O documento discute diferentes concepções de escrita, linguagem e poder. A escrita pode ser vista como (1) expressão do pensamento de um indivíduo ou (2) resultado da apropriação das regras da língua ou (3) processo interativo entre escritor e leitor que envolve estratégias e mobilização de conhecimentos. A linguagem reflete relações de poder e algumas variedades ganham prestígio quando associadas à escrita.
1. CULTURA ESCRITA E
SOCIEDADE LETRADA
Ufes – Universidade Federal do Espírito Santo.
Laboratório de Práticas Culturais: Revisão e Avaliação Textual.
Prof. Olivaldo Marques.
2. LINGUAGEM, ESCRITA E PODER
• O que é linguagem?
• A linguagem não é usada somente para veicular informação; a
palavra pode mobilizar a autoridade acumulada pelo falante,
concentrá-la num ato linguístico (como discursos políticos,
aulas, sermões na igreja) e adquirir valor se realizada no
contexto social e cultural apropriado.
• Para as relações sociais entre ouvinte e falante, são
apresentadas regras relevantes para os atos de linguagem: o
momento certo de falar, o que se deve falar, como se fala,
tudo isso dentro de um contexto linguístico e extralinguístico
do ato verbal.
3. LINGUAGEM, ESCRITA E PODER
• Variedades linguísticas refletem o poder e a autoridade do
falante nas relações socioeconômicas.
• Para uma variedade ser favorecida sobre as outras é preciso
que seja associada à escrita >> variedade padrão.
• Essa associação entre variedade e escrita é definida como o
resultado histórico indireto de oposições entre grupos sociais
que eram e “são” usuários das diferentes variedades. Uma
variedade utilizada em grupos de poder passa por um
processo de legitimação, tornando-se portadora de uma
tradição cultural.
4. LINGUAGEM, ESCRITA E PODER
• O estudo para o aperfeiçoamento da linguagem em sua
modalidade escrita, portanto, é essencial para o
empoderamento e emancipação do sujeito em uma sociedade
letrada como esta em que vivemos.
5. O ANALFABETO
O analfabeto não vence na vida
E tem a sua lida presa aos demais
O analfabeto não sabe de nada
Não lê as notícias que vêm nos jornais
O analfabeto é um papagaio
Só fala porque ouve outro falar
E em caso de assinar um documento
Ele deixa a ficha do seu polegar
Quando usar o seu vocabulário
Disse um doutorando a um analfabeto
Num jantar
Ele respondeu: "o meu prato está cheinho"
Aceito um bocadinho só, pra eu provar.
Juro que naquele ambiente
Viu toda gente desse homem que padece
Lhe perguntaram se ele era humorista
Ele disse:
- Eu, hein, doutor! Antes sesse mas não esse
(Moreira da Silva)
6. A criança que sabe ler (…) penetra no mundo dos civilizados, tal
como o pequeno animal se introduz no mundo dos homens. Pela
posse da leitura, os seus horizontes intelectuais estendem-se até
o infinito. Antes desse domínio, a criança era escrava da
linguagem falada e só podia entrar em comunicação recíproca
com os indivíduos pertencentes ao seu meio próximo. Saber ler
significa que pode, a partir de então, tirar partido de todos os
benefícios da Civilização e entrar em contato como todos os
homens que, como ela, sabem ler. A leitura pode, daí em diante,
tornar-se o meio essencial da aquisição de conhecimentos, do
desenvolvimento do pensamento e do enriquecimento da
personalidade. Saber ler corresponde a ser capaz de extrair o
“miolo substantífico” contido na mensagem escrita e, em virtude
disso, participar na vida intelectual de toda humanidade .
(MIALARET, 1974, p. 17)
7. O mito do letramento
Uma ideologia (...) que confere ao letramento uma enorme
gama de efeitos positivos, desejáveis, não só no âmbito da
cognição (...) mas também no âmbito social. Esses efeitos
vão desde a participação na espécie até a posse de
qualidades espirituais. (KLEIMAN, 2008, p.24)
8. O QUE É ESCRITA?
• Se houve um tempo em que era comum a existência de
comunidades ágrafas, se houve um tempo em que a escrita
era de difícil acesso ou uma atividade destinada a alguns
poucos privilegiados, na atualidade, a escrita faz parte da
nossa vida, seja porque somos constantemente solicitados a
produzir textos escritos, seja porque somos solicitados a ler
textos escritos em diversas situações do dia-a-dia.
• Que a escrita é onipresente em nossa vida, já sabemos. Mas,
afinal, o que é escrever?
9. O QUE É ESCRITA?
• Algumas respostas possíveis:
• “Escrita é inspiração”;
• “Escrita é uma atividade para alguns poucos privilegiados
(aqueles que nascem com esse dom e se transformam em
escritores renomados)”;
• “Escrita é expressão do pensamento”;
• “Escrita é domínio de regras da língua”;
• “Escrita é trabalho” que requer a utilização de diversas
estratégias da parte do produtor.
10. O QUE É ESCRITA?
• Essa pluralidade de respostas nos faz pensar que o modo pelo
qual concebemos a escrita não se encontra dissociado do
modo pelo qual entendemos a linguagem, o texto e o sujeito
que escreve. Em outras palavras, subjaz uma concepção de
linguagem, de texto e de sujeito escritor ao modo pelo qual
entendemos, praticamos e ensinamos a escrita, ainda que não
tenhamos consciência disso.
11. ESCRITA: Foco na língua
• Muitos ainda hoje acreditam que para escrever – e fazê-lo
bem – é preciso conhecer as regras gramaticais da língua e ter
um bom vocabulário, e que são esses os critérios utilizados na
avaliação da produção textual.
• O estudo da língua portuguesa, em muitos casos, é feito com
base em baterias e baterias de exercícios sobre sinais de
pontuação, concordância, regência, colocação pronominal,
dentre outros tópicos, esperando que o aluno exercite em
frases as regras gramaticais e depois transfira esse
conhecimento para a produção de texto.
12. ESCRITA: Foco na língua
• Subjacente a essa visão de escrita, encontra-se uma
concepção de linguagem como um sistema pronto, acabado,
devendo o escritor apenas se apropriar desse sistema de
regras.
• Nessa concepção de sujeito como (pré-)determinado pelo
sistema, o texto é visto como simples produto de uma
codificação realizada pelo escritor e a ser decodificada pelo
leitor, bastando a ambos, para tanto, o conhecimento do
código utilizado.
13. ESCRITA: Foco no escritor
• Há quem entenda a escrita como representação do
pensamento, “escrever é expressar o pensamento no papel”,
por conseguinte, tributária de um sujeito psicológico,
individual, dono e controlador de sua vontade e de suas
ações. Trata-se de um sujeito visto como um ego que constrói
uma representação mental, “transpõe” essa representação
para o papel e deseja que esta seja “captada” pelo leitor da
maneira como foi mentalizada.
14. ESCRITA: Foco no escritor
• Nessa concepção de língua como representação do
pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações
e de seu dizer, o texto é visto como um produto do
pensamento do escritor. A escrita, assim, é entendida como
uma atividade por meio da qual aquele que escreve expressa
seu pensamento, suas intenções, sem levar em conta as
experiências e os conhecimentos do leitor ou a interação que
envolve esse processo.
15. ESCRITA: Foco na interação
• Nesta concepção, a escrita é vista como produção textual,
cuja realização exige do produtor a ativação de conhecimentos
e a mobilização de vária estratégias.
• Isso significa dizer que o produtor, de forma não linear,
elabora no que vai escrever e em seus leitor, depois escreve,
lê o que escreveu, revê ou reescreve o que julga necessário,
em um movimento constante e on-line guiado pelo princípio
interacional.
16. ESCRITA: Foco na interação
• Neste caso, a escrita não é compreendida em relação apenas à
apropriação das regras da língua, nem tampouco ao
pensamento e intenções do escritor, mas, sim, em relação à
interação escritor-leitor, levando em conta, é verdade, as
intenções daquele que faz uso da língua para atingir o seu
objetivo sem, contudo, ignorar que o leitor com seus
conhecimentos é parte constitutiva desse processo.
• Nesta concepção interacional (dialógica) da língua, tanto
aquele que escreve como aquele para quem se escreve são
vistos como autores/construtores sociais, sujeitos ativos que
– dialogicamente – se constroem e são construídos no texto,
este considerado um evento comunicativo para o qual
concorrem aspectos linguísticos, cognitivos, sociais e
interacionais
17. ESCRITA: Foco na interação
• Nessa perspectiva, a escrita é uma atividade que demanda da
parte de quem escreve a utilização de muitas estratégias,
como:
• Ativação de conhecimentos sobre os componentes da situação
comunicativas (interlocutores, tópico a ser desenvolvido e
configuração textual adequada à interação em foco);
• Seleção, organização e desenvolvimento das ideias, de modo a
garantir “balanceamento” entre informações explícitas e
implícitas; entre informações “novas” e “dadas”;
• Revisão da escrita ao longo de todo o processo, guiada pelo
objetivo da produção e pela interação que o escritor pretende
estabelecer com o leitor.
18. ESCRITA: Foco na interação
• O sentido da escrita, portanto, é produto dessa interação, não
resultado apenas do uso do código, nem tão somente das
intenções do escritor. Numa concepção de escrita assentada
na interação, o sentido é um constructo, não podendo, por
conseguinte, ser determinado a priori.
• A escrita é, pois, atividade de produção textual que se realiza,
evidentemente, com base nos elementos linguísticos e na sua
forma de organização, mas requer, no interior do evento
comunicativo, a mobilização de uma vasto conjunto de
conhecimentos do escritor, o que inclui também o que esse
pressupõe ser do conhecimento do leitor ou do que é
compartilhado por ambos.
19. Ativação de conhecimentos
• Em sua escrita, o escritor recorre a conhecimentos resultantes
das inúmeras atividades em que nos envolvemos ao longo de
nossa vida. Tal constatação nos mostra a intrínseca relação
entre linguagem/mundo/práticas sociais.
• Estes conhecimentos estão relacionados:
• À língua;
• Ao conhecimento chamado “enciclopédico”;
• Às práticas interacionais.
20. Conhecimento linguístico
• Escrever é uma atividade que exige do escritor conhecimento
da ortografia, da gramática e do léxico de sua língua,
adquirido ao longo da vida.
• Conhecer como as palavras devem ser gravadas corretamente
segundo convenção da escrita é um aspecto importante para a
produção textual e a obtenção do objetivo almejado, já que
contribui para a construção de uma imagem positiva daquele
que escreve, porque, dentre outros motivos, demostra: i)
atitude colaborativa do escritor no sentido de evitar
problemas no plano da comunicação; ii) atenção e
consideração dispensadas ao leitor.
21. Conhecimento enciclopédico
• Em nossa atividade escrita, recorremos constantemente a
conhecimentos sobre coisas do mundo que ficaram marcadas
em nossa memória, como se tivéssemos uma enciclopédia em
nossa mente, produzida de forma personalizada, com base em
conhecimento de que ouvimos falar ou que lemos, ou
adquirimos em vivências e experiências variadas.
•
22. Conhecimento de textos
• Para a atividade de escrita, o
produtor precisa ativar
“modelos” que possui sobre
práticas comunicativas
configuradas em textos,
levando em conta elementos
que entram em sua
composição, além de
aspectos do conteúdo,
estilo, função e suporte de
veiculação.
23. Conhecimentos interacionais
• O produtor possui modelos mentais sobre práticas
interacionais diversas, histórica e culturalmente constituídas.
É, portanto, baseado em conhecimentos interacionais que o
produtor:
• Configura na escrita a sua intenção, possibilitando ao leitor
reconhecer o objetivo ou propósito pretendido no quadro
interacional desenhado;
• Determina a quantidade de informação necessária, numa
situação comunicativa concreta, para que o leitor seja capaz de
reconstruir o objetivo da produção do texto;
• Selecione a variante linguística adequada à situação de interação;
• Faz a adequação do gênero textual.
24. "Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de
Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira
lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho,
torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer.
Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois
enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com
a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais
uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma
só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas
dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A
palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a
palavra foi feita para dizer." (Graciliano Ramos)
25. Referências
KOCH, Ingedore; ELIAS, Vanda. Ler e escrever: Estratégias de produção
textual. São Paulo: Editora Contexto, 2014.
KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento: uma nova
perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das
Letras, 2008.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 2.ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1987.
MIALARET, G. A aprendizagem da leitura. 2.ed. São Paulo: Editoral
Estampa, 1974