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ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
agosto 2007 | n.1 | www.oficinainforma.com.br
OCOLOSSAL
BRASIL
Os poderes sociais da
agroenergia: com seus
biocombustíveis e
associado aos EUA,
o país contribuirá
para construir um
mundo melhor?
3
ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
O COLOSSAL
BRASIL
Associado aos Estados Unidos e apoiado em suas
vantagens naturais na produção de biocombustíveis,
o País ajudará a construir um mundo novo?
3
Nas páginas seguintes
Do Sol aos raios fúlgidos,
num céu de puro anil (...)
Aqui se ostenta, intrépido,
o colossal Brasil
(do libreto de Antônio Scalvini, para
O Guarani, ópera de Carlos Gomes)
A
lGore,oex-vice-presidenteamericano,
no seu documentário sobre o aquecimento
global, que ameaçaria o futuro da humanida-
de,dizquetudodecorredeosgasesde“efei-
toestufa”reteremnaatmosferaterrestrepar-
tedaenergiasolar.Parareforçaroargumento,
uma animação mostra um desses gases mal-
vados espancando até a morte um raiozinho
deluzquequerretornarparaoespaço.Éuma
produçãodeHollywoodtípica:Goreéobem;
o presidente Bush é o mal; e pode haver um
final feliz, desde que todos se esforcem para
fazer a coisa certa. Seria possível acrescentar:
no caso do Brasil, o País deveria aproveitar o
fatodetersidoprivilegiadocomumaimensa
áreasobosoldostrópicosparafazercadavez
mais álcool de cana e diesel de vegetais e, as-
sim, substituir, em condições econômicas
praticamente imbatíveis, os combustíveis
poluidores.
Retrato do Brasil-CartaCapital, na série que
começaagora,dedicaseustrêstemasiniciaisa
essa discussão. O último dos três suplemen-
tostratarádaposiçãodoPaísquantoao“aque-
cimentoglobal”.Osegundo,das“velhasener-
gias”: petróleo, gás, carvão, hidreletricidade,
nuclear. Este primeiro trata das “novas ener-
gias”, onde estão os biocombustíveis. Co-
meçamoscomumaintroduçãoconceitual.O
mestre escolhido para essa explicação é uma
espéciedeanti-AlGore.
Uma tese, na periferia
É uma tarde fria de um sábado chuvoso
de junho, na Água Funda, bairro da periferia
pobre paulistana. Numa tenda armada em
um bosque, diante de um público de 50 pes-
soas, está o professor Ildo Sauer. Ele foi um
dos intelectuais do Instituto Cidadania que
assessoraram o presidente Lula em todas as
suascampanhaspelaPresidência.Atualmen-
te,édiretordaPetrobras.Esuapalestraéum
esforço para popularizar a tese com a qual se
tornou, há pouco, professor titular do Insti-
tuto de Eletrotécnica e Energia da Universi-
dade de São Paulo. Para o que interessa no
momento ela pode ser resumida assim:
Não se pode entender o modelo de
aproveitamento energético de um país a não
A petroleira e os camponeses A união da
multinacional verde-e-amarela com os pequenos
proprietários de terra vai devagar e pode não ir
longe p.5
A bolsa mamona A empresa faz biodiesel de soja;
mas tem fama porque promete fazer o óleo com
plantadores de mamona pobres do Semi-Árido p.8
A lógica do negócio As usinas são cada vez maiores
e sua propriedade e benefícios cada vez mais
concentrados p.9
Tecnologia e oportunidade O carro flex fuel foi
inventado aqui e paga royalties. Mas a indústria que
faz as indústrias do álcool, por incrível que pareça, é
nacional p.14
Antonio e seus irmãos Há um inquérito, de tipo
sociológico, para saber se ele, e outros como ele,
era livre apenas para morrer de trabalhar p.16
É com esse que eu vou A parceria proposta por
Bush é objetiva, defende interesses claros. Mas há
outras p.19
Expediente
Redação
Mino Carta e Sergio Lirio [ supervisão editorial ] •
Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenador ] •
Armando Sartori [ editor ] • Lia Imanishi Rodrigues,
Rafael Hernandez, Sônia Mesquita e Tânia Caliari [
redação ] • Ana Castro e Pedro Ivo Sartori [ edição
de arte ] • Áli Onaissi, Genulino Santos, Hassan
Ayoub, Marilda Rodella, Rita Leite [ revisão ]
Vendas
Paulo Barbosa [ representante em São Paulo ]
Joaquim Barroncas [ representante em Brasília ]
Administração
Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho
Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da
Editora Manifesto S.A. e distribuída com CartaCapital
Editora Manifesto S.A.
Roberto Davis [presidente]
Escritório de administração
Rua do Ouro, 1.725 - conj. 2 • Belo Horizonte MG •
Cep 30210 000 • Telfax 31 32814431 •
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Ricardo
Stuckert
/
Presidência
IMAGEM DA CAPA: Cortador de cana em Assis, SP
(jul 2007)/ Julia Moraes
4 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
balho livre”, assalariado, consolidava-se so-
bre esse novo modelo de tecnologia.
Está surgindo um novo modelo de
aproveitamento energético para substituir o
queseapóianotrabalhoassalariadoenapro-
dução de máquinas movidas a combustíveis
fósseis, pergunta Sauer? Para responder é es-
sencialentenderocontextosocialemqueele
pode se desenvolver, diz. “Por exemplo: a
conclusão de que o Brasil deve aprofundar o
seu desenvolvimento agrícola para explorar
mais suas vantagens naturais, vista de modo
absoluto não passa de uma reedição de idéias
de David Ricardo, que já eram atrasadas em
meados do século XIX.”
Um lugar ao sol é pouco
Ricardo (1772-1823), um dos três fun-
dadores da chamada economia clássica, jun-
to com Adam Smith (1723-1790) e Karl
Marx (1818-1883), teria provado que o me-
lhor para duas nações era se especializarem
em produzir bens nos quais tinham “vanta-
gens naturais” de produção. “Mas, como
todos sabem, Portugal não foi para a frente
negociando seus vinhos artesanais contra os
produtosdastecelagensindustriaisinglesas”,
diz ele. “Nem o Brasil ganhou uma diantei-
ra em relação aos Estados Unidos em fun-
ção da posição privilegiada do nosso País
em relação à energia solar que chega à Terra.
O Brasil encheu a Zona da Mata do Nordes-
te de canaviais. Mas quem se adiantou foram
os EUA, que construíram uma indústria
naval no Nordeste do País e em pouco tem-
po tornaram-se os principais fornecedores
da famosa armada inglesa. Com a pesca de
baleia e o uso de seu óleo na iluminação se
lançaram na disputa pela nascente indústria
da infra-estrutura urbana.”
Sauer mostra um gráfico com a energia
vinda do Sol, que é a fonte de 99,98% da
energia do planeta. “A parte convertida pela
fotossíntese é mínima: apenas 0,023%. A
maiorparte–47%–éconvertidaemcalor,no
aquecimentodossolos,daságuas,deprédios.
Naçõespobres,mesmosemasnossasvanta-
gensemrelaçãoaoSol,aproveitammaisessa
energia:aChina,porexemplo,aquece80%de
sua água dessa forma e tem uma das maiores
empresas do mundo na produção de células
fotovoltaicas, que transformam energia solar
diretamenteemeletricidade.”
ser socialmente. A Terra e a atmosfera em
que vivemos são resultado de uma evolu-
ção de mais de 10 bilhões de anos. Mas a
compreensão desse processo é recente: sur-
ge, é óbvio, a partir de nossa espécie, que
tem menos de 200 mil anos. E essa com-
preensão não é divinatória, não caiu na ca-
beça dos homens pronta e acabada: decorre
da evolução das sociedades humanas. Os
princípios da máquina a vapor, diz Sauer, já
eram conhecidos desde Heron de Alexan-
dria. Heron exibia um conjunto metálico
formado por uma bacia de água aquecida,
cujo vapor subia até uma esfera, que girava
movida por jatos que escapavam dela em
direções diametralmente opostas.
Heron pode ser visto como um repre-
sentantedasprimeirasdemocracias,cidades-
Estado da Grécia Antiga alimentadas por
uma agricultura ainda primitiva, com uma
elite de homens livres sustentada pelo traba-
lho de uma multidão de escravos. Sua má-
quinaserviacomoanimaçãoteatral.Necessi-
dades sociais novas, na Europa de cerca de
um milênio e meio depois, quando já se
dissolviam as sociedades feudais posterio-
res ao escravismo, deram ao uso do vapor
como energia novo sentido, diz Sauer. A
máquina do francês Denis Papin, de 1681,
retirava água do fundo de minas para facili-
tar a extração de carvão. França, Espanha,
Inglaterra, nações que se formavam, precisa-
vam de novo combustível: já tinham derru-
bado e queimado suas florestas. A máquina
de Papin, como outras que surgem, permite
a mecanização do trabalho. A mais famosa é
a de James Watt, de 1769: sua invenção é o
marco da Primeira Revolução Industrial. E
isso se dá, não por acaso, na Inglaterra, onde
o capitalismo, apoiado na instituição do “tra-
 Da máquina a vapor de Heron à de
Watt, da democracia de base escravista à
do trabalho assalariado
TRANSFORMAÇÕES DA ENERGIA
A fotossíntese é uma fração muito pequena da luz que nos anima
FONTE: Anotações para prova de erudição, Ildo Sauer, 2005 1
Reprodução
5
ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
A PETROLEIRA E OS CAMPONESES
A união da multinacional verde-e-amarela com os pequenos
proprietários de terra vai devagar e pode não ir longe
Ricardo
Stuckert/
Presidência
 O presidente viu o biodiesel de mamona e imaginou geração de renda no Semi-Árido
M
ozart Queiroz, diretor da divisão de
energias renováveis da Petrobras, e seu che-
fe, Ildo Sauer, acompanharam as desventu-
ras dos programas de biocombustíveis bra-
sileiros da segunda metade dos anos 1970.
Mozart era pesquisador do Cenpes, centro
de pesquisa da Petrobras; em 1979 ajudava a
construir uma usina de álcool de mandioca
em Curvelo (MG). Nas suas gavetas encon-
trarelatóriode1981,deviagemparaverseos
usineiros tinham de fato estocado o álcool
comprado em nome de um programa do
governo, o Proálcool. Sauer, na época pro-
fessordaUSP,escreveuumaespéciedefábu-
la criticando os abusos do programa: pro-
pôs privatizá-lo. Quando o preço do petró-
leo despencou para 30 dólares o barril, de-
pois de ter chegado a 80, os usineiros fica-
ram devendo 6 bilhões de dólares ao Banco
do Brasil. O Proálcool tinha se transforma-
do numa socialização dos prejuízos, disse
Sauer.Ogovernodeveriatomarasterrasdos
usineiros penhoradas em nome das dívidas,
para distribuí-las entre os trabalhadores da
cana,escreveuele.
Noiníciode2003,entãodiretordeGáse
EnergiadaPetrobras,Sauertinhaoutraposi-
ção. Criou o grupo para desenvolver os pro-
gramas de biocombustíveis na empresa. E
procurou em Brasília seu amigo Luiz
Gushiken, então ministro do governo para
temasestratégicos,visandointeressaropresi-
dente da República no assunto. E esse inte-
resse veio, graças a um programa que a
Petrobras desenvolvia desde 2001: a produ-
ção de um diesel vegetal a partir da semente
de mamona. Lula viu nisso a perspectiva de
geração de renda no Semi-Árido, onde a ma-
mona se espalha praticamente sozinha.
Pode-se fazer biodiesel de restos de gor-
dura, de inúmeros vegetais e de várias for-
mas. A partir, por exemplo, do óleo de soja.
Mais de 95% do biodiesel estocado pela
PetrobrasparaametaB2–oconsumobrasi-
leirode2008,quandotodoodieseldeveráter
obrigatoriamente 2% de óleo vegetal – é de
soja. Até agora, começo de agosto de 2007,
nãosefazbiodieseldemamonaemprocesso
contínuo,emgrandeescala,industrial.Odes-
taque dado à mamona vem, sem dúvida, das
idéias de inclusão social do novo governo.
Como disse o presidente Lula, na inaugura-
ção, em2005,deumafábricadebiodieselem
Floriano,noPiauí:“Seagentenãoescolhesse
a mamona, iria ver o biodiesel sendo produ-
zido da soja. Se fosse produzido da soja, be-
neficiariamaisumavezasregiõesSul,Sudes-
teeCentro-Oeste.EoNordesteiaficaraban-
donado”, disse o presidente.
A Alemanha é o exemplo
A ironia é que a fábrica inaugurada pro-
duzia e produz diesel de soja. O grande pro-
blema é econômico. O óleo vegetal é bem
mais caro que o diesel e só é garantido com
políticas de estímulo. A Alemanha hoje é o
maior produtor mundial de biodiesel: 2,5
bilhões de litros em 2006. Desde 1991
viabiliza a produção com um programa de
apoiojustificadopelanecessidadedeelevara
renda de agricultores pobres da antiga Ale-
manha Oriental. Mas produzir diesel de
mamona no Semi-Árido nordestino, mes-
mo com subsídio, é problemático. A semen-
te é quase natural de inúmeras áreas, mas sua
produtividade é baixa. Planta-se sem prepa-
ração do solo, sem sementes selecionadas. E
colhem400quilosporhectare.NoRioGran-
de do Sul, com cultivares selecionados, co-
lhem-se nove vezes mais. Existe ainda o pro-
blema da escala. Os programas de biodiesel
europeus começaram por plantas pequenas.
Agora, uma fábrica-padrão é para mais de 50
mil toneladas por ano, muito mais sofistica-
da e mais difícil de construir.
Apesar de todas essas dificuldades, a
Petrobrasempenhou-seemviabilizaroobje-
tivo do presidente. Despachou técnicos para
osEstadosUnidos,aAlemanhaeaEspanha,
para ver o estado-da-arte do biodiesel no
mundo. Em meados de 2004, já sabia que
não se fazia diesel de mamona em lugar al-
gum. E não se usava, como no método da
“Em termos médios, hoje o consumo
per capita de energia é cinco vezes maior
que o do início da Revolução Industrial.
Mas uns consomem muito mais que os
outros. Se os EUA tivessem de substituir
todo o petróleo que consomem por bio-
combustíveis, teriam de usar cerca de 50%
de toda a área do país em culturas de bio-
combustíveis. Evidentemente, não vão fa-
zer essa loucura. Por isso querem que os
outros plantem biocombustíveis. O Brasil
precisaria usar menos de 5% de sua área
total para substituir a gasolina e diesel que
consome atualmente. Tem, portanto, uma
oportunidade para elevar sua produção e
exportar. A questão, no entanto, é preciso
insistir, são os aspectos sociais: como se
fará isso, quem vai lucrar com isso?”
6 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
Petrobras com a semente, a adição de um
etanol de cana, mas de outro tipo de álcool,
ummetanoldepetróleo.AospoucosMozart
eSauerseconvenceramdequeaproduçãode
biodiesel de mamona, com adição de etanol
decana,emescalaindustrial,éumcasoàpar-
te, talvez o mais difícil de viabilizar.
A Petrobras adotou, então, uma política
de dois movimentos: desenvolver tecnolo-
gia própria; e aprender com as tecnologias
existentes. Começou a construir, em
Guamaré, no Rio Grande do Norte, duas
plantas para dominar a tecnologia do diesel
de mamona, tanto a partir da semente como
a partir do óleo de mamona já extraído do
grãoporprensagem.Efezlicitaçãoparacom-
prar três plantas industriais com as
tecnologias disponíveis – que não incluíam
a mamona – para instalar no Semi-Árido:
em Montes Claros, norte de Minas;
Candeias, Bahia; e Quixadá, Ceará.
Contra a escala, o escopo
Mozart define assim a estratégia da em-
presaparaobiodiesel: “Astrêsusinasemfase
de instalação são todas na escala industrial –
mais de 50 mil toneladas por ano de produ-
ção contínua. Elas operavam com os óleos
que os fabricantes conheciam. Mas todas te-
rão a parte de tratamento de óleos reforçada
para poder operar com os produtos locais, a
mamona inclusive. Depois de dominar as
tecnologias que compramos, vamos partir
para desenvolver as nossas para a escala in-
dustrial, com destaque para a mamona”.
Com o mesmo objetivo, o de garantir ao
programadebiocombustíveisumcaráterso-
cial novo, a diretoria de Sauer deu um passo
adiante: procurou viabilizar também a pro-
duçãodeálcoolapartirdepequenasunidades
industriais,decooperativasdeagricultoresfa-
miliares. Comosesabe,a produçãodeálcool
no País não é nenhum modelo de distribui-
ção de renda. Nesse contexto, o projeto da
Petrobras com a Cooperbio, de Palmeira das
Missões (RS), é uma grande novidade.
AsaletaderecepçãodaCooperbioédeco-
radacomumabandeiravermelhaparecidacom
adoMovimentodosTrabalhadoresSemTer-
ra.MasnãosetratadoMST:nelaselêMPA–
MovimentodosPequenosAgricultores.Um
cartaz na parede tem dois quadros. Num de-
lesestá:“Agriculturacamponesa,5empregos
paracadahectare,2.810propriedadescom20
hectares, 100% da produção para a mesa do
trabalhador”. No outro: “Aracruz Celulose,
umempregoparacada185hectares,umaem-
presa com 56,2 mil hectares, 97% da produ-
çãoparaexportação”.
O projeto Petrobras-Cooperbio parte de
umcontratodeumanonoqualaestatalentra
com2,3milhõesdereais,paradezmicrodes-
tilarias com capacidade para cerca de 3,5 mil
toneladas de álcool por ano. E a Cooperbio
compromete-seapôroseupessoal,assumin-
dotodasasobrigaçõestrabalhistas,para“ana-
lisaraviabilidadedediferentesmodelosinte-
grados de produção de biocombustíveis e de
alimentos”. Serão estudados: “técnicas e cul-
tivos”; um “novo sistema logístico”; o “ba-
lançomassa-energia”;a“eficiênciaeconômica
daproduçãodescentralizada”;e“acapacidade
de geração de emprego e renda”. E haverá
uma publicação com os resultados. Entre as
destilarias haverá uma central que será tam-
bémretificadora:colocarátodaaproduçãonos
padrões oficiais exigidos. Em volta dela fica-
rão as outras nove.
Romário Rossetto, da direção nacional
do MPA, diz que o desafio é provar que a
produção de biocombustíveis pode ajudar
aelevararendadapequenapropriedadeagrí-
cola, eliminar grande parte dos desperdíci-
os decorrentes da produção em grande es-
cala e superar o ganho de produtividade de
escala com o ganho da ampliação no esco-
po da produção. “O Rio Grande do Sul é
considerado celeiro da produção de grãos
do Brasil. Palmeira das Missões já foi capi-
tal nacional da soja. Produz 25 milhões de
sacas por ano. Mas é uma exportadora de
grãos. Não tem indústria. Aqui não se agre-
ga valor: 90% das famílias ganham até dois
mínimos, 42%, até um. E são pagos 9 mi-
lhões de reais por ano para a Monsanto,
por royalties e insumos.”
Contra o passeio da cana
Rossetto continua: “Em São Paulo, uma
usinafazálcoolcomcanatrazidadeumaárea
de 40 quilômetros de raio. No projeto da
Cooperbioacananãofazessespasseiosimen-
sos. As áreas são muito menores. Com trato-
res pequenos, adaptados, leva-se uma
moenda móvel para o campo, mói-se a cana,
tira-seagarapaesefazafermentação.Depois
équeselevaparaadestilação.Osresíduossão
usados no local, para adubação, para alimen-
tação do gado”.
As máquinas empregadas são de tecno-
logia nacional e foram desenvolvidas em três
locais diferentes: Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Minas Gerais. Por acordo com os
detentores de suas patentes, a Cooperbio vai
construir, com sua própria equipe – 35 pro-
fissionais, entre técnicos agrícolas, agrôno-
mos, químicos de alimentos e biólogos –,
oito das microdestilarias. A microdestilaria
de Redentora foi inaugurada em 1o
de maio.
E o álcool é apenas o primeiro projeto. A
Petrobras e a Cooperbio também são sócias
em um projeto de usinas de biodiesel, no
qual se pretende investir 45 milhões de reais,
através de financiamento do Pronaf-
Agroindústria e do BNDES.
As iniciativas da Petrobras são experi-
mentais, como se vê. E não constituem a
linha principal da produção de biocombus-
tíveis no País, como se verá nos dois próxi-
mos capítulos.
 Os camponeses unidos – com a
Petrobras – jamais serão vencidos?
Lia
Imanishi
Rodrigues
8 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
 Em Floriano, os tanques dos
caminhões são de óleo de soja...
Lia
Imanishi
Rodrigues
A
rnoldodeCampos,umjovemeconomis-
taparanaense,équemcuidadoprogramados
biocombustíveisnoMinistériodoDesenvol-
vimento Agrário (MDA). Ele resume assim
o que parece ser uma das características cen-
traisdapolíticaoficial:ogovernotentou“des-
de o início” evitar “o conto da miniusina”, e
“procurou atrair os grandes produtores para
queelesseassociassemaospequenos”.Aatra-
ção para os grandes foram os subsídios. Para
mil litros de diesel de petróleo, pagam-se de
impostos federais 218 reais, quase 20% do
custo. Mas, se for biodiesel do Nordeste ou
Norte do País e as usinas comprovarem a
compra de mamona ou palma de pequenos
agricultores da região no valor de 50% do
custo desuamatéria-prima,oimpostoézero.
Paraobiodieseldeoutrasregiões,mesmode
soja, desde que 30% da produção venha da
agriculturafamiliar,oimpostocaipara70reais
o litro. Além disso, quem foi aprovado pelo
MDA por se apoiar na pequena agricultura
ganhou um “selo do combustível social”.
Com isso, teve o direito de participar de lei-
lões de venda prévia de biodiesel, realizados
pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) e
bancadospelaPetrobras.Obteveaindataxas
de juro mais favoráveis do BNDES no caso
de empréstimos, e em vários casos o banco
participoutambémcomosóciodoempreen-
dimento.
Os incentivos e os leilões garantiram a
produçãodobiodiesel.Segarantiramascon-
dições para o desenvolvimento sustentável
dos pequenos produtores é outra história.
Tome-seocasodaBrasilEcodiesel.Éaprin-
cipal empresa vendedora nos leilões. Vendeu
488 milhões de litros dos 840 milhões adqui-
ridos pela Petrobras. No entanto, no seu ba-
lançode2006,apresentadoquandoselançou
na Bolsa para atrair capital, lá está: 97,1% do
biodiesel que produziu é de soja, 0,9% algo-
dão e só 2% é de mamona.
Paga, mas não usa
Como isso é possível, se a empresa tem
um “selo de combustível social” ganho por
comprar mamona de agricultores no Semi-
Árido? A empresa comprou mamona dos
pobres, mas não a usou, deixou estocada; fez
diesel de soja, comprada, por exemplo, da
Archer Daniels Midland (ADM), gigante do
agronegócio mundial. A lei não exige que a
empresauseamamonanaprodução:oMDA
comprova a compra de mamona por notas
fiscais, não pelo seu uso nas usinas. E com
isso, abre-se uma porta para empreendimen-
tosdefuturodiscutível,nomínimo.Veja-sea
usina da Brasil Ecodiesel em Floriano, no
Semi-Árido do Piauí.
Elaobteveváriosbenefícios.Estáinstala-
da no terreno que escolheu, desapropriado
pela prefeitura. Não pagará ICMS ou IPTU.
Ganhouumaespéciedeapêndice,aFazenda
Santa Clara – 18 mil hectares doados pelo
governo estadual em Canto do Buriti, a 250
quilômetros a sudeste de Floriano. A empre-
sa é de um grupo financeiro e sua sede é o
baixo Leblon, no Rio de Janeiro. Quando se
apresentou em 2005 pela internet, a Brasil
Ecodieseldissequeoprojetodogovernopara
obiodieselde2008eraalgoespetacular:criaria
4,2 milhões de postos de trabalho, dos quais
elacontribuiriacom1,67milhão.Asfotosdo
assentamentodeprodutoresdemamonaem
Canto do Buriti davam a impressão de civili-
zaçãoeprogresso.
Era uma fantasia. Mesmo pessoas como
osecretáriodegovernodeFloriano,Edilberto
Araújo, que apóia o projeto, acham que um
dosmaioresbenefíciosdausinaparaacidade
é o fluxo de caminhões que trazem soja para
alimentá-la e movimenta o comércio: restau-
rantes, postos de combustíveis, oficinas, re-
vendas de peças. Ele acha que a mamona é
pouca porque é o início.
A usina não pode ser visitada por RBCC,
que chegou lá sem aviso prévio. A poucos
metros do seu pátio, o caminhoneiro
DonnizettiJuliodescansaemumacadeirado-
brável.TinhaacabadodechegardeUberlândia
(MG), depois de quase 2 mil quilômetros
“puxando 37.900 quilos de óleo de soja da
ADMdoBrasilS.A.”Oscaminhoneirosque-
rem saber por que a repórter pergunta se o
óleoédesojaoudemamona.Elaesclarece:se
fosse de mamona, seria dos pequenos agri-
cultores.Elesriem.Umdiz:“Sóquemganha
dinheiro é o grande! Eles estão prometendo
uma coisa para o povo, que eles vão ganhar
dinheiroplantandomamona.Vãonada!Você
vê os usineiros. Sem o camarada para cortar
cana eles não ganham nada. Mas, agora, os
camaradas estão com os dias contados. As
máquinas vão pegar o lugar deles”, afirma.
Os assentados no projeto de Canto do
Buriti foram recrutados às pressas. “Passou
aviso nas rádios, o pessoal foi buscar a gente
comcaminhões.Elesnemperguntavamsetra-
balhavanaroçaounão.Masagentetrabalhava
naroça:plantavafeijão,milho,arroz.Ládeonde
a gente veio tem brejo”, diz a mulher de 35
A BOLSA MAMONA
A empresa faz biodiesel de soja, mas tem fama porque promete
fazer o óleo com plantadores de mamona pobres do Semi-Árido
9
ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
Lia
Imanishi
Rodrigues
A LÓGICA DO NEGÓCIO
As usinas são cada vez maiores e suas propriedades
e benefícios cada vez mais concentrados
anos e dois filhos. Ela diz ainda que a produ-
çãodemamonanafazendavaidemalapior.A
primeiracolheitafoiboa,masaúltimafoipés-
sima,faltouchuvaetevegentequecolheu200
quilos de mamona por hectare, outros 100
quilos, outros nada, lamenta.
Ainda em Canto do Buriti, um funcioná-
rio de subsidiária da Brasil Ecodiesel que su-
pervisiona o núcleo, explica o sistema de pa-
gamentos: o assentado recebe 150 reais por
mês, dos quais se descontam cerca de 45 de
despesasdoplantio,pagopelaempresa.Têm
casacomenergiaelétrica,águaencanadaema-
nutenção das instalações gratuitas. Também
têm médico residente e dentista de graça. O
compromisso é uma produção mínima de
3,5 toneladas de mamona, por lote de 2,5
hectares, por ano. Se o assentado supera esse
limite,recebemais.Seficardezanosali,recebe
acasadegraçaaofimdesseprazo.
Osupervisorreconhecequeaproduçãode
mamonaébaixa,de500a600quilosporhec-
tare,metadedomínimoeconomicamentene-
cessário. Ele diz que a empresa também está
testando outras oleaginosas: o pinhão-man-
so, o girassol. “Já plantamos dez hectares de
pinhão-manso e cinco de girassol. Isso trará
maisrenda.”Massequeixadostrabalhadores.
“Poucagentedessaturmaquertrabalhar.”
Haveria a “mamona-papel”?
Arnoldo de Campos, o funcionário do
MDA,conheceahistóriadoassentamentoda
Brasil Ecodiesel. Viu estoques de mamona
da empresa em outros lugares, admite que
não tem meios para medi-los. Poderia haver
uma “mamona-papel”? Estoques que sus-
tentariam notas frias sem que a produção se
altere?Eleachaquenão.Dizquesuaimpres-
são é de que as condições do assentamento
de Canto do Buriti foram estabelecidas por
“idealismo dos empresários”. “A infra-estru-
tura de Canto do Buriti não tem como viver
de mamona”, ele conclui com uma frase tor-
ta, já que a promessa era de que os trabalha-
dores – e não “a infra-estrutura de Canto do
Buriti” – vivessem da mamona.
Há enormes expectativas sobre o cresci-
mento da produção de biodiesel no Brasil. A
essaaltura,maisde70projetosjáforamauto-
rizados a operar, com 3 bilhões de litros por
anodecapacidadeprevista,60%aserinstala-
daatéofimdesteano.Diversosgrandesgru-
pos, nacionais e estrangeiros, estão envolvi-
dos. O Brasil importou, no ano passado, 38
bilhões de litros de diesel de petróleo, 10%
do seu consumo. A produção interna pode
E
m março deste ano, o presidente Lula
discursou na apresentação do memorando
de cooperação tecnológica assinado por ele
e o presidente americano, George W. Bush,
para expandir pelo mundo a produção de
álcool vegetal. Ele foi superlativo: poderia
estar nascendo, disse, “um novo momen-
to da indústria automobilística no mundo,
um novo momento dos combustíveis no
mundo” e, “possivelmente, um novo mo-
mento para a humanidade”. Duas sema-
nas depois, em Goiás, referindo-se nova-
mente aos negócios com o álcool, apontou
os heróis desses novos e grandiosos tem-
pos: “Os usineiros, que até dez anos atrás
eram tidos como bandidos do agronegó-
cio deste País, estão virando heróis nacio-
nais e mundiais”.
As palavras do presidente parecem, no
mínimo, ingênuas. Como se verá neste capí-
tulo, o novo surto de produção de álcool não
tem a ver com uma nova fase da história: se-
gue lógica básica e antiga dos negócios, a da
concentraçãodoscapitais.Deve-se,inclusive,
acharqueseusheróissãooutros,comosefaz
no capítulo seguinte desta história.
Pode-se datar o início do surto atual de
negócios do álcool pela decisão do governo,
em 2002, de eliminar impostos sobre os car-
ros flex fuel, uma novidade que estimulou o
consumo de álcool. Os novos carros foram
lançadoscomercialmenteapartirdeabril
reduzirasimportaçõeseatéanteciparde2013
para2010achamadaB5,ametademultiplicar
de 2% para 5% a quantidade obrigatória de
óleovegetalnodieseldepetróleoconsumido
noPaís.Existeaindaaperspectivadosmerca-
dos europeus, onde 10% do petróleo será
substituído por biocombustíveis até 2020 e
onde os veículos, tanto pesados quanto le-
ves, usam basicamente diesel.
Quantoaoempregoeàrendadostrabalha-
dores a situação é outra. No balanço do seu
primeirotrimestredesteano,aBrasilEcodiesel
dissequehá57.606“famíliasparceiras”enãofaz
referênciaàpromessainicialde1,67milhãode
postosdetrabalho.OMDAdizquesão200mil
pessoas envolvidas na produção de biodiesel:
nadacomparávelaos4,7milhõesdepostosde
trabalhoqueseriamcriadosatéesteano,como
diziaapropagandadaBrasilEcodieselrecheada
de logotipos do plano oficial.
Em levantamento concluído no fim de
2006 por pesquisadores da Universidade de
SãoPauloquevisitaramgrandepartedospro-
jetosjáemfuncionamentoeapresentadoem
livro por Célio Berman, professor do IEE,
afirma-se: “O que se desenha, na verdade, é
uma relação de produção, mas sem os encar-
gos trabalhistas a que os agricultores teriam
direitosefossemfuncionáriosdasfabricantes
deóleo”.E: “Ainclusãodaagriculturafamili-
ar”, no programa oficial, “foi idealizada de
modo a favorecer os grandes produtores de
biodiesel”,“permiteaograndeprodutorope-
rar com uma margem expandida de
lucratividade”. Os pesquisadores citam uma
entrevista de Arnoldo de Campos dizendo
exatamenteisso:“Umaempresanãovaibus-
caraagriculturafamiliarporconsciênciasocial,
porissoagentefezumbenefíciobemgordo.
Elepodedobraramargemlíquidatrabalhan-
do com a agricultura familiar”.
 ...e a mamona ficou nos galpões em
Canto do Buriti
12 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
FINANÇAS DO AÇÚCAR O dinheiro sempre foi o planejador
da indústria, desde os holandeses. Na Era Vargas, porém,
houve um certo planejamento pelo Estado
O NEGÓCIO DAS USINAS de açúcar é velho como o Brasil. O
açúcar era uma especiaria de muito valor, produzida no litoral
pelos donos das “capitanias” em que se dividiu a colônia portu-
guesa. Eram pequenos nobres em busca de fortuna, mas sem
meios: tinham terras, mas não tinham dinheiro para comprar
escravos africanos e equipamentos que Portugal não produzia. A
Holanda, a potência financeira da época, os financiou. A produ-
ção se concentrou: dos 390 engenhos da área de Pernambuco e
Paraíba, um terço era de uma família só, os Cavalcanti.
O açúcar brasileiro chegou a dominar o mercado mundial. De-
pois, entrou em crise. E o café tornou-se a principal cultura do
País, no Sudeste. A quebra do sistema financeiro mundial em
1929 fez desmoronar a economia agrário-exportadora de café.
Da crise, com a Revolução de 1930, nasceu um novo arranjo
econômico e político, comandado por Getúlio Vargas. Seu gover-
no estabeleceu em 1931 a obrigatoriedade da adição de álcool à
gasolina, que a partir de então sempre existiu, em proporções
que variaram de acordo com a conjuntura. Vargas também criou
o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que introduziu a pesquisa,
o planejamento e uma política de incentivos no setor.
A produção cresceu muito no Sudeste com a erradicação dos
cafezais paulistas nos anos 1960. A produção nacional disparou a
partir de 1975, sob os governos militares, com o lançamento do
Proálcool. E, em 1990, tudo mudou. O governo de Collor de Mello
extinguiu o IAA e anunciou o fim do planejamento e da regulação,
que persiste: pela mão do mercado. 
de 2003, por diversas montadoras e pas-
saram a ter vendas espetaculares. A safra de
cana 2006/2007 foi de 476 milhões de tone-
ladas. Dela saíram 17,7 bilhões de litros de
álcool, 14 bilhões consumidos aqui, o res-
tante exportado. Em dez anos, com a reno-
vação da frota de veículos à base de carros
flex, que hoje são cerca de 85% dos novos
carros vendidos, a demanda interna pode
dobrar. E o mercado externo também pode
disparar. Os EUA precisariam de mais de
100 bilhões de litros de combustíveis alter-
nativos por ano para reduzir em 20% o con-
sumo de gasolina no país até 2017, como
proposto pelo presidente Bush. “Há uma
janela de longo prazo para o etanol”, diz
José Eli Veiga, coordenador do Núcleo de
Economia Socioambiental da USP. “E essa
janela deverá durar de 20 a 30 anos.”
Sãocercade350usinasexistentes,90em
fase de instalação e cerca de 200 em projeto.
Há uma modernização e um agigantamento:
uma grande usina esmaga hoje 1 milhão de
toneladas de cana por ano; a próxima leva de
grandes é para 4 milhões de toneladas. Esti-
ma-se que mais de 300 usinas ainda sejam
geridas por famílias de usineiros no estilo
antigo. Masasituaçãoestámudandoacelera-
damente. O processo de concentração pode
servistoatravésdasaçõesdeRubensOmetto,
ocontroladordaCosan,amaiorempresabra-
sileira do setor – na última safra, faturou 3,6
bilhões de reais, com lucro de 360 milhões
de reais. Ometto é “o primeiro bilionário
mundial do álcool”, diz a revista Forbes.
Usineiro diretor de banco
FoiOmettooprimeironoseusetoradar
o grande passo para aproveitar a estabilidade
econômicanova–apoiadanumaespetacular
abertura financeira – criada no País pelos go-
vernosColloreFHCemantidapelogoverno
Lula. É um usineiro de tipo novo, de família
deusineiros,mascomcarreirabem-sucedida
no mercado financeiro: foi diretor do Uni-
banco. Tornou-se presidente da Cosan em
1986. Começou adquirindo empresas com
empréstimos.Emdezembrode2005,jácom
17usinasebastanteendividado,eleviuaBol-
sa, para onde fluíam capitais externos. E deu
osalto:lançouaCosannoNovoMercadoda
Bovespa, onde estão empresas que obede-
cemacertosrituaisquepassaramacaracterizar
amodernidadeempresarialcomo“responsa-
bilidadesocial”,“sustentabilidadeambiental”
e “governança corporativa”. E a jogada deu
certo: captou 740 milhões de reais, a custo
zero, de novos sócios, a quem vendeu 26,7%
deaçõesdaempresa.Asegundagrandejoga-
da de Ometto está em curso. No último dia
25 de junho, anunciou a criação de uma
holdingcomaqualpretendefazercaptaçãode
2 bilhões de dólares em NovaYork. O jornal
Valor Econômico diz que a expectativa de
OmettoédequeaCosanchegue,comolan-
çamento americano, a um valor de mercado
de 20 bilhões de dólares.
O problema dessa segunda operação é
que Ometto não está sozinho na praça. Nem
em sua própria empresa, na qual ele detém
o bloco de controle, mas que agora tem mi-
noritários que esperam uma oportunidade
para desbancá-lo. Para se garantir ele criou
uma holding, a Cosan Limited, noutro am-
biente: no Caribe, em Bermudas. E, para
seu estatuto, parece ter copiado regras dos
dois sócios da Google (que, aliás, visitaram
a Cosan há dois anos) que controlam a em-
presa, tendo cerca de 10% do seu capital.
Ometto lançou à venda ações diferenciadas
da Cosan de Bermudas – controladora da
Cosan brasileira – que teriam os mesmos
direitos ao lucro das suas, mas um poder
de voto nas decisões da empresa dez vezes
menor. Os periódicos das grandes empre-
sas que cobrem o setor de um modo geral
tomaram as dores dos minoritários. E
Reprodução
13
ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
 A Bovespa foi o primeiro passo de
Ometto; agora, é vez da Bolsa de Nova York
GERMANO
LUDERS/Editora
Abril
Ometto recuou. No dia 30 de julho, publi-
cou anúncio mudando as regras para o lan-
çamento das ações em Nova York, marca-
do para este segundo semestre.
Omettoestánumadisputadegentegran-
de.Nocomeçodoano,tentoucompraraVale
do Rosário, a segunda maior empresa do se-
tor.A Vale tinha 130 acionistas, mas seu con-
troleestavacomafamíliaBiaggieosJunqueira
Franco. Estes tiveram o apoio do Bradesco –
um financiamento de 1,35 bilhão de reais – e
exerceramodireitodepreferêncianacompra
dasaçõespretendidasporOmetto.AValedo
Rosário recusou a proposta de Ometto por-
que estava em outra. Desde o fim de 2006 –
juntamente com a Santa Elisa, outra grande
usina, e a trading Crystalsev, parceira desde
1998, da Cargill, uma das maiores empresas
doagronegóciomundial–,procuravaformar
um bloco maior, com capitais estrangeiros.
Em meados de março de 2007, o bloco
se formou com a trading americana Global
Foods e o fundo de investimentos Carlyle
Riverstone, também dos EUA. Foi criada a
Companhia Nacional de Açúcar e Álcool
(CNAA) – que pretende ser como a Cosan
quandocrescer:processar40milhõesdetone-
ladas de cana por safra, com a construção de
mais quatro usinas, sendo três em Minas e
uma em Goiás. E,para coroar essa operação,
no dia 19 de julho, o presidente mundial da
Dow Chemical veio ao Brasil para anunciar
um pólo alcoolquímico com a Crystalsev de
um1bilhãodedólares,aserconstruídoentre
2008 e 2011, que produziria 350 mil tonela-
das anuais de “polietileno verde” (sobre esse
plástico “ecológico”, mais a seguir).
Quemacreditaquedinheiroéoquepro-
duz riqueza fica maravilhado com os bilhões
dedólarescitadosnessesnegócioseachaque
o papel do Estado é esse mesmo: o de man-
ter escancaradas as fronteiras financeiras do
País,paraqueelessemultipliquemlivremen-
te; e ajudar no que for possível. Nesse senti-
do, os bancos estatais estão fazendo o seu
papel.OBancodoBrasiltemperdoadodívi-
dasdeusineiros–jámaisde1bilhãodereais;
e o BNDES tem dado financiamentos cada
vez maiores, estimam-se 3 bilhões de reais
nesteano.Aquantidadeobrigatóriadeálcool
nagasolinafoielevadade23%para25%,para
tentarimpediraquedadospreços,devidoao
excesso de oferta provocado pelo otimismo
dos produtores.
APetrobrasestápraticamenteforadapro-
duçãodeálcool.Assugestõesparaqueaesta-
tal crie uma subsidiária para a produção de
álcool são poucas e não têm qualquer apoio
junto aos chamados formadores da opinião
pública, para os quais uma nova estatal é um
descalabro que não exige demonstração. A
companhiaparticipadaeuforiadoetanolbus-
cando uma fatia nos lucros da distribuição,
através da Petrobras Distribuidora. Ela é um
dos braços da Brasil-Japão Etanol, cujo prin-
cipalprojetoéumálcooldutode750milhões
de dólares, ligando Senador Canedo, em
Goiás, aos portos do Rio e de Santos, que
contribuiria para mais que dobrar as atuais
exportações brasileiras até 2012. As usinas,
cerca de 40 para abastecer o duto, serão de
investidores privados.
ACosandisputaaliderançadareestrutu-
raçãodocontroledasusinasbrasileirasnasel-
va do mercado global: com empresas gigan-
tes apoiadas por Estados imperiais. Os qua-
tro grandes grupos do agronegócio mundial
tradicional estão se voltando para o etanol
brasileiro: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus.
Destacam-senesseesforçoaADMeaDreyfus.
A ADM é o sustentáculo do programa ame-
ricanodeproduçãodocombustível.Umlitro
de etanol de cana custa 24 centavos de dólar;
um de milho custa 50% mais: 36 centavos. A
produçãoamericanadeetanoldemilhoétam-
bém menos eficiente, do ponto de vista da
redução do gás carbônico. Mas a ADM tem
enorme apoio: nos anos 90, quase metade
dos lucros da empresa veio de produtos que
o governo norte-americano subsidia ou pro-
tege.ParaentrarnosEUA,oetanolbrasileiro
é obrigado a pagar uma tarifa de 14 centavos
dedólarporlitro. Deolhonofuturo,aADM
cogita comprar a Cosan, disse o diretor de
estratégia da empresa, Steven Mills, ao Wall
Street Journal em meados do ano. A Dreyfus
está na disputa pelo etanol brasileiro através
da Louis Dreyfus Commodities Bioenergie.
Nosúltimostrêsanos,comproucercadedez
usinas por cerca de 2 bilhões de dólares. Re-
centementefoianunciadaaentradanaLDCB
de um grupo liderado por Wafic Saïd, bilio-
nário sírio ligado à corte da Arábia Saudita.
Um perdoa, outro empresta
Váriosoutrosgrandesestãoaindanadis-
puta com dinheiro na casa do bilhão de dóla-
res,comoomegaespeculadorGeorgeSorose
um grupo que tem à testa Henry Felipe
Reichstul, ex-presidente da Petrobras e onde
estão James Wolfenson, ex-presidente do
Banco Mundial, Vinod Khosla, fundador da
Sun Microsystems, e até mesmo Bill Clinton.
Nofimdejunho,entroupesadononegó-
ciotambemabrasileiraOdebrecht.Comcerca
de 2,5 bilhões de dólares, em oito anos ela
tambémpretendeserumaCosan:esmagar40
milhões de toneladas de cana por ano. Já está
operando: comprou a Alcídia, em Teodoro
Sampaio (SP), que mói 1,2 milhão de tonela-
dasdecanaanualmenteepassarápara4,2mi-
lhões em 2013. Em parceria com a Braskem,
quecontrola,aOdebrechtanunciou,nofimde
junho, antes da Dow Chemical, portanto, o
“polietileno verde”, produzido do álcool de
canaenãodopetróleo,comootradicional.
FONTE: Ministério das Minas e Energia, Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, janeiro de 2007
O NOVO SURTO DO ÁLCCOL
Usinas de etanol e açúcar, em construção
(em azul) e existentes (em vermelho)
2
14 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
U
m dos negócios do etanol parece espe-
tacular. É o da Etanalc, empresa de Áureo
Luiz de Castro, empreiteiro de imóveis no
Rio. Foi anunciado no início deste ano, de-
pois de reunião, em Palmas, do governa-
dor do Tocantins, Marcelo Miranda, com
Castro e mais 20 empresários. Castro dis-
se aos jornais que a Etanalc já tinha arren-
dado 700 mil hectares de terras no estado
e iria arrendar outro tanto nas vizinhanças
para plantação de cana e construção de até
24 usinas ao custo de 350 milhões de dó-
lares cada, 8,4 bilhões de dólares no total.
O álcool seria essencialmente para expor-
tação: a Sempra, uma das maiores empre-
sas de gás dos EUA, o venderia nos mer-
cados americano e japonês. Um vice-presi-
dente da Sempra esteve na reunião de Pal-
mas e assinou protocolo de intenções para
a compra do combustível, por 20 anos.
No projeto está também a multinacional
alemã Man Ferrostaal, que, segundo Cas-
tro, ficaria responsável pela entrega, em três
anos, das usinas “totalmente concluídas,
chave na mão”.
A tecnologia alemã é espetacular – é in-
discutível. Mas, por que não a tecnologia
brasileiraque,porincrívelquepareça,naárea
da fabricação das usinas de açúcar e álcool, é
líder no mercado mundial, como se verá
logo a seguir? A questão da tecnologia, no
debate de um plano nacional para o etanol,
como às vezes o presidente Lula parece su-
gerir, é essencial. Tome-se o caso dos mo-
tores flex fuel. Eles foram decisivos para o
atual surto dos negócios: viabilizaram o
consumo de álcool, um combustível relati-
vamente caro, numa conjuntura de grande
oscilação nos preços da gasolina, o produ-
to que o álcool substitui.
O álcool combustível tem, no mercado,
o chamado preço de oportunidade, deter-
minado pelo preço da gasolina. O atual
ministro de Minas e Energia, Nelson
Hübner, resume esse preço de oportunida-
de dizendo assim: com o petróleo acima de
50 dólares o barril, “os usineiros estão ga-
nhando muito dinheiro”, e enfatiza o mui-
to. A primeira oportunidade surgiu quan-
do o barril do petróleo pulou de cerca de 10
dólares para 80 dólares o barril, entre 1973 e
1978. Com a crise financeira do começo dos
anos 80, que quebrou dezenas de países
subdesenvolvidos – o Brasil, inclusive –, o
consumo de petróleo caiu e o preço des-
pencou. No fim daquela década, o álcool só
era viável com enorme subsídio. O gover-
no foi, então, saindo do programa, até que
a produção de álcool caiu muito, seu preço
subiu demais e muita gente que tinha carro
a álcool ficou com um produto inviável.
Se existisse na época o carro flex fuel,
isso não ocorreria. Não é que mudaram os
combustíveis. Mudaram os carros. Os flex
fuel podem usar os dois combustíveis dis-
poníveis nos postos de gasolina de prati-
camente todo o País desde meados dos
anos 70: o álcool hidratado, com pequena
quantidade de água, e a gasolina mistura-
da com álcool anidro, praticamente puro,
que é a gasolina obrigatória, por lei. Os
carros antigos, não: ou eram de um tipo
ou de outro; para um ou outro combustí-
vel. Os flex são uma novidade criada no
Brasil, na década de 90. A tecnologia, mos-
tra o trabalho da pesquisadora Evelyn
Teixeira, é registrada em nome de duas fir-
mas estrangeiras instaladas no País, a ale-
mã Robert Bosch e a italiana Magneti
Marelli – cujas matrizes, de acordo com o
que é norma nas multinacionais, recebem
os royalties correspondentes. Mas foi de-
senvolvida por equipes nas quais os brasi-
leiros tiveram o papel central.
O caso absolutamente raro
No caso das indústrias de equipamen-
tos e insumos para as usinas de álcool, a
criação de tecnologia nacional é ainda mais
expressiva. Uma visita à sede da Dedini
Indústrias de Base, em Piracicaba (SP),
mostra isso: a empresa fabrica fábricas, caso
absolutamente raro na indústria brasileira,
que é basicamente compradora de tecnolo-
gia. A Dedini entrega usinas de açúcar e ál-
cool prontas, no esquema turn key, chave
na mão. Projeta, constrói os equipamen-
tos, monta, instala, põe para operar e for-
nece assistência técnica para o mundo intei-
ro: tem 25% do mercado mundial em seu
setor. A tecnologia, com exceção de alguns
motores, válvulas e instrumentos, é sua,
made in Piracicaba. A empresa faturou cerca
de 1 bilhão de reais em 2006 e prevê 1,8
bilhão para este ano.
O vice-presidente de tecnologia e desen-
volvimento da Dedini, José Luiz Olivério,
cita várias outras empresas da região que,
embora menores, competem com a sua. E
diz: “O Brasil pode responder ao avanço do
setorsucroalcooleirocomcapital100%naci-
onal”. Na área do biodiesel, o Brasil, como
se sabe, saiu muito atrás da Europa. Mas a
Dedini rapidamente se atualizou. Em asso-
ciaçãocomaBallestra,italiana,jáforneceusi-
nas para biodiesel também. Produziu, por
exemplo, os equipamentos para a usina
Barralcool, de Barra do Bugres (MT), inau-
gurada no fim de 2006 pelo presidente Lula.
Ela é a primeira no mundo a ser, o que
Olivério chama de multifeedstock e 3 bio:
Com o programa do álcool, o Brasil saiu na frente;
no do biodiesel, atrás
FONTE: BP Statistical Review of World Energy, 2006
O PREÇO DO PETRÓLEO É O GUIA
3
FONTE: The Economist, 22 de abril de 2006
*Sem levar em conta benefícios fiscais
**Se o gás natural usado fica a US$ 2,50 ou menos por milhão de BTUs
***Se o carvão usado fica a US$ 15 por tonelada, ou menos
Elas surgem, como agora, quando o petróleo passa
de 40 dólares por barril
A HORA DAS ALTERNATIVAS
PETRÓLEO A
US$ 80 / barril
US$ 60 / barril
US$ 50 / barril
US$ 20 / barril
US$ 40 / barril
ALTERNATIVA VIÁVEL
biodiesel*
etanol de milho americano*
etanol de cana brasileiro,
diesel com gás líquido** e
diesel com carvão líquido***
petróleo convencional
xisto
4
TECNOLOGIA E OPORTUNIDADE
O carro flex fuel foi inventado aqui e paga royalties. Mas a indústria
que faz as indústrias do álcool, por incrível que pareça, é nacional
0
60
10
80
40
30
20
70
50
90
1920-29 2000-06
1980-89
1960-69
1940-49
primeira crise
do petróleo
segunda crise
do petróleo
programa
do biodiesel
brasileiro
programa do
biodiesel europeu
Brasil lança
o Proálcool
100
US$
por
barril
16 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1

N
ão é o ouro que cria riqueza: o valor vem
do trabalho. A conclusão é consenso entre
AdamSmith,DavidRicardoeKarlMarx.As
obras básicas desses três gigantes da econo-
mia clássica foram feitas na Inglaterra, entre
os fins dos séculos XVIII e XIX, justamente
a época na qual a indústria do açúcar passava
dotrabalhoescravoparaotrabalhoassalaria-
do. Mas, como se sabe também, por aqui a
escravidão teve vida mais longa. E parece até
natural achar que trabalhadores se matam de
trabalhar pela virtude de viverem num país
livre, especialmente num estado rico e liberal
como São Paulo.
O estado tem metade das usinas e mais
de 60% da produção. Emprega cerca de 170
mil pessoas, na maioria homens, entre 18 e
50 anos de idade. Mais da metade vêm do
Nordeste. Elas ficam entre março e novem-
bro e depois voltam. No ano seguinte,
retornam. Na safra de 2006, mais de 70 mil
pessoas participaram desse vaivém, confor-
me estimativa do professor José Novaes, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Para o corte mecanizado,exige-se habili-
tação qualificada; para o manual, vão os nor-
destinoshabituadosaotrabalhodurodaroça.
Made in Piracicaba: ele anuncia a
primeira usina multifeedstock e três bio
A mecanização depende do relevo do terre-
no: os equipamentos ainda não entram em
áreascommaisde12%dedeclividade.Mas,o
índice de mecanização está crescendo. Em
2007,cercade45%dasusinasusaramocorte
mecanizado, ante 40% em 2006. Em áreas
planas, como a de Ribeirão Preto, o índice de
mecanizaçãochegoua70%.
“No corte manual”, explica Novaes, “o
instrumento de trabalho continua sendo o
facão, asinovaçõeslimitam-seamelhoriasna
lâmina e no cabo. E o contrato é, na maioria
das vezes, por tempo determinado, contrato
safrista.” O ganho é por produção, quanto
maissecorta,maisseganha.Opisopagoéde
415 reais por mês, corresponde a seis tonela-
dasdecanacortadapordia(paracomparação,
estima-se que no século XVII um escravo
cortava duas toneladas de cana por dia). De
fato, corta-se mais. Estima-se que a produti-
vidade do cortador de cana vem dando sal-
tos: de cinco a oito toneladas nos anos 80;
para oito a nove, nos anos 90; para 10, em
2000; e 12 a 15 toneladas, em 2004. Segundo
oInstitutodeEconomiaAgrícoladeSãoPau-
lo, a produtividade diária dos cortadores su-
biu 7,89% de 2004 para 2007. E, a fim de
funciona a partir de diversas oleagino-
sasedegordura;eproduzeletricidade,etanol
e diesel. Olivério explica também que a
Dedini atingiu, finalmente, uma meta per-
seguida há tempos: produzir álcool a mais
nas usinas, a preços competitivos, a partir de
material extraído do bagaço da cana. Desde
2002 a empresa já fazia etanol assim, mas a
um custo alto, agora reduzido em cerca de
30%,para27centavosdedólarporlitro.“Isso
poderá ampliar a produção de etanol de uma
usina em 30% sem que se plante um só pé
de cana adicional”, diz Olivério.
Mecanizado e competitivo
Ainda em busca das possibilidades da
tecnologia nacional no setor, pode-se ir, em
Piracicaba, até a centenária Escola Superior
de Agricultura Luiz de Queiroz. O coorde-
nador do curso de graduação de biocom-
bustíveis da escola, Fábio Silva, acha que
muita coisa ainda pode ser melhorada na
indústria. Poucas usinas ainda usam o ba-
gaço de cana para produzir eletricidade ex-
cedente para vender na rede elétrica nacio-
nal: das mais de 300, menos de 40 fazem
isso. O tratamento de resíduos – da água
de lavagem da cana, das emissões gasosas,
da fuligem das chaminés, da torta de filtro
e da vinhaça – ainda é ineficiente. A torta é
de cerca de 40 quilos por tonelada de cana
de detritos que saem compactados do pro-
cesso de purificação do caldo. A vinhaça é
um resíduo líquido da destilação que pode
ser usado como fertilizante do solo: por-
que contêm potássio, é util para as plantas.
Para cada litro de álcool produzido, pro-
duz-se de 10 a 12 litros de vinhaça. “Mas só
30% da área dos canaviais recebe a aplicação
da vinhaça”, diz Silva.
Finalmente, em Piracicaba, RBCC visi-
tou o Pólo Nacional do Biocombustível.
O engenheiro Weber Amaral, diretor do
Pólo, diz que o Brasil é competitivo no ál-
cool não porque a mão-de-obra é barata.
“Nos EUA”, diz, “90% da produção de
etanol é mecanizada. Comparando a pro-
dução de etanol de cana altamente mecani-
zada com a de milho altamente mecaniza-
da, somos 40% mais baratos. Porque pro-
duzimos quase 90 toneladas de biomassa
por hectare, sem contar mais um terço que
é subutilizado, da ponta da cana e do baga-
ço. Hoje você extrai quase 88 litros de álcool
por tonelada de cana: a média era de 50 li-
tros duas décadas atrás. Isso foi consegui-
do com engenharia química, novas varieda-
des de leveduras, com o controle do pro-
cesso de fermentação.” Essa tecnologia foi
desenvolvida no Brasil, por empresas lo-
cais, afirma.
Amaral contesta a posição da repórter,
de que a produtividade aumentou porque
se “dilapida a mão-de-obra”, para usar a
expressão de pesquisadores ouvidos por
ela. Ele comenta: “A produção é competiti-
va não porque os usineiros exploram a
mão-de-obra. Até porque, quem corta mais,
ganha mais, e quem decide o quanto cortar
é o trabalhador”.
Se o trabalhador é que cria a riqueza ou
não, se é livre ou não para decidir cortar
muita ou pouca cana, é assunto para o nos-
so próximo capítulo.
ANTÔNIO E SEUS IRMÃOS
Há um inquérito, de tipo sociológico, para saber se ele, e
outros como ele, era livre apenas para morrer de trabalhar
Lia
Imanishi
Rodrigues
17
ENERGIA
RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
falta,otrabalhadoraindaperdeacestabásica
do mês. “Soros e remédios podem ser vistos
comoexpressãodeumparadoxo,deumtipo
de expansão e modernização da lavoura
canavieira, que dilapida a mão-de-obra que a
faz florescer”, diz o pesquisador
A professora Maria Moraes Silva, da
Unesp, emSãoCarlos, estuda,há30anos, os
migrantes dos canaviais. Ela explica que o ci-
clo de vida útil desses trabalhadores é seme-
lhante ao dos escravos e sua condição de tra-
balho é análoga à escravidão. Seu argumento
merecesercitadoextensamente.Eladiz:
“Até 1850, antes da proibição do tráfico
daÁfrica,avidaútildeumescravoerade10a
12 anos. Com a proibição, os escravos passa-
ram a ser mais bem tratados e sua vida útil
passouaserde15a20anos.Emcomparação,
nas décadas de 80 e 90, o trabalhador dos
canaviais tinha uma vida útil de trabalho de
15 anos. A partir de 2000, esse tempo caiu
paraapenas12anos.Éprecisoconsiderarque,
devidoamelhoramentosgenéticos,acanahoje
contém menos água, é mais fina e pesa me-
nos. Segundo o cálculo de alguns sindicatos,
na década de 80 o trabalhador cortava 100
metrosdecanaeissoequivaliaa10toneladas;
hoje,eletemdecortar300metrosparaobter
as mesmas 10 toneladas. Isso aumenta mui-
to o esforço, o desgaste físico.
Otrabalhoescravoédefinidoatualmente
como aquele no qual o trabalhador não tem
direitodeirevirenoqualtambémpredomina
aescravidãopordívida.AquinoestadodeSão
Paulo,nãovamosencontrartrabalhadoresnes-
sa condição. Porque, do ponto de vista legal,
supõe-sequeobóia-friatemliberdadeparavir
e voltar para o seu local de origem quando
quiser. No entanto, numa análise sociológica,
maisafundo,existemlaçosinvisíveis,corren-
tes que obrigam o trabalhador a aceitar esse
trabalhotãopenoso.Elenãovemporquequer.
Sevocêforlá,deondeelesvêm,comoeufui,
vaiperceberqueelevemnãoporquequer,mas
porquenãotemcomosobrevivernoseulocal
de origem. Então, ou ele vem ou morre de
fome junto com a família. A migração é uma
imposição,nãoumaescolha.”
A migração imposta
“Ascondiçõesparaamigraçãosãoimpos-
tas pelo mesmo processo. Nos últimos anos,
comadisseminaçãodoplantiodecana-de-açú-
car no Centro-Sul, a pecuária dessa região foi
empurradaparaáreascomooMaranhão,onde
antessecultivavababaçu.Semesserendimen-
to, pequenos produtores têm sido impelidos
airparaSãoPaulocortarcana.Em2000,uma
centenadetrabalhadoresmaranhensesfoicon-
tratada por empreiteiros de usinas paulistas.
Na última safra, só na pequena Timbiras, na-
queleestado,foram7mil.NoPiauí,ospeque-
nosagricultoresfamiliaresestãosendodesalo-
jados pelos sojicultores do Centro-Sul, que
tambémforamatrásdeáreasmaisbarataspara
plantar. Com isso, os piauienses também têm
sido encontrados entre os cortadores de cana
deSãoPaulo.
Veja bem: hoje um trabalhador corta por
diapraticamenteodobrodacanaquecortava
nadécadade80.Essametadeprodução,mes-
mo que não explícita, é mais uma imposição,
não uma liberdade. Porque quem corta me-
nosédispensado. Padrõesdecomportamen-
to do gênero masculino fazem com que o
trabalhador se submeta a esse trabalho exte-
nuante. A maioria são homens jovens: por
exemplo, maranhenses que viajaram 3,8 mil
quilômetros para chegar aqui. Eles vêm em
busca de sonhos, de um dinheiro para com-
prar uma mercadoria, não só para eles, mas
para a família. Se ele volta com esse bem, vai
servistocomoalguémquevenceu.Vocêpode
imaginar o que significa voltar como alguém
que não conseguiu? São fatores invisíveis no
processo, mas que contribuem para a aceita-
ção de um trabalho que pode levar à morte
por exaustão.”
Paraaprofessora,aúnicaformadeelimi-
nar essa situação é acabar com o pagamento
por produção. Para isso teria de haver tam-
bém um aumento do piso salarial. Ela acha
que, para repor os níveis salariais do fim dos
 Heróis: ele, de Berilo, Minas; ela, de
Tapiramutá, Bahia
obter 1,2 mil mensais, trabalhadores chegam
a cortar até 30 toneladas num dia.
O professor Novaes diz que há um siste-
madeseleçãoparadeixarapenasquemcorta
no mínimo 10 toneladas por dia. “Sem no-
mear a usina,relato um caso que observei. A
usina contratou 5 mil trabalhadores no início
da safra. No primeiro mês, calculou o rendi-
mento médio da turma. E descartou 2 mil
que não conseguiram alcançar a média. No
segundo mês, o mesmo procedimento se re-
petiu entre os 3 mil trabalhadores restantes.
Nessa etapa, foram podados mais mil. Ao
final, a usina tinha 2 mil cortadores, altamen-
te produtivos, que conseguiam produzir o
mesmo que os 5 mil do início da safra, cor-
tando até 20 toneladas por dia, com uma
médiamensalentre12e17toneladaspordia.”
O paradoxo da modernidade
Cortarmuitacananãofazbemàsaúde.A
transpiraçãoexcessivaprovocaperdadesais.
A cãimbra, o acúmulo de ácido láctico na
musculatura, é o primeiro sintoma das per-
das.Algumasusinasagorafornecemumcom-
postoquerepõeperdasdevitaminaseproteí-
nas e que, tomado diariamente, tira as dores
do corpo, diminui as cãimbras e aumenta a
produtividade. Trabalhadores chegam a to-
mar doses maiores que as permitidas, para
produzir mais e ganhar mais. Para aliviar as
dores no corpo provocadas pelo excesso de
trabalho, usam antiinflamatórios, prescritos
por médicos ou adquiridos livremente nas
farmácias.Elesfazemissoparanãoseafastar
do trabalho por doença, quando passam a
receber o dia não trabalhado pela diária, cujo
valor era de apenas 14 reais na safra de 2006,
diz Novaes. Em muitos contratos, com uma
Folhapress
18 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
É COM ESSE QUE EU VOU?
A parceria proposta por Bush é objetiva,
defende interesses claros. Mas há outras
N
o fim de julho, o ministro da Agricultura,
Reinhold Stephanes, disse que as discussões
sobre agroenergia no governo estavam evo-
luindoequeaidéiaeracriarumórgãocentral
para cuidar do assunto, até então a cargo de
meia dúzia de ministérios e sem um plano
nacional.
Estudos a respeito o governo Lula faz há
tempos.Jáem2003foifeitoum,sobcoorde-
naçãodoNúcleodeAssuntosEstratégicosda
PresidênciadaRepública.Elemapeouasáreas
consideradasadequadasàexpansãodoplantio
decana-de-açúcar.Sãoterrasquesomam79,4
milhões de hectares, 10% da área do País. O
então secretário-executivo do NAE, coronel
Oswaldo Oliva Neto, disse na ocasião da di-
vulgaçãodoestudoqueogovernoqueriaevi-
taraexpansãodacanaparaáreasinconvenien-
anos 80, o piso teria de ir dos atuais 410 reais
por oito horas para 820 reais, o dobro.
Desde 2004, a Pastoral do Migrante de
Guariba (SP) contabiliza os óbitos suspeitos
deteremsidoprovocadosporexcessodetra-
balho,eoMinistérioPúblicoFederalosinves-
tiga.São20mortesnosetorsucroalcooleirono
interior de São Paulo sob essa suspeição. As
denúnciasdaPastoralchamaramaatençãode
diversasentidades.Audiênciaspúblicasforam
realizadas nas Câmaras de Ribeirão Preto e
PiracicabaenaAssembléiaLegislativadeSão
Paulo.Desde2005,na15ªPromotoriadoMi-
nistério Público do Trabalho, de Campinas,
umgrupode12procuradoresinvestigaasrela-
çõesdetrabalhonaslavourasdecana.Emse-
tembro deste ano, durante uma diligência em
Ribeirão Preto, os promotores receberam a
notíciadequeumhomemde55anos,natural
de Santana dos Garrotes (PE), havia falecido
talvez por excesso de trabalho: sentiu-se mal
duranteocortedecanaetevemortesúbitano
trajeto para o hospital de Borborema. “Fo-
mosparalá,analisamostodaadocumentação
referente aos trabalhadores mortos. Pelas
planilhas de produção vimos que todos eram
tidoscomocampeõesdeprodutividade,esta-
vamsempreentreaquelesquecortamde15a
20 toneladas por dia e gozavam de boa saúde
aoseremadmitidos”,dizoassessordecomu-
nicaçãodaProcuradoria,CarlosAlbertoTidei.
Arrendatário, depois sem-terra
A reportagem de RBCC conversou tam-
bém com a mulher de um desses campeões,
AntônioRibeiroLopes.MaíldesAraújoconta
queomaridomorreunodia23denovembro
de 2005, depois de meio dia de trabalho no
cortedecana,quandojátinhacortado17tone-
ladas.Elepassoumalàs9damanhã,ficouaté
as10h30semtrabalhar,voltouparaotrabalho,
passou mal de novo às 15 horas. Foi levado
paraohospital,teveumaparadacardíacaainda
naambulância,depoisoutranohospital,onde
morreu.ElesmoravamemGuaribahá35anos.
Ele veio de Berilo, Minas Gerais; ela, de
Tapiramutá, Bahia, ambos para trabalhar no
cortedecana.Eladizque,mesmosendo“fra-
quinha”,chegouacortar10toneladaspordia.
Masque“queméfraco,napróximasafraeles
nempegamparatrabalhar.Euseiporquetra-
balhei33anosnocortedecana.Eutenhouma
amiga aqui, vizinha, que todo ano muda de
usinaporqueelaéfraca,cortapoucacanaeeles
sempre mandam ela embora”, diz.
Seascondiçõesdevidadoscortadoresde
canaparecemseagravar,asituaçãodospeque-
nos proprietários de terra em torno das usi-
nas está mudando, na aparência, mas talvez
só na aparência, para melhor. Os usineiros
estão arrendando cada vez mais terras e em-
purrando os pequenos proprietários para as
cidades.Aproduçãodoaçúcaredoálcoolno
estado de São Paulo está cada vez mais con-
centrada nas mãos de grandes usinas e gran-
desfornecedores.PedroRamos,pesquisador
eprofessordaUniversidadeEstadualdeCam-
pinas(Unicamp),dizque75%dacanamoída
pelasusinasédeterrasdasprópriasusinasou
arrendadas por elas; apenas 25% são de for-
necedoresindependentes.
Os novos empreendimentos emprega-
rão mais gente, evidentemente. Mas a meca-
nizaçãodeveseacelerar,desempregandogen-
te. A pressão do movimento ambientalista
contraaqueimadacanaquefavoreceocorte
manual aumentou. Para a nova safra foram
abertas5,7milnovasvagasqueexigemquali-
ficação:éprecisoteraténoçõesdeinformática
e de inglês, para saber operar as máquinas,
pois muitos tratores são estrangeiros. Os
cortadoresdecanarecebememmédiade700
a1,2milreaismensais.Umavagaparaprofis-
sional qualificado pode pagar 3 mil reais.
Eérazoável–emboranãosejaalentador
–preverqueosempregoseliminadosnocor-
te manual da cana não reaparecerão como
empregos de operadores de máquinas
supermodernas.
tes.Asintençõesdocontroleestãodecertafor-
ma nos discursos do presidente, os quais de-
fendemaexpansãodoplantiodebiocombus-
tíveisnoBrasil:aexpansãodevesedaremter-
ras atualmente subutilizadas pela pecuária, de
modoanãoprejudicaraproduçãodealimen-
tos e preservar o Pantanal e a Amazônia. Das
intenções aos fatos, no entanto, há uma dis-
tância. O coronel Oliva Neto defendia que o
plantio de cana em certas áreas deveria ser
desestimulado, com políticas de restrição de
créditoequeumapropostacomesseobjetivo
jáestavanamesadopresidenteLula.
AsdeclaraçõesdoministroStephanesre-
tomam a idéia de uma regulamentação. Seria
publicado um mapa do zoneamento agríco-
la,específicoparaaculturadecana.Segundoo
ministro, “vamos ter um zoneamento da
 Com a mecanização haverá empregos de
salário bem maior. Mas, muito menos emprego
Julia
Moraes
20 ENERGIA  RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no
1
 Uns olham as estrelas, ele olha o campo:
oqueseesperaéumplanomelhorqueodeBush
plantação de cana com um mapeamento
restritivo.Essemapavaiproibirqualquerpos-
sibilidade de plantação de cana no bioma
amazônico e no bioma do Pantanal”. Tam-
bém seriam estabelecidos incentivos para di-
rigiraplantaçãodecanaparaáreasdegradadas,
comopastagensextensivas.Outraregraseria
adeque70%daproduçãodecanaconsumida
porumausinadeveriavirdeprodutoresindi-
viduais.Ogovernopretenderiaaindareduzir
oprazoparaasqueimadasdecanaefazercom
que as usinas tivessem “uma visão social”
sobreaparticipaçãodostrabalhadoresaolon-
go de todo o processo.
Por enquanto, boas intenções
No mesmo dia das declarações de
Stephanes, o presidente Lula afirmou que o
debate sobre biocombustíveis era “extrema-
mente sério” e que estava pretendendo dar a
ele“statusdesoberanianacional”.Mas,como
o ministro disse que o mapa do zoneamento
deveria sair dentro de um ano, a conclusão é
de que, quanto a um plano que conclua o
debate, o governo, por enquanto, continua
apenascheiodeboasintenções.
Mesmo uma questão ainda mais crítica,
quedizrespeitoàLei5.179,nãofoiresolvida.
A lei impõe uma vasta lista de restrições à
possedeterrasporestrangeirosnoPaíseteria
impacto sobre os grandes arrendamentos e
compras de terra para a cana por empresas
estrangeirasoudecapitaismistos.Ogoverno
Fernando Henrique Cardoso aprovou, em
1994,arevogaçãodoartigo171daConstitui-
ção,quedistinguiaasempresasbrasileirasfor-
madasporcapitaisestrangeirosinstaladosno
País“dasempresasbrasileirasdecapitalnacio-
nal”. E seu advogado-geral da União, Geral-
do Quintão, emitiu parecer dizendo que isso
congelavaaaplicaçãodaLei5.179.OInstituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) anunciou há dois meses que o gover-
no emitiria uma portaria para, no fundo, re-
vogar a tese de Quintão e reafirmar que a lei
com as restrições à posse de terra por estran-
geirosestáemvigor.Masatéagoradaquitam-
bém não saiu nada.
O mesmo não se pode dizer dos planos
do governo americano para os biocombustí-
veisque,agora,depoisdosencontrosdopresi-
dente Lula com o presidente Bush, incluem
explicitamenteoBrasil.Hátempososamerica-
nossubsidiamaproduçãodeálcool.Deinício,
basicamente para usá-lo na gasolina como
substituto do aditivo principal do combustí-
vel,oétermetil-butilterciário(MTBE,nasigla
eminglês),quesedescobriusercancerígeno.
Posteriormente,comanecessidadedere-
duzir o uso da gasolina, para diminuir a de-
pendênciadopetróleoimportadoedarsatis-
façãoàcampanhaglobalpelareduçãodouso
dos combustíveis fósseis, os americanos ace-
leraram a produção de etanol. Em janeiro
desteano,emseudiscursosobreoEstadoda
Nação, no qual definiu seu país como viciado
em petróleo, o presidente Bush deu um caráter
deurgênciaàproduçãodocombustívelvege-
tal: estabeleceu a meta de substituir 20% da
gasolinaconsumidanopaísporetanolem20
anos.E,posteriormente,apartirdosacordos
comopresidenteLula,emmarçoeabril,como
que definiu que o Brasil deveria ser parceiro
dos EUA no plano de criar um mercado
mundial de álcool combustível, de transfor-
mar o produto no qual os brasileiros se des-
tacam há tempos numa commodity do mer-
cado global.
Acadaano,nosEUA,cercade22bilhões
delitrosdeálcoolsãonecessáriosparasubsti-
tuir o MTBE, cujo uso em combustíveis está
sendo eliminado. Para substituir 20% da ga-
solinaporálcool,comopropõeBush,osEUA
precisarãode132,5bilhõesdelitrosdeálcool
por ano, em 2017. A agricultura americana é
formidável: há dez anos, o país produzia 3,7
bilhões de litros de álcool vegetal, menos de
um terço da quantidade produzida no Brasil;
em2006,produziuquase20bilhõesdelitros,
maisqueaproduçãobrasileira.Oenormein-
centivoamericanoàproduçãodoetanolapartir
do milho, se deu esse resultado espetacular
por um lado, por outro deformou os preços.
Em junho deste ano, comparado com janei-
rode2006,opreçodomilho,deacordocom
um dos índices de preços de commodities
agrícolas internacionais, o da revista inglesa
The Economist, subiu 80%.
Um outro plano é possível?
OsEUAnãotêmmaisfronteiraagrícolae
já apresentam uma produção vegetal brutal-
mente concentrada – em 2005, 82% da área
colhida no país veio de quatro espécies: mi-
lho, soja, trigo e pastagens. Se tivessem de
produzir,comsuaprópriaagricultura,todoo
álcool que se propõem a utilizar nos próxi-
mos anos, precisariam dedicar, mostram cál-
culosdoMinistériodeMinaseEnergiabrasi-
leiro, 98% de toda a sua área agricultável –
cercade44%detodaaáreadopaís–paraessa
tarefa. Evidentemente, não é este o plano. A
idéia também não é fazer qualquer mudança
no modelo de desenvolvimento econômico
global. Os americanos querem que outros
plantembiocombustíveisparaqueelesconti-
nuemconsumindoincomparavelmentemais
que qualquer outro povo.
Do ponto de vista dos interesses dos
americanos, parece um plano razoável. Com
certeza, o governo Lula tem a obrigação de
apresentar um plano melhor – para o Brasil,
para os interesses da América Latina dos go-
vernos reformistas de Morales, Correa e
Chávez. Mesmo porque a mão cega do mer-
cado, embriagada pelos fluxos de capital,
sempre esquece que o desenvolvimento an-
corado nesses movimentos é cíclico: tem al-
tos, como agora, e baixos, que podem surgir
a qualquer momento, em virtude da enorme
especulaçãoqueexistenomercadoqueman-
da, o do dinheiro. 
Eduardo
Morales/
EFE

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  • 1. 1 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 agosto 2007 | n.1 | www.oficinainforma.com.br OCOLOSSAL BRASIL Os poderes sociais da agroenergia: com seus biocombustíveis e associado aos EUA, o país contribuirá para construir um mundo melhor?
  • 2.
  • 3. 3 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 O COLOSSAL BRASIL Associado aos Estados Unidos e apoiado em suas vantagens naturais na produção de biocombustíveis, o País ajudará a construir um mundo novo? 3 Nas páginas seguintes Do Sol aos raios fúlgidos, num céu de puro anil (...) Aqui se ostenta, intrépido, o colossal Brasil (do libreto de Antônio Scalvini, para O Guarani, ópera de Carlos Gomes) A lGore,oex-vice-presidenteamericano, no seu documentário sobre o aquecimento global, que ameaçaria o futuro da humanida- de,dizquetudodecorredeosgasesde“efei- toestufa”reteremnaatmosferaterrestrepar- tedaenergiasolar.Parareforçaroargumento, uma animação mostra um desses gases mal- vados espancando até a morte um raiozinho deluzquequerretornarparaoespaço.Éuma produçãodeHollywoodtípica:Goreéobem; o presidente Bush é o mal; e pode haver um final feliz, desde que todos se esforcem para fazer a coisa certa. Seria possível acrescentar: no caso do Brasil, o País deveria aproveitar o fatodetersidoprivilegiadocomumaimensa áreasobosoldostrópicosparafazercadavez mais álcool de cana e diesel de vegetais e, as- sim, substituir, em condições econômicas praticamente imbatíveis, os combustíveis poluidores. Retrato do Brasil-CartaCapital, na série que começaagora,dedicaseustrêstemasiniciaisa essa discussão. O último dos três suplemen- tostratarádaposiçãodoPaísquantoao“aque- cimentoglobal”.Osegundo,das“velhasener- gias”: petróleo, gás, carvão, hidreletricidade, nuclear. Este primeiro trata das “novas ener- gias”, onde estão os biocombustíveis. Co- meçamoscomumaintroduçãoconceitual.O mestre escolhido para essa explicação é uma espéciedeanti-AlGore. Uma tese, na periferia É uma tarde fria de um sábado chuvoso de junho, na Água Funda, bairro da periferia pobre paulistana. Numa tenda armada em um bosque, diante de um público de 50 pes- soas, está o professor Ildo Sauer. Ele foi um dos intelectuais do Instituto Cidadania que assessoraram o presidente Lula em todas as suascampanhaspelaPresidência.Atualmen- te,édiretordaPetrobras.Esuapalestraéum esforço para popularizar a tese com a qual se tornou, há pouco, professor titular do Insti- tuto de Eletrotécnica e Energia da Universi- dade de São Paulo. Para o que interessa no momento ela pode ser resumida assim: Não se pode entender o modelo de aproveitamento energético de um país a não A petroleira e os camponeses A união da multinacional verde-e-amarela com os pequenos proprietários de terra vai devagar e pode não ir longe p.5 A bolsa mamona A empresa faz biodiesel de soja; mas tem fama porque promete fazer o óleo com plantadores de mamona pobres do Semi-Árido p.8 A lógica do negócio As usinas são cada vez maiores e sua propriedade e benefícios cada vez mais concentrados p.9 Tecnologia e oportunidade O carro flex fuel foi inventado aqui e paga royalties. Mas a indústria que faz as indústrias do álcool, por incrível que pareça, é nacional p.14 Antonio e seus irmãos Há um inquérito, de tipo sociológico, para saber se ele, e outros como ele, era livre apenas para morrer de trabalhar p.16 É com esse que eu vou A parceria proposta por Bush é objetiva, defende interesses claros. Mas há outras p.19 Expediente Redação Mino Carta e Sergio Lirio [ supervisão editorial ] • Raimundo Rodrigues Pereira [ coordenador ] • Armando Sartori [ editor ] • Lia Imanishi Rodrigues, Rafael Hernandez, Sônia Mesquita e Tânia Caliari [ redação ] • Ana Castro e Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ] • Áli Onaissi, Genulino Santos, Hassan Ayoub, Marilda Rodella, Rita Leite [ revisão ] Vendas Paulo Barbosa [ representante em São Paulo ] Joaquim Barroncas [ representante em Brasília ] Administração Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da Editora Manifesto S.A. e distribuída com CartaCapital Editora Manifesto S.A. Roberto Davis [presidente] Escritório de administração Rua do Ouro, 1.725 - conj. 2 • Belo Horizonte MG • Cep 30210 000 • Telfax 31 32814431 • administracao.bh@oficinainforma.com.br Escritório comercial e redação Rua Fidalga, 146 - conj. 42 • São Paulo SP • Cep 05432 000 • Telfax 11 38149030 • administracao.sp@oficinainforma.com.br Representação comercial em Brasília SCN Quadra 01 - Bloco F • Edifício American Office Tower - sala 1.408 • Brasília DF • Cep 70711 905 Tel 61 3328 8046 • barroncas@poranduba.com Ricardo Stuckert / Presidência IMAGEM DA CAPA: Cortador de cana em Assis, SP (jul 2007)/ Julia Moraes
  • 4. 4 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 balho livre”, assalariado, consolidava-se so- bre esse novo modelo de tecnologia. Está surgindo um novo modelo de aproveitamento energético para substituir o queseapóianotrabalhoassalariadoenapro- dução de máquinas movidas a combustíveis fósseis, pergunta Sauer? Para responder é es- sencialentenderocontextosocialemqueele pode se desenvolver, diz. “Por exemplo: a conclusão de que o Brasil deve aprofundar o seu desenvolvimento agrícola para explorar mais suas vantagens naturais, vista de modo absoluto não passa de uma reedição de idéias de David Ricardo, que já eram atrasadas em meados do século XIX.” Um lugar ao sol é pouco Ricardo (1772-1823), um dos três fun- dadores da chamada economia clássica, jun- to com Adam Smith (1723-1790) e Karl Marx (1818-1883), teria provado que o me- lhor para duas nações era se especializarem em produzir bens nos quais tinham “vanta- gens naturais” de produção. “Mas, como todos sabem, Portugal não foi para a frente negociando seus vinhos artesanais contra os produtosdastecelagensindustriaisinglesas”, diz ele. “Nem o Brasil ganhou uma diantei- ra em relação aos Estados Unidos em fun- ção da posição privilegiada do nosso País em relação à energia solar que chega à Terra. O Brasil encheu a Zona da Mata do Nordes- te de canaviais. Mas quem se adiantou foram os EUA, que construíram uma indústria naval no Nordeste do País e em pouco tem- po tornaram-se os principais fornecedores da famosa armada inglesa. Com a pesca de baleia e o uso de seu óleo na iluminação se lançaram na disputa pela nascente indústria da infra-estrutura urbana.” Sauer mostra um gráfico com a energia vinda do Sol, que é a fonte de 99,98% da energia do planeta. “A parte convertida pela fotossíntese é mínima: apenas 0,023%. A maiorparte–47%–éconvertidaemcalor,no aquecimentodossolos,daságuas,deprédios. Naçõespobres,mesmosemasnossasvanta- gensemrelaçãoaoSol,aproveitammaisessa energia:aChina,porexemplo,aquece80%de sua água dessa forma e tem uma das maiores empresas do mundo na produção de células fotovoltaicas, que transformam energia solar diretamenteemeletricidade.” ser socialmente. A Terra e a atmosfera em que vivemos são resultado de uma evolu- ção de mais de 10 bilhões de anos. Mas a compreensão desse processo é recente: sur- ge, é óbvio, a partir de nossa espécie, que tem menos de 200 mil anos. E essa com- preensão não é divinatória, não caiu na ca- beça dos homens pronta e acabada: decorre da evolução das sociedades humanas. Os princípios da máquina a vapor, diz Sauer, já eram conhecidos desde Heron de Alexan- dria. Heron exibia um conjunto metálico formado por uma bacia de água aquecida, cujo vapor subia até uma esfera, que girava movida por jatos que escapavam dela em direções diametralmente opostas. Heron pode ser visto como um repre- sentantedasprimeirasdemocracias,cidades- Estado da Grécia Antiga alimentadas por uma agricultura ainda primitiva, com uma elite de homens livres sustentada pelo traba- lho de uma multidão de escravos. Sua má- quinaserviacomoanimaçãoteatral.Necessi- dades sociais novas, na Europa de cerca de um milênio e meio depois, quando já se dissolviam as sociedades feudais posterio- res ao escravismo, deram ao uso do vapor como energia novo sentido, diz Sauer. A máquina do francês Denis Papin, de 1681, retirava água do fundo de minas para facili- tar a extração de carvão. França, Espanha, Inglaterra, nações que se formavam, precisa- vam de novo combustível: já tinham derru- bado e queimado suas florestas. A máquina de Papin, como outras que surgem, permite a mecanização do trabalho. A mais famosa é a de James Watt, de 1769: sua invenção é o marco da Primeira Revolução Industrial. E isso se dá, não por acaso, na Inglaterra, onde o capitalismo, apoiado na instituição do “tra- Da máquina a vapor de Heron à de Watt, da democracia de base escravista à do trabalho assalariado TRANSFORMAÇÕES DA ENERGIA A fotossíntese é uma fração muito pequena da luz que nos anima FONTE: Anotações para prova de erudição, Ildo Sauer, 2005 1 Reprodução
  • 5. 5 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 A PETROLEIRA E OS CAMPONESES A união da multinacional verde-e-amarela com os pequenos proprietários de terra vai devagar e pode não ir longe Ricardo Stuckert/ Presidência O presidente viu o biodiesel de mamona e imaginou geração de renda no Semi-Árido M ozart Queiroz, diretor da divisão de energias renováveis da Petrobras, e seu che- fe, Ildo Sauer, acompanharam as desventu- ras dos programas de biocombustíveis bra- sileiros da segunda metade dos anos 1970. Mozart era pesquisador do Cenpes, centro de pesquisa da Petrobras; em 1979 ajudava a construir uma usina de álcool de mandioca em Curvelo (MG). Nas suas gavetas encon- trarelatóriode1981,deviagemparaverseos usineiros tinham de fato estocado o álcool comprado em nome de um programa do governo, o Proálcool. Sauer, na época pro- fessordaUSP,escreveuumaespéciedefábu- la criticando os abusos do programa: pro- pôs privatizá-lo. Quando o preço do petró- leo despencou para 30 dólares o barril, de- pois de ter chegado a 80, os usineiros fica- ram devendo 6 bilhões de dólares ao Banco do Brasil. O Proálcool tinha se transforma- do numa socialização dos prejuízos, disse Sauer.Ogovernodeveriatomarasterrasdos usineiros penhoradas em nome das dívidas, para distribuí-las entre os trabalhadores da cana,escreveuele. Noiníciode2003,entãodiretordeGáse EnergiadaPetrobras,Sauertinhaoutraposi- ção. Criou o grupo para desenvolver os pro- gramas de biocombustíveis na empresa. E procurou em Brasília seu amigo Luiz Gushiken, então ministro do governo para temasestratégicos,visandointeressaropresi- dente da República no assunto. E esse inte- resse veio, graças a um programa que a Petrobras desenvolvia desde 2001: a produ- ção de um diesel vegetal a partir da semente de mamona. Lula viu nisso a perspectiva de geração de renda no Semi-Árido, onde a ma- mona se espalha praticamente sozinha. Pode-se fazer biodiesel de restos de gor- dura, de inúmeros vegetais e de várias for- mas. A partir, por exemplo, do óleo de soja. Mais de 95% do biodiesel estocado pela PetrobrasparaametaB2–oconsumobrasi- leirode2008,quandotodoodieseldeveráter obrigatoriamente 2% de óleo vegetal – é de soja. Até agora, começo de agosto de 2007, nãosefazbiodieseldemamonaemprocesso contínuo,emgrandeescala,industrial.Odes- taque dado à mamona vem, sem dúvida, das idéias de inclusão social do novo governo. Como disse o presidente Lula, na inaugura- ção, em2005,deumafábricadebiodieselem Floriano,noPiauí:“Seagentenãoescolhesse a mamona, iria ver o biodiesel sendo produ- zido da soja. Se fosse produzido da soja, be- neficiariamaisumavezasregiõesSul,Sudes- teeCentro-Oeste.EoNordesteiaficaraban- donado”, disse o presidente. A Alemanha é o exemplo A ironia é que a fábrica inaugurada pro- duzia e produz diesel de soja. O grande pro- blema é econômico. O óleo vegetal é bem mais caro que o diesel e só é garantido com políticas de estímulo. A Alemanha hoje é o maior produtor mundial de biodiesel: 2,5 bilhões de litros em 2006. Desde 1991 viabiliza a produção com um programa de apoiojustificadopelanecessidadedeelevara renda de agricultores pobres da antiga Ale- manha Oriental. Mas produzir diesel de mamona no Semi-Árido nordestino, mes- mo com subsídio, é problemático. A semen- te é quase natural de inúmeras áreas, mas sua produtividade é baixa. Planta-se sem prepa- ração do solo, sem sementes selecionadas. E colhem400quilosporhectare.NoRioGran- de do Sul, com cultivares selecionados, co- lhem-se nove vezes mais. Existe ainda o pro- blema da escala. Os programas de biodiesel europeus começaram por plantas pequenas. Agora, uma fábrica-padrão é para mais de 50 mil toneladas por ano, muito mais sofistica- da e mais difícil de construir. Apesar de todas essas dificuldades, a Petrobrasempenhou-seemviabilizaroobje- tivo do presidente. Despachou técnicos para osEstadosUnidos,aAlemanhaeaEspanha, para ver o estado-da-arte do biodiesel no mundo. Em meados de 2004, já sabia que não se fazia diesel de mamona em lugar al- gum. E não se usava, como no método da “Em termos médios, hoje o consumo per capita de energia é cinco vezes maior que o do início da Revolução Industrial. Mas uns consomem muito mais que os outros. Se os EUA tivessem de substituir todo o petróleo que consomem por bio- combustíveis, teriam de usar cerca de 50% de toda a área do país em culturas de bio- combustíveis. Evidentemente, não vão fa- zer essa loucura. Por isso querem que os outros plantem biocombustíveis. O Brasil precisaria usar menos de 5% de sua área total para substituir a gasolina e diesel que consome atualmente. Tem, portanto, uma oportunidade para elevar sua produção e exportar. A questão, no entanto, é preciso insistir, são os aspectos sociais: como se fará isso, quem vai lucrar com isso?”
  • 6. 6 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 Petrobras com a semente, a adição de um etanol de cana, mas de outro tipo de álcool, ummetanoldepetróleo.AospoucosMozart eSauerseconvenceramdequeaproduçãode biodiesel de mamona, com adição de etanol decana,emescalaindustrial,éumcasoàpar- te, talvez o mais difícil de viabilizar. A Petrobras adotou, então, uma política de dois movimentos: desenvolver tecnolo- gia própria; e aprender com as tecnologias existentes. Começou a construir, em Guamaré, no Rio Grande do Norte, duas plantas para dominar a tecnologia do diesel de mamona, tanto a partir da semente como a partir do óleo de mamona já extraído do grãoporprensagem.Efezlicitaçãoparacom- prar três plantas industriais com as tecnologias disponíveis – que não incluíam a mamona – para instalar no Semi-Árido: em Montes Claros, norte de Minas; Candeias, Bahia; e Quixadá, Ceará. Contra a escala, o escopo Mozart define assim a estratégia da em- presaparaobiodiesel: “Astrêsusinasemfase de instalação são todas na escala industrial – mais de 50 mil toneladas por ano de produ- ção contínua. Elas operavam com os óleos que os fabricantes conheciam. Mas todas te- rão a parte de tratamento de óleos reforçada para poder operar com os produtos locais, a mamona inclusive. Depois de dominar as tecnologias que compramos, vamos partir para desenvolver as nossas para a escala in- dustrial, com destaque para a mamona”. Com o mesmo objetivo, o de garantir ao programadebiocombustíveisumcaráterso- cial novo, a diretoria de Sauer deu um passo adiante: procurou viabilizar também a pro- duçãodeálcoolapartirdepequenasunidades industriais,decooperativasdeagricultoresfa- miliares. Comosesabe,a produçãodeálcool no País não é nenhum modelo de distribui- ção de renda. Nesse contexto, o projeto da Petrobras com a Cooperbio, de Palmeira das Missões (RS), é uma grande novidade. AsaletaderecepçãodaCooperbioédeco- radacomumabandeiravermelhaparecidacom adoMovimentodosTrabalhadoresSemTer- ra.MasnãosetratadoMST:nelaselêMPA– MovimentodosPequenosAgricultores.Um cartaz na parede tem dois quadros. Num de- lesestá:“Agriculturacamponesa,5empregos paracadahectare,2.810propriedadescom20 hectares, 100% da produção para a mesa do trabalhador”. No outro: “Aracruz Celulose, umempregoparacada185hectares,umaem- presa com 56,2 mil hectares, 97% da produ- çãoparaexportação”. O projeto Petrobras-Cooperbio parte de umcontratodeumanonoqualaestatalentra com2,3milhõesdereais,paradezmicrodes- tilarias com capacidade para cerca de 3,5 mil toneladas de álcool por ano. E a Cooperbio compromete-seapôroseupessoal,assumin- dotodasasobrigaçõestrabalhistas,para“ana- lisaraviabilidadedediferentesmodelosinte- grados de produção de biocombustíveis e de alimentos”. Serão estudados: “técnicas e cul- tivos”; um “novo sistema logístico”; o “ba- lançomassa-energia”;a“eficiênciaeconômica daproduçãodescentralizada”;e“acapacidade de geração de emprego e renda”. E haverá uma publicação com os resultados. Entre as destilarias haverá uma central que será tam- bémretificadora:colocarátodaaproduçãonos padrões oficiais exigidos. Em volta dela fica- rão as outras nove. Romário Rossetto, da direção nacional do MPA, diz que o desafio é provar que a produção de biocombustíveis pode ajudar aelevararendadapequenapropriedadeagrí- cola, eliminar grande parte dos desperdíci- os decorrentes da produção em grande es- cala e superar o ganho de produtividade de escala com o ganho da ampliação no esco- po da produção. “O Rio Grande do Sul é considerado celeiro da produção de grãos do Brasil. Palmeira das Missões já foi capi- tal nacional da soja. Produz 25 milhões de sacas por ano. Mas é uma exportadora de grãos. Não tem indústria. Aqui não se agre- ga valor: 90% das famílias ganham até dois mínimos, 42%, até um. E são pagos 9 mi- lhões de reais por ano para a Monsanto, por royalties e insumos.” Contra o passeio da cana Rossetto continua: “Em São Paulo, uma usinafazálcoolcomcanatrazidadeumaárea de 40 quilômetros de raio. No projeto da Cooperbioacananãofazessespasseiosimen- sos. As áreas são muito menores. Com trato- res pequenos, adaptados, leva-se uma moenda móvel para o campo, mói-se a cana, tira-seagarapaesefazafermentação.Depois équeselevaparaadestilação.Osresíduossão usados no local, para adubação, para alimen- tação do gado”. As máquinas empregadas são de tecno- logia nacional e foram desenvolvidas em três locais diferentes: Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais. Por acordo com os detentores de suas patentes, a Cooperbio vai construir, com sua própria equipe – 35 pro- fissionais, entre técnicos agrícolas, agrôno- mos, químicos de alimentos e biólogos –, oito das microdestilarias. A microdestilaria de Redentora foi inaugurada em 1o de maio. E o álcool é apenas o primeiro projeto. A Petrobras e a Cooperbio também são sócias em um projeto de usinas de biodiesel, no qual se pretende investir 45 milhões de reais, através de financiamento do Pronaf- Agroindústria e do BNDES. As iniciativas da Petrobras são experi- mentais, como se vê. E não constituem a linha principal da produção de biocombus- tíveis no País, como se verá nos dois próxi- mos capítulos. Os camponeses unidos – com a Petrobras – jamais serão vencidos? Lia Imanishi Rodrigues
  • 7.
  • 8. 8 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 Em Floriano, os tanques dos caminhões são de óleo de soja... Lia Imanishi Rodrigues A rnoldodeCampos,umjovemeconomis- taparanaense,équemcuidadoprogramados biocombustíveisnoMinistériodoDesenvol- vimento Agrário (MDA). Ele resume assim o que parece ser uma das características cen- traisdapolíticaoficial:ogovernotentou“des- de o início” evitar “o conto da miniusina”, e “procurou atrair os grandes produtores para queelesseassociassemaospequenos”.Aatra- ção para os grandes foram os subsídios. Para mil litros de diesel de petróleo, pagam-se de impostos federais 218 reais, quase 20% do custo. Mas, se for biodiesel do Nordeste ou Norte do País e as usinas comprovarem a compra de mamona ou palma de pequenos agricultores da região no valor de 50% do custo desuamatéria-prima,oimpostoézero. Paraobiodieseldeoutrasregiões,mesmode soja, desde que 30% da produção venha da agriculturafamiliar,oimpostocaipara70reais o litro. Além disso, quem foi aprovado pelo MDA por se apoiar na pequena agricultura ganhou um “selo do combustível social”. Com isso, teve o direito de participar de lei- lões de venda prévia de biodiesel, realizados pela Agência Nacional de Petróleo (ANP) e bancadospelaPetrobras.Obteveaindataxas de juro mais favoráveis do BNDES no caso de empréstimos, e em vários casos o banco participoutambémcomosóciodoempreen- dimento. Os incentivos e os leilões garantiram a produçãodobiodiesel.Segarantiramascon- dições para o desenvolvimento sustentável dos pequenos produtores é outra história. Tome-seocasodaBrasilEcodiesel.Éaprin- cipal empresa vendedora nos leilões. Vendeu 488 milhões de litros dos 840 milhões adqui- ridos pela Petrobras. No entanto, no seu ba- lançode2006,apresentadoquandoselançou na Bolsa para atrair capital, lá está: 97,1% do biodiesel que produziu é de soja, 0,9% algo- dão e só 2% é de mamona. Paga, mas não usa Como isso é possível, se a empresa tem um “selo de combustível social” ganho por comprar mamona de agricultores no Semi- Árido? A empresa comprou mamona dos pobres, mas não a usou, deixou estocada; fez diesel de soja, comprada, por exemplo, da Archer Daniels Midland (ADM), gigante do agronegócio mundial. A lei não exige que a empresauseamamonanaprodução:oMDA comprova a compra de mamona por notas fiscais, não pelo seu uso nas usinas. E com isso, abre-se uma porta para empreendimen- tosdefuturodiscutível,nomínimo.Veja-sea usina da Brasil Ecodiesel em Floriano, no Semi-Árido do Piauí. Elaobteveváriosbenefícios.Estáinstala- da no terreno que escolheu, desapropriado pela prefeitura. Não pagará ICMS ou IPTU. Ganhouumaespéciedeapêndice,aFazenda Santa Clara – 18 mil hectares doados pelo governo estadual em Canto do Buriti, a 250 quilômetros a sudeste de Floriano. A empre- sa é de um grupo financeiro e sua sede é o baixo Leblon, no Rio de Janeiro. Quando se apresentou em 2005 pela internet, a Brasil Ecodieseldissequeoprojetodogovernopara obiodieselde2008eraalgoespetacular:criaria 4,2 milhões de postos de trabalho, dos quais elacontribuiriacom1,67milhão.Asfotosdo assentamentodeprodutoresdemamonaem Canto do Buriti davam a impressão de civili- zaçãoeprogresso. Era uma fantasia. Mesmo pessoas como osecretáriodegovernodeFloriano,Edilberto Araújo, que apóia o projeto, acham que um dosmaioresbenefíciosdausinaparaacidade é o fluxo de caminhões que trazem soja para alimentá-la e movimenta o comércio: restau- rantes, postos de combustíveis, oficinas, re- vendas de peças. Ele acha que a mamona é pouca porque é o início. A usina não pode ser visitada por RBCC, que chegou lá sem aviso prévio. A poucos metros do seu pátio, o caminhoneiro DonnizettiJuliodescansaemumacadeirado- brável.TinhaacabadodechegardeUberlândia (MG), depois de quase 2 mil quilômetros “puxando 37.900 quilos de óleo de soja da ADMdoBrasilS.A.”Oscaminhoneirosque- rem saber por que a repórter pergunta se o óleoédesojaoudemamona.Elaesclarece:se fosse de mamona, seria dos pequenos agri- cultores.Elesriem.Umdiz:“Sóquemganha dinheiro é o grande! Eles estão prometendo uma coisa para o povo, que eles vão ganhar dinheiroplantandomamona.Vãonada!Você vê os usineiros. Sem o camarada para cortar cana eles não ganham nada. Mas, agora, os camaradas estão com os dias contados. As máquinas vão pegar o lugar deles”, afirma. Os assentados no projeto de Canto do Buriti foram recrutados às pressas. “Passou aviso nas rádios, o pessoal foi buscar a gente comcaminhões.Elesnemperguntavamsetra- balhavanaroçaounão.Masagentetrabalhava naroça:plantavafeijão,milho,arroz.Ládeonde a gente veio tem brejo”, diz a mulher de 35 A BOLSA MAMONA A empresa faz biodiesel de soja, mas tem fama porque promete fazer o óleo com plantadores de mamona pobres do Semi-Árido
  • 9. 9 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 Lia Imanishi Rodrigues A LÓGICA DO NEGÓCIO As usinas são cada vez maiores e suas propriedades e benefícios cada vez mais concentrados anos e dois filhos. Ela diz ainda que a produ- çãodemamonanafazendavaidemalapior.A primeiracolheitafoiboa,masaúltimafoipés- sima,faltouchuvaetevegentequecolheu200 quilos de mamona por hectare, outros 100 quilos, outros nada, lamenta. Ainda em Canto do Buriti, um funcioná- rio de subsidiária da Brasil Ecodiesel que su- pervisiona o núcleo, explica o sistema de pa- gamentos: o assentado recebe 150 reais por mês, dos quais se descontam cerca de 45 de despesasdoplantio,pagopelaempresa.Têm casacomenergiaelétrica,águaencanadaema- nutenção das instalações gratuitas. Também têm médico residente e dentista de graça. O compromisso é uma produção mínima de 3,5 toneladas de mamona, por lote de 2,5 hectares, por ano. Se o assentado supera esse limite,recebemais.Seficardezanosali,recebe acasadegraçaaofimdesseprazo. Osupervisorreconhecequeaproduçãode mamonaébaixa,de500a600quilosporhec- tare,metadedomínimoeconomicamentene- cessário. Ele diz que a empresa também está testando outras oleaginosas: o pinhão-man- so, o girassol. “Já plantamos dez hectares de pinhão-manso e cinco de girassol. Isso trará maisrenda.”Massequeixadostrabalhadores. “Poucagentedessaturmaquertrabalhar.” Haveria a “mamona-papel”? Arnoldo de Campos, o funcionário do MDA,conheceahistóriadoassentamentoda Brasil Ecodiesel. Viu estoques de mamona da empresa em outros lugares, admite que não tem meios para medi-los. Poderia haver uma “mamona-papel”? Estoques que sus- tentariam notas frias sem que a produção se altere?Eleachaquenão.Dizquesuaimpres- são é de que as condições do assentamento de Canto do Buriti foram estabelecidas por “idealismo dos empresários”. “A infra-estru- tura de Canto do Buriti não tem como viver de mamona”, ele conclui com uma frase tor- ta, já que a promessa era de que os trabalha- dores – e não “a infra-estrutura de Canto do Buriti” – vivessem da mamona. Há enormes expectativas sobre o cresci- mento da produção de biodiesel no Brasil. A essaaltura,maisde70projetosjáforamauto- rizados a operar, com 3 bilhões de litros por anodecapacidadeprevista,60%aserinstala- daatéofimdesteano.Diversosgrandesgru- pos, nacionais e estrangeiros, estão envolvi- dos. O Brasil importou, no ano passado, 38 bilhões de litros de diesel de petróleo, 10% do seu consumo. A produção interna pode E m março deste ano, o presidente Lula discursou na apresentação do memorando de cooperação tecnológica assinado por ele e o presidente americano, George W. Bush, para expandir pelo mundo a produção de álcool vegetal. Ele foi superlativo: poderia estar nascendo, disse, “um novo momen- to da indústria automobilística no mundo, um novo momento dos combustíveis no mundo” e, “possivelmente, um novo mo- mento para a humanidade”. Duas sema- nas depois, em Goiás, referindo-se nova- mente aos negócios com o álcool, apontou os heróis desses novos e grandiosos tem- pos: “Os usineiros, que até dez anos atrás eram tidos como bandidos do agronegó- cio deste País, estão virando heróis nacio- nais e mundiais”. As palavras do presidente parecem, no mínimo, ingênuas. Como se verá neste capí- tulo, o novo surto de produção de álcool não tem a ver com uma nova fase da história: se- gue lógica básica e antiga dos negócios, a da concentraçãodoscapitais.Deve-se,inclusive, acharqueseusheróissãooutros,comosefaz no capítulo seguinte desta história. Pode-se datar o início do surto atual de negócios do álcool pela decisão do governo, em 2002, de eliminar impostos sobre os car- ros flex fuel, uma novidade que estimulou o consumo de álcool. Os novos carros foram lançadoscomercialmenteapartirdeabril reduzirasimportaçõeseatéanteciparde2013 para2010achamadaB5,ametademultiplicar de 2% para 5% a quantidade obrigatória de óleovegetalnodieseldepetróleoconsumido noPaís.Existeaindaaperspectivadosmerca- dos europeus, onde 10% do petróleo será substituído por biocombustíveis até 2020 e onde os veículos, tanto pesados quanto le- ves, usam basicamente diesel. Quantoaoempregoeàrendadostrabalha- dores a situação é outra. No balanço do seu primeirotrimestredesteano,aBrasilEcodiesel dissequehá57.606“famíliasparceiras”enãofaz referênciaàpromessainicialde1,67milhãode postosdetrabalho.OMDAdizquesão200mil pessoas envolvidas na produção de biodiesel: nadacomparávelaos4,7milhõesdepostosde trabalhoqueseriamcriadosatéesteano,como diziaapropagandadaBrasilEcodieselrecheada de logotipos do plano oficial. Em levantamento concluído no fim de 2006 por pesquisadores da Universidade de SãoPauloquevisitaramgrandepartedospro- jetosjáemfuncionamentoeapresentadoem livro por Célio Berman, professor do IEE, afirma-se: “O que se desenha, na verdade, é uma relação de produção, mas sem os encar- gos trabalhistas a que os agricultores teriam direitosefossemfuncionáriosdasfabricantes deóleo”.E: “Ainclusãodaagriculturafamili- ar”, no programa oficial, “foi idealizada de modo a favorecer os grandes produtores de biodiesel”,“permiteaograndeprodutorope- rar com uma margem expandida de lucratividade”. Os pesquisadores citam uma entrevista de Arnoldo de Campos dizendo exatamenteisso:“Umaempresanãovaibus- caraagriculturafamiliarporconsciênciasocial, porissoagentefezumbenefíciobemgordo. Elepodedobraramargemlíquidatrabalhan- do com a agricultura familiar”. ...e a mamona ficou nos galpões em Canto do Buriti
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  • 12. 12 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 FINANÇAS DO AÇÚCAR O dinheiro sempre foi o planejador da indústria, desde os holandeses. Na Era Vargas, porém, houve um certo planejamento pelo Estado O NEGÓCIO DAS USINAS de açúcar é velho como o Brasil. O açúcar era uma especiaria de muito valor, produzida no litoral pelos donos das “capitanias” em que se dividiu a colônia portu- guesa. Eram pequenos nobres em busca de fortuna, mas sem meios: tinham terras, mas não tinham dinheiro para comprar escravos africanos e equipamentos que Portugal não produzia. A Holanda, a potência financeira da época, os financiou. A produ- ção se concentrou: dos 390 engenhos da área de Pernambuco e Paraíba, um terço era de uma família só, os Cavalcanti. O açúcar brasileiro chegou a dominar o mercado mundial. De- pois, entrou em crise. E o café tornou-se a principal cultura do País, no Sudeste. A quebra do sistema financeiro mundial em 1929 fez desmoronar a economia agrário-exportadora de café. Da crise, com a Revolução de 1930, nasceu um novo arranjo econômico e político, comandado por Getúlio Vargas. Seu gover- no estabeleceu em 1931 a obrigatoriedade da adição de álcool à gasolina, que a partir de então sempre existiu, em proporções que variaram de acordo com a conjuntura. Vargas também criou o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que introduziu a pesquisa, o planejamento e uma política de incentivos no setor. A produção cresceu muito no Sudeste com a erradicação dos cafezais paulistas nos anos 1960. A produção nacional disparou a partir de 1975, sob os governos militares, com o lançamento do Proálcool. E, em 1990, tudo mudou. O governo de Collor de Mello extinguiu o IAA e anunciou o fim do planejamento e da regulação, que persiste: pela mão do mercado. de 2003, por diversas montadoras e pas- saram a ter vendas espetaculares. A safra de cana 2006/2007 foi de 476 milhões de tone- ladas. Dela saíram 17,7 bilhões de litros de álcool, 14 bilhões consumidos aqui, o res- tante exportado. Em dez anos, com a reno- vação da frota de veículos à base de carros flex, que hoje são cerca de 85% dos novos carros vendidos, a demanda interna pode dobrar. E o mercado externo também pode disparar. Os EUA precisariam de mais de 100 bilhões de litros de combustíveis alter- nativos por ano para reduzir em 20% o con- sumo de gasolina no país até 2017, como proposto pelo presidente Bush. “Há uma janela de longo prazo para o etanol”, diz José Eli Veiga, coordenador do Núcleo de Economia Socioambiental da USP. “E essa janela deverá durar de 20 a 30 anos.” Sãocercade350usinasexistentes,90em fase de instalação e cerca de 200 em projeto. Há uma modernização e um agigantamento: uma grande usina esmaga hoje 1 milhão de toneladas de cana por ano; a próxima leva de grandes é para 4 milhões de toneladas. Esti- ma-se que mais de 300 usinas ainda sejam geridas por famílias de usineiros no estilo antigo. Masasituaçãoestámudandoacelera- damente. O processo de concentração pode servistoatravésdasaçõesdeRubensOmetto, ocontroladordaCosan,amaiorempresabra- sileira do setor – na última safra, faturou 3,6 bilhões de reais, com lucro de 360 milhões de reais. Ometto é “o primeiro bilionário mundial do álcool”, diz a revista Forbes. Usineiro diretor de banco FoiOmettooprimeironoseusetoradar o grande passo para aproveitar a estabilidade econômicanova–apoiadanumaespetacular abertura financeira – criada no País pelos go- vernosColloreFHCemantidapelogoverno Lula. É um usineiro de tipo novo, de família deusineiros,mascomcarreirabem-sucedida no mercado financeiro: foi diretor do Uni- banco. Tornou-se presidente da Cosan em 1986. Começou adquirindo empresas com empréstimos.Emdezembrode2005,jácom 17usinasebastanteendividado,eleviuaBol- sa, para onde fluíam capitais externos. E deu osalto:lançouaCosannoNovoMercadoda Bovespa, onde estão empresas que obede- cemacertosrituaisquepassaramacaracterizar amodernidadeempresarialcomo“responsa- bilidadesocial”,“sustentabilidadeambiental” e “governança corporativa”. E a jogada deu certo: captou 740 milhões de reais, a custo zero, de novos sócios, a quem vendeu 26,7% deaçõesdaempresa.Asegundagrandejoga- da de Ometto está em curso. No último dia 25 de junho, anunciou a criação de uma holdingcomaqualpretendefazercaptaçãode 2 bilhões de dólares em NovaYork. O jornal Valor Econômico diz que a expectativa de OmettoédequeaCosanchegue,comolan- çamento americano, a um valor de mercado de 20 bilhões de dólares. O problema dessa segunda operação é que Ometto não está sozinho na praça. Nem em sua própria empresa, na qual ele detém o bloco de controle, mas que agora tem mi- noritários que esperam uma oportunidade para desbancá-lo. Para se garantir ele criou uma holding, a Cosan Limited, noutro am- biente: no Caribe, em Bermudas. E, para seu estatuto, parece ter copiado regras dos dois sócios da Google (que, aliás, visitaram a Cosan há dois anos) que controlam a em- presa, tendo cerca de 10% do seu capital. Ometto lançou à venda ações diferenciadas da Cosan de Bermudas – controladora da Cosan brasileira – que teriam os mesmos direitos ao lucro das suas, mas um poder de voto nas decisões da empresa dez vezes menor. Os periódicos das grandes empre- sas que cobrem o setor de um modo geral tomaram as dores dos minoritários. E Reprodução
  • 13. 13 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 A Bovespa foi o primeiro passo de Ometto; agora, é vez da Bolsa de Nova York GERMANO LUDERS/Editora Abril Ometto recuou. No dia 30 de julho, publi- cou anúncio mudando as regras para o lan- çamento das ações em Nova York, marca- do para este segundo semestre. Omettoestánumadisputadegentegran- de.Nocomeçodoano,tentoucompraraVale do Rosário, a segunda maior empresa do se- tor.A Vale tinha 130 acionistas, mas seu con- troleestavacomafamíliaBiaggieosJunqueira Franco. Estes tiveram o apoio do Bradesco – um financiamento de 1,35 bilhão de reais – e exerceramodireitodepreferêncianacompra dasaçõespretendidasporOmetto.AValedo Rosário recusou a proposta de Ometto por- que estava em outra. Desde o fim de 2006 – juntamente com a Santa Elisa, outra grande usina, e a trading Crystalsev, parceira desde 1998, da Cargill, uma das maiores empresas doagronegóciomundial–,procuravaformar um bloco maior, com capitais estrangeiros. Em meados de março de 2007, o bloco se formou com a trading americana Global Foods e o fundo de investimentos Carlyle Riverstone, também dos EUA. Foi criada a Companhia Nacional de Açúcar e Álcool (CNAA) – que pretende ser como a Cosan quandocrescer:processar40milhõesdetone- ladas de cana por safra, com a construção de mais quatro usinas, sendo três em Minas e uma em Goiás. E,para coroar essa operação, no dia 19 de julho, o presidente mundial da Dow Chemical veio ao Brasil para anunciar um pólo alcoolquímico com a Crystalsev de um1bilhãodedólares,aserconstruídoentre 2008 e 2011, que produziria 350 mil tonela- das anuais de “polietileno verde” (sobre esse plástico “ecológico”, mais a seguir). Quemacreditaquedinheiroéoquepro- duz riqueza fica maravilhado com os bilhões dedólarescitadosnessesnegócioseachaque o papel do Estado é esse mesmo: o de man- ter escancaradas as fronteiras financeiras do País,paraqueelessemultipliquemlivremen- te; e ajudar no que for possível. Nesse senti- do, os bancos estatais estão fazendo o seu papel.OBancodoBrasiltemperdoadodívi- dasdeusineiros–jámaisde1bilhãodereais; e o BNDES tem dado financiamentos cada vez maiores, estimam-se 3 bilhões de reais nesteano.Aquantidadeobrigatóriadeálcool nagasolinafoielevadade23%para25%,para tentarimpediraquedadospreços,devidoao excesso de oferta provocado pelo otimismo dos produtores. APetrobrasestápraticamenteforadapro- duçãodeálcool.Assugestõesparaqueaesta- tal crie uma subsidiária para a produção de álcool são poucas e não têm qualquer apoio junto aos chamados formadores da opinião pública, para os quais uma nova estatal é um descalabro que não exige demonstração. A companhiaparticipadaeuforiadoetanolbus- cando uma fatia nos lucros da distribuição, através da Petrobras Distribuidora. Ela é um dos braços da Brasil-Japão Etanol, cujo prin- cipalprojetoéumálcooldutode750milhões de dólares, ligando Senador Canedo, em Goiás, aos portos do Rio e de Santos, que contribuiria para mais que dobrar as atuais exportações brasileiras até 2012. As usinas, cerca de 40 para abastecer o duto, serão de investidores privados. ACosandisputaaliderançadareestrutu- raçãodocontroledasusinasbrasileirasnasel- va do mercado global: com empresas gigan- tes apoiadas por Estados imperiais. Os qua- tro grandes grupos do agronegócio mundial tradicional estão se voltando para o etanol brasileiro: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus. Destacam-senesseesforçoaADMeaDreyfus. A ADM é o sustentáculo do programa ame- ricanodeproduçãodocombustível.Umlitro de etanol de cana custa 24 centavos de dólar; um de milho custa 50% mais: 36 centavos. A produçãoamericanadeetanoldemilhoétam- bém menos eficiente, do ponto de vista da redução do gás carbônico. Mas a ADM tem enorme apoio: nos anos 90, quase metade dos lucros da empresa veio de produtos que o governo norte-americano subsidia ou pro- tege.ParaentrarnosEUA,oetanolbrasileiro é obrigado a pagar uma tarifa de 14 centavos dedólarporlitro. Deolhonofuturo,aADM cogita comprar a Cosan, disse o diretor de estratégia da empresa, Steven Mills, ao Wall Street Journal em meados do ano. A Dreyfus está na disputa pelo etanol brasileiro através da Louis Dreyfus Commodities Bioenergie. Nosúltimostrêsanos,comproucercadedez usinas por cerca de 2 bilhões de dólares. Re- centementefoianunciadaaentradanaLDCB de um grupo liderado por Wafic Saïd, bilio- nário sírio ligado à corte da Arábia Saudita. Um perdoa, outro empresta Váriosoutrosgrandesestãoaindanadis- puta com dinheiro na casa do bilhão de dóla- res,comoomegaespeculadorGeorgeSorose um grupo que tem à testa Henry Felipe Reichstul, ex-presidente da Petrobras e onde estão James Wolfenson, ex-presidente do Banco Mundial, Vinod Khosla, fundador da Sun Microsystems, e até mesmo Bill Clinton. Nofimdejunho,entroupesadononegó- ciotambemabrasileiraOdebrecht.Comcerca de 2,5 bilhões de dólares, em oito anos ela tambémpretendeserumaCosan:esmagar40 milhões de toneladas de cana por ano. Já está operando: comprou a Alcídia, em Teodoro Sampaio (SP), que mói 1,2 milhão de tonela- dasdecanaanualmenteepassarápara4,2mi- lhões em 2013. Em parceria com a Braskem, quecontrola,aOdebrechtanunciou,nofimde junho, antes da Dow Chemical, portanto, o “polietileno verde”, produzido do álcool de canaenãodopetróleo,comootradicional. FONTE: Ministério das Minas e Energia, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, janeiro de 2007 O NOVO SURTO DO ÁLCCOL Usinas de etanol e açúcar, em construção (em azul) e existentes (em vermelho) 2
  • 14. 14 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 U m dos negócios do etanol parece espe- tacular. É o da Etanalc, empresa de Áureo Luiz de Castro, empreiteiro de imóveis no Rio. Foi anunciado no início deste ano, de- pois de reunião, em Palmas, do governa- dor do Tocantins, Marcelo Miranda, com Castro e mais 20 empresários. Castro dis- se aos jornais que a Etanalc já tinha arren- dado 700 mil hectares de terras no estado e iria arrendar outro tanto nas vizinhanças para plantação de cana e construção de até 24 usinas ao custo de 350 milhões de dó- lares cada, 8,4 bilhões de dólares no total. O álcool seria essencialmente para expor- tação: a Sempra, uma das maiores empre- sas de gás dos EUA, o venderia nos mer- cados americano e japonês. Um vice-presi- dente da Sempra esteve na reunião de Pal- mas e assinou protocolo de intenções para a compra do combustível, por 20 anos. No projeto está também a multinacional alemã Man Ferrostaal, que, segundo Cas- tro, ficaria responsável pela entrega, em três anos, das usinas “totalmente concluídas, chave na mão”. A tecnologia alemã é espetacular – é in- discutível. Mas, por que não a tecnologia brasileiraque,porincrívelquepareça,naárea da fabricação das usinas de açúcar e álcool, é líder no mercado mundial, como se verá logo a seguir? A questão da tecnologia, no debate de um plano nacional para o etanol, como às vezes o presidente Lula parece su- gerir, é essencial. Tome-se o caso dos mo- tores flex fuel. Eles foram decisivos para o atual surto dos negócios: viabilizaram o consumo de álcool, um combustível relati- vamente caro, numa conjuntura de grande oscilação nos preços da gasolina, o produ- to que o álcool substitui. O álcool combustível tem, no mercado, o chamado preço de oportunidade, deter- minado pelo preço da gasolina. O atual ministro de Minas e Energia, Nelson Hübner, resume esse preço de oportunida- de dizendo assim: com o petróleo acima de 50 dólares o barril, “os usineiros estão ga- nhando muito dinheiro”, e enfatiza o mui- to. A primeira oportunidade surgiu quan- do o barril do petróleo pulou de cerca de 10 dólares para 80 dólares o barril, entre 1973 e 1978. Com a crise financeira do começo dos anos 80, que quebrou dezenas de países subdesenvolvidos – o Brasil, inclusive –, o consumo de petróleo caiu e o preço des- pencou. No fim daquela década, o álcool só era viável com enorme subsídio. O gover- no foi, então, saindo do programa, até que a produção de álcool caiu muito, seu preço subiu demais e muita gente que tinha carro a álcool ficou com um produto inviável. Se existisse na época o carro flex fuel, isso não ocorreria. Não é que mudaram os combustíveis. Mudaram os carros. Os flex fuel podem usar os dois combustíveis dis- poníveis nos postos de gasolina de prati- camente todo o País desde meados dos anos 70: o álcool hidratado, com pequena quantidade de água, e a gasolina mistura- da com álcool anidro, praticamente puro, que é a gasolina obrigatória, por lei. Os carros antigos, não: ou eram de um tipo ou de outro; para um ou outro combustí- vel. Os flex são uma novidade criada no Brasil, na década de 90. A tecnologia, mos- tra o trabalho da pesquisadora Evelyn Teixeira, é registrada em nome de duas fir- mas estrangeiras instaladas no País, a ale- mã Robert Bosch e a italiana Magneti Marelli – cujas matrizes, de acordo com o que é norma nas multinacionais, recebem os royalties correspondentes. Mas foi de- senvolvida por equipes nas quais os brasi- leiros tiveram o papel central. O caso absolutamente raro No caso das indústrias de equipamen- tos e insumos para as usinas de álcool, a criação de tecnologia nacional é ainda mais expressiva. Uma visita à sede da Dedini Indústrias de Base, em Piracicaba (SP), mostra isso: a empresa fabrica fábricas, caso absolutamente raro na indústria brasileira, que é basicamente compradora de tecnolo- gia. A Dedini entrega usinas de açúcar e ál- cool prontas, no esquema turn key, chave na mão. Projeta, constrói os equipamen- tos, monta, instala, põe para operar e for- nece assistência técnica para o mundo intei- ro: tem 25% do mercado mundial em seu setor. A tecnologia, com exceção de alguns motores, válvulas e instrumentos, é sua, made in Piracicaba. A empresa faturou cerca de 1 bilhão de reais em 2006 e prevê 1,8 bilhão para este ano. O vice-presidente de tecnologia e desen- volvimento da Dedini, José Luiz Olivério, cita várias outras empresas da região que, embora menores, competem com a sua. E diz: “O Brasil pode responder ao avanço do setorsucroalcooleirocomcapital100%naci- onal”. Na área do biodiesel, o Brasil, como se sabe, saiu muito atrás da Europa. Mas a Dedini rapidamente se atualizou. Em asso- ciaçãocomaBallestra,italiana,jáforneceusi- nas para biodiesel também. Produziu, por exemplo, os equipamentos para a usina Barralcool, de Barra do Bugres (MT), inau- gurada no fim de 2006 pelo presidente Lula. Ela é a primeira no mundo a ser, o que Olivério chama de multifeedstock e 3 bio: Com o programa do álcool, o Brasil saiu na frente; no do biodiesel, atrás FONTE: BP Statistical Review of World Energy, 2006 O PREÇO DO PETRÓLEO É O GUIA 3 FONTE: The Economist, 22 de abril de 2006 *Sem levar em conta benefícios fiscais **Se o gás natural usado fica a US$ 2,50 ou menos por milhão de BTUs ***Se o carvão usado fica a US$ 15 por tonelada, ou menos Elas surgem, como agora, quando o petróleo passa de 40 dólares por barril A HORA DAS ALTERNATIVAS PETRÓLEO A US$ 80 / barril US$ 60 / barril US$ 50 / barril US$ 20 / barril US$ 40 / barril ALTERNATIVA VIÁVEL biodiesel* etanol de milho americano* etanol de cana brasileiro, diesel com gás líquido** e diesel com carvão líquido*** petróleo convencional xisto 4 TECNOLOGIA E OPORTUNIDADE O carro flex fuel foi inventado aqui e paga royalties. Mas a indústria que faz as indústrias do álcool, por incrível que pareça, é nacional 0 60 10 80 40 30 20 70 50 90 1920-29 2000-06 1980-89 1960-69 1940-49 primeira crise do petróleo segunda crise do petróleo programa do biodiesel brasileiro programa do biodiesel europeu Brasil lança o Proálcool 100 US$ por barril
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  • 16. 16 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 N ão é o ouro que cria riqueza: o valor vem do trabalho. A conclusão é consenso entre AdamSmith,DavidRicardoeKarlMarx.As obras básicas desses três gigantes da econo- mia clássica foram feitas na Inglaterra, entre os fins dos séculos XVIII e XIX, justamente a época na qual a indústria do açúcar passava dotrabalhoescravoparaotrabalhoassalaria- do. Mas, como se sabe também, por aqui a escravidão teve vida mais longa. E parece até natural achar que trabalhadores se matam de trabalhar pela virtude de viverem num país livre, especialmente num estado rico e liberal como São Paulo. O estado tem metade das usinas e mais de 60% da produção. Emprega cerca de 170 mil pessoas, na maioria homens, entre 18 e 50 anos de idade. Mais da metade vêm do Nordeste. Elas ficam entre março e novem- bro e depois voltam. No ano seguinte, retornam. Na safra de 2006, mais de 70 mil pessoas participaram desse vaivém, confor- me estimativa do professor José Novaes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para o corte mecanizado,exige-se habili- tação qualificada; para o manual, vão os nor- destinoshabituadosaotrabalhodurodaroça. Made in Piracicaba: ele anuncia a primeira usina multifeedstock e três bio A mecanização depende do relevo do terre- no: os equipamentos ainda não entram em áreascommaisde12%dedeclividade.Mas,o índice de mecanização está crescendo. Em 2007,cercade45%dasusinasusaramocorte mecanizado, ante 40% em 2006. Em áreas planas, como a de Ribeirão Preto, o índice de mecanizaçãochegoua70%. “No corte manual”, explica Novaes, “o instrumento de trabalho continua sendo o facão, asinovaçõeslimitam-seamelhoriasna lâmina e no cabo. E o contrato é, na maioria das vezes, por tempo determinado, contrato safrista.” O ganho é por produção, quanto maissecorta,maisseganha.Opisopagoéde 415 reais por mês, corresponde a seis tonela- dasdecanacortadapordia(paracomparação, estima-se que no século XVII um escravo cortava duas toneladas de cana por dia). De fato, corta-se mais. Estima-se que a produti- vidade do cortador de cana vem dando sal- tos: de cinco a oito toneladas nos anos 80; para oito a nove, nos anos 90; para 10, em 2000; e 12 a 15 toneladas, em 2004. Segundo oInstitutodeEconomiaAgrícoladeSãoPau- lo, a produtividade diária dos cortadores su- biu 7,89% de 2004 para 2007. E, a fim de funciona a partir de diversas oleagino- sasedegordura;eproduzeletricidade,etanol e diesel. Olivério explica também que a Dedini atingiu, finalmente, uma meta per- seguida há tempos: produzir álcool a mais nas usinas, a preços competitivos, a partir de material extraído do bagaço da cana. Desde 2002 a empresa já fazia etanol assim, mas a um custo alto, agora reduzido em cerca de 30%,para27centavosdedólarporlitro.“Isso poderá ampliar a produção de etanol de uma usina em 30% sem que se plante um só pé de cana adicional”, diz Olivério. Mecanizado e competitivo Ainda em busca das possibilidades da tecnologia nacional no setor, pode-se ir, em Piracicaba, até a centenária Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. O coorde- nador do curso de graduação de biocom- bustíveis da escola, Fábio Silva, acha que muita coisa ainda pode ser melhorada na indústria. Poucas usinas ainda usam o ba- gaço de cana para produzir eletricidade ex- cedente para vender na rede elétrica nacio- nal: das mais de 300, menos de 40 fazem isso. O tratamento de resíduos – da água de lavagem da cana, das emissões gasosas, da fuligem das chaminés, da torta de filtro e da vinhaça – ainda é ineficiente. A torta é de cerca de 40 quilos por tonelada de cana de detritos que saem compactados do pro- cesso de purificação do caldo. A vinhaça é um resíduo líquido da destilação que pode ser usado como fertilizante do solo: por- que contêm potássio, é util para as plantas. Para cada litro de álcool produzido, pro- duz-se de 10 a 12 litros de vinhaça. “Mas só 30% da área dos canaviais recebe a aplicação da vinhaça”, diz Silva. Finalmente, em Piracicaba, RBCC visi- tou o Pólo Nacional do Biocombustível. O engenheiro Weber Amaral, diretor do Pólo, diz que o Brasil é competitivo no ál- cool não porque a mão-de-obra é barata. “Nos EUA”, diz, “90% da produção de etanol é mecanizada. Comparando a pro- dução de etanol de cana altamente mecani- zada com a de milho altamente mecaniza- da, somos 40% mais baratos. Porque pro- duzimos quase 90 toneladas de biomassa por hectare, sem contar mais um terço que é subutilizado, da ponta da cana e do baga- ço. Hoje você extrai quase 88 litros de álcool por tonelada de cana: a média era de 50 li- tros duas décadas atrás. Isso foi consegui- do com engenharia química, novas varieda- des de leveduras, com o controle do pro- cesso de fermentação.” Essa tecnologia foi desenvolvida no Brasil, por empresas lo- cais, afirma. Amaral contesta a posição da repórter, de que a produtividade aumentou porque se “dilapida a mão-de-obra”, para usar a expressão de pesquisadores ouvidos por ela. Ele comenta: “A produção é competiti- va não porque os usineiros exploram a mão-de-obra. Até porque, quem corta mais, ganha mais, e quem decide o quanto cortar é o trabalhador”. Se o trabalhador é que cria a riqueza ou não, se é livre ou não para decidir cortar muita ou pouca cana, é assunto para o nos- so próximo capítulo. ANTÔNIO E SEUS IRMÃOS Há um inquérito, de tipo sociológico, para saber se ele, e outros como ele, era livre apenas para morrer de trabalhar Lia Imanishi Rodrigues
  • 17. 17 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 falta,otrabalhadoraindaperdeacestabásica do mês. “Soros e remédios podem ser vistos comoexpressãodeumparadoxo,deumtipo de expansão e modernização da lavoura canavieira, que dilapida a mão-de-obra que a faz florescer”, diz o pesquisador A professora Maria Moraes Silva, da Unesp, emSãoCarlos, estuda,há30anos, os migrantes dos canaviais. Ela explica que o ci- clo de vida útil desses trabalhadores é seme- lhante ao dos escravos e sua condição de tra- balho é análoga à escravidão. Seu argumento merecesercitadoextensamente.Eladiz: “Até 1850, antes da proibição do tráfico daÁfrica,avidaútildeumescravoerade10a 12 anos. Com a proibição, os escravos passa- ram a ser mais bem tratados e sua vida útil passouaserde15a20anos.Emcomparação, nas décadas de 80 e 90, o trabalhador dos canaviais tinha uma vida útil de trabalho de 15 anos. A partir de 2000, esse tempo caiu paraapenas12anos.Éprecisoconsiderarque, devidoamelhoramentosgenéticos,acanahoje contém menos água, é mais fina e pesa me- nos. Segundo o cálculo de alguns sindicatos, na década de 80 o trabalhador cortava 100 metrosdecanaeissoequivaliaa10toneladas; hoje,eletemdecortar300metrosparaobter as mesmas 10 toneladas. Isso aumenta mui- to o esforço, o desgaste físico. Otrabalhoescravoédefinidoatualmente como aquele no qual o trabalhador não tem direitodeirevirenoqualtambémpredomina aescravidãopordívida.AquinoestadodeSão Paulo,nãovamosencontrartrabalhadoresnes- sa condição. Porque, do ponto de vista legal, supõe-sequeobóia-friatemliberdadeparavir e voltar para o seu local de origem quando quiser. No entanto, numa análise sociológica, maisafundo,existemlaçosinvisíveis,corren- tes que obrigam o trabalhador a aceitar esse trabalhotãopenoso.Elenãovemporquequer. Sevocêforlá,deondeelesvêm,comoeufui, vaiperceberqueelevemnãoporquequer,mas porquenãotemcomosobrevivernoseulocal de origem. Então, ou ele vem ou morre de fome junto com a família. A migração é uma imposição,nãoumaescolha.” A migração imposta “Ascondiçõesparaamigraçãosãoimpos- tas pelo mesmo processo. Nos últimos anos, comadisseminaçãodoplantiodecana-de-açú- car no Centro-Sul, a pecuária dessa região foi empurradaparaáreascomooMaranhão,onde antessecultivavababaçu.Semesserendimen- to, pequenos produtores têm sido impelidos airparaSãoPaulocortarcana.Em2000,uma centenadetrabalhadoresmaranhensesfoicon- tratada por empreiteiros de usinas paulistas. Na última safra, só na pequena Timbiras, na- queleestado,foram7mil.NoPiauí,ospeque- nosagricultoresfamiliaresestãosendodesalo- jados pelos sojicultores do Centro-Sul, que tambémforamatrásdeáreasmaisbarataspara plantar. Com isso, os piauienses também têm sido encontrados entre os cortadores de cana deSãoPaulo. Veja bem: hoje um trabalhador corta por diapraticamenteodobrodacanaquecortava nadécadade80.Essametadeprodução,mes- mo que não explícita, é mais uma imposição, não uma liberdade. Porque quem corta me- nosédispensado. Padrõesdecomportamen- to do gênero masculino fazem com que o trabalhador se submeta a esse trabalho exte- nuante. A maioria são homens jovens: por exemplo, maranhenses que viajaram 3,8 mil quilômetros para chegar aqui. Eles vêm em busca de sonhos, de um dinheiro para com- prar uma mercadoria, não só para eles, mas para a família. Se ele volta com esse bem, vai servistocomoalguémquevenceu.Vocêpode imaginar o que significa voltar como alguém que não conseguiu? São fatores invisíveis no processo, mas que contribuem para a aceita- ção de um trabalho que pode levar à morte por exaustão.” Paraaprofessora,aúnicaformadeelimi- nar essa situação é acabar com o pagamento por produção. Para isso teria de haver tam- bém um aumento do piso salarial. Ela acha que, para repor os níveis salariais do fim dos Heróis: ele, de Berilo, Minas; ela, de Tapiramutá, Bahia obter 1,2 mil mensais, trabalhadores chegam a cortar até 30 toneladas num dia. O professor Novaes diz que há um siste- madeseleçãoparadeixarapenasquemcorta no mínimo 10 toneladas por dia. “Sem no- mear a usina,relato um caso que observei. A usina contratou 5 mil trabalhadores no início da safra. No primeiro mês, calculou o rendi- mento médio da turma. E descartou 2 mil que não conseguiram alcançar a média. No segundo mês, o mesmo procedimento se re- petiu entre os 3 mil trabalhadores restantes. Nessa etapa, foram podados mais mil. Ao final, a usina tinha 2 mil cortadores, altamen- te produtivos, que conseguiam produzir o mesmo que os 5 mil do início da safra, cor- tando até 20 toneladas por dia, com uma médiamensalentre12e17toneladaspordia.” O paradoxo da modernidade Cortarmuitacananãofazbemàsaúde.A transpiraçãoexcessivaprovocaperdadesais. A cãimbra, o acúmulo de ácido láctico na musculatura, é o primeiro sintoma das per- das.Algumasusinasagorafornecemumcom- postoquerepõeperdasdevitaminaseproteí- nas e que, tomado diariamente, tira as dores do corpo, diminui as cãimbras e aumenta a produtividade. Trabalhadores chegam a to- mar doses maiores que as permitidas, para produzir mais e ganhar mais. Para aliviar as dores no corpo provocadas pelo excesso de trabalho, usam antiinflamatórios, prescritos por médicos ou adquiridos livremente nas farmácias.Elesfazemissoparanãoseafastar do trabalho por doença, quando passam a receber o dia não trabalhado pela diária, cujo valor era de apenas 14 reais na safra de 2006, diz Novaes. Em muitos contratos, com uma Folhapress
  • 18. 18 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 É COM ESSE QUE EU VOU? A parceria proposta por Bush é objetiva, defende interesses claros. Mas há outras N o fim de julho, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, disse que as discussões sobre agroenergia no governo estavam evo- luindoequeaidéiaeracriarumórgãocentral para cuidar do assunto, até então a cargo de meia dúzia de ministérios e sem um plano nacional. Estudos a respeito o governo Lula faz há tempos.Jáem2003foifeitoum,sobcoorde- naçãodoNúcleodeAssuntosEstratégicosda PresidênciadaRepública.Elemapeouasáreas consideradasadequadasàexpansãodoplantio decana-de-açúcar.Sãoterrasquesomam79,4 milhões de hectares, 10% da área do País. O então secretário-executivo do NAE, coronel Oswaldo Oliva Neto, disse na ocasião da di- vulgaçãodoestudoqueogovernoqueriaevi- taraexpansãodacanaparaáreasinconvenien- anos 80, o piso teria de ir dos atuais 410 reais por oito horas para 820 reais, o dobro. Desde 2004, a Pastoral do Migrante de Guariba (SP) contabiliza os óbitos suspeitos deteremsidoprovocadosporexcessodetra- balho,eoMinistérioPúblicoFederalosinves- tiga.São20mortesnosetorsucroalcooleirono interior de São Paulo sob essa suspeição. As denúnciasdaPastoralchamaramaatençãode diversasentidades.Audiênciaspúblicasforam realizadas nas Câmaras de Ribeirão Preto e PiracicabaenaAssembléiaLegislativadeSão Paulo.Desde2005,na15ªPromotoriadoMi- nistério Público do Trabalho, de Campinas, umgrupode12procuradoresinvestigaasrela- çõesdetrabalhonaslavourasdecana.Emse- tembro deste ano, durante uma diligência em Ribeirão Preto, os promotores receberam a notíciadequeumhomemde55anos,natural de Santana dos Garrotes (PE), havia falecido talvez por excesso de trabalho: sentiu-se mal duranteocortedecanaetevemortesúbitano trajeto para o hospital de Borborema. “Fo- mosparalá,analisamostodaadocumentação referente aos trabalhadores mortos. Pelas planilhas de produção vimos que todos eram tidoscomocampeõesdeprodutividade,esta- vamsempreentreaquelesquecortamde15a 20 toneladas por dia e gozavam de boa saúde aoseremadmitidos”,dizoassessordecomu- nicaçãodaProcuradoria,CarlosAlbertoTidei. Arrendatário, depois sem-terra A reportagem de RBCC conversou tam- bém com a mulher de um desses campeões, AntônioRibeiroLopes.MaíldesAraújoconta queomaridomorreunodia23denovembro de 2005, depois de meio dia de trabalho no cortedecana,quandojátinhacortado17tone- ladas.Elepassoumalàs9damanhã,ficouaté as10h30semtrabalhar,voltouparaotrabalho, passou mal de novo às 15 horas. Foi levado paraohospital,teveumaparadacardíacaainda naambulância,depoisoutranohospital,onde morreu.ElesmoravamemGuaribahá35anos. Ele veio de Berilo, Minas Gerais; ela, de Tapiramutá, Bahia, ambos para trabalhar no cortedecana.Eladizque,mesmosendo“fra- quinha”,chegouacortar10toneladaspordia. Masque“queméfraco,napróximasafraeles nempegamparatrabalhar.Euseiporquetra- balhei33anosnocortedecana.Eutenhouma amiga aqui, vizinha, que todo ano muda de usinaporqueelaéfraca,cortapoucacanaeeles sempre mandam ela embora”, diz. Seascondiçõesdevidadoscortadoresde canaparecemseagravar,asituaçãodospeque- nos proprietários de terra em torno das usi- nas está mudando, na aparência, mas talvez só na aparência, para melhor. Os usineiros estão arrendando cada vez mais terras e em- purrando os pequenos proprietários para as cidades.Aproduçãodoaçúcaredoálcoolno estado de São Paulo está cada vez mais con- centrada nas mãos de grandes usinas e gran- desfornecedores.PedroRamos,pesquisador eprofessordaUniversidadeEstadualdeCam- pinas(Unicamp),dizque75%dacanamoída pelasusinasédeterrasdasprópriasusinasou arrendadas por elas; apenas 25% são de for- necedoresindependentes. Os novos empreendimentos emprega- rão mais gente, evidentemente. Mas a meca- nizaçãodeveseacelerar,desempregandogen- te. A pressão do movimento ambientalista contraaqueimadacanaquefavoreceocorte manual aumentou. Para a nova safra foram abertas5,7milnovasvagasqueexigemquali- ficação:éprecisoteraténoçõesdeinformática e de inglês, para saber operar as máquinas, pois muitos tratores são estrangeiros. Os cortadoresdecanarecebememmédiade700 a1,2milreaismensais.Umavagaparaprofis- sional qualificado pode pagar 3 mil reais. Eérazoável–emboranãosejaalentador –preverqueosempregoseliminadosnocor- te manual da cana não reaparecerão como empregos de operadores de máquinas supermodernas. tes.Asintençõesdocontroleestãodecertafor- ma nos discursos do presidente, os quais de- fendemaexpansãodoplantiodebiocombus- tíveisnoBrasil:aexpansãodevesedaremter- ras atualmente subutilizadas pela pecuária, de modoanãoprejudicaraproduçãodealimen- tos e preservar o Pantanal e a Amazônia. Das intenções aos fatos, no entanto, há uma dis- tância. O coronel Oliva Neto defendia que o plantio de cana em certas áreas deveria ser desestimulado, com políticas de restrição de créditoequeumapropostacomesseobjetivo jáestavanamesadopresidenteLula. AsdeclaraçõesdoministroStephanesre- tomam a idéia de uma regulamentação. Seria publicado um mapa do zoneamento agríco- la,específicoparaaculturadecana.Segundoo ministro, “vamos ter um zoneamento da Com a mecanização haverá empregos de salário bem maior. Mas, muito menos emprego Julia Moraes
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  • 20. 20 ENERGIA RETRATO DO BRASIL | agosto 2007 | no 1 Uns olham as estrelas, ele olha o campo: oqueseesperaéumplanomelhorqueodeBush plantação de cana com um mapeamento restritivo.Essemapavaiproibirqualquerpos- sibilidade de plantação de cana no bioma amazônico e no bioma do Pantanal”. Tam- bém seriam estabelecidos incentivos para di- rigiraplantaçãodecanaparaáreasdegradadas, comopastagensextensivas.Outraregraseria adeque70%daproduçãodecanaconsumida porumausinadeveriavirdeprodutoresindi- viduais.Ogovernopretenderiaaindareduzir oprazoparaasqueimadasdecanaefazercom que as usinas tivessem “uma visão social” sobreaparticipaçãodostrabalhadoresaolon- go de todo o processo. Por enquanto, boas intenções No mesmo dia das declarações de Stephanes, o presidente Lula afirmou que o debate sobre biocombustíveis era “extrema- mente sério” e que estava pretendendo dar a ele“statusdesoberanianacional”.Mas,como o ministro disse que o mapa do zoneamento deveria sair dentro de um ano, a conclusão é de que, quanto a um plano que conclua o debate, o governo, por enquanto, continua apenascheiodeboasintenções. Mesmo uma questão ainda mais crítica, quedizrespeitoàLei5.179,nãofoiresolvida. A lei impõe uma vasta lista de restrições à possedeterrasporestrangeirosnoPaíseteria impacto sobre os grandes arrendamentos e compras de terra para a cana por empresas estrangeirasoudecapitaismistos.Ogoverno Fernando Henrique Cardoso aprovou, em 1994,arevogaçãodoartigo171daConstitui- ção,quedistinguiaasempresasbrasileirasfor- madasporcapitaisestrangeirosinstaladosno País“dasempresasbrasileirasdecapitalnacio- nal”. E seu advogado-geral da União, Geral- do Quintão, emitiu parecer dizendo que isso congelavaaaplicaçãodaLei5.179.OInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) anunciou há dois meses que o gover- no emitiria uma portaria para, no fundo, re- vogar a tese de Quintão e reafirmar que a lei com as restrições à posse de terra por estran- geirosestáemvigor.Masatéagoradaquitam- bém não saiu nada. O mesmo não se pode dizer dos planos do governo americano para os biocombustí- veisque,agora,depoisdosencontrosdopresi- dente Lula com o presidente Bush, incluem explicitamenteoBrasil.Hátempososamerica- nossubsidiamaproduçãodeálcool.Deinício, basicamente para usá-lo na gasolina como substituto do aditivo principal do combustí- vel,oétermetil-butilterciário(MTBE,nasigla eminglês),quesedescobriusercancerígeno. Posteriormente,comanecessidadedere- duzir o uso da gasolina, para diminuir a de- pendênciadopetróleoimportadoedarsatis- façãoàcampanhaglobalpelareduçãodouso dos combustíveis fósseis, os americanos ace- leraram a produção de etanol. Em janeiro desteano,emseudiscursosobreoEstadoda Nação, no qual definiu seu país como viciado em petróleo, o presidente Bush deu um caráter deurgênciaàproduçãodocombustívelvege- tal: estabeleceu a meta de substituir 20% da gasolinaconsumidanopaísporetanolem20 anos.E,posteriormente,apartirdosacordos comopresidenteLula,emmarçoeabril,como que definiu que o Brasil deveria ser parceiro dos EUA no plano de criar um mercado mundial de álcool combustível, de transfor- mar o produto no qual os brasileiros se des- tacam há tempos numa commodity do mer- cado global. Acadaano,nosEUA,cercade22bilhões delitrosdeálcoolsãonecessáriosparasubsti- tuir o MTBE, cujo uso em combustíveis está sendo eliminado. Para substituir 20% da ga- solinaporálcool,comopropõeBush,osEUA precisarãode132,5bilhõesdelitrosdeálcool por ano, em 2017. A agricultura americana é formidável: há dez anos, o país produzia 3,7 bilhões de litros de álcool vegetal, menos de um terço da quantidade produzida no Brasil; em2006,produziuquase20bilhõesdelitros, maisqueaproduçãobrasileira.Oenormein- centivoamericanoàproduçãodoetanolapartir do milho, se deu esse resultado espetacular por um lado, por outro deformou os preços. Em junho deste ano, comparado com janei- rode2006,opreçodomilho,deacordocom um dos índices de preços de commodities agrícolas internacionais, o da revista inglesa The Economist, subiu 80%. Um outro plano é possível? OsEUAnãotêmmaisfronteiraagrícolae já apresentam uma produção vegetal brutal- mente concentrada – em 2005, 82% da área colhida no país veio de quatro espécies: mi- lho, soja, trigo e pastagens. Se tivessem de produzir,comsuaprópriaagricultura,todoo álcool que se propõem a utilizar nos próxi- mos anos, precisariam dedicar, mostram cál- culosdoMinistériodeMinaseEnergiabrasi- leiro, 98% de toda a sua área agricultável – cercade44%detodaaáreadopaís–paraessa tarefa. Evidentemente, não é este o plano. A idéia também não é fazer qualquer mudança no modelo de desenvolvimento econômico global. Os americanos querem que outros plantembiocombustíveisparaqueelesconti- nuemconsumindoincomparavelmentemais que qualquer outro povo. Do ponto de vista dos interesses dos americanos, parece um plano razoável. Com certeza, o governo Lula tem a obrigação de apresentar um plano melhor – para o Brasil, para os interesses da América Latina dos go- vernos reformistas de Morales, Correa e Chávez. Mesmo porque a mão cega do mer- cado, embriagada pelos fluxos de capital, sempre esquece que o desenvolvimento an- corado nesses movimentos é cíclico: tem al- tos, como agora, e baixos, que podem surgir a qualquer momento, em virtude da enorme especulaçãoqueexistenomercadoqueman- da, o do dinheiro. Eduardo Morales/ EFE