Este artigo revisa a literatura sobre a insuficiência renal aguda (IRA) decorrente de acidentes ofídicos causados pelas serpentes Bothrops sp. e Crotalus sp. no Brasil. A IRA é a principal complicação sistêmica desses acidentes e está associada a maior mortalidade. Embora os acidentes botrópicos sejam mais comuns, a IRA é semelhante entre os dois gêneros devido à maior nefrotoxicidade dos acidentes crotálicos. O artigo descreve as características clínicas, epidemiologia,
1. ARTIGO DE REVISÃO | REVIEW ARTICLE
Insuficiência renal aguda em acidentes ofídicos por Bothrops
sp. e Crotalus sp.: revisão e análise crítica da literatura
Acute kidney injury in Bothrops sp. and Crotalus sp.
envenomation: critical review of the literature
Autores RESUMO ABSTRACT
Mauricio Fernando Indrodução: Acidente ofídico é um sério Introduction: Snakebites represent a serious
Lima Santos problem all over the world. We reviewed
problema de saúde em todo o mundo. Nes-
Marina Cumming te artigo, fazemos uma revisão da literatura the literature on the main complication of
Farani
enfocando a principal complicação do aci- snakebites: acute renal failure (ARF). We
Paulo Novis Rocha emphasize Bothrops sp. and Crotalus sp. en-
dente por serpentes: insuficiência renal aguda
(IRA). Nosso trabalho destaca o envenena- venomation, since those are the most com-
Faculdade de Medicina da
Universidade Federal da mento causado por Bothrops sp. e Crotalus mon poisonous snakes in Brazil. We focused
Bahia sp., os dois gêneros de serpentes mais comuns on the different aspects of ARF in this con-
no Brasil. O presente estudo aborda diversos text, such as epidemiology, pathogenesis,
aspectos da IRA nesse contexto, tais como clinical characteristics, and risk factors, as
epidemiologia, patogênese, características well as prevention and treatment.
clínicas, fatores de risco, assim como preven-
ção e tratamento. Keywords: Acute renal failure, Crotalus,
Bothrops, snakebite.
Palavras-chave: insuficiência renal aguda,
Crotalus, Bothrops, picada de cobra.
[ J Bras Nefrol 2009;31(2):132-138]
INTRODUÇÃO gênero Bothrops1,3,4,10 e 7,7% pelo gênero
Crotalus;3,4,6 a minoria restante dos acidentes
Os acidentes ofídicos representam grave pro-
blema de saúde pública nas regiões tropicais é causada pelos gêneros Lachesis e Micrurus.
devido à sua elevada incidência e morbimor- A insuficiência renal aguda (IRA) é a princi-
talidade associada.1,2,3,4,5,6 Segundo estimativa pal complicação dos acidentes ofídicos e está
da Organização Mundial de Saúde (OMS), associada a um aumento na mortalidade.3,6
aproximadamente 2,5 milhões de acidentes Apesar de o acidente botrópico ser 10 vezes
por serpentes venenosas são registrados anu- mais frequente que o acidente crotálico, o
Data de submissão: 30/11/2008 almente em todo o mundo, resultando em número absoluto de casos de IRA entre os
Data de aprovação: 19/03/2009 125.000 mortes.5,6,7 No entanto, é muito difí- dois gêneros é semelhante, devido à maior
cil determinar com segurança os verdadeiros nefrotoxicidade dos acidentes crotálicos.3 A
Correspondência para:
Paulo N. Rocha números sobre os acidentes ofídicos. Estudos ocorrência do acidente ofídico está, em ge-
Rua Alberto Valença, 148/ recentes estimam que o número anual de en- ral, relacionada a fatores climáticos1,2,4,5,10 e
apt. 203, Pituba venenamentos por serpentes possa chegar a à atividade humana no campo.1,2,4 Os traba-
Salvador – Bahia lhadores rurais do sexo masculino1,2,3,4,5,7,10,11
5,5 milhões, com cerca de 20.000 a 94.000
CEP: 41810-825
mortes.8,9 A maior parte dos acidentes ofídi- na faixa etária entre 15 e 49 anos são os mais
Tel: (71) 3344-0727
E-mail: paulonrocha@ cos ocorre na África e na Ásia, e a America vitimados.1,4 Os membros inferiores são os
ufba.br Latina aparece em terceiro lugar.7 locais preferenciais de picada, seguidos dos
No Brasil, mais de 20.000 acidentes ofí- membros superiores.1,3,4,5,7,10,11
Este trabalho recebeu
dicos são notificados anualmente ao Minis- A identificação da serpente, quando possí-
apoio do programa
PERMANECER, tério da Saúde, com taxa de mortalidade de vel, auxilia na avaliação da gravidade, prog-
Universidade Federal da cerca de 0,45%.1,7 Aproximadamente 85% nóstico e tratamento adequado de um acidente
Bahia. desses casos são causados por serpentes do ofídico. O principal elemento diferenciador
132
2. IRA em ofidismo
Figura 1. Fosseta loreal e tipos de cauda entre serpentes peçonhentas. a) Fosseta loreal: orifício termorreceptor situado
entre o olho e a narina (seta). b) Caudas de Lachesis (à esquerda, com escamas eriçadas), Bothrops (no meio, lisa) e
Crotalus (à direita, com guizo).
a) Fosseta Loreal b) Tipos de Cauda
entre serpentes peçonhentas e não peçonhentas é a fosse- Figura 2. Fluxograma para identificação de serpentes
ta loreal, orifício termorreceptor situado entre o olho e a peçonhentas e não peçonhentas.
narina (Figura 1a). De modo geral, as serpentes peço-
nhentas apresentam fosseta loreal e dentes inoculadores Fosseta Loreal
bem desenvolvidos e móveis na região anterior da maxi-
la. Em seguida, a forma da cauda ajuda na identificação Ausente Presente
do gênero: cauda lisa caracteriza Bothrops; cauda com
guizo caracteriza Crotalus; e cauda com escamas eriça- NÃO PEÇONHENTAS
PEÇONHENTAS
das, Lachesis (Figura 1b). As cobras do gênero Micrurus
Com anéis
não possuem fosseta loreal e apresentam aparelho ino- vemelhos, Cauda lisa Cauda Cauda com
pretos e brancos com guizo escamas
culador pouco desenvolvido e fixo na região anterior da completos
maxila, mas também são peçonhentas e constituem, por-
Micrurus Bothrops Crotalus Lachesis
tanto, uma exceção à regra (Figura 2). Essas serpentes,
popularmente conhecidas como corais, possuem caracte-
rísticas próprias, como anéis coloridos vermelhos, pretos
e brancos. É importante lembrar a existência da coral vezes, ser feita com base nas manifestações clínicas apre-
falsa, serpente não peçonhenta com padrão de coloração sentadas pela vítima. Em geral, o acidente crotálico se
semelhante a Micrurus.1 caracteriza por manifestações leves no local da picada e
Mesmo quando a serpente não é capturada, a diferen- manifestações sistêmicas importantes, enquanto no aci-
ciação entre acidente crotálico e botrópico pode, muitas dente botrópico costuma ocorrer o inverso (Tabela 1).
Tabela 1 PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DOS ACIDENTES CROTÁLICO E BOTRÓPICO
Ações do veneno Manifestações locais Manifestações sistêmicas
Crotalus Neurotóxica Edema leve Facies miastênica
Miotóxica Parestesia Rabdomiólise
Coagulante IRA
Nefrotóxica Coagulopatia
Bothrops Proteolítica local Edema intenso Coagulopatia
Hemorrágica Equimose e bolhas IRA
Nefrotóxica Sangramentos
Infecção secundária
Gangrena
Síndrome de compartimento
J Bras Nefrol 2009;31(2):132-138 133
3. IRA em ofidismo
Bothrops sp.: No acidente botrópico, o veneno fica pacientes. A patogênese da lesão renal no acidente botró-
concentado no local da picada,12 causando forte lesão pico ainda não está bem elucidada. Através de estudos
proteolítica, e esta é a principal característica desse tipo experimentais utilizando rim isolado, ficou comprovado
de acidente. Dor e edema local estão presentes em quase que a peçonha botrópica é capaz de provocar toxicida-
todos os casos, podendo haver também equimoses, bo- de tubular renal.18 Outros autores sugerem ação pro-
lhas, necrose e formação de abscessos. O veneno botrópi- teolítica direta do veneno sobre os glomérulos,19 que é
co possui também ação hemorrágica e nefrotóxica,12 oca- acompanhada de alterações morfológicas.20 No entanto,
sionando manifestações clínicas sistêmicas que, embora no animal intacto, outros fatores podem indiretamente con-
menos frequentes que no acidente crotálico, podem ser tribuir para o desenvolvimento de IRA, como rabdomiólise
graves. As principais complicações locais são as infecções e hemólise, principalmente quando acompanhadas de hipo-
secundárias e gangrena. Do ponto de vista sistêmico, po- volemia, além das alterações sobre o sistema de coagulação,
dem ocorrer grandes hemorragias, choque circulatório e que podem levar à deposição de fibrina nos capilares glo-
IRA.10,13 Alterações no tempo de coagulação são observa- merulares.21 Por fim, algumas frações do veneno, como
das em grande proporção de pacientes, com incoagulabi- a Bothropstoxin-1, que é uma das principais frações da
lidade chegando a mais de 40% em um estudo.10 peçonha da Bothrops jararacussu, possuem ação “fosfo-
Crotalus sp.: No acidente crotálico, o quadro clíni- lipase A2-like”.22 A fosfolipase A2 é uma enzima capaz de
co é determinado pelas ações miotóxica, neurotóxica, promover a liberação de ácido araquidônico da membra-
coagulante e nefrotóxica da peçonha,3,12 podendo variar na celular. O ácido araquidônico, por sua vez, é maté-
desde casos assintomáticos até casos com IRA, choque ria-prima para a formação de mediadores inflamatórios,
circulatório e morte. No local da picada, é comum ocor- como os prostanoides (prostaglandinas e tromboxana),
rer apenas parestesia, eritema, dor e edema discretos, en- que possuem ação vasoativa e, portanto, são capazes de
quanto as manifestações sistêmicas costumam dominar o alterar a hemodinâmica glomerular e a taxa de filtração
quadro clínico. O paciente pode referir diplopia, turva- glomerular.
ção visual, e ao exame físico apresentar midríase, ptose Características da IRA: A IRA ocorre quase sempre nas
palpebral (uni ou bilateral) e flacidez da musculatura da primeiras 24 horas do acidente, podendo evoluir, po-
face, caracterizando a facies neurotóxica. As queixas de rém, com redução do débito urinário apenas no segun-
mialgia e escurecimento da urina também são frequentes
do ou terceiro dia.23,24,25 O atraso na soroterapia é consi-
e refletem rabdomiólise e mioglobinúria. Outros achados
derado um importante fator de risco para IRA,10,11,13,26,27
menos frequentes incluem manifestações de sangramento
embora haja relatos na literatura de ocorrência de IRA
como gengivorragia e epistaxe, além de queixas inespe-
apesar da administração do soro em tempo considerado
cíficas, como vômitos, sonolência, mal-estar e sensação
adequado.24,25 Na grande maioria dos casos (cerca de
de corpo estranho na garganta.3,14 As principais compli-
90%), a IRA no acidente botrópico é oligúrica.24,25,28 A
cações são IRA, insuficiência respiratória e choque cir-
duração da fase oligúrica varia de 1 a 3 semanas, com
culatório. Alterações laboratoriais incluem marcadores
média de cerca de duas semanas (13,5 ± 5,8 dias na série
de lesão muscular elevados (CPK, AST, ALT, LDH) e
de Amaral et al.24 e 11,25 ± 3,73 dias no estudo de Da
alteração no tempo de coagulação.3,6
Silva et al.25). Pode haver proteinúria e hematúria no
INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA sedimento urinário.10,27 A lesão renal mais comum no
acidente botrópico é a necrose tubular aguda, porém al-
BOTHROPS SP.: guns casos evoluem com necrose cortical bilateral.1,28,29
Incidência de IRA: A IRA no acidente botrópico costuma Na casuística de Amaral et al.,24 aproximadamente
ser infrequente, com incidência variando entre 1,6 a 5% 22% dos casos de IRA apresentaram necrose cortical,
dos acidentes.10,13,15,16 No entanto, um trabalho realizado da qual se suspeitou quando os pacientes mantiveram
apenas com a espécie Bothrops jararacussu revelou uma oligoanúria ou níveis elevados de ureia e creatinina por
incidência de IRA de 13%, sugerindo haver diferenças mais de 3 semanas. Nesses casos, a confirmação diag-
quanto à nefrotoxidade do veneno entre as espécies de nóstica deve ser feita com biópsia renal. Tardiamente,
Bothrops sp.17 Adicionalmente, diferenças na definição exames radiográficos podem demonstrar calcificação
de IRA podem explicar as variações na incidência de IRA do parênquima renal.23,25,29 Estes pacientes evoluem pa-
entre os diversos estudos. ra doença renal crônica e apresentam maiores taxas de
Patogênese: Apesar de, após a inoculação, grande parte mortalidade.
da peçonha botrópica permanecer na pele e, portanto, Estudos com pacientes internados por acidente botró-
causar alterações predominantemente locais, efeitos sis- pico em unidades de terapia intensiva no final da década
têmicos como IRA podem ocorrer em uma minoria de de 1970 e início da década de 1980 demonstraram mor-
134 J Bras Nefrol 2009;31(2):132-138
4. IRA em ofidismo
talidade de cerca de 20%, sendo a maioria por edema diferentes definições, resultando em incidências mui-
agudo de pulmão na fase oligúrica. Nesses estudos, uma to variadas. Estudos mais antigos revelavam uma inci-
média de 74% dos pacientes necessitaram de diálise.24,25 dência de IRA no acidente crotálico variando de 12% a
Fatores de risco para IRA: O intervalo de tempo en- 18,4%,14,34,35 porém um estudo recente que utilizou um
tre o acidente e a administração do soro antibotrópico critério mais sensível de IRA (taxa de filtração glomeru-
é o principal fator determinante para IRA e tem relação lar < 60 mL/min./1,73 m2) encontrou uma incidência de
direta com sua incidência.7,10,11,13,26,27 Adicionalmente, a 29%.6 Torna-se, portanto, imperativo que os novos estu-
idade parece ser também um fator importante. Alguns dos adotem um critério único de IRA, como o sugerido
estudos indicam uma maior tendência à IRA nos pa- por um painel de expecialistas em 2004.36
cientes mais velhos,15,30 com maior mortalidade nessa Patogênese: No acidente crotálico, os rins apresentam
população.11 Pode-se especular que a maior susceptibili- concentrações do veneno até 50% maiores do que a con-
dade à IRA após acidente ofídico no idoso se deva à sua centração plasmática.37 Como a peçonha é de excreção
menor massa renal funcionante (fisiológica, associada predominantemente renal, os mecanismos de concen-
ao envelhecimento, ou secundária a uma nefropatia de tração e transporte tubular favorecem a ocorrência de
base, hipertensiva, diabética ou isquêmica, que são mais toxicidade celular direta. Em estudos experimentais uti-
comuns nessa população). Em um estudo, houve maior lizando rim isolado, pesquisadores demonstraram que
incidência de IRA em crianças.26 Não é bem determinado a crotoxina é o principal componente responsável pela
se a gravidade da lesão local (edema importante, bolhas, toxicidade renal direta da peçonha crotálica, seguida da
equimoses) ou das manifestações sistêmicas (como san- girotoxina.38,39 Além desse efeito tóxico tubular, outros
gramentos) seja fator associado à IRA.1,15 Outros fatores, fatores estão certamente envolvidos na patogênese da
como uso de torniquete e incoagulabilidade sanguínea, IRA. A fosfolipase A2 também está presente no veneno
não têm sido consistentemente associados a maior risco crotálico, e Martins et al. demonstraram que células en-
de IRA.15,31 doteliais40 e do sistema imune, como macrófagos,41 são
Prevenção e tratamento: A principal forma de prevenir capazes de produzir mediadores inflamatórios derivados
a lesão renal no acidente botrópico é a soroterapia pre- do ácido araquidônico em resposta ao veneno crotálico.
coce e adequada. Adicionalmente, outras medidas gerais Como exposto acima, esses mediadores podem contri-
devem ser observadas para não somar insultos nefrotó- buir para IRA através de ações predominantemente he-
xicos: 1) evitar uso de contraste iodado para exames de modinâmicas. Mas talvez seja a rabdomiólise o principal
imagem; 2) evitar analgesia com anti-inflamatórios não mecanismo de lesão renal no acidente crotálico. A maior
esteroides; 3) evitar antibióticos nefrotóxicos. É preciso frequência de rabdomiólise no acidente crotálico do que
também garantir uma perfusão renal adequada através no botrópico é um dos fatores que podem explicar a
de soroterapia e outras medidas de suporte hemodinâmi- maior nefrotoxicidade do acidente crotálico. Uma análise
co. Infelizmente, não há estudos de alto nível avaliando detalhada dos mecanismos de lesão renal na rabdomió-
diferentes estratégias de prevenção de IRA no acidente lise não é objetivo deste artigo, mas pode ser encontrada
botrópico. Nenhuma recomendação baseada em evidên- no trabalho de Vanholder et al..42
cias pode, portanto, ser feita quanto ao tipo ou quanti- Características da IRA: No acidente crotálico, a fase
dade de reposição volêmica a ser utilizada, bem como a oligúrica tende a ter duração um pouco menor que no
respeito do uso de furosemida, manitol, ou dopamina. acidente botrópico, variando de cerca de 6 a 14 dias24,25
Do mesmo modo, não há estudos que permitam reco- (média de 9,6 ± 4 dias na série de Amaral et al.24 e de 8,93
mendações específicas sobre o momento adequado de ± 3,73 dias no estudo de Da Silva et al.25). Assim como
iniciar tratamento dialítico, modalidade ou dose de di- no acidente botrópico, a maioria dos casos de IRA ocorre
álise. Na prática clínica, recomenda-se seguir as mesmas precocemente, antes das primeiras 24 horas, com alguns
estratégias em vigor para o manejo da necrose tubular casos iniciando a fase oligúrica em até três dias.24,25 A
aguda em outros contextos, como na sepse.32,33 IRA secundária à picada por cascavel pode evoluir com
oligúria24,25,28,43 ou com débito urinário normal,6,24,25,44
CROTALUS SP.: dependendo, provavelmente, do grau de lesão renal. Es-
Incidência de IRA: Sabe-se que a IRA no acidente crotáli- tudos com pacientes em UTIs, teoricamente mais graves,
co é bem mais frequente que no botrópico. No entanto, a revelaram que a maioria evoluiu com oligúria,24,25 en-
incidência depende diretamente do critério utilizado para quanto pacientes diagnosticados com IRA por parâme-
definir IRA: critérios mais sensíveis resultam em maior tros mais sensíveis, ou seja, incluindo pacientes menos
incidência e vice-versa. Como afirmado anteriormente, graves, tiveram em sua maioria débito urinário normal.6
um dos grandes problemas da literatura na área de IRA Nesse tipo de acidente, quase todos os casos são devidos
é que, durante muitos anos, diferentes estudos utilizaram à necrose tubular aguda, não havendo relatos de casos
J Bras Nefrol 2009;31(2):132-138 135
5. IRA em ofidismo
de necrose cortical,1,24,28,43 o que evidencia diferentes me- para IRA, podendo estar prolongado ou não, tanto nos
canismos fisiopatológicos da lesão renal em relação ao acidentes leves como nos graves,1,6 apesar de estar mais
acidente botrópico. Como consequência, raramente um frequentemente alterado nos pacientes que evoluem
paciente com IRA secundária a um acidente crotálico irá com IRA.6 Nos pacientes que são picados por cascavel,
evoluir com doença renal crônica e necessidade de diálise podem ser encontradas alterações no sedimento uriná-
de manutenção. Há relato de nefrite intersticial aguda rio, tais como glicosúria, proteinúria, leucocitúria, cé-
atribuída à reação ao soro administrado.45 Um estudo re- lulas epiteliais e cilindros,6,34,44,49 sendo muito mais fre-
cente evidenciou que apenas 24% das vítimas de aciden- quentes nos pacientes com diagnóstico de IRA.6 Esses
te crotálico necessitaram de diálise,6 dado discrepante em pacientes apresentam fração de excreção de sódio ele-
relação a estudos mais antigos, nos quais cerca de 69% vada, como esperado na necrose tubular aguda.6 Tanto
dos pacientes necessitaram de diálise, sendo a diálise pe- no acidente botrópico quanto no crotálico são comuns
ritoneal o método mais utilizado no passado.24,25 complicações decorrentes da IRA, como distúrbios hí-
Fatores de risco para IRA: Atraso no tratamento, facies dricos, eletrolíticos, hematológicos, respiratórios, neu-
miastênica, mialgia e elevação acentuada de enzimas rológicos e hemodinâmicos. Hipercalemia e uremia são
musculares são fatores que se correlacionam à IRA.6 os distúrbios mais comuns,24,25,27,28 além de tendência à
Assim como no acidente botrópico, é bem estabeleci- hiperfosfatemia e hipocalcemia.34,43,48,49 Estudos em uni-
do o atraso na soroterapia como fator determinante de dades intensivas mostraram uma mortalidade de cerca
IRA.6,7,26,34,35,46,47,48 O atraso no atendimento determina de 13% entre os pacientes que evoluíram com IRA.24,25
maior gravidade dos casos, mais complicações e maior Adicionalmente, a ocorrência de IRA aumenta o tempo
incidência de IRA, o que demonstra a necessidade de um e os custos da hospitalização.6,24,25
atendimento descentralizado aos pacientes. Prevenção e tratamento: As medidas gerais descritas na
Estudos retrospectivos sobre IRA no acidente cro- prevenção da IRA no acidente botrópico também são
tálico evidenciaram mialgia e facies neurotóxica co- válidas no acidente crotálico: 1) soroterapia precoce e
mo fatores preditivos de IRA em pacientes acima de adequada; 2) evitar nefrotoxinas; 3) evitar hipovolemia.
40 anos.35 Um estudo prospectivo recente demonstrou No entanto, devido à alta prevalência de rabdomiólise
que todos os pacientes que evoluíram para IRA tinham no acidente crotálico, algumas medidas específicas para
mialgia e facies neurotóxica.6 Marcadores de lesão manejo da IRA por rabdomiólise são aplicáveis nesses
muscular tendem a se elevar tanto nos pacientes que casos. Tais medidas visam a prevenir/corrigir os fatores
desenvolvem IRA quanto naqueles que não evoluem que predispõem à IRA na rabdomiólise, como depleção
com IRA. Porém, os níveis de CK, AST, ALT e LDH de volume, obstrução tubular, acidúria e elevação dos
são significativamente mais elevados nos pacientes que radicais livres.42 Vale ressaltar que não há estudos ava-
desenvolvem IRA. Nível de CK maior que 2.000 U/L liando diferentes estratégias de manejo da rabdomiólise
é fator de risco para IRA.6,7 A urina avermelhada, de- no acidente crotálico; as recomendações que se seguem
corrente da mioglobinúria, ocorre em mais de 80% dos são extrapoladas de estudos com rabdomiólise em ou-
acidentes crotálicos,6,35,47,48 não sendo portanto um bom tros contextos.
parâmetro clínico para identificar pacientes com maior A principal medida para prevenir ou reduzir lesão
risco de desenvolver IRA.6,35 É controverso se a idade renal é estabelecer um alto fluxo urinário para diminuir
do paciente tem influência na evolução para IRA no a concentração intratubular de mioglobina, diminuir o
acidente crotálico. Estudos retrospectivos mostraram tempo de exposição das células tubulares ao pigmen-
uma relação positiva entre IRA e a idade avançada.35 to e minimizar os riscos de precipitação e consequente
Em outros estudos,6,26 pacientes mais jovens tiveram obstrução tubular por mioglobina. Essa meta pode ser
maior tendência a cursar com IRA, apesar de a incidên- alcançada através da administração de expansão volê-
cia de IRA em crianças variar de acordo com a média mica vigorosa e, posteriormente, diuréticos. Vale frisar
geral.46,48 Dessa forma, diante de estudos inconclusivos que o uso de diuréticos deve ser reservado apenas para
sobre esse aspecto, é recomendada maior atenção com pacientes que já tiverem recebido expansão volêmica
os pacientes nos extremos da faixa etária. A diurese adequada.
adequada na admissão (> 90 mL/h) parece ser um fator Com relação à expansão volêmica, não existem re-
protetor contra IRA.6,7 Manter o fluxo urinário eleva- gras específicas quanto à quantidade ou tipo ideais de
do é também uma estratégia de prevenção de IRA no fluido. O uso de cloreto de sódio a 0,9% parece ser
acidente crotálico, visando a reduzir a exposição das plenamente adequado, mas alguns autores sugerem a
células tubulares ao veneno e à mioglobina. O tempo utilização de solução de bicarbonato de sódio. A admi-
de coagulação na admissão não tem valor prognóstico nistração de bicarbonato tem como possíveis vantagens
136 J Bras Nefrol 2009;31(2):132-138
6. IRA em ofidismo
atenuar a acidemia, reduzir a tendência à hipercalemia AGRADECIMENTOS
e, por alcalinizar a urina, reduzir a tendência à preci-
Nossos sinceros agradecimentos a Fábio Barbosa do
pitação intratubular de mioglobina. Em uma revisão
recente sobre o tema, foi sugerida expansão volêmica Centro de Informações Antiveneno (CIAVE) do Estado
com um mínimo de 3-6 litros/dia, podendo chegar até a da Bahia, pelas fotografias expostas nesta revisão.
mais de 10 litros/dia, desde que haja monitoração ade-
quada do paciente. Os mesmos autores sugerem que, REFERÊNCIAS
para cada litro de solução isotônica de cloreto de sódio 1. Ministério da Saúde. Manual de diagnóstico e tratamento
seja feito um litro de solução de bicarbonato de sódio de acidentes por animais peçonhentos. 1a reimpressão.
(100 mmol em 1 litro de glicose a 5%) com 10 mL de Brasília: Fundação Nacional de Saúde; 1991.
2. Moreno E, Queiroz-Andrade M, Lira-da-Silva RM, Ta-
manitol a 15%.42 Uma vantagem teórica do manitol so- vares-Neto J. Clinical and Epidemiological Characteris-
bre a furosemida é que esta última acidifica a urina, fato tics of Snakebites in Rio Branco, Acre. Rev Soc Bras Med
indesejável na rabdomiólise. Trop 2005;38:15-21.
Vale ressaltar que a expansão volêmica vigorosa 3. Pinho FM, Vidal E, Burdmann EA. Atualização em in-
suficiência renal aguda. Insuficiência renal aguda após
deve ser evitada em pacientes oligúricos ou anúricos,
acidente crotálico. J Bras Nefrol 2000;22:62-8.
com elevação importante de escórias nitrogenadas. 4. Pinho FM, Pereira ID. Snake Bites. Rev Assoc Med Bras
Nesses casos, a lesão renal já foi estabelecida e a repo- 2001;47:24-9.
sição volêmica não reverte o processo, podendo pro- 5. Pinho FM, Oliveira ES, Faleiros F. Snakebites in the State
vocar hipervolemia e edema pulmonar e colocando em of Goiás, Brazil. Rev Assoc Med Bras 2004;50:93-6.
6. Pinho FM, Zanetta DM, Burdmann EA. Acute Renal
risco a vida do paciente. O mesmo vale para o manitol Failure after Crotalus Durissus Snakebite: A Prospective
e para o bicarbonato de sódio; este último pode ain- Survey on 100 Patients. Kidney Int 2005;67:659-67.
da causar alcalose metabólica importante em pacien- 7. Pinho FM, Yu L, Burdmann EA. Snakebite-Induced
tes com IRA severa oligoanúrica. Lembramos também Acute Kidney Injury in Latin America. Semin Nephrol.
que a solução de Ringer lactato, muito utilizada para 2008;28:354-62.
8. Chippaux JP. Estimating the Global Burden of Snake-
expansão volêmica em emergências e UTIs, contém bite Can Help to Improve Management. PLoS Med
cloreto de potássio, devendo, portanto, ser evitada em 2008;5:221.
pacientes hipercalêmicos e/ou com IRA oligoanúrica 9. Kasturiratne A, Wickremasinghe AR, de Silva N, Guna-
estabelecida. wardena NK, Pathmeswaran A, Premaratna R et al.. The
Global Burden of Snakebite: A Literature Analysis and
Assim como no acidente botrópico, não há dados
Modelling Based on Regional Estimates of Envenoming
suficientes na literatura que nos permitam fazer reco- and Deaths. PLoS Med 2008;5:218.
mendações específicas sobre o tratamento dialítico na 10. Ribeiro LA, Jorge MT. Bites by Snakes in the Genus Bo-
IRA por acidente crotálico. throps: A Series of 3,139 Cases. Rev Soc Bras Med Trop
1997;30:475-80.
11. Ribeiro LA, Albuquerque MJ, de Campos VA, Katz G,
CONCLUSÕES Takaoka NY, Lebrao ML et al.. Deaths Caused by Ve-
IRA é a principal complicação dos acidentes ofídicos, nomous Snakes in the State of São Paulo: Evaluation
of 43 Cases from 1988 to 1993. Rev Assoc Med Bras
podendo ocorrer tanto nos acidentes botrópicos como
1998;44:312-8.
nos crotálicos. Embora os acidentes crotálicos sejam 12. Castro I. Study on the Toxicity of Crotalic and Bothropic
mais nefrotóxicos, o número absoluto de casos de IRA Venoms in Snake-Related Accidents, with Emphasis on
entre os dois tipos de acidente acaba sendo semelhan- Renal Toxicity. O Mundo da Saúde 2006;30:644-53.
te, simplesmente pelo maior volume de acidentes bo- 13. Bucaretchi F, Herrera SR, Hyslop S, Baracat EC, Viei-
ra RJ. Snakebites by Bothrops spp in Children in Cam-
trópicos. A necrose tubular aguda é a lesão renal mais pinas, São Paulo, Brazil. Rev Inst Med Trop Sao Paulo
frequente nos dois tipos de acidente e costuma ser re- 2001;43:329-33.
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