Anoçãodepoderganhaenormepluralidadeaoserassocia-
daàsideologias,àsutopias,àsesperanças,àsrevoluções,mas
tambémàsgrandesdecepçõesetragédiasquemarcamaHistó-
ria.Adespeitodasdiferentesdimensõesdoconceitodepoder,
todas parecem reconhecer a importância de seu estudo para
compreendermosohomemnasdiversassociedadesquesefor-
maramemnossahistória.
Adinâmicadopoderedapolíticaconstrói,constantemente,
cenáriosdesconhecidos.Nostemposatuais,assistimosauma
inéditaaceleraçãodasinovaçõestecnológicasedascomunica-
ções,comadiluiçãodasfronteirasedasantigasreferênciasa
quefomoshabituados,modificando,maisumavez,odestino
humano.
EduardoRaposo–DoutoremCiênciaPolítica,diretor,pesquisador
e professor do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio.
17. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
20
sentido.Elenãoseresumeasuasdimensõesmais“históricas”e
circunstanciais.Nãoserestringeaalgodisputadoeconflitual.Não
seesgotanissoquenormalmentechamamosde“político”.
Opoderé,essencialmente,aquiloquedefineumcertocon-
sensoquantoàquiloqueseráobjetodedisputa.Queestabelece
uma certa concordância a respeito de quais serão as regras do
discordar.Quedefineospontossobreosquaisserápossívelcom-
petir.Opoder,sobretudo,éaquiloquerealizaaproezadereunir,
nomesmotodosimbólicoeafetivo,oexploradoeoexplorador,o
senhoreoescravo.Eestaproezaémuitomaisfreqüentedoque
costumamosreconhecer.
Éimportanteteremmenteestespontos,especialmenteem
contextos como o atual, em que, por todo o espectro político,
candidatosemaiscandidatosseproclamamdispostasa“mudar”
ou“abolir”osistemadepoder.Etambémemcircunstânciasem
que,fazendo-seusodegigantescoarsenalmágicoesimbólico,
materializadoemdiscursosepropagandas,somosconvidadosa
esqueceranaturezamágicaesimbólicadopoder.Elevadospaci-
ficamenteaaceitaraidéiadequeopoderseja–oudevaser–de
caráter“técnico”e“racional”.
JoséCarlosRodrigues–ProfessortitulardoDepartamentodeAntro-
pologiadaUFF.AutordeEnsaiosemAntropologiadoPoder, Editora
TerraNova,1992,alémdeoutroslivros,inclusivesobreasexualidadee
amortenumenfoqueantropológico.
18. PODER E POLÍTICA
21
Opoder,assimcomoacontececomaigualdadeealiberdade,
sótemsentidosepensadoemtermosrelacionais.Ouseja,épre-
cisohaveroutro(s)indivíduo(s)paraqueelepossaexercer-se.
Mas,satisfeitatalexigência,suapresençasetornainevitável,pois
nuncadeixademanifestar-se,querentreindivíduos,quernosvá-
riosgrupossociais,dafamíliaàsociedadecomoumtodo.
Permeando relações pessoais, a questão do poder é geral-
mentetratadapelasáreasdoconhecimentoassociadasàPsicolo-
gia.Jáoestudodopoderpolíticoformalmenteestabelecidoedas
instituiçõespolíticasqueotornamefetivoemdadasociedade,cons-
tituiobjeto,porexcelência,daCiênciaPolítica.
ÀAntropologiaSocial,atravésdoramoespecíficodaAntro-
pologiaPolítica,cabeoestudodopodernaschamadassocieda-
desprimitivas,tribaisouindígenas,emqueelesemanifestade
maneiraconsensual,independentementedeleisescritasoucon-
tratosformaisparadisciplinarasuaprática.Nessassociedades,à
faltadeumalegislaçãoquedefinaseustermoselimites,aquestão
dopodersuscitainteressantesdiscussões.
Háantropólogosquetendemaressaltarosaspectosdeequi-
líbrio,homogeneidadeeigualdadeque,aseuver,seriamcaracte-
rísticasessenciaisdessassociedades.Assim,consideramquene-
las,arigor,opodernãoseconcentranasmãosdeninguém,nem
mesmodochefe.Aocontrário.Paraeles,oquemostraumbom
desempenhodequalquerchefiaéexatamenteamanutençãoda
pazpelaconciliaçãoquepromoveentregruposemdisputa,evi-
tandoumacisãoquesempreenfraqueceoconjuntosocial.Sem
poderdepolícia,ochefecompetenteéaquelequeserevelaexce-
lentenegociador,conquistandooapoiodosindivíduosdemaior
PODER E CHEFIA NA
SOCIEDADE INDÍGENA
José Sávio Leopoldi
19. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
22
prestígioparasuaspropostasebuscandosoluçõespalatáveisàs
partesemlitígio,semqueninguémsesintairremediavelmentelesa-
do.
Outrosestudiosos,nãodiscordandodanaturezapacíficado
trabalhodachefia,noentanto,percebemqueaposiçãodochefe
indígenaserevestedeumpoderqueétãoeficaz,quantodissimu-
lado.Afinal,oprestígioeacapacidadedeconvencer,necessaria-
menteassociadosaopapeldochefe,podemoperarnosentidode
facilitaratomadadeumadecisãoouoencaminhamentodeuma
propostafavorávelaseusinteressespessoaisouaosdogrupoao
qualestejamaisligado.
Direitoàpoliginia
Alémdisso,écomumobservar-sequeumdosprivilégiosdos
chefeséapráticadapoliginia,ouseja,ocasamentocommaisde
umamulher.Nessecaso,elesacabampossuindoumafamíliamai-
ordoqueadosoutrosindígenas,oqueresultaemmaiorimpor-
tânciaemaisnumerosasaliançascomoutrosgrupos,resultantes
docasamentoentreseusfilhosefilhas.
A força desse conjunto de indivíduos, próximo à chefia,
indubitavelmentefortaleceasuaautoridade.Grandeparentelaem
torno do chefe acrescenta, portanto, ao domínio de que ele já
desfrutava,umpoderdefatoqueinapelavelmentesetraduzem
forçapolítica,contaminandooexercíciodachefiaemtermosde
isenção.Afinal,seugrupodeapoiotemsempreinteressesespecí-
ficosereivindicaçõesquenãopodemserignorados,oquetorna
evidenteadificuldadedodesenvolvimentodeumtrabalhocom-
pletamenteindependenteeimparcial.
José Sávio Leopoldi – Professor do Departamento de Antropologia
da UFF, estudioso da sociedade e cultura indígenas, com tese e pes-
quisas de campo sobre o tema. Doutorando em Antropologia Social
pelaUSP.
20. PODER E POLÍTICA
23
Remotíssimaéanoçãodopoderdemocráticocomoresultado
de aceitações recíprocas por parte dos governados. Platão, no
Criton, menciona a Lei – e o poder que vem dela – como um
quase-contrato.
Entretanto,noséc.XVIII,Jean-JacquesRousseauéquemo
caracterizacomoumContratoSocial:todos–hipoteticamente–
entregampartedaliberdadeindividual,construindoavontade
coletiva.Marx,jánoXIX,desvendouasligaçõeseconômicas
dosjogosdopoderpolítico,marcandoadistância,ouoantago-
nismoentreaforçadequemmandaeasnecessidadesdequem
obedece.
A atuação política, para os gregos do séc. V e IV aC., por
exemplo,eraaparticipaçãopública,quandoopoder,afastando-
se do palácio real, deslocou-se para praça, tornada espaço co-
mumdebemadministrarapólis.Talpensamentopermitiudesven-
darque,nadistânciaentreogovernanteeopovo,habitaadife-
rençaentreescravoselivres.Dondeseinferequetodapolíticade
dominação,parasejogarnotabuleirodoxadrezpolítico,precisa
serdistante,arrogante,triunfante.
Deveafetardesconhecerosreaisproblemas,mistificá-los,hu-
milharosgovernadosedesqualificaropositores.Deveacenarpara
mudanças,emboraelasnuncacheguem,sacrificandoumagera-
ção por um futuro nem mesmo planejado. O resto é empenho
popular,transitando“foradopoder”,malinformadoesempossi-
bilidadedecomunicaçõesplenas.
Nocasobrasileiro,ogoverno,comseusmesmoseconomistas
epolíticosdeplantão,usandoamídiaqueescondeascriseseas
causasdosproblemas,ficaexoneradodasculpas,dizendoser
PODERES DISTANTES,
ARROGANTES E TRIUNFANTES
João Luiz Duboc Pinaud
21. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
24
mundialacrise.Etudosedissolveemdiscursos,simpáticosexer-
cíciosdedemagogia(noexatosentidodeguiarenganosamenteo
povo).Mas,relaçõeseconômicasdesiguaisacabam–cedoou
tarde–condenando-nosàestagnaçãoeàmiséria.
Nossa“dependência”,defendidanateoriaenapráticapelo
atualpresidente,vemsendovelozeimpunementeagravadacoma
entrega criminosa da riqueza nacional. Mas os entreguistas
neoliberaisdehojesãotantos,contentes,arrogantes,triunfantes,
governantes,quetaisqualificativossoamatécomoelogio.
Enfim,éinútilconcentrarbaterianaspessoaseabsolveromodelo
econômico, do qual elas são escravas. Ao cabo de contas, são
apenaspessoasesóissoasaproximadosgovernadosmutilados,
quenasceram,vivememorrerão.Desaparecerão,comotodos,
naordemdascoisas,emborafiquedelasobemouodanocausa-
dos.
Fechemos,então,comosatuaisgregosdosséculosVeIV
antesdeCristo:submeteràdeliberaçãoacondutaaserseguida
significa“depositaroassuntonocentro”,ficando,assim,opoder
partilhadocomogrupopresente,bempróximo,poisapraçaera
oespaçopolítico.E,segundoafórmulaarcaica,oarautoconvida-
va:“Quemquertrazeraocentroumaopiniãoprudenteparaasua
cidade?”Emuitosedeviadiscutiredeliberar.Algumacoisacomo
o votar em eleições próximas. Mas, imagine só, o arauto e os
discutidoresnatelinhadatelevisãodeagora!
Seráquevãocontinuartodossalvos,inocentados,referenda-
dos,ospoderessorridentes,distantes,arrogantesetriunfantesneste
jogodoxadrezpolítico?
JoãoLuizDubocPinaud–Advogado,professordeDireitonaUFFe
Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros.
25. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
28
Poderdochefes
NosEUA,oFederalismoresultounumarelativaautonomia
dosgovernosecomunidadeslocais.NoBrasiltalprincípioteve
comoconseqüênciaquasequeexclusivaodomínioterritoriale
políticodoschefeslocais.
Aqui,acidadaniaseexpressa,momentaneamente,porelei-
çõesperiódicas.Entretanto,nemporissodevemosdeixardeapre-
sentarnossasvisõesdemundo,atravésdoescrutínionasesferas
federaleestadual,queoraseapresenta.
Mas é necessário ter, sobretudo, em mente que, além de
delegar poderes, temos o poder de agir e participar da esfera
pública,fatoquedizrespeitoatodososmembrosdasociedade.
José Eduardo Pereira Filho – Mestre em Ciência Política pelo Pro-
gramadePós-GraduaçãoemAntropologiaeCiênciaPolíticadaUFF
eprofessordaFaculdadedeBelfordRoxoedaFaculdadedeAdmi-
nistração São José.
26. PODER E POLÍTICA
29
“Enquantooshomensexercemseuspodrespoderes”,que
nos seja permitido sonhar com poderes maduros, na medida
exatadadoçura.
Poderseralguémomaispróximodagentemesmo,dosnos-
sosescondidos,comdireitoamáscarasapenasparavivenciar
fantasias.Equererbemaosirmãosemsuasdiferençasdepeles,
sexos,gostos,idéias,crenças,sentimentos...Poderserchama-
do e chamar o outro pelo nome próprio, nome comum, sem
senhornemdoutornemprofessor,excelênciasapenaspelofato
simplesdesenascergente.Nãoterpodersobreaspessoasnem
estarsubmetidoaqualquerjugo:opoderosoencantododiálo-
go, do olho no olho, das mãos dadas. Poder dizer sim e não,
semqueomundoseacabe.
Podersermeninotododia,omundoumeternobrinquedo,
buscaroladodeládosmuros,afaceocultadaLua,olhossem
limites,pelesemfronteiras,ouvidossemdivisas,línguaparasa-
boreartodasaslínguas.Sentir-seumpoucobicho,planta,mine-
ral,coisa,privardafraternidadecósmica.Podersentirocami-
nho, os passos, o passar de tempo e espaço, o gozo de estar a
metaemcadaaquieagora.
Poderincluirnocurriculumvitae,ladoaladocomexperi-
ênciaprofissionalecursosrealizados,otempodedicadoaodes-
canso,aolazer,aoafeto,aoprazer,aoscuidadoscomocorpoe
a alma, ao cultivo das plantas e outras formas de vida. Poder
nãocompetir,nãotornar-sehomemdesucessooumulherobjeto
detodososdesejos.Respeitarseuritmo,comporsuamelodia,
semcronômetros,compassos,esquadros,moldes,modas,fôr-
mas, peças de engrenagem ou manuais de auto-ajuda. Poder
preservar normas e cânones por uma reverência à tradição e
ATÉ NÃO PODER MAIS
Lena Jesus Ponte
27. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
30
poderrompercomtodasasnormasecânonesporumamorao
espanto,aonovo.
Poder viver a arte, viver com arte. Nascer e morrer num
fluxodepermanênciaerenovaçãocontínuas,mãosenlaçadas
aos pais e aos filhos. Envelhecer tendo tesão pelas marcas e
mudançasimpressasnocorpo,esselivrodehistóriasfantásti-
cas.Sonhartodasasimpossibilidadesatéchegarodiadonão-
podermaior,libertador,definitivo(?).
LenaJesusPonte–DinamizadoradaOficinadaPalavraLuizSimões
Jesus.
28. PODER E POLÍTICA
31
Há o poder da vontade e o da fé, o poder da arte enquanto
manifestação do espírito e o poder das idéias. Há o poder da
palavraeopoderdoexemplo,comoháodoamoreodamãe-
Natureza:comesteoHomembrinca,desrespeita...daqueleanda
umtantoesquecido!Contudo,aolongodatresloucadaaventura
humananocorrerdosséculosoquemaisparecehaveréopo-
derdohomemsobreoutroshomense,nosdiasatuais,valendo-
sedeumaformidávelferramentasuplementar:ainformação.
Sem dúvida,informaçãoépoder.Numa palavra:aselites
quecontrolamainformaçãotambémcontrolam,porviadecon-
seqüência,oarbítriosobreavidademilhõesemilhõesdeseres
humanosnumalógicaalucinante.Osmétodosdecontroleda
opiniãopúblicaatingiramtalníveldesofisticaçãoquepassaaser
amplamentediscutívelopróprioconceitodedemocracia,vez
queamanipulação,atendenciosidade,ocomprometimento,a
barganha,tudoconspiranamãoenacontra-mãodeinteresses
dosquaisjamaistomaremosconhecimento.
Assim, entendo oportuna a citação do grande romancista
MorrisWestemAfragilidadedossistemas,reflexãodaqual
transcrevemosparte:“Cadaumdenósdeveassumirplenares-
ponsabilidadepessoalnaadministraçãodasociedade.Nenhum
de nós pode eximir-se dessa responsabilidade ou delegá-la à
coletividadeanônima.Temosdecriarordememnósmesmose
emnossomeio.Nãodevemoscriarumtiranoqueaimponha
pornós.Devemosserjustospornósmesmo–justiçapessoal,
justiçasocial–antesquereclamemosjustiçanosoutros.
Temos de oferecer amor primeiro, ainda que o amor com
quenosretribuamsejamenosqueoqueesperamos.Éesseo
verdadeirocontratosocial,semoqualnenhumoutrocontrato
OS MATIZES DO PODER
Lauro Gomes de Araújo
29. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
32
podesubsistir.Devemosconsiderar-nosresponsáveis,pesso-
almente responsáveis por tudo o que é feito em nosso nome
pornossosrepresentanteseleitosoupelosfuncionáriospúbli-
cospagoscomodinheirodosnossosimpostos.Devemospro-
testarpessoalmentecontraalegislaçãoerradaeoserviçoinfi-
el.
Temosquereconhecerqueumadoençanoorganismopolíti-
coéumadoençaemnossosorganismosequenoscabeodever
decooperarpessoalmentenacura.Sehouverinvasãonosdirei-
tos de outro, cada um de nós deve levantar-se para resistir à
invasão.Quantomaioréocaso,quantomaiscomplexaéaques-
tão, mais importante é ouvir a voz humana isolada acima do
clamordodebatepartidário.
Cadaumdenóstemodireitodeproporasuaorientaçãonas
assembléias,dereunir-selivremente,dedecidirpelovotoda
maioria. Cada um de nós tem o dever pessoal de proteger os
direitosdaminoria.Cadaumdenóstemobrigaçãodetolerância
ecompreensão,porqueDeususaumafacediferenteparacada
homem,porquetodasasdefiniçõessãoinsuficientesequeimar
umhomememnomedeumafórmulaéumatobárbaro.
Cadaumdenósdeverespeitaralei.Cadaumdenósdeve
lutarparamelhoraralei,sabendoqueelaésempremenosjusta,
queétantoumaarmaquantoumescudoequesuasinjustiças
podem impelir os homens à desordem e à violência. Não há
códigocompleto;nãohálegislaçãoquenãopossasercontesta-
da;nãodevehaverregulamentosquepossamdesprezaroseu
objetivofundamental:dispensarjustiçanumacomunidadedeci-
dadãoslivrescapazesdesedirigirem.Nãoéumsistemaquenos
salvará.Somosnósmesmoquenossalvaremos,umporum,um
aum,cadaumatodosetodosacadaum.”
LauroGomesdeAraújo-Escritor,membrodaAssociaçãodePesquisado-
resdeMPBedaAcademiaNiteroiensedeLetrasevice-presidenteda
AABB/Niterói.
30. PODER E POLÍTICA
33
Umacoisaévocêlersobreoanarquismodoutrina,decunho
utópico,fundadanaabsolutaliberdadedoindivíduo“semleinem
rei”que,associadaaoutrosindivíduos,igualmentelivres,consti-
tuiriauma“sociedadelivredepessoaslivres”.Segundooaxio-
madeProudhon,fundadorfrancêsdomovimentoanarquista,
“quemquerquesejaqueponhaasmãossobre mim,para me
governar,éumusurpador,umtirano.Euodeclaromeuinimigo”.
DeacordocomBakunine,oniilistarusso,“repudiamostoda
legislação,todaautoridadeetodainfluênciaprivilegiada,paten-
teada,oficialelegal,mesmooriundadosufrágiouniversal,con-
vencidosdequeelajamaispoderáfuncionarsenãoemproveito
deumaminoriadominanteeexploradoracontraosinteressesda
imensamaioriasubmissa”.Proclamaoanarquismo:“NemDeus,
nem senhor!” Ou, como na lenda do náufrago espanhol que,
aportadoaumailha,teria,arfantemente,inquirido:“Haygovierno?
Soycontra”.Outracoisa,muitooutra,évocêconhecerumver-
dadeiroanarquista,emcarne,ossoerevolta.
Dosmaioresprivilégiosquetenhotidoestá,indelevelmente,
odeterconhecidoeconvividocomPedroPauloMussi,profes-
sordaredesecundáriaestadualemMacaé-RJ.Aomeabordar,
numbelíssimojardimmacaense,encontrava-mesentadonum
banco,comumlivrosobreosjoelhos.
Apresentando-se também como professor, de chofre me
declarouterqueimadotodososseuslivros,guardandoapenas
Os grandes escritos anarquistas, antologia organizada por
GeorgeWoodcock.Comopodeumprofessorviversemlivros,
indagava-meeudiantedetalgestodadaísta.
ConvivendocomoPedroPaulo,fuientendendoeamando
suaformadevida.Ex-mongebudista,tarólogo,comerciantede
MEU ANARQUISTA FAVORITO
Latuf Isaías Mucci
31. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
34
seboebrechó,artistaplástico,poetazen,empalhador,herborista
–tudoexerceurevolucionariamenteecomarte...Atégrevede
fomecontraogovernopraticouedistribuía,narodoviáriade
Macaé,panfletoscontraapolíticadeeducação,panfletoscom
crassoserrosdevernáculo,ocúmulodarevoltasintática.Atingi-
donacabeçaquandodecovardeassalto,foihospitalizado,mas
fugiu,preferindo,aos42anos,comoanunciou,“entregarseu
corpoàterra”,numgestohumano,livrementehumano.Impossí-
veldesenhar,em35linhas,oretratoanarquistadePedroPaulo
Mussi,cujoíconeultrapassaameramoldurademinhaoceânica
saudade.
Latuf Isaías Mucci – Doutor em Poética (UFRJ), mestre em Teoria
Literária(UFRJ),mestreemCiênciasSociais(UniversitéCatholique
de Louvain – Bélgica), professor de Teoria da Arte na UFF, poeta e
ensaísta.
32. PODER E POLÍTICA
35
Costuma-sedizerqueopreçodaliberdadeéaeternavigi-
lância,masdevemosatentarqueháduasmodalidadesdevigi-
lância:aqueseexercedentrodocírculodopodereaeleserve,
e a que se exerce do lado de fora e permite contrastá-lo. O
símbolodaprimeiraéoPanópticodeBentham*:noanelperifé-
ricoseétotalmentevistosemnuncaver;natorrecentralvê-se
tudosemnuncaservisto.
Foiessetipodevigilânciaquesofreramoseuropeussobotacão
nazistaeoslatino-americanossobasbotasmilitares.Hoje,navigên-
ciadopoder“democrático”,ocontrolepolicialdasditadurastor-
nou-seautocontroleintrojetado,suple-mentadopelamídiacomer-
cial.PinóquiotomouolugardoPanóptico.
Opapeldos“maquis”e“montoneros”dehojenãoéempu-
nharmetralhadoras:éarmar-secomumpensamentocríticoque
possa reinventar, para o século XXI, o conceito de liberdade
socialemoposiçãoàditaduradopensamentoúnicoimposto
peloneoliberalismo.
PODER E VIGILÂNCIA
“Mallarmé é uma metralhadora!”
Viviane Forrester, em O horror econômico.
José Lisboa Mendes Moreira
*O Panóptico foi imaginado pela filósofo inglês Jeremy Bentham
(1748-1832)comomodeloidealparaprisõesehospícios.Éumaconstru-
çãocircularcomumatorrenocentro.Oanelperiféricoédivididoemcelas
que se estendem da parede externa até a torre.
Cadacelatemduasjanelas:umaquepermiteaentradadaluzexterior
e outra, colocada na torre, de onde um vigia pode controlar tudo que se
passa na totalidade das celas.
JoséLisboaMendesMoreira–Ex-diretordoCentrodeEstudosGerais
daUFFeautordolivroSíndromedoprogresso.
34. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
38
japonês:“Aausênciadacríticaedaautocríticafavoreceperver-
sõesdepoder”.Eprofetizavaqueodelíriodoepelopoderleva
inexoravelmenteao“empavonamento”.
Aperversãoconsistiaemqueaqueleesfuzianteserviçal,assim
como fora também “amaralista” e “chaguista”, agora se
autoproclamavacaboeleitoraldo“governador”desdecriancinha.
Aexecrávelfiguradofisiologismocomezinhopululoudescarada-
mentediantedosmeusolhosatravésdomaisdesprezíveloportu-
nismocalculado.
Quanto à outra sentença, deixa-se perceber que o
“empavonamento”trazemseuseioumdevanearmelancólico:é
queenquantoacaudaseenfeitacomopaletó,ospéschafurdam
nalamado“puxa-saquismo”.
Ironicamente,porém,essamodalidadedegente,aindaquese
esforceemaprimorarosseustruquezinhosbaratos,serásempre
umserperifériconoâmbitodopoder.Pormaisquetentesealçar
às“benesses”dessepoder,pormaisqueseesmerenessadireção,
o retorno obtido jamais passará de migalhas, pois esse tipo de
personalidaderastejanteaninguéminspiraconfiança.Crêem-se
maquiavélicossujeitospredestinadosapolpudasfatiasdeum“bolo
promissor,elaboramumabanalegrosseirafantasia,acreditando-
sea“boladavez”.
Mas,naverdade,nãopassamdedeploráveisobjetos,desem-
penhandoaqualquerpreçoopapeldasubserviência.
Obs.Jogodecinturademaisvirarebolado,jádiziaaminha
comadreLiginha.
Lula Basto – Músico, poeta e dramaturgo.
37. PODER E POLÍTICA
41
Acríticaaosrepresentantesdopodersempreestevepresente
noscontospopulares,fonteprimeiradaliteraturainfantil.Istoacon-
teceriaporqueopovocriavataishistóriassobretudocomoestra-
tégiaderesistênciacultural,meiodetransmissãodevaloresesa-
beres.Nestescontos,gigantes,rainhasereisdespóticossãoder-
rotados pelo herói, armado de coragem, astúcia e bondade ou
porumaintervençãomágica,assinalandoqueháesperançapara
aquelesquesofremsobodomíniodesenhorespoderososemal-
vados.
NoséculoXVII,LaFontaine–quenãoescreveuparacrian-
ças–usouasfábulasparadenunciarosdescaminhosdasocieda-
dehumanaeosabusosdosdetentoresdepoder e de força.As
fábulasforamincorporadasàLiteraturaInfantil,eseuspersona-
genssobapeledeanimaistornaram-separadigmas:oReiLeão
estánocentrodopodereporissoébajuladopelacorte;araposa
éocortesãoastucioso;otigre,ourso,olobosãoospoderosos
que se valem da força bruta. Do outro lado do poder estão o
asno,ocordeiroeaovelha,representandoospobres,honestose
puros–asvítimasdopoder.
Dandoumgrandesaltonotempo,chegamosaoBrasildosé-
culo XX, mais precisamente à década de 70. Nesta época, a
produçãoparacriançasviveumperíodobastantefecundo.Num
contextodeviolentacensura,aproduçãoparaainfânciafoium
meioderepresentarmetaforicamenteopoderedeexerceruma
críticacontundenteaoestadoautoritário.
JáqueaLiteraturaInfantilévistacomoumtipodetextomenor,
engraçadinhoeinócuo,osresponsáveispelacensuranãopresta-
ram muita atenção ao que estava sendo dito ali. O ciclo dos
O PODER COMO PERSONAGEM
NA LITERATURA INFANTIL
Márcia Lisboa
38. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
42
reizinhosdeRuthRochaeaHistóriameioaocontráriodeAna
MariaMachadosãoclássicosdestemomentoemque,engajada
na luta contra-ideológica, a Literatura Infantil é muitas vezes
panfletária.
Alémdedenunciaroexercícioditatorialdopoder,aLiteratura
Infantiltambémassumiuposiçõeslevantadasemmaiode68,na
França.Assim,ostextosparacriançassãoporta-vozesdeuma
novaéticaedenunciamaeducaçãopautadaporestereótiposse-
xuais,oautoritarismonarelaçãoadulto-criança,asinjustiçasda
sociedadedeclasseseopreconceitoracial–formaspluraisde
exercíciodopoder.
Márcia Lisboa – Especialista em Literatura Infantil e doutoranda
emSemiologiapelaUFRJ.
39. PODER E POLÍTICA
43
Eraumartistasonhador:sonhavacomaglória,comafama,
esperavacomansiedadeessediaque,tinhacerteza,chegaria.
Pintava,diaenoite.Erasóoquesabiafazerefaziamuitobem,
maserasempadrinho,sempistolão.
Parecequechegousuaveznumaencomenda,aconfecção
deumapinturacomoretratodopresidente,dopresidenteeleito
–poreleiçãoindireta,diga-sedepassagem.Masaencomenda
era urgente, era para o dia da posse: o presidente com traje
soleneefaixapresidencial.
Começousuaobra-prima.Pensounosvelhosmestres:pri-
meiro,umprojetobemfeito;sódepoisaampliaçãodefinitivaeo
acabamentorigoroso.
Trabalhouintensamente.Buscoufotografiasdopresidente–
nãopodiavê-loaovivo,estavanaEuropa–mostrouacolegas,
tudo bem, o projeto pronto, o início da obra final. Uma tela
encomendadaespecialmente,linhopuro,chassisdecedro,mão
francesa,atelacomváriascamadasdegessoecola,camadas
finas,secasnaverticale,porfim,umacamadadealvaiade.Tela
branquinha,pedindotinta.Tintaestrangeira.Materialpara500
anos,comodiziaacolega...
FoinaHistóriadaArte.EstudouTicianoeoutrosmestres.
Tudomentalizado,trabalhocomeçadocommanchabemdiluída
comoseuamigodeateliersemprefalava:“Primeiromanchara
tela,pinturamuitorala,tintadissolvidacomterebintinaeumpouco
deóleodelinhaçasecamaisrápido,nãotrinca,pinturadequa-
lidade.”
Veiooacabamento:umaperfeição.Todomundogostando.
Sófaltavaafaixapresidencial,omaisfácil.Maisfácilnada.Co-
meçouenadadefaixadarcerto,astintasseembolando,sujan-
A FAIXA PRESIDENCIAL
Jorge Picanço Siqueira
40. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
44
do. Seria a qualidade da tinta? Não adiantou nada, cada vez
piorafaixa.Raspouecomeçououtra.Nada!Afaixanãoqueria
encaixarnoretrato.Odiachegando,diadaposse.Davatempo,
masafaixanãosaía.
Veioavéspera.Usousecante,pintouduranteanoite,demanhã
cedinhoentregariaotrabalhocomfaixaetudo.Muitaconcen-
traçãoedesesperoaté.Oqueestariaacontecendo?Afaixanão
davacerto. Nãodavaenãodeu...Iriasemfaixa mesmo,mas
nãopoderiaser,tinhaquesercomfaixapresidencial.Exausto,
nãodesmaiou.Otrabalhoprontosemfaixa,nodiadaposse...
Demanhã,sótevetempodeligarorádioeouviranotícia:“O
presidenteeleitonãotomouposse,adoeceu.Doençademorte.
Oviceassumiu...”
Oretrato–semfaixapresidencial–desapareceu.Oartista
abandonouastintasparasempre...
Jorge Picanço Siqueira – Escritor, poeta e presidente da Academia
Brasileira de Literatura.
41. PODER E POLÍTICA
45
OcineastaitalianoRobertoRossellini,nofilmeAtomadado
poder por Luiz XIV, mostra o ritual de investidura do Rei da
Françacomossímbolosconcernentesàmonarquia.Oantropó-
logoinglêsMaxGluckmannanalisaasformasdeencenaçãodo
podernoimportanteensaioRituaisderebeliãonoSudesteda
África,ondedemonstraqueaquelequeassumetambémsesub-
mete,ritualisticamente,aossubalternosparaentãoassumirple-
namentenodomíniopolítico.Maianowiski,autordoclássicoOs
argonautasdoPacífico,contaqueentendeumelhorokula–
processodetrocasrituaisentreostrobriandeses–aosedepa-
rarnoMuseuBritânicocomasjóiasdaCoroaInglesa.
Paraqueestasserviam?Paraqueasvestes,ocetroeaco-
roadoReidaFrança?Porqueochefeafricanosesubmetiaao
escárnioeàrevoltasimbólicadeseussúditos?Emverdade,a
ascensãoeaposseexigemumcomplexosistemadeencenação,
ondeossímbolosdopodersãocolocadosemcena.Opoderé
públicoe,portanto,exigeque,publicamente,serepresente.Tudo
aquiloquesejacapazdeindicarqueelevaiserexercidotemque
condensar-seemummomentoousituaçãoquedefinaapassa-
gemdeumestágioaoutroousuaafirmaçãooureafirmação.
Todasassociedadeseossistemasdepoderdesenvolvemas
maisvariadasformasdedramatização.Éprecisodizeremcerto
momento–especialmentenasinvestiduras–quemotemeque
oexerce.Porisso,aexigênciadosrituaiseamanipulaçãode
instrumentossimbólicos,tornadoclarooprocesso.Éassimque
podemosfalardeencenação,quandotestemunhamoscerimôni-
asqueosacralizam.
Oritualtemcomofunçãomostrarasuaexcepcionalidade.O
reipodeinvocarsuaorigemdivina,ogovernantejurarperantea
A ENCENAÇÃO DO PODER
Isidoro Alves
42. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
46
Bíblia,ochefeiratéaumlocalsagrado,opontíficerecebero
cajado e celebrar a missa onde, no final, obtém a obediente
reverênciadeseuscardeais.
Enfim,aencenaçãoobedeceaumaespéciedescriptimplí-
cito,noqualtodososelementosdevemcomporumalinguagem
compreensível,comsuagramáticaesuasemântica.
Coroa,manto,fraque,cartola,faixas,cetros,cumprimentos,
gestos de obediência, as festas, as recepções etc.., todos reú-
nemalinguagemdeencenaçãoquedefineoâmbitoeasacralidade
dopoder.Estenãoprecisasersimplesmenteexercido.Éneces-
sárioquetambémsejaencenado,sejaumdramasocial.
IsidoroAlves–DoutoremAntropologia,pesquisadordoCNPqedo
MAST.
43. PODER E POLÍTICA
47
Bactériasfabricamsubstânciastóxicase,expelindo-asem
seusnichosconquistados,tratamdegarantiroterritório.Árvo-
resproduzemtoxinasemsuasraízesparaimpediroavançode
outras, consideradas concorrentes no mesmo espaço. Já os
mamíferosutilizamváriasformasemuitosrituaisparademarcar
seulugar-no-mundo.
Disputas corporais, gritos, xingamentos e outras práticas
menosnobressãorecorrentes,quandosetratadefazervaleros
direitosdaconquista.Mesmoaslongínquaseromânticasestre-
lasdizem,travambatalhasferozes:valendo-sedesuaimensa
densidade,curvamoespaçoparaengolirem-seumasàsoutras.
Com os humanos poderia ser diferente? Não. Até porque
nascemosdasestrelas.Inventamosrituais,cargos,hierarquias,
deuses,estadosetodaumagamadeinstituiçõesparagovernar
nossasexistênciasminguadaseatenderàvaidadedaquelesque,
porneuroseoupormaldade,realizam-seemmandarsobreos
demais.Poderpraquê?Dequeserveessaexternalidadegestada
paraquealgunspudessembrincardegovernaravidaeavonta-
demilhões?
Nãohácomonãorecorreradoismísticos,umtaoístaeum
cristão:ChuangTzueSãoJoãodaCruz.Oprimeiroconta-nos
queoreiHsiuestavaapavorado,porqueouviraanotíciadeque
ele,ChuangTzu,tramavaumgolpeparatomaropoder.Para
prevenirtalcoisa,oreimandoucaçarChuangportodooterri-
tórioematá-lo.ChuangTzu,sabendodanotícia,antecipou-see
foiatéorei:“Carorei,vocêconheceahistóriadacorujaeda
fênix?”
“Não”,respondeuooutro.RetomouTzu:“Afênixéumaave
nobre,quevoanasalturas;sópousaemalgumasárvoressagra-
A CORUJA E A FÊNIX
José Américo de Lacerda Júnior
44. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
48
das, alimenta-se de comidas nobres e respira o ar puro das
montanhas.Certavez,umacoruja,todasujadeterra,comiaum
ratomortonochão.Quandoolhouparaocéueviuafênixpas-
sar,abraçoufortementeorato,commedodequeafênixpudes-
seroubá-lo.Masesta,indiferente,seguiuseucaminho.Porque
vocêpensa,corujavelha,quequeromeintoxicarnapodridão
deseucargo?”
SãoJoãodaCruz,apósmuitasperseguiçõeseprisões,con-
seguiuagrandezadealmadeperdoarseusalgozeseaindafor-
mularumamísticaquesuperaasimplesresignaçãodianteda
vida.Éeleoautordeumafraselapidar:“Paraojusto,nãohá
lei.”Sim,opoderseafirmasobrenóstodos,porqueperdemos,
emalgumpontodavida,anoçãodojustoecolocamosemseu
lugarofamosointeresseprópriodoliberalismo.
Aí,vêmunsfilósofosinglesesefrancesesenosconvencem
de que precisamos de um poder para reger nossa vida social,
um Leviatã que nos impeça de nos tornarmos uns lobos dos
outros.Puraficção!Lobosquesãolobosnãosecomemmutu-
amente. Ao contrário, colaboram entre si para que a matilha
sobreviva.
Opoderexauriunossacapacidadedesermosinternamente
justosebons.Destaforma,damo-nosodireitodepraticarmos
delitos para que depois as leis nos julguem e, se formos
aquinhoadosemdinheiro,nosabsolvam.ÉumÉdipomuitomal
resolvido,esse...
José Américo de Lacerda Júnior – Bacharel em Filosofia, mestre
emEducaçãonaUFF.
46. PODER E POLÍTICA
51
Não me convidem para essa festa
Márcia Paraquett 53
Globalizaçãoeneoliberalismo:umademocraciaeconômico-
social para a América Latina?
Hiran Roedel 56
Convivendo com a seca
Sérgio Carneiro 57
Que continente é este?
Lívia de Freitas Reis 59
Osatuais“democratas”
Valeriano Altoé 61
Sem perder a memória
Ludmila Catela 63
É preciso dizer não!
Rivo Gianini 65
AdependênciadamulhernaAméricaLatina
Philomena Gebran 67
Sobre caldeirões, bruxas e livros
Márcia Lisbôa Costa de Oliveira 69
Índice da Parte II
47. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
52
Alca:contrafaçãodeumideal
José Lisboa Mendes Moreira 71
DiscriminaçãodaArtelatino-americana
Adílson Figueiredo 73
Afinal,atéquando?
Rubim Santos Leão de Aquino 75
AArgentina:umapossívelmudançapolítica
Fernando Antônio da Costa Vieira 77
TeologiamadeinAméricaLatina
Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva 79
A Aliança da Europa com a América Latina
Marcelo Ossandon 81
Cantigasdeninar:traçosdeumaidentidadecultural
Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento 85
48. PODER E POLÍTICA
53
Entraremosnoano2000com500anos.ARedeGlobonão
nos deixa esquecer que, desde 1500, somos uma nação. Mas
seráquesomosmesmo?Cadavezqueo“plim-plim”medesperta
paraessarealidade,ficorefletindosobrenossopaísetodosos
outrosqueconstituemaAméricaLatina.Etenhoconcluídoque
nãohámotivosparafesta.
Apenasparacomeçar,éprecisoquenoslembremosdeque
ospovosqueconstituemnossocontinentenãochegaramaquino
anoemqueoseuropeusnosdescobriram.Jáhaviamuitapopula-
çãoporessasterra.SónoBrasilhaviaumagrandequantidadede
tribosdistribuídasemdiferentesregiões,cadaumacomseuspró-
prioscostumes.NaáreaconhecidahojecomoAméricaCentrale
México,concentravam-secivilizaçõestãoprogressistasqueos
espanhóis,maisconquistadosquedescobridores,trataramdeinau-
guraradisseminação.
Aliás,parecequeessatarefa,tãobeminiciadapelosnossos
avóseuropeus,integrou-sedetalmaneiraemnossoshábitosque,
atéhoje,matarindígenaéesportepreferidodealgunsguerreiros
frustrados.Noanopassado,tivemosqueconvivercomasduras
imagensdaquelepataxóqueimadovivoemBrasília.Afinal,aquele
trapohumanoqueseprotegiacomfolhasdejornalserviuperfeita-
menteparadistrairalgunsjovensdaclassemédia,aborrecidos
comamesmicedatelevisãoecomafaltadeprojetossociaisque
osenvolvam,convocando-osaseremcidadãos.
Fazpoucotempotambémque,emChiapas,suldoMéxico,
umagrandepopulaçãoindígenafoimassacradaemnomedodi-
reitoàterra.Aquelesinvasores,segundoaopiniãodoexército,
precisaramserexpulsosàmorteparaqueseaprendessemalição
NÃO ME CONVIDEM PARA ESSA FESTA
Márcia Paraquett
49. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
54
dequeaterranãoéparasertomada,massimconquistada.
Deixemosdebrincadeiraepensemossério.Falaremcome-
moraçãodos500anosdenossopaísedeoutrostãooprimidos
comooBrasildeveserfaltadoquefazer,ounecessidadedetam-
paroSolcomapeneira.Bastadarumaolhadinhanascarasde
nossos“sem-terra”paradescobrirnelesorestinhodostraçosin-
dígenas em suas peles e olhos. Não é por coincidência que os
conflitossedãoaoNortedopaís.Nãoeraláqueseconcentrava
omaiornúmerodeindígenasantesdachegadadoseuropeus?
Suasterrasforaminvadidaspelagrande“civilização”européiado
séculoXVIe,hoje,nãolhesrestaoutracoisasenãodesaparece-
remparanãomacularemumaimagemque,atodocusto,sequer
manter
Porfavor,nãomeconvidemparaessafesta!
MárciaParaquett–DoutoraemLiteraturasHispânicaspelaUSPe
professoradeLínguaeLiteraturaEspanholanaUFF.
50. PODER E POLÍTICA
55
AAméricaLatinachega,nestefinaldeséculo,semresolver
problemasbásicosdesuapopulação.Asprecáriascondiçõesde
saúde,educação,moradia,empregoesaneamentocontinuamna
ordem do dia. No plano internacional, a submissão ao grande
capitalpermanececadavezmaisforte.
Dessemodo,globalizaçãoeneoliberalismosãoapresentados
como solução consensual pelas elites. O primeiro refere-se à
integraçãoeconômicainternacionalsustentada,emgrandeparte,
pelainfra-estruturatecnológicaquepermitiuagradativadiminui-
çãodastarifasdecomunicaçãoetransporte.Logo,tantoaprodu-
çãotempodidoseorganizaremcadeiasprodutivasglobais,quan-
toosistemafinanceirotemestabelecidoumaintegraçãotambém
emâmbitoglobal.Jáosegundorelaciona-seaodiscursopolítico
quelançaasdiretrizesparatalintegraçãosustentadopelatesedo
Estadomínimo.
Apesar do discurso neoliberal e do processo objetivo da
globalização,issonãonospermiteaindaabandonaroconceitode
paísescentrais,poisasprincipaisatividadeseconômicasetécni-
co-científicoscontinuamsobcontroledessespaísescentrais,tais
comoEUA,Alemanha,Inglaterra,FrançaeJapão,principalmen-
te.Comisso,odiscursoneoliberaldedesestatização,desregulação,
flexibilizaçãodotrabalho,reduçãodocustodaprodução,arrocho
salarialetc.constituiimportantepilardesustentaçãoparaafirma-
çãodonovomodeloespoliativodeintegraçãoqueseforma.
Assim,diantedaexclusãodeparcelaconsideráveldapopula-
çãodasbenessesdodesenvolvimentotécnico-científico,ogrande
capitalinternacionalavançasobreosmercadosdospaísesperifé-
GLOBALIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO: UMA
DEMOCRACIA ECONÔMICO-SOCIAL PARA A
AMÉRICA LATINA?
Hiran Roedel
52. PODER E POLÍTICA
57
Os problemas da América Latina já são conhecidos e al-
guns,inevitáveis,comoéocasodasecanoNordestebrasileiro.
Mas, apesar de ser um fenômeno natural, os homens podem
utilizaratecnologiaparapermitirqueosertanejoconvivacoma
agudaescassezdeágua.
Agoraogovernoprometeatenderemergencialmenteàme-
tadedapopulaçãonordestinacommedidaspaliativas.Nãopode
dizerquenãofoialertadoporparlamentares,pelaimprensa,por
setoresorganizadosdasociedadeeatémesmopelasmodernas
imagensdesatélite.Averdadeéqueasecaseassemelhaauma
guerraquedizimapessoasdeformalentaegradual,transfor-
mandohomensemulheresemsaqueadores,migrantesemdireção
àsgrandescidades,acabandocomaesperançadasgerações.
OsburocratasdeBrasíliasóconhecemasecapelasestatís-
ticas. Já sabem que são 9,6 milhões de pessoas atingidas, ou
21,44%dapopulaçãonordestina.SabemqueaBahiaéoesta-
do com maior número de flagelados: 3.421.539, seguido do
Ceará,com1.397.000,Pernambucocom1.371.421,Paraíba
com 890.250, Piauí com 842.539, Alagoas com 489.650 e
Sergipecom140.000.Masedaí?
Na seca de 1993, o número de flagelados foi de 11,9 mi-
lhões.Eoquefizeramdeláparacá?Idéiaseprojetosnãofal-
tam,masosrecursossãomalempregados.Agoramesmo,anun-
ciamaaplicaçãodeR$180milhõesparaofornecimentodeces-
tas básicas, a construção de açudes e frentes de trabalho. O
BancoMundialassinarácontratocomogovernobrasileiropara
financiarmetadedosUS$330milhõesparaoitoobrasdecom-
bateàsecanordestina.
O problema é que a seca não se combate. É preciso criar
CONVIVENDO COM A SECA
Sérgio Carneiro
53. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
58
condiçõesdeconvivênciadosertanejocomela.Precisamosde
obrasperenes,damaximizaçãodosrecursoshídricosdaregião,
dousodaságuassubterrâneasedoempregodatecnologiada
dessalinização,porexemplo.
Sóparaficarcomestesdoisúltimositens,citareidadosda
CompanhiadePesquisaeRecursosMineraisqueestimamem
110trilhõesdemetroscúbicosdeáguaopotencialsubterrâneo
doNordeste,oquedáparaabasteceros42milhões,387mile
328habitantesdetodooNordestedurantecincoanos,enãosó
os17milhõese854milqueresidemnaquelesemi-árido.
Quantoaosdessalinizadores,aocustodeR$10milaunida-
de,poderiamresgatarodinheirodocontribuintegastoemaber-
turademaisde20milpoços,hojetamponadoseinativosnos
noveEstadosdoNordesteporteremproduzidoáguasalobra.
R$10milvezes20milpoçosdariamR$200milhõesque,divi-
didos por quatro anos de governo, resultariam em R$ 50 mi-
lhões/ano.Achamuito?
Sobreaimportânciadadessalinizaçãodaságuasnotocante
àsaúde,aoturismo,àagriculturafamiliar,àirrigação,aomeio
ambiente,àmelhoriadaqualidadedevida,realizamosSeminá-
rioInternacionalnoúltimodiaseisdemaio,naCâmaradosDe-
putados,emBrasília.
SérgioCarneiro–Ex-deputadofederalpelaBahiaeex-vice-líderdo
PDTnaCâmara.
Nota: Texto escrito em abril de 1998, quando o autor ainda era depu-
tado federal.
55. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
60
plosdestaafirmação.Sãotantasasobrasquenemsequerpo-
deríamoslistá-las,menosaindaanalisá-las.
Ficam,noentanto,algumasdicasdeleituraparaosqueainda
tentamentenderestenossoestranhocontinente:OSenhorPre-
sidente,deMiguelÁngelAstúrias; CemanosdesolidãoeO
general em seu labirinto de Gabriel García Márquez; Eu, o
supremo,deAugustoRoaBastos;SãoBernardo,deGraciliano
Ramos,Ahoradosruminantes,deJ.J.Veiga,emuitosmais.
Lívia de Freitas Reis – Doutora em Letras Hispânicas pela USP,
professoradeEspanholeLiteraturaHispano-AmericanadaUFF.
56. PODER E POLÍTICA
61
No mundo político de hoje, em grande parte dos Estados
latino-americanosestá-seobservandoumfenômenointeressan-
te.Trata-seda“democratização”demilitaresqueatébempou-
cotempoeramfavoráveisoumesmoparticiparamativamente
degolpescontraasinstituiçõescivis.Venezuela,Colômbia,Bo-
líviaeParaguaisãoexemplos.Neles,ex-golpistasestão-seapre-
sentandocandidatospresidenciais.Sãoosnovos“democratas”.
Desdesuaemancipação,aAméricaLatina,emgeral,contou
comumapresençamilitaratuanteedecisiva.Amilitarizaçãode
suas instituições deveu-se muito à instabilidade política e
econômica após a independência. Os generais idealistas das
guerrasdeindependênciaforamsubstituídosnopoderporam-
biciosasgeraçõesmilitarizadas.AolongodoséculoXIXfor-
mou-seummilitarismoqueseligouàelitecivil.Estauniãocons-
tituiuelementomaisdinâmicoepersistentequeosdebatespar-
lamentares.
Apartirdadécadade1960aparticipaçãomilitarnosdesti-
nosdealgunspaíseslatino-americanosdeu-seatravésdegolpes
militarescontraopodercivil.Brasil(1964),seguidopelaArgen-
tina,Uruguai,Paraguai,PerueChile.EsteeoUruguaihaviam
gozado, antes dos golpes, de democracias sociais e políticas
amplaseeramchamadosde“SuíçadaAméricaLatina”.
Adeposição,noChile,dogovernosocialistadeSalvador
Allendeconstituiumcasosingular.Osmilitares,lideradospelo
generalPinochet,tiveramoapoiodaDemocraciaCristãede
outrasfacçõesdireitistas.Alémdeterinstauradoomaisviolento
regime,foitambémoúltimoadeixaropodernoConeSul.Ape-
nasem1990,PatrícioAlwynassumiuapresidência,dandoiní-
cioàinstitucionalizaçãodopaís.Apesardisso,a“democracia”
OS ATUAIS “DEMOCRATAS”
Valeriano Altoé
57. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
62
chilenacontinuousendotuteladapelasForçasArmadas,lidera-
dasporPinochet.
Em geral, os países da América do Sul saíram do regime
militarostensivosobduasimportantestutelas:adocapitalfinan-
ceironacionaleinternacional,principalmente;eadasForças
Armadas.NoBrasil,atutelamilitarobserva-senofimdaisonomia
entre civis e não-civis. Criou-se, assim, uma casta especial e
privilegiadaacimadequalquercidadãocomum.Jáemoutros
paísesdoConeSulobserva-sequemilitaresex-golpistasestão
buscandoopoderpela“viademocrática”.NaVenezuela,oco-
ronelHugoChaves,queem1992tentouderrubarCarlosAndres
Peres;naBolívia,ogeneralHaroldBedoya,enoParaguai,o
generalLinoOviedosurgemcomofavoritosnaseleiçõespresi-
denciais.
AsituaçãomaisintriganteéadoChile.Ogal.Pinochet,a13
demarçoúltimo,fezseujuramentocomosenadorvitalíciope-
ranteoParlamento.Opresidente,EduardoFrei,diantedaopo-
siçãodaincorporaçãodomilitarnavida“democrática”,pediu:
“Temosquecuidardoquejáconseguimos.”
OmilitarismopresentenaAméricaLatinadesdesuainde-
pendênciaparecequerercontinuarinfluindonosdestinosdos
países,masdeumaformamaisdiscretaemenosrejeitadainter-
nacionalmente:pela“viademocrática”.
ValerianoAltoé–DoutoremHistóriaSocialpelaUFFeprofessorda
Universidade Veiga de Almeida e do Centro Universitário Moacyr
Bastos.
58. PODER E POLÍTICA
63
PorqueolegadodasditadurasmilitaresnospaísesdoCone
Sul sempre retorna como pesada herança? Essas ditaduras se
caracterizam,emmaioroumenorescala,pelatortura,detenções
clandestinasedesaparecimentodepessoas.Quandochegaram
aofim,osmilitarestinhamumproblema:proteger-sedainvestiga-
çãodasviolaçõesaosdireitoshumanose,paratanto,ditaramsuas
própriasleisdeanistia.
Emagostode1979,nogovernodeFigueiredo,aLei6.682
“perdoava”osatosdeexceçãocometidosdesde1964noBrasil.
Talanistiaincluíanãosómilitares,mastambémpresospolíticos
exilados.Nototal,beneficioucercade5.000pessoas.Emsetem-
brode1983,osmilitaresargentinoscriaramsuapróprialeide
auto-anistia, mas a chegada do novo governo a revogou. Mas
tarde,contudo,oGovernoAlfonsinoutorgariaasleisdePonto
FinaleObediênciaDevida,beneficiandomaisde1.500oficiais.
NoChile,decretodeabrilde1978beneficiouosresponsáveis
pelaviolaçãodosdireitoshumanosqueatuaramentre11dese-
tembro de 1973 (data do golpe) até abril de 1978. Em 1986, o
UruguaicriouaLeideCaducidadedaPretensãoPunitivadoEs-
tado.ParaguaieBolívia,apesardehaveremtidolongasditaduras,
sãoosdoisúnicosdoConeSul,ondenãoforamsancionadasleis
desteteor.
Dentrodosconsensospolíticosnegociadoscomoretornodas
democracias,asleisdeanistiaobjetivamcontribuirparaareconci-
liaçãoepacificaçãonacionais.Naprática,impuseramumsilêncio
difícildeseraceito.Asferidasnãoestãofechadas.Porissomes-
mo,estassociedadesreagem,dasformasmaisdiversas,manifes-
tando-secontraaimpunidade.Osdiretamenteatingidopelosanos
dechumbo(ex-presospolíticos,familiaresdasvítimasetc.)não
SEM PERDER A MEMÓRIA
LudmilaCatela
59. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
64
paramdereclamarojulgamentodestesmilitares.
OEstado,asociedadecomoumtododeveriamanalisarcomo
acharoequilíbrioentreanecessidadedeverdadehistóricaeuma
ordemjurídicaqueconsolideaordemconstitucional,semesque-
ceropassado.OsEstadosdospaísesdoConeSuloptaram,em
maioroumenormedida,peloperdãoaosculpáveis,semobterem
trocaaquilodequeasociedadeprecisava:informaçãosobreos
anosdeobscurantismopolítico,arrependimentodosculpáveis,
ressarcimentoàsvítimas.
Averdadeeajustiça,pormaisdolorosasquesejam,sãoos
únicosmeioslegítimosquepermitiriamàssociedadesenterrarseus
mortoseanalisaropassadosemperderamemória.
Ludmila Catela – Doutoranda do Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais(PPGD)daUFRJ.
61. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
66
maçãodaAlcasobopoderionorte-americano.
É necessário dizermos NÃO, como sugere Eduardo
Galeano,atodaestapolíticadeirracionalidadeeconômicade-
nominadaneoliberalismo,impostapelospaíseshegemônicos,que
penalizamospovoslatino-americanos,ebuscarmosnossaiden-
tidadevocacionadapelosideaisdesoberaniaeliberdade.
RivoGianini–Prof.-adjuntodaUFFedepós-graduaçãodaUCP.Presi-
dentedoComitêdaAliançaFrancesadeNiterói,Diretorregionalda
AssociaçãoNacionaldePolíticaeAdministraçãodaEducaçãoeSubse-
cretárioMunicipaldeDesenvolvimentodeNiterói.
62. PODER E POLÍTICA
67
Ahistóriadamulherlatino-americanaestáprofundamente
comprometidacomaprópriahistóriadedominaçãodaAmérica
Latina.ApartirdoséculoXVI,avidadamulherlatino-america-
na mescla-se a um longo processo histórico, cuja marca é a
violência,aopressão,adominaçãoe,finalmente,aexclusão.
Comoemtodasociedadeexploradaecolonizada,aneces-
sidadedaproduçãodeumexcedentelevouinicialmenteosiste-
macolonialedepoisocapitalistanãosóaescravizaramassa
nativa,deumaformamaisgeral,maspermitiuametrópolea
exercersobresuasáreasdominadasumasuperexploraçãotam-
bémdamão-de-obrafeminina.Exploraçãoessarealizadaatra-
vésdaprópriahierarquiacriadapelosistemacolonial.
Aolongodoprocessocolonial,asmulhereslatino-america-
nas,pertencentesentãoàssociedadesnativas,sofreramuma
brutaldominação,subjugadasaoseuropeuscolonizadores.De-
pois,nosistemacapitalista,passaramasofrer,nocampo,por
exemplo,asubjugaçãoaopai,aomaridoeatémesmoaosfi-
lhos.Amulherurbanaoperáriaoudaclassemédiafoiecontinua
sendovítimadamesmaexploração.
Hoje,nafábrica,naempresa,noescritório,nocomércioou
emqualqueroutrotipodetrabalho,elacontinuasendoexplora-
daatravésdesaláriosreduzidosedecondiçõesdetrabalhosem-
preinferiores.Istoporqueasociedade,deummodogeral,parte
do pressuposto de que é ou deve ser sempre sustentada por
alguém.Nestesentido,amulhersofreváriasformasdeexplora-
ção,desdeadopatrãoatéadomaridoefilhos,devendocum-
priresuportarsempreumaduplajornadadetrabalho.Essasitu-
açãotemsidoconstanteaolongodaHistória.Acreditamosque
A DEPENDÊNCIA DA MULHER
NA AMÉRICA LATINA
PhilomenaGebran
63. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
68
desdequeseinstalouosistemapatriarcalenaAméricaapartir
dosistemacolonial.
Se,nassociedadesagráriase/oupré-capitalistas,haviauma
divisãomaisigualitáriadotrabalhoemuitasvezesatédopoder,
nassociedadesposterioresocidentaise/oucapitalistas,asmu-
lheresforamcompletamenteafastadosdoscentrosdedecisão
do poder, ou seja, daqueles em que se trata efetivamente do
presenteedofuturodahumanidade.
Amulherfoietemsidodiscriminadaemarginalizadapelo
olharmasculinodaHistória.Parasermosimparciais,podemos
atéreconhecerquehouveouqueháalgunsmomentosemquea
situaçãodamulherfoimelhoroupior,mas,enquantogruposo-
cial,semprefoimantidadistantedopoderemtodasasinstânci-
as,desdeoséculoXVIatéoXX.Esealgumasvezesnodecor-
rerdoprocessohistóricolatino-americanoamulherexerceual-
gumpoder,foiocupandoasmargensoudeformaindiretaatra-
vésdesuainfluênciasobreoshomensouquandoelespermiti-
ram.
PhilomenaGebran–DoutoraemHistóriadaAméricaLatinaepro-
fessora da UFRJ e da USS.
64. PODER E POLÍTICA
69
Numcaldeirãocultural,borbulhamemisturam-seimagens,
contos,cantosetradições.Istodeveriaacontecernocampoda
produçãoeditorialparacrianças,masnemmesmoasbruxasda
LiteraturaInfantilforamcapazesdejuntarnummesmocaldeirão
oBrasileaAméricaEspanhola.
EnquantoaLiteraturaInfanto-Juvenilbrasileiraalcançaboa
receptividadenomercadolatino-americano,noBrasilsãopou-
cas as traduções de textos hispano-americanos. Além de
MonteiroLobato,todososprincipaisautoresbrasileiroscon-
temporâneostêmsuaobraeditadaemespanhol,deLygiaBojunga
Nunes,AnaMariaMachadoeRuthRochaaRogérioAndrade
BarbosaeCiçaFittipaldi,passandoporMaryeEliardoFrança,
ZiraldoeFernandaLopesdeAlmeida.
UmsintomadoisolamentobrasileiroéofatodequeMaria
HelenaWaish,aprincipalautoraargentinadecontosemúsicas
paracriançasdeimportânciacomparávelàqueLobatotempara
nós,nuncafoipublicadaaqui.Nestecontexto,destacam-seal-
gumasiniciativasquerompemabarreiralingüístico-cultural.A
editora Ática desenvolve em co-edicão com outros países a
coleçãoContoslatino-americanos,queobjetivapromovero
intercâmbiocultural,agrupandocontosdeautoresdediferentes
nacionalidades.Tambémacoleção Cantolatino-americano,
daeditoraAutores&Agentes&Associados,pretendetrazer
às crianças brasileiras o “contato com o belíssimo mundo da
línguaespanhola,proporcionandoumarealintegraçãoentreos
paíseslatino-americanos”.Asediçõesbilíngüespermitemqueo
leitordeleite-secomamusicalidadeoriginaldostextos.
Seguindoocaminhodestascoleções,apublicaçãodeauto-
resdedestaquenaAméricaLatinarepresentariaconsiderável
SOBRE CALDEIRÕES, BRUXAS E LIVROS
Márcia Lisbôa Costa de Oliveira
66. PODER E POLÍTICA
71
AoproporarealizaçãodoCongressodoPanamá,em1825,
osonhodeBolívareraunirtodosospaíseshispano-americanos.
Maistarde,vencidaadesconfiançacomqueencaravaamonar-
quiabrasileira,incluiuoBrasilnumsonhomaior:aintegraçãode
todaaAméricaLatina.Oqueelerealmentenuncaadmitiufoia
uniãocomosEstadosUnidos,eporumarazãomuitosimples:não
seria uma união em termos igualitários e sem propósitos
hegemônicos.
FoiessemesmomotivoquelevouoadvogadoNoronhaGoyos,
árbitrodaOrganizaçãoMundialdoComércioeex-representante
dogovernobrasileironaRodadaUruguaidoGatt,adeclarar,no
EncontroSul-AmericanodeRelaçõesInternacionais,realizadono
PalácioItamaraty,noRiodeJaneiro,nofinalde97,queaadesão
doBrasilàAlca“seriaumpéssimonegócioparaonossopaís”.
Osetordeserviços,segundoGoyos,seriaomaisprejudica-
do.Parailustrarsuaanálise,usouaimagemdeumarodadebici-
cleta:osEUAseriamocentrodarodaeosraios,ospaísesque
aderissemàAlca.Estesdeixariamdenegociarentresietratariam
detudodiretamentecomocentro,ondeserealizariamosnegóci-
osbancárioseoutrastransaçõesfinanceiras.Aagriculturabrasilei-
ratambémseriaafetadapelaadesãoàAlca,poisteríamosonos-
somercadointernoinvadidoporprodutosagrícolasaltamentesub-
sidiados.AmelhoralternativaparaoBrasil,naopiniãodeGoyos,
seriaintensificarosacordosmultilateraisecontinuaracreditando
ALCA: CONTRAFAÇÃO DE UM IDEAL
José Lisboa Mendes Moreira
“A necessidade real de mercados maiores modificará a velha aspira-
ção (dos grandes países industriais) de manter-nos ilhados, através do
novo truque de integrar-nos para servir-lhes melhor.”
RobertoCiriloPerdiaeFernandoVacaNarvajain Novaestratégiado
FMI.
67. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
72
no sucesso do Mercosul, que é um acordo sem pretensão
hegemônica.
TambémoeconomistaGouveaNeto,professordaUniversi-
dadedoNovoMéxico,nosEUA,eligadoaoInstitutoBrasileiro
de Mercado de Capitais, considera a adesão à Alca nociva à
economiabrasileira.OBrasiléhojeumnegociadorglobale,seos
EUArespondempor20%denossocomércioexterior,apartici-
paçãodosdemaispaíseséde80%.SeaderisseàAlca,noster-
mosqueosEUAqueremimpor,estariaalijandoparceirosimpor-
tantíssimoscomoaUniãoEuropéiaeospaísesasiáticos.
NoMercosul,ocomércioentreosquatropaísesqueocom-
põemcresceu400%desde1990,masnãoatrapalhouasoutras
relaçõescomerciais.OmesmonãoocorrerianaAlca,pelofato
deumdosmembros,osEUA,terumaeconomiamuitomaisforte,
capazdedistorcerospadrõesdecomércio.
MilêniosantesdeBolívaredostécnicosaquimencionados,
estavaescritonaBíblia:“Nãoteassociescomoqueémaisricodo
quetu.Comoopotedebarropodeseligarcomocaldeirãode
ferro?”(Eclesiástico,XIII,2)
JoséLisboaMendesMoreira–Ex-diretordoCentrodeEstudosGe-
rais da UFF, professor e autor do livro Síndrome do progresso.
68. PODER E POLÍTICA
73
EnraizadanoRealismoFantásticoenoImaginário,aArte
latino-americanavemobtendointeresseinternacional,apesarde
aindamaisvoltadaamostraseexposiçõesqueàcomercialização.
Defato,ascasasdeleilõesChristie’seSotheby’s,detempos
paracáconcedemàpinturadaAméricaLatinamaisatenção,
emboraestaestejabemlongedasmegamilionáriascifrasdas
produções européias e norte-americanas. Nenhuma obra do
nossocontinentealcançou,emvenda,abarrademeiomilhãode
dólares.
Alémdisso,poucosartistastêmconseguidofurarobloqueio
emarcarnorestritomercado.UmafoiFridaKahlo,aprincípio
conhecidacomomulherdomuralistamexicanoDiogoRivera,
mas cujo talento se impôs, estando hoje em alta cotação no
mercado.TambémFernandoBotero,colombiano,morandoem
Madri,valorizandopelovigordotrabalhoevivêncianametró-
poleecertostraçosdoclassicismoeuropeu.
OequatorianoOswaldoGuaysamim,comtemasdelutas
sociais e retratos de Fidel e Alain Garcia, do Peru, obtém o
reconhecimentodaexpressãolatina.Noâmbitobrasileiro,Cân-
didoPortinaridetém,atéagora,amelhorcotaçãoeo“Abapuru”,
deTarsiladoAmaral,vendidoemleilão(aindabemqueficou
emterrassul-americanas!)énossoquadrodemaiselevadaci-
fra.
Em meados do anos 90, reaqueceu-se a discussão sobre
culturasetraçosnativoscomascomemoraçõesdoDescobri-
mentodaAmérica.DaíointeressemaiorpelaArteBrasileira,
comdestaqueemrevistasespecializadas.LygiaClark,Jacques
LeinereRosângelaRennótêmsuascriaçõesnasconsagradas
DISCRIMINAÇÃO DA ARTE
LATINO-AMERICANA
Adílson Figueiredo
69. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
74
Art in America, Art Nexus e Gallery Guide.
Em1995,numeventoinéditoemNovaIorque,11galerias
expuseram,simultaneamente,16artistasbrasileiroscontempo-
râneos.Hápouco,tambémocorreua6ªBienaldeHavana,uma
dasprincipaismostraslatino-americanas,dequenossapátria
participoucom21nomesselecionados.
Esta concorrida Bienal teve como pauta redimensionar a
memóriadasAméricas,enfatizandoareflexãosobreaperdade
referênciasautóctonesnestasociedadeglobalfinissecular,subli-
nhandotambémocotidianodohomememmeioàsmúltiplas
tendênciasartísticasdocontinenteemmutação.
Adílson Figueiredo – Artista plástico e Arte-educador
71. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
76
DoutrinadeSegurançaNacional,ondenemsempreoCongresso
funcionava.
Essesregimesfacilitaramaentradadocapital,sobretudonor-
te-americano,sejaatravésdevultososempréstimos,damultipli-
cação de joint-ventures e de facilidades para a instalação de
multinacionais,tendocomoconseqüênciaaeliminaçãodedireitos
econômicosepolíticosdostrabalhadores.
Com o fim da Guerra Fria e o esgotamento do Estado de
Segurança Nacional, a América Latina caiu nas malhas do
neoliberalismo. Este, na verdade, deveria chamar-se
Paleoliberalismo,porqueseusprincípiosdoutrináriosrevitalizamo
corpoteóricodovelholiberalismodaEscoladeManchester,re-
vestindodenovasroupagensocorpodoutrináriodoatualespec-
trodoimperialismo.Palavrasmágicasdãomaioratrativoàatual
aliançaentreaburguesialatino-americanaeocapitalnorte-ameri-
cano:globalização,modernização,minimizaçãodacompetitividade,
terceirização...
CúmplicesdeWashington,essesgovernantesempenham-se
emprivatizaraeconomiaediminuirosgastosnaáreasocial.As-
sim,aindaqueainflaçãocaísse,adesnacionalizaçãodaeconomia,
aconcentraçãodariquezaeoagravamentodamisériaconstituem
facesdistintasdeumamesmamoeda.
“Dequemdependeacontinuaçãodessedomíniosenãode
nós?/Dequemdependeasuadestruição?Igualmentedenós./
Oscaídosqueselevantem!/Osqueestãoperdidosquelutem!/
Como pode calar-se quem reconhece a situação? (Elogio da
Dialética,poemadeBertoltBrecht).
RubimSantosLeãodeAquino–Autordediversoslivros,dentreosmais
conhecidos: História das sociedades – Das sociedades modernas às
sociedades atuais; História das sociedades americanas e Do homem
dasrevoluçõesàNovaordemmundial. ÉtambémprofessordoLiceu
Franco-brasileiro.
72. PODER E POLÍTICA
77
AArgentinasepreparaparaumaviradaemsuapolíticain-
terna. Depois de dois mandatos, o Partido Justicialista e o
menemismocorremorisodeperderemaeleiçãopresidenciala
serrealizadaemmaiode1999.Quaisascausasdestedesgaste?
Quaisasperspectivaspolíticascomavitóriadaoposição?
ApolíticaeconômicaempreendidaporMenemfoicentrada
emtornodospreceitosdefendidospeloFMIequeseconfigu-
raramnumconjuntodepráticasdenominadasneoliberaispauta-
dasnocontrolemonetárioe,conseqüentemente,noaumentodo
desemprego.Comesteprograma,ainflaçãofoidebelada,mas
opreçopagofoielevado.
Paraosquemantiveramseusempregos,asituaçãotambém
foicrítica.Osindicalismo,atreladoaojusticialismo,rachouem
duas facções: pró-governo e outra que defendia a adoção de
medidasdecarátersocial.
Menemconseguiuduasimportantesvitórias:umafrutode
negociaçõescomseuprincipalopositor,aUnionCívicaRadical
(UCR),quelherendeuaaprovaçãodereformasconstitucio-
nais,permitindoareeleiçãopresidencial,eaoutraem1995,ao
serreeleito,usandoumaretóricaquecombinavamanutenção
docontroledainflaçãocompromessasdecombaterarecessão
naeconomia.
Noentanto,comumaeconomiacadavezmaisdependente
doinvestimentodoscapitaisinternacionais,tornou-seimpossí-
velparaMenemromperoscompromissoscomosorganismos
financeirosinternacionais.Logo,nãoimplantouumapolíticade
investimentospúblicosparagerarempregoserecomporosetor
produtivonacional.Aomesmotempo,surgiramgravesdenúnci-
A ARGENTINA: UMA
POSSÍVEL MUDANÇA POLÍTICA
Fernando Antônio da Costa Vieira
73. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
78
asdecorrupçãoeesquemasdefavorecimentoquepartiramda
imprensaedopróprioministroCavallo.Istogerousuademis-
são,oqueabalouomenemismoeincentivouoaparecimentode
umanovaforçapolítica:aFrentePaísSolidário(Frepaso),que
aliadaàUCRsaíramvitoriosasnaseleiçõesmunicipaisde1997.
Temerosodiantedaperspectivaqueseapresentadevitória
daaliançaFrepasoeUCR,Menemtentaumúltimogolpe:argu-
mentandoqueaemendaconstitucionalfoiaprovadadurantea
vigênciadeseuprimeiromandato,eledefendeuodireitodere-
eleiçãoque,segundoseusargumentos,sópassariaacontara
partirdosegundomandato.
Na prática, Menem depende do Judiciário. O Congresso
argentinojánãolheapóiaincondicionalmente.Eamédioprazo,
atendênciaéocrescimentodacandidaturadaaliançaFrepaso/
UCR.
FernandoAntôniodaCostaVieira–MestreemHistóriadoBrasilpela
UFRJeprofessordaFaculdadedeEducaçãodaUFF.
Nota:Estetextofoiescritoem maiode1998,estando,portanto,algunsde
seus dados já desatualizados.
75. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
80
PorrompercomaconcepçãotradicionaldeIgreja,dialo-
garcomomarxismo,denunciarasmazelassociaislatino-ameri-
canas,proporumanovaleituradaBíbliaepropagarumasalva-
çãohistórica,aTeologiadaLibertaçãosuscitouinúmerosdeba-
tes,alémdecríticasesançõesdacúriapapal.
Hoje, apesar de não provocar tanta polêmica como em
anosatrás,aTeologiadaLibertaçãocontinuaainfluenciaraprá-
ticapastoral;otrabalhocomascomunidades;areflexãoteoló-
gica e a exegese bíblica. E não só no seio da Igreja Católica
Romana,mastambémemoutrasIgrejascristãs,emespeciala
Luterana.
AndréiaCristinaLopesFrazãodaSilva–ProfessoradeHistóriado
DepartamentodeHistóriadaUFRJedoutoraemHistóriaAntigae
Medieval.
76. PODER E POLÍTICA
81
Para a Comissão da União Européia, inúmeros fatores são
favoráveisàreaproximaçãodaEuropacomaAméricaLatina.
Primeiro,fatoreshistóricoseculturais.Defato,aconstruçãodo
EstadodeDireito,osprincípioslegais,asidéiasdeliberdadeede
democraciafazempartedeumconjuntodeconceitosfilosóficose
jurídicosadvindosdopatrimônioeuropeu.
Emseguida,acrescenteeconomia,jáesboçadanaAmérica
Latina,permitetransformá-lanumpólodinâmico,comnovasopor-
tunidadesparaocomércioeinvestimentos.Alémdisso,oreavivar
daintegraçãolatino-americanacontribuiparaodinamismodas
trocas,aexpansãodacompetitividadeeodesenvolvimentode
outraspossibilidadesparaestespaísesnoplanointernacional.Eis,
portanto,promissoresíndicesquenecessitamprosseguirempolí-
ticasdeausteridade,àmaneiradasinstituiçõesdeBrettonWoods.
Todavia,aComissãodirigeaoConselhoeaoParlamento
europeus advertências a serem observadas. Em verdade, ela
afirma–estaondadecrescimentocomportatambémzonasde
sombra,inegavelmenteúteisacadapaís.Amodernizaçãodo
processodeproduçãoeosníveiseconômicossãoaindainsufi-
cientes.Estruturas“duais”perduram:aAméricaLatinasofregri-
tantesdesigualdadessociaiseimportanteszonasdeexclusão.
Apesardaexpansãoeconômica,odesempregoabrangegrande
parte da população e o setor informal não cessa de crescer. A
AméricaLatinadeverásuperartrêsdesafios:consolidaroEstado
deDireito,enfrentaraquestãodapobrezaeodesequilíbriosocial
eampliaroníveldecompetitividade.
A ALIANÇA DA EUROPA
COM A AMÉRICA LATINA
Marcelo Ossandon
77. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
82
Re-conquistarademocracia
Apósosufocantedomíniodasforçasarmadaslatino-america-
nas,osanos80foramosda“transição”dosregimesautoritários
parasistemasmaisdemocráticos.Paraaeconomia,tornou-se“um
decênio perdido”, enquanto o setor político assistia ao
restabelecimentoinstitucionaldademocracia.Nosanos90,con-
solidou-seademocraciacomeleiçõeslivres,comarestauração
dasliberdadespúblicasecomopluralismopolítico,constituindo
autênticosavanços,oqueilustraosesforçosdosdirigentespara
restauraraidéiadoEstado.
Taisprocessosdetransiçãoapresentaramformasdiversas,
porém,quasesempre,chegaramaumademocracia,nãoraro,
frágil.Assassinatosdemeninosderuaoudemarginaispelos
esquadrões da morte não permitem que se fale em Estado de
Direito.Multiplicaram-severdadeirosexércitosparticularesdo-
minadospelosnarcotraficantes,concorrendocomaviolência
doEstado.
Estesexemplosdemonstramqueaconsolidaçãodemocrática
estámuitolongedeconquistar-se.Apósorecuoearelativadimi-
nuiçãodopodermilitar,asexperiênciaspós-autoritáriaspermane-
cemmarcadaspeloselodaimpunidade,beneficiandoreconheci-
dos autores de violações do direitos humanos. Por trás dos
“revisionismos”latino-americanosenopretensodesejoderecon-
ciliaçãonacional,cresceadeterminaçãodasForçasArmadasde
nãopermitirqueosresponsáveissejamlevadosàJustiça.
Criseeconômica,falênciadasditaduras
AAméricaLatinasaiudasditaduraspelaincapacidadedes-
tasdeenfrentaremoendividamento.Oprocessodedemocrati-
zação, iniciado antes da queda do Muro de Berlim, fez-se ao
preçodeumaabertura–noconjunto,muitorápida–deecono-
miasantesfortementeprotegidas.Istosignificaoabandonoge-
neralizadodoEstadoprovidênciaeaadoçãodemedidasque
visaramàdrásticareduçãodosdéficitsorçamentárioseàdimi-
nuiçãodosinstrumentossociaisreguladores.Oresultadosfoia
perdadepartesignificativadopoderdeintervençãodosEsta-
dosnascondiçõesdevidadasociedadecivil.Aspolíticaspre-
conizadaspeloFMIdeixarammarcas.
79. EDIÇÕES ANTERIORES - VOL. II
84
cenaprincipal,mascontinuamamanobraraeconomia.AUnião
Européia,pondonocentrodacooperaçãoacláusulademocráti-
ca,contribuiparaancoraraidéiadeque,alémdosimplesdesen-
volvimentoeconômico,orespeitoaosdireitosdohomem,acon-
solidação do Estado de Direito e a manutenção da paz são, de
agoraemdiante,incontornáveis.
Istoconstituielementorelativamentenovoeimportantenas
relaçõesdaUniãoEuropéiacomospaísesdoTerceiroMundo,
selevarmosemcontaque,noTratadodeRoma(1957),nenhuma
referênciaarespeitodosDireitosdoHomemfoimencionadaso-
bretaisligações.NaEuropa,apassagemdacidadaniapolíticaà
cidadaniasocialefetuou-segradualmente:aaquisiçãodaprimeira
permitiuqueosassalariadosestabelecessemumarelaçãofavorá-
velcomasegunda.
Porsuavez,naAméricaLatinaademocraciaformalinstau-
rou-sesemcidadãos,oquealimentouafraudeeleitoral,acompra
devotoseocorporativismoestatal.Nela,osdireitosdoscida-
dãosformalmenteexistem,massópartedapopulaçãodesfruta
deles.Asdesigualdadespermanecemonipresentes.Etalquestão
valeparaoprocessodeintegraçãolatino-americana,cujoêxito
passapeloacessoaomercadodeamplossegmentossociaisaté
agoramarginalizados.
Convémenfatizarque,naEuropa,igualmenteafraturasocial
seaprofundoucomamarginalização.Certaconvergênciadospro-
blemaseuropeuselatino-americanosé,muitasvezes,sublinhada
pelomundoassociativo.Porém,naEuropa,“lamarchemulticolore”,
Clabecq,Renault-Vilvordeealutapeloempregonoslembram
queoscidadãosexigemqueohomemsetorneocentrodaeco-
nomia.Averdadeiracooperaçãoétecidapelasrelaçõeshumanas
e fundada sobre a elevada noção do homem como centro da
novaparceria,propostapelaComissãoàAméricaLatina.
MarceloOssandon–Ex-ministrodaEconomiadoGovernoAllende(Chi-
le)eatualpesquisadordoCentrodeEstudosdasRelaçõesentreaComu-
nidadeEuropéiaeaAméricaLatina(Cercal).ProfessordaUniversidade
LivredeBruxelas.Traduçãode DalmaNascimento.
80. PODER E POLÍTICA
85
Fazalgunsanosliopoema“Adormidera”,donicaragüense
PabloAntonioCuadra.Talleituraalavancouumpasseiocurio-
so/sentimentalpeloricouniversodascantigasdeninar,poisfez
assomar, num ir e vir de cadeira de balanço, o eco de muitas
cançõesbemguardadasnofundodamemória.
Emsuaaparenteingenuidade,acantigadeninardesdobraao
ouvido atento e curioso do observador da alma popular um
multifacetadotecidoemcujatramaseenredaboapartedatra-
diçãooral,enquantopõeàmostra,numretratosutileencantatório,
elementossócio-econômicos(talvezhistóricos)daAméricaLa-
tina.Deixar-noslevarpelojogofônicoqueseestabelece,levan-
taraquiealientecidassugestões,entreter-senamagiaameaça-
doradosseresfantásticosdoimagináriopopularéumaformade
participardeumexercíciodinâmicoefascinante.Ascantigasde
ninarestãoaí,ricas,palpitantesdevidaedelembranças,memó-
riavivaaconvidarparaumaleituraaproximadoradaalmapo-
pulardenossaAmérica,desuatradição,desuavariadaexpres-
são.
Nofundodamemóriademuitosdenósecoaavozmaterna
e/ououtrasvozesigualmenteacalentadoraspelasquaistransita-
vamseresfantásticos,criadospeloimagináriopopular,alguns
chegadosaoBrasilatravésdacolonizaçãoportuguesa,aquien-
riquecidos,modificadospelamisturadeelementosdacultura
africanaedaculturaindígena.Dessas vozessaltamseresmito-
lógicos,criaturasdeproporçõesfantásticaseterríveiscomafun-
çãoirracionale/ouafetivadeadormecerumacriançaquerida
cujosolhosmeninossãoforçadosasefecharemdiantedafigura
terrível,fantástica,queaimaginaçãofaztãograndequantoo
CANTIGAS DE NINAR: TRAÇOS
DE UMA IDENTIDADE CULTURAL
Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento