1. Anais do IX Encontro Nacional de História Oral - 22 a 25/04/2008 - UNISINOS
FRONTEIRAS TÊNUES: MEMÓRIAS E ETNICIDADES EM UMA CIDADE
COSMOPOLITA
Diego Finder Machado *
Resumo: Na contemporaneidade, em um mundo marcado pelo incessante processo de
compressão das noções de tempo e espaço, vivencia-se a intensificação de trocas,
deslocamentos, intercruzamentos e hibridizações culturais. Embora tal contexto tenha
propiciado criativas experiências cosmopolitas, nas últimas décadas pôde-se perceber o
acirramento de confrontos entre a construção de uma suposta “cultura global” e a afirmação
de especificidades regionais. Inseridas nesta conjuntura, as cidades contemporâneas são palco
de tensões e conflitos pela afirmação das diferenças culturais. Neste sentido, este artigo tem
por objetivo problematizar a construção recente de etnicidades na cidade de Joinville (SC) a
partir da análise de narrativas orais de pessoas que se auto-atribuem o dever de preservar as
tradições étnicas desta cidade.
Palavras-chave: cidades contemporâneas; fronteiras culturais; etnicidades.
Abstract: In the contemporary time, in a world marked by the incessant process of
compression of the notions of time and space, it is lived the intensification of changes,
displacements, intercrossing and cultural hybridization. Although such context has propitiated
creative cosmopolitan experiences, in the last decades it could be noticed the incitement of
confrontations between the construction of a supposed quot;global culturequot; and the statement of
regional specificities. Inserted in this conjuncture, the contemporary cities are stage of
tensions and conflicts for the statement of the cultural differences. In this sense, this article
has for objective to problematize the recent construction of ethnicities in the city of Joinville
(SC) starting from the analysis of orals narratives of people that they are solemnity-attributed
the duty of preserving the ethnic traditions of this city.
Key-words: contemporary cities; cultural boundary; ethnicities.
Transpondo os limiares de um novo século, vivenciamos na contemporaneidade as
angústias e ansiedades de um mundo marcado por um incessante encurtamento de distâncias e
um tempo cada vez mais acelerado. Noções, antes confortavelmente estáveis, como tempo e
espaço, são virtualmente comprimidas pelas novíssimas tecnologias de informação e
comunicação com as quais passamos a conviver. E como seria de esperar, esta nova
conjuntura global tem afetado profundamente nossas vivências, até as mais banais de nossas
práticas cotidianas.
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado em História do Tempo Presente – da
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, sob orientação do Prof. Dr. Emerson César de Campos.
Bolsista PROMOP/UDESC.
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Trocas, deslocamentos, intercruzamentos e hibridizações entre diferentes culturas,
aproximadas por esta Pangéia virtual, tem se tornado cada vez mais freqüentes e intensos.
Porém, mesmo diante de criativas experiências cosmopolitas, as últimas décadas foram
marcadas pelo acirramento de confrontos, muitas vezes tensos e conflituosos, entre a
construção de uma utópica “cultura global” e a afirmação de especificidades regionais.
Inseridas neste turbilhão, as cidades contemporâneas têm sido o palco central em que as
negociações pela afirmação das diferenças culturais se manifestam de forma mais intensa.
Embora pesem os desejos de uma vida sem limites fronteiriços, novas fronteiras
culturais são delineadas na contemporaneidade, cindindo as cidades em múltiplos territórios
distintos. Mais do que em qualquer outra época, o tempo presente é saturado por
manifestações apaixonadas em busca da demarcação de singularidades culturais. Desta
maneira, como nos lembra o antropólogo indiano Arjun Appadurai (1999), apesar do mito de
uma suposta tendência irreversível à homogeneização das práticas culturais ao redor do globo,
os processos de globalização são atravessados por inúmeras disjunções e diferenças que
tornam o mundo contemporâneo muito mais complexo e multifacetado do que tais utopias
deixariam transparecer.
Entre as diversas fronteiras que se exibem nas cidades contemporâneas, sobrepostas
aos limites geográficos demarcados pelos traçados cartográficos, as fronteiras étnicas ocupam
um lugar de destaque. Isso porque, distintamente de outras maneiras de demarcar as
delimitações fronteiriças, as etnicidades são norteadas por uma busca insistente por
autenticidades alicerçadas em tempos imemoriais, em um passado que seria capaz de conferir
certa perenidade e estabilidade ao grupo. De acordo com os antropólogos franceses Philippe
Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (1998, p. 162):
As diferenças entre os grupos só servem para a diferenciação étnica quando
representam marcadores de uma filiação compartilhada ou, melhor dizendo, é a
crença na origem comum que substancializa e naturaliza os atributos, tais como a
cor, a língua, a religião, a ocupação territorial e fazem-nas percebidas como traços
essenciais e imutáveis de um grupo.
Por mais que seja reivindicado, pelos grupos étnicos, uma essência própria ao grupo,
autenticada pela autoridade do passado, é preciso considerar que os contrastes entre as
diferentes pertenças étnicas são historicamente constituídas a partir das interações sociais,
mutáveis conforme os interesses de cada época. Para o antropólogo norueguês Fredrik Barth
(1998), os grupos étnicos são socialmente constituídos pelas auto-atribuições dos próprios
grupos étnicos e pelas atribuições por outros, estranhos a esse grupo. Desta forma, a
existência de manifestações culturais comuns a um grupo não deve ser encarada como algo
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pré-existente a este, mas como implicação ou resultado do processo histórico de sua formação
em distinção a outros grupos que não compartilham de tais manifestações.
Mesmo que os grupos busquem incansavelmente ressaltar os limites destas fronteiras
simbólicas, no mundo contemporâneo elas se tornam cada vez mais porosas e permeáveis.
Como argumentou o antropólogo argentino Néstor García Canclini (2000), devemos levar em
conta o caráter híbrido das culturas, estando atento ao movimento constante de transposição
dos limites fronteiriços e de intercâmbios entre as diferentes etnicidades.
Esses fluxos por entre as porosidades das fronteiras culturais nos levam a repensar a
noção de identidade cultural que embasa nossas inferências sobre o mundo contemporâneo. O
antropólogo jamaicano Stuart Hall (1999), aponta a necessidade de se pensar não apenas em
identidade (no singular), mas em identidades. Mais que uma diferença gramatical, o intuito é
fugir a um essencialismo identitário, inclinando-nos a perceber que, apesar da defesa de
identidades étnicas simbolicamente estáveis, somos constituídos por uma miscelânea de
pertencimentos: culturais, intelectuais, profissionais, sexuais, geracionais e uma série de
muitas outras identificações que extravasam os limites rígidos das fronteiras étnicas.
Ao trilharmos por esta perspectiva mais “deslizante” de encarar as interações étnicas,
devemos ter o cuidado para não nos iludirmos com uma imaginada solidariedade cultural.
Afinal, inúmeras tensões e conflitos, travados em zonas fronteiriças, têm mobilizado
preconceitos, racismos, xenofobias, entre outras manifestações de intolerância para com as
diferenças. Embora seja pertinente estar atento aos fluxos transfronteiriços, não podemos
esquecer que manifestações em busca de uma impermeabilização das fronteiras culturais,
capaz de apartar diferentes grupos que compartilham de sonhos e aspirações semelhantes, não
deixaram de existir.
Perante esta euforia contemporânea, sublimada pelas expectativas nutridas por um
futuro incerto no milênio que se iniciava, a cidade de Joinville, Santa Catarina, vivenciou um
momento comemorativo de singular importância em sua história. No dia nove de março de
2001, os joinvilenses festejaram a passagem dos 150 anos após a chegada dos primeiros
imigrantes europeus que se deslocaram para estas terras dispostos a realizar seu desejo de
construir uma nova vida.
Diferente de outras datas festivas, as comemorações do sesquicentenário de Joinville
não se restringiram ao seu marco temporal, ou seja, ao nove de março de 2001. Um “clima”
comemorativo, incentivado pelas lideranças políticas locais, fez com que este evento
recebesse uma significação especial por parte da sociedade joinvilense. Para tanto, um
planejamento cauteloso, encabeçado pelo Instituto Joinville 150 Anos, se ocupou dos
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mínimos detalhes indispensáveis ao sucesso deste ritual de exortação ao passado. Inúmeras
ações foram postas em prática: tanto ações que antecederam o dia do aniversário de 150 anos
da cidade, preparando os cidadãos para esta comemoração tão aguardada, como ações que
transbordaram para os anos posteriores em que a chama da pira “Nave dos Pioneiros”, que
marcava a contagem regressiva do tempo rumo a esta data, já tinha se apagado.
Assim como nos pretéritos festejos do Centenário da colonização da cidade de
Joinville, cinqüenta anos antes, um fascínio pelo passado urbano também marcou este período
comemorativo. Porém, mais do que a reafirmação de uma germanidade ressentida, anseio dos
idealizadores das comemorações dos 100 anos de Joinville (Cf. GRUNER, 2003; e SILVA,
2004), a estendida comemoração do Sesquicentenário foi permeada por novas falas. Em outro
contexto, este período festivo marcou uma mudança significativa nos discursos sobre o
cotidiano urbano desta cidade. Isso porque, mais que uma pequena Alemanha localizada ao
sul do Brasil, é como uma cidade cosmopolita, entrelaçada por inúmeras fronteiras étnicas,
que Joinville passou a ser reconhecida por seus “porta-vozes autorizados” (BOURDIEU,
1996).
Prefaciando, em 2003, uma obra historiográfica pautada pelo desejo de conceder
visibilidade à importância dos suíços na história de Joinville, o então governador do estado de
Santa Catarina e ex-prefeito do município de Joinville, Luiz Henrique da Silveira, manifestou
esse novo olhar sobre o presente e, sobretudo, sobre o passado da cidade. Segundo ele:
Hoje, Joinville é uma cidade cosmopolita, enriquecida com as contribuições
culturais das gentes de todos os cantos do País e do mundo. [...] Todo e qualquer
esforço empreendido no sentido de resgatar e trazer à tona fragmentos encontrados
no profundo oceano da História é sempre bem-vindo, pois sempre há algo mais a ser
descoberto e revelado, criticado e analisado à luz de novas informações, novas
fontes, novas conexões e interpretações, revelando uma Joinville mais interessante,
mais matizada, mais multifacetada (SILVEIRA apud CUNHA: 2003, p. 9).
Passando a ser reconhecida como uma cidade cosmopolita, o passado de Joinville foi
recontado sob novos matizes, visando conceder legitimidade às novas etnicidades que
passaram a reivindicar seu direito ao reconhecimento, tanto de grupos formados por
descendentes dos chamados “pioneiros”, como dos novos atores sociais que, ao migrarem
recentemente, recriaram seus laços étnicos nesta urbe. Herdeiros de precursores vindos de
diversas partes do mundo (Suíça, Noruega, Itália, Portugal, Açores, África e, inclusive,
Japão), junto aos já reconhecidos como “de origem” na cidade (os descendentes de alemães),
aproveitaram o ensejo deste momento comemorativo para exibir suas insígnias próprias que
os tornariam singularmente diferentes em meio a um mundo tendente a tornar-se cada vez
mais homogêneo e indiferente ao passado.
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Entretanto, para além de uma exibição pública, este “desejo comemorativo” tem
atravessado os limiares da esfera privada, comovendo as experiências subjetivas cotidianas de
uma cidade contemporânea. Esses desejos de memória, muitas vezes transmutados em um
“dever” de memória, têm mobilizado manifestações apaixonadas de sujeitos que se auto-
atribuem a missão de preservar as supostas “autênticas” tradições étnicas desta cidade,
ameaçadas pelas novidades culturais oferecidas pelo mundo contemporâneo.
Neste sentido, este breve texto tem a pretensão de problematizar a construção de
etnicidades na história recente de Joinville, tendo como referência algumas narrativas orais
construídas, por meio da metodologia da História Oral, com pessoas que assumiram para si o
dever de manter visíveis as fronteiras étnicas desta cidade. Tal opção se deu pelo fato de que,
mais incisivamente que outros tipos de fontes sobre o cotidiano de uma cidade, as narrativas
orais deixam transparecer os anseios mais subjetivos que nos permitem tentar compreender os
motivos que os levam a defender esta causa.
Instigado por estas novas experiências urbanas que se exibem no tempo presente, me
embrenhei por entre zonas fronteiriças desta cidade, tentando compreender as motivações que
levam algumas pessoas a dedicarem-se apaixonadamente, de forma explícita, à defesa das
singularidades culturais do grupo étnico o qual partilham um sentimento de identificação.
Devido às limitações deste texto, centrarei minhas atenções sobre duas novas etnicidades da
cidade: os italianos e os suíços. Para tanto, a discussão referencia-se em alguns fragmentos
extraídos das narrativas de duas lideranças culturais de ambos os grupos: o cônsul honorário
da Itália, Moacir Bogo, e o cônsul honorário da Suíça, Alberto Holderegger.
Levando em consideração a completa predominância de populações européias de
origem germânicas no processo de colonização de Joinville (suíços, noruegueses e alemães),
algum visitante, alheio as transformações contemporâneas experimentadas nesta cidade,
poderia estranhar a presença de tantas manifestações de italianidade ali expostas. Espaços de
lazer, como a Piazza Itália; festividades, como a Vin Veneto; associações culturais pautadas
pela defesa da etnicidade italiana, como o Circolo Italiano di Joinville; e um centro
especializado no aprendizado do idioma italiano, como o Centro de Cultura Italiana;
poderiam, em uma leitura superficial, parecer incoerentes com história desta cidade. Porém,
saindo da superficialidade, é preciso entender as motivações que levam a uma exibição tão
intensa destas insígnias próprias a uma tradição cultural descolada da trajetória de imigração e
colonização no século XIX.
Um dos principais incentivadores das manifestações de italianidade em Joinville é o
empresário, do ramo de transporte coletivo e gastronomia, Moacir Bogo. Nascido no pequeno
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município catarinense de Rio do Oeste, depois de uma passagem por Blumenau e Brasília,
Bogo mudou-se para Joinville em 1978, disposto a realizar o sonho de progredir
economicamente.
Conforme ele explicitou em sua narrativa, a vivência do cotidiano urbano em uma
grande cidade, marcado por uma maior impessoalidade nas relações sociais, fez com que
sentisse um sentimento nostálgico em relação à vida rural do lugar de onde partiu. Isso lhe
impulsionou a se deslocar constantemente, uma ou duas vezes ao ano, para sua terra natal. Em
suas palavras, “eu ia muita pra lá. Ia toda vez que tinha oportunidade [...]. E fiquei fazendo
isso durante vinte anos, ou mais. [...] E nessas andanças, ali eu comecei a criar gosto por
aquilo tudo de antigamente”. A própria fala do dialeto italiano, comum no dia-a-dia de sua
família em Rio do Oeste, antes por ele desprezado, já que estava intimamente vinculada a
experiência como colono, passou a servir como uma referência identitária importante em sua
nova vida urbana.
Depois de alguns anos, quando já estava estabelecido na cidade de Joinville, Moacir
Bogo começou a se desvincular um pouco de sua terra natal e procurou se relocalizar em sua
nova residência. Neste sentido, ele começou a estabelecer redes de relações sociais com
pessoas provenientes da mesma região que ele e de outras regiões também caracterizadas por
uma herança cultural italiana. Como diz, “eu ia muito onde tinha italiano, a gente ia e fazia
festa. [...] Aí eu conheci um monte destas pessoas, fiz amizade”.
Segundo ele, quando veio para Joinville, os italianos, considerados por ele como
“italianos de segunda mão”, por serem migrantes de outras cidades do estado, “estavam muito
enrustidos, porque eles vieram para cá num período em que não havia nada de italianidade
nesta cidade [...]. E eles foram, ou absorvidos pela cultura alemã que era muito exuberante,
muito forte, ou ficaram, como eu disse, enrustidos”. Diante desta situação, Moacir Bogo se
interessou pelo desafio de mobilizar estas pessoas em prol de uma vivência da italianidade
nesta cidade.
Suas primeiras ações, com o apoio de amigos, foram reunir as famílias de origem
italiana em um jogo chamado Mora, depois em jantares de confraternização (gratuitos) que
acabaram resultando na organização da Associazioni Veneta, cujo objetivo seria aproximar
estes italianos de Joinville. Porém, como destacou Bogo, este nome dado à associação gerou
certa polêmica entre os adeptos da italianidade. “Mas por que Associação Veneta? Tinha
italianos de outras regiões. [...] Nós não somos vênetos, somos piemonteses, lombardos,
sicilianos”. Diante desta diversidade cultural evidenciada pelos diferentes lugares de origens
destes descendentes de imigrantes, seria preciso encontrar alguma forma de conciliação. O
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pertencimento nacional, posterior aos tempos da imigração para Santa Catarina, foi a solução
encontrada: a Associazioni Veneta foi desativada, dando lugar ao Circolo Italiano di Joinville.
Como mencionado anteriormente, a busca por um passado comum é o elemento
essencial na constituição de fronteiras étnicas. Neste caso, o elemento aglutinador foi a
proximidade idiomática dos povoados de origem, proximidade esta que serviu de elemento
para a unificação nacional. Uma suposta origem comum confere a estas pessoas uma
especificidade que os diferencia dos demais moradores de Joinville. Como mencionou: “Eu
sou mais que um brasileiro. Sou brasileiro, tenho orgulho de ser, mas eu tenho um pouco a
mais, eu tenho a genética italiana. Então, eu sei da a Itália, eu sou linkado na Itália. [...] Acho
que isso é um trunfo [...] Sabe, é uma polivalência”.
Mas cabe perguntar-se: Por que este investimento, tanto afetivo como material, na
celebração da etnicidade? Quais as motivações que levam as pessoas a dedicarem-se a esta
causa? Para Moacir Bogo esta resposta é simples. Muito mais do que uma aposta em possíveis
lucros advindos de uma exploração turística das singularidades étnicas, é nos sentimentos
mais profundos que se ancoram esta adesão à reivindicação de uma distintividade étnica.
Como ele lembra: “Esta história dos sentimentos aflora. [...] Vi acontecer centenas de vezes,
as pessoas, aparentemente indiferentes, quando eles escutam música italiana folclórica, os
caras se desmancham de chorar”. Afinal, como conclui em outra parte de sua narrativa:
“Parece que as pessoas precisam de alguma coisa, além do trivial, do corriqueiro. Talvez
porque a religião está um pouco em decadência e não tem mais aquele apelo forte. Parece que
as pessoas precisam ter alguma coisa outra”.
Já a luta de Alberto Holderegger é outra. Sua intenção com a criação, em 1997, do
Instituto Pró-Memória Suíça pautou-se pela reivindicação em prol do reconhecimento da
participação suíça no processo de colonização da cidade de Joinville. Diante de uma produção
historiográfica que dissimulava a presença suíça em Joinville pela exaltação do pioneirismo
centrado na etnicidade alemã, fazia-se necessário reescrever o passado sob novas
perspectivas. Como ele mesmo nos disse, “os suíços foram muito rechaçados aqui.
Lamentavelmente. Por que os suíços e alemães vieram, e depois os alemães tinham mais
dinheiro. Os suíços eram pobres, os suíços que vieram eram bem pobres”.
Nascido em Brusque, Holderegger veio para Joinville aos cinco anos de idade. Seu
pai, um suíço legítimo, foi um dos fundadores da indústria de refrigeração Cônsul, que foi,
logo no início de suas atividades, transferida para Joinville. Nutrido, inicialmente, pelo direito
ao reconhecimento da participação de seu pai na construção desta importante empresa da
cidade, iniciou um trabalho para identificar quem eram os suíços de Joinville. Neste
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entremeio, surgiu o Instituto Pró-Memória Suíça, que, segundo ele, “está aí para nós termos
[...] uma lâmpada, pra dizer: Olha! Existe algo, existe o Instituto [...], para nós podermos
angariar alguma coisa, para nós podermos buscar alguma coisa em nome do Instituto”.
Este desejo de reconhecimento no presente motivou inúmeras iniciativas na cidade,
como a Festa do Dia Nacional da Suíça realizada anualmente no dia 1º de agosto, um curso de
panificação suíça, a edificação de uma praça monumental em homenagem as famílias suíças
de Joinville, e, sobretudo a reescrita da história da cidade de forma a dar visibilidade à
importância desta etnia em sua construção. Tal iniciativa partiu de uma indignação: muitos
descendentes de suíços se consideravam descendentes de alemães. Portanto, para a própria
existência no grupo no presente, seria necessário demarcar as fronteiras do passado. Por este
motivo, o historiador Dilney Cunha (2003), financiado pela municipalidade e pelo próprio
Instituto, escreveu o livro O Suíços em Joinville: o duplo desterro. A partir desta obra,
baseada em documentação, em grande parte, pesquisada em arquivos da Suíça, consegui-se
delimitar quem eram, de fato, os legítimos descendente de suíços.
O mais intrigante nesta recente trajetória de afirmação da etnicidade suíça em Joinville
é a prevalência das fronteiras nacionais sobre todas outras fronteiras que pudessem existir
entre alemães e suíços. A grande maioria dos migrantes suíços que vieram para Joinville é
proveniente do cantão de Schaffausen, no extremo norte da Suíça, na fronteira com o
território nacional da atual Alemanha, um limite extremamente poroso, já que em ambos os
lugares se fala o idioma alemão. Diante disto, é preciso que remetamo-nos aos anseios e
disputas do presente para podermos entender a constituição desta etnicidade na cidade. São as
tensões e conflitos vivenciados no mundo contemporâneo, marcado pelos processos
globalizadores, que mobilizam este desejo por um novo passado, um passado capaz de
legitimar as diferenças do presente.
Como o cotidiano vivenciado contemporaneamente na cidade de Joinville deixa
transparecer, os receios de um mundo culturalmente unificado e homogêneo são
completamente despropositados. Afinal, bem ao contrário do que se poderia imaginar a
algumas décadas atrás, os fluxos globais de pessoas, bens, capitas, imagens e informações
propiciaram, de forma reativa, uma intensificação das manifestações das diferenças. Neste
sentido, a etnicidade emerge como uma possibilidade de encontrarmos um elo com o passado,
uma tentativa, às vezes desesperada, de achar algumas singularidades culturais em um mundo
tendente a tornar-se demasiadamente homogêneo. Para Moacir Bogo,
a globalização tende a nivelar todo mundo, japoneses, negros, amarelos e brancos no
mesmo saco. A diferença vai ser este patrimônio cultural. [...] Por que o quê que vai
ser daqui a pouco, o que me adianta ir a uma parte, ir a outra, são todas praticamente
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iguais, vai ter Mcdonalds, vai ter não sei o que. [...] Então qual é o diferencial? Vai
ser as etnias, a cultura exótica e específica.
Contudo, apesar destas manifestações apaixonadas pela demarcação das
singularidades culturais, como o trabalho incansável das lideranças étnicas de Joinville
discutido neste texto, há de se considerar que, no mundo contemporâneo, os limites
fronteiriços são cada vez mais tênues e permeáveis. Afinal, ao mesmo tempo em que as
diferenças são afirmadas, inúmeras aproximações e semelhanças ultrapassam os limites que se
impõem nas cidades contemporâneas.
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