5. Conteudo
I Marcos Para Uma Historia Do Pensamento An-tropol
ogio 23
1 A Pre-Historia Da Antropologia: 25
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32
2 O Seculo XVIII: 39
3 O Tempo Dos Pioneiros: 47
4 Os Pais Fundadores Da Etnogra
7. 4 CONTEUDO
10 A Antropologia Estrutural E Sist^emica: 103
11 A Antropologia Din^amica: 113
III A Especi
8. cidade Da Pratica Antropologica 119
12 Uma Ruptura Metodologica: 121
13 Uma Invers~ao Tematica: 125
14 Uma Exig^encia: 129
15 Uma Abordagem: 133
16 As Condic~oes De Produc~ao Social Do Discurso Antropologico137
17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139
18 Antropologia E Literatura: 143
19 As Tens~oes Constitutivas Da Pratica Antropologica: 149
19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149
19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152
19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157
20 Sobre o autor: 163
9. CONTEUDO 5
Prefacio
A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens~ao do homem
Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma area do conhe-cimento
e tracar-lhe a historia, mostrando como foi variando o seu colorido
atraves dos tempos, como deitou rami
10. cac~oes novas que alteraram seu tema
de base ampliando-o. Para tanto e requerida uma erudic~ao di
11. cilmente en-contrada
entre os especialistas, pois erudic~ao e especializac~ao constituem-se
em opostos: a erudic~ao abrindo- se na ^ansia de dominar a maior quantidade
possvel de saber, a especializac~ao se fechando no pequeno espaco de um co-nhecimento
minucioso.
O livro do antropologo franc^es Francois Laplantine, professor da Univer-sidade
de Lyon II, autor de varias obras importantes e que hoje efetua pes-quisas
no Brasil, reune as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento
antropologico atraves da historia e mostrando as diversas perspectivas atuais.
Em primeiro lugar, efetua a analise de seu desenvolvimento, que permite uma
compreens~ao melhor de suas caractersticas espec
13. nalmente, um panorama dos problemas co-locados
pela pratica e por suas possibilidades de aplicac~ao.
Trata-se de uma introduc~ao a Antropologia que parece fabricada de enco-menda
para estudantes brasileiros. A formac~ao nacional em Ci^encias Sociais
(e a Antropologia n~ao foge a regra. . .) segue a via da especializac~ao, muito
mais do que a da formac~ao geral. Os estudantes l^eem e discutem determi-nados
autores, ou ent~ao os componentes de uma escola bem delimitada; o
conhecimento lhes e inculcado atraves do conhecimento de um problema ou
de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que susci-tou,
nas respostas e soluc~oes que inspirou. A historia da disciplina, assim
como da area de conhecimentos a que pertence, o exame crtico de todas
as proposic~oes tematicas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem
muitas vezes fora das cogitac~oes do curso, como se fosse algo de somenos
import^ancia.
No Brasil o presente tem muita forca; nele se vive intensamente, e ele que se
busca compreender profundamente, na convicc~ao de que nele est~ao as razes
do futuro. Pas em construc~ao, seus habitantes em geral, seus estudiosos em
particular, tem consci^encia ntida de que est~ao criando algo, de que sua ac~ao
e de import^ancia capital como fator por excel^encia do provir. E, para chegar
14. 6 CONTEUDO
a ela escolhe-se uma unica via preferencial, a especializac~ao numa direc~ao,
como se fora dela n~ao existisse salvac~ao.
No entanto, com esta maneira de ser t~ao mercante, perdem-se de vista com-ponentes
fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por
outro lado a multipli-cidade de caminhos que t^em sido tracados para cons-tru
-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ci^encias
Sociais, e o reforco do conhecimento do passado de sua propria disciplina e
da variedade de ramos que foi originando ate a atualidade. Este livro, em
muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An-tropologia
e seu lugar no ^ambito do saber.
Construdo dentro da tradic~ao francesa do pensamento analtico e da cla-reza
de express~ao, esta introduc~ao ao conhecimento da Antropologia atinge,
na verdade, um publico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e
especialistas de Ci^encias Sociais. Sua difus~ao se fara sem duvida entre todos
aqueles atrados para os problemas do homem enquanto tal, que buscam co-nhecer
ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo outro.
Maria Isaura Pereira de Queiroz 1
1Maria Isaura Pereira de Queiroz e professora do Departamento de Sociologia e pes-quisadora
do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
15. CONTEUDO 7
Introduc~ao
O Campo e a Abordagem Antropologicos
O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie-dades
existiram homens que observavam homens. Houve ate alguns que eram
teoricos e forjaram, como diz Levi-Strauss, modelos elaborados em casa.
A re
ex~ao do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaborac~ao de um
saber s~ao, portanto, t~ao antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na
Asia como na Africa, na America, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto
de fundar uma ci^encia do homem - uma antropologia - e, ao contrario, muito
recente. De fato, apenas no
16. nal do seculo XVIII e que comeca a se constituir
um saber cient
18. co) que toma o homem como
objeto de conhecimento, e n~ao mais a natureza; apenas nessa epoca e que o
esprito cient
19. co pensa, pela primeira vez, em aplicar ao proprio homem os
metodos ate ent~ao utilizados na area fsica ou da biologia.
Isso constitui um evento consideravel na historia do pensamento do homem
sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n~ao estejamos medindo
todas as consequ^encias. Esse pensamento tinha sido ate ent~ao mitologico,
artstico, teologico,
22. co no que dizia respeito ao
homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ultimo do estatuto de
sujeito do conhecimento ao de objeto da ci^encia. Finalmente, a antropolo-gia,
ou mais precisamente, o projeto antropologico que se esboca nessa epoca
muito tardia na Historia - n~ao podia existir o conceito de homem enquanto
regi~oes da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi~ao
muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trara, evidentemente, como vere-mos
mais adiante, consequ^encias importantes.
Para que esse projeto alcance suas primeiras realizac~oes, para que o novo
saber comece a adquirir um incio de legitimidade entre outras disciplinas
cient
23. cas, sera preciso esperar a segunda metade do seculo XIX, durante o
qual a antropologia se atribui objetos empricos aut^onomos: as sociedades
ent~ao ditas primitivas, ou seja, exteriores as areas de civilizac~ao europeias
ou norte-americanas. A ci^encia, ao menos tal como e concebida na epoca,
sup~oe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que
a separac~ao (sem a qual n~ao ha experimentac~ao possvel) entre o sujeito ob-servante
e o objeto observado e obtida na fsica (como na biologia, bot^anica,
ou zoologia) pela natureza su
24. cientemente diversa dos dois termos presentes,
na historia, pela dist^ancia no tempo que separa o historiador da sociedade
25. 8 CONTEUDO
estudada, ela consistira na antropologia, nessa epoca - e por muito tempo -
em uma dist^ancia de
27. ca. As sociedades estudadas pelos
primeiros antropologos s~ao sociedades longnquas as quais s~ao atribudas as
seguintes caractersticas: sociedades de dimens~oes restritas; que tiveram pou-cos
contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia e pouco desenvolvida
em relac~ao a nossa; e nas quais ha uma menor especializac~ao das atividades
e func~oes sociais. S~ao tambem quali
28. cadas de simples; em consequ^encia,
elas ir~ao permitir a compreens~ao, como numa situacao de laboratorio, da
organizac~ao complexade nossas proprias sociedades.
* * *
A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe e proprio:
o estudo das populac~oes que n~ao pertencem a civilizac~ao ocidental. Ser~ao ne-cess
arias ainda algumas decadas para elaborar ferramentas de investigac~ao
que permitam a coleta direta no campo das observac~oes e informac~oes. Mas
logo apos ter
29. rmado seus proprios metodos de pesquisa - no incio do seculo
XX - a antropologia percebe que o objeto emprico que tinha escolhido (as
sociedades primitivas) esta desaparecendo; pois o proprio Universo dos
selvagensn~ao e de forma alguma poupado pela evoluc~ao social. Ela se v^e,
portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma
quest~ao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu
nascimento: o
30. m do selvagemou, como diz Paul Mercier (1966), sera que
a morte do primitivoha de causar a morte daqueles que haviam se dado
como tarefa o seu estudo? A essa pergunta varios tipos de resposta puderam
e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em tr^es deles.
1) O antropologo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ^ambito das
outras ci^encias humanas. Ele resolve a quest~ao da autonomia problematica
de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente
o que e chamado de sociologia comparada.
2) Ele sai em busca de uma outra area de investigac~ao: 0 campon^es, este
selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem ade-quado,
ja que foi deixado de lado pelos outros ramos das ci^encias do homem.
2
2A pesquisa etnogra
31. ca cujo objeto pertence a mesma sociedade que i) observador foi,
de incio, quali
32. cada pelo nome de folklore. Foi Van uenncp que elaborou os metodos
proprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
33. CONTEUDO 9
3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n~ao exclui
o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele a
35. ci-dade
de sua pratica, n~ao mais atraves de um objeto emprico constitudo
(o selvagem, o campon^es), mas atraves de uma abordagem epistemologica
constituinte. Essa e a terceira via que comecaremos a esbocar nas paginas
que se seguem, e que sera desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto
teorico da antropologia n~ao esta ligado, na perspectiva na qual comecamos
a nos situar a partir de agora, a um espaco geogra
36. co, cultural ou historico
particular. Pois a antropologia n~ao e sen~ao um certo olhar, um certo enfoque
que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em
todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em
todas as epocas.
O estudo do homem inteiro
So pode ser considerada como antropologica uma abordagem integrativa que
objetive levar em considerac~ao as multiplas dimens~oes do ser humano em so-ciedade.
Certa-mente, o acumulo dos dados colhidos a partir de observac~oes
diretas, bem como o aperfeicoamento das tecnicas de investigac~ao, conduzem
necessariamente a uma especializac~ao do saber. Porem, uma das vocac~oes
maiores de nossa abordagem consiste em n~ao parcelar o homem mas, ao
contrario, em tentar relacionar campos de investigac~ao frequentemente se-parados.
Ora, existem cinco areas principais da antropologia, que nenhum
pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve
estar sensibilizado quando trabalha de forma pro
37. ssional em algumas delas,
dado que essas cinco areas mantem relac~oes estreitas entre si.
A antropologia biologica (designada antigamente sob o nome de antropologia
fsica) consiste no estudo das variac~oes dos caracteres biologicos do homem
no espaco e no tempo. Sua problematica e a das relac~oes entre o patrim^onio
genetico e o meio (geogra
39. siologicas ligadas a um meio ambiente, bem como a
evoluc~ao destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a
este patrim^onio, mas tambem, o que esse patrim^onio (que se transforma)
deve a cultura? Assim, o antropologo biologista levara em considerac~ao os
fatores culturais que in
uenciam o crescimento e a maturac~ao do indivduo.
forma magistral) as tradic~oes populares camponesas, a dist^ancia social e cultural que
separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a dist^ancia geogra
41. 10 CONTEUDO
Ele se perguntara, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da
crianca africana e mais adiantado do que o da crianca europeia? Essa parte
da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de cr^anios,
mensurac~oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada
as racas c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela genetica
das populac~oes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao ad-quirido,
sendo que um e outro est~ao interagindo continuamente. Ela tem, a
meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n~ao sejam
rompidas as relac~oes entre as pesquisas das ci^encias da vida e as das ci^encias
humanas.
A antropologia pre-historica e o estudo do homem atraves dos vestgios mate-riais
enterrados no solo (ossadas, mas tambem quaisquer marcas da atividade
humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as socie-dades
desaparecidas, tanto em suas tecnicas e organizac~oes sociais, quanto
em suas produc~oes culturais e artsticas. Notamos que esse ramo da antro-pologia
trabalha com uma abordagem id^entica as da antropologia historica
e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O histo-riador
e antes de tudo um historiografo, isto e, um pesquisador que trabalha
a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pre-historia reco-lhe,
pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como
o realizado na antropologia social na qual se bene
42. cia de depoimentos vivos.3
4 antropologia lingustica. A linguagem e, com toda evid^encia, parte do
patrim^onio cultural de uma sociedade. E
atraves dela que os indivduos
que comp~oem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas
preocupac~oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da lngua permite com-preender:
o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto e,
suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolingistica); o como eles
expressam o universo e o social (estudo da literatura, n~ao apenas escrita, mas
tambem de tradic~ao oral); o como,
43. nalmente, eles interpretam seus proprios
saber e saber-fazer (area das chamadas etnoci^encias).
A antropologia lingustica, que e uma disciplina que se situa no encontro
3Foi notadamente gracas a pesquisadores como Paul Rivet e Andre Leroi-Gourhan
(1964) que a articulac~ao entre as areas da antropologia fsica, biologica e socio-cultural
nunca foi rompida na Franca. Mas continua sempre ameacada de ruptura devido a um
movimento de especializac~ao facilmente compreensvel. Assim, colocando-se do ponto de
vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a desagradavel obrigac~ao de
fazer menage a trois com os representantes da arqueologia pre-historica e da antropologia
fsica, comparando-a a coabitac~ao dos psicologos e dos especialistas da observac~ao de
ratos em laboratorio
44. CONTEUDO 11
de varias outras, 4 n~ao diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos
(dialetologia). Ela se interessa tambem pelas imensas areas abertas pelas no-vas
tecnicas modernas de comunicac~ao (mass media e cultura do audiovisual).
A antropologia psicologica. Aos tr^es primeiros polos de pesquisa que foram
mencionados, e que s~ao habitualmente os unicos considerados como constitu-tivos
(com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do
campo global da antropologia, fazemos quest~ao pessoalmente de acrescentar
um quinto polo: o da antropologia psicologica, que consiste no estudo dos
processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropologo e
em primeira inst^ancia confrontado n~ao a conjuntos sociais, e sim a indivduos.
Ou seja, somente atraves dos comportamentos - conscientes e inconscientes -
dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual
n~ao e antropologia. E
a raz~ao pela qual a dimens~ao psicologica (e tambem
psicopatologica) e absolutamente indissociavel do campo do qual procuramos
aqui dar conta. Ela e parte integrante dele.
A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos detera por muito mais
tempo. Apenas nessa area temos alguma compet^encia, e este livro tra-tar
a essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir
de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo
a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es-quecer
que ela e apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos
cuja abrang^encia e consideravel, ja que diz respeito a tudo que constitui
uma sociedade: seus modos de produc~ao econ^omica, suas tecnicas, sua or-ganiza
c~ao poltica e jurdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de
conhecimento, suas crencas religiosas, sua lngua, sua psicologia, suas criac~oes
artsticas.
Isso posto, esclarecamos desde ja que a antropologia consiste menos no levan-tamento
sistematico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular
com a qual est~ao relacionados entre si e atraves da qual aparece a especi
45. -
cidade de uma sociedade. E
precisamente esse ponto de vista da totalidade,
e o fato de que o antropologo procura compreender, como diz Levi-Strauss,
aquilo que os homens n~ao pensam habitualmente em
46. xar ria pedra ou no
papel(nossos gestos, nossas trocas simbolicas, os menores detalhes dos nos-
4Foi o antropologo Edward Sapir (1967) quem, alem de introduzir o estudo da lin-guagem
entre os materiais antropologicos, comecou tambem a mostrar que um estudo
antropologico da lngua (a lngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura)
conduzia a um estudo lingustico da cultura (a lngua como modelo de conhecimento da
cultura).
47. 12 CONTEUDO
sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamental-mente
diferente dos utilizados setorial- mente pelos geografos, economistas,
juristas, sociologos, psicologos. . .
O estudo do homem em sua totalidade
A antropologia n~ao e apenas o estudo de tudo que com-p~oe uma sociedade.
Ela e o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja,
das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades historicas
e geogra
49. cativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as areas de
civilizac~ao exteriores a nossa. Mas a antropologia n~ao poderia ser de
50. nida
por um objeto emprico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao
qual ela a princpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente).
Se seu campo de observac~ao consistisse no estudo das sociedades preservadas
do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como ja comentamos,
sem objeto.
Ocorre, porem, que se a especi
51. cidade da contribuic~ao dos antropologos em
relac~ao aos outros pesquisadores em ci^encias humanas n~ao pode ser con-fundida
com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades
extra-europeias), ela e a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhe-cimento
que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observac~ao
direta, por impregnac~ao lenta e contnua de grupos humanos minusculos com
os quais mantemos uma relac~ao pessoal.
Alem disso, apenas a dist^ancia em relac~ao a nossa sociedade (mas uma
dist^ancia que faz com que nos tornemos extremamente proximos daquilo que
e longnquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomavamos por
natural em nos mesmos e, de fato, cultural; aquilo que era evidente e In
52. nita-mente
problematico. Disso decorre a necessidade, na formac~ao antropologica,
daquilo que n~ao hesitarei em chamar de estranhamento(depaysement), a
perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s~ao para nos as mais
distantes, e cujo encontro vai levar a uma modi
53. cac~ao do olhar que se tinha
sobre si mesmo. De fato, presos a uma Unica cultura, somos n~ao apenas
cegos a dos outros, mas mopes quando se trata da nossa. A experi^encia
5Os antropologos comecaram a se dedicar ao estudo das sociedades' industriais
avancadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como
vimos, dos aspectos tradicionaisdas sociedades n~ao tradicionais(as comunidades cam-ponesas
europeias), em seguida, dos grupos marginais, e
57. xar nossa
atenc~ao no que nos e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evi-dente.
Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (ges-tos,
mmicas, posturas, reac~oes afetivas) n~ao tem realmente nada de natu-ral.
Comecamos, ent~ao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a
nos mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropologico) da nossa cultura
passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos es-pecialmente
reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras,
mas n~ao a unica.
Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropo-logia,
como ja o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest~ao, e sua
aptid~ao praticamente in
58. nita para inventar modos de vida e formas de orga-niza
c~ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina
permite notar, com a maior proximidade possvel, que essas formas de com-portamento
e de vida em sociedade que tomavamos todos espontaneamente
por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar,
comemorar os eventos de nossa exist^encia. . .) s~ao, na realidade, o produto
de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos t^em em comum
e sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes,
lnguas, modos de conhecimento, instituic~oes, jogos profundamente diversos;
pois se ha algo natural nessa especie particular que e a especie humana, e
sua aptid~ao a variac~ao cultural
O projeto antropologico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento,
juntamente com a compreens~ao de uma humanidade plural. Isso sup~oe ao
mesmo tempo a ruptura com a
59. gura da monotonia do duplo, do igual, do
id^entico, e com a exclus~ao num irredutvel alhures. As sociedades mais di-ferentes
da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas,
s~ao na realidade t~ao diferentes entre si quanto o s~ao da nossa. E, mais ainda,
elas s~ao para cada uma delas muito raramente homog^eneas (como seria de se
esperar) mas, pelo contrario, extremamente diversi
60. cadas, participando ao
mesmo tempo de uma comum humanidade.
A abordagem antropologica provoca, assim, uma verdadeira revoluc~ao epis-temol
ogica, que comeca por uma revoluc~ao do olhar. Ela implica um des-centramento
radical, uma ruptura com a ideia de que existe um centro do
mundo, e, correlativamente, uma ampliac~ao do saber 6 e uma mutac~ao de
6Veremos que a antropologia sup~oe n~ao apenas esse desmembramento (eclatement)
61. 14 CONTEUDO
si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andre Gide:
Eu sou mil possveis em mim; mas n~ao posso me resignar a querer apenas
um deles.
A descoberta da alteridade e a de uma relac~ao que nos permite deixar de
identi
62. car nossa pequena provncia de humanidade com a humanidade, e
correlativamente deixar de rejeitar o presumido selvagemfora de nos mes-mos.
Confrontados a multiplicidade, a priori enigmatica, das culturas, somos
aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a
naturalizac~ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscri-tos
em nos desde o nascimento, e n~ao fossem adquiridos no contato com a
cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo classico
que tambem consiste na identi
63. cac~ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura
com a nossa cultura. De fato, a
67. a social, bem como as grandes religi~oes, nunca se deram como
objetivo o de pensar a diferenca (e muito menos, de pensa-la cienti
68. camente),
e sim o de reduzi-la, frequentemente inclusive de uma forma igualitaria e com
do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de Lery) ou no ceticismo (de um
Montaigne), ligados ao questionamento da cultura a qual se pertence, mas tambem uma
nova pesquisa e uma reconstituic~ao deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest~ao:
sera que a Antropologia e o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade?
Evidentemente, o europeu n~ao foi o unico a interessar-se pelos habitos e pelas ins-titui
c~oes do n~ao-europeu. A recproca tambem e verdadeira, como atestam notadamente
os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Media, por viajantes vindos
da Asia. E os ndios Flathead de quem nos fala Levi-Strauss eram t~ao curiosos do que
ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedic~oes a
69. m
de encontra-los. Poderamos multiplicar os exemplos. Isso n~ao impede que a constituic~ao
de um saber de vocac~ao cient
70. ca sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido
a partir da cultura europeia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um
africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um europesmo, que
teria se constitudo como campo de saber teorico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania.
Isso posto, as condic~oes de produc~ao historicas, geogra
71. cas, sociais e culturais da
antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropologico perder
de vista, mas que n~ao devem ocultar a vocac~ao (evidentemente problematica) de nossa
disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve Levi-Strauss:
N~ao se trata apenas de elevar-se acima dos valores proprios da sociedade ou do grupo
do observador, e sim de seus metodos de pensamento; e preciso alcancar formulac~ao
valida, n~ao apenas para um observador honesto mas para todos os observadores possveis.
Lembremos que a antropologia so comecou a ser ensinada nas universidades ha al-gumas
decadas. Na Gr~a-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Franca a
partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
72. CONTEUDO 15
as melhores intenc~oes do mundo.
O pensamento antropologico, por sua vez, considera que, assim como uma
civilizac~ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve
igualmente aceitar a diversidade das culturas, tambem adultas. Estamos,
evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade p^ode per-manecer
por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si
propria e fazendo, de tudo que n~ao eram suas ideologias dominantes sucessi-vas,
um objeto de exclus~ao. Descon
73. emos porem do pensamento - que seria
o cumulo em se tratando de antropologia - de que estamos
74. nalmente mais
lucidos, mais conscientes, mais livres, mais adultos, como acaba-mos
de escrever, do que em uma epoca da qual seria err^oneo pensar que esta
de
75. nitivamente encerrada. Pois essa transgress~ao de uma das tend^encias do-minantes
de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas
formas econ^omicas, polticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que
signi
76. ca de forma alguma que o antropologo esteja destinado, seja levado por
alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a logica das outras socie-dades
e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contrario, mostrar nesse livro
que a duvida e a crtica de si mesmo so s~ao cienti
78. culdades
Se os antropologos est~ao hoje convencidos de que uma das caractersticas
maiores de sua pratica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto e,
convencidos do fato de que os fen^omenos sociais que estudamos s~ao fen^omenos
que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles
s~ao tambem un^animes em pensar que ha uni-dade da famlia humana, a
famlia dos antropologos e, por sua vez, muito dividida, quando se trata de
dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e
de forma geral a todos aqueles que t^em o direito de saber o que verdadei-ramente
fazem os antropologos) dessa unidade multipla, desses materiais e
dessa experi^encia.
1) A primeira di
79. culdade se manifesta, como sempre, ao nvel das pala-vras.
Mas ela e, tambem aqui, particularmente reveladora da juventude de
nossa disciplina,6 que n~ao sendo, como a fsica, uma ci^encia constituda, con-tinua
n~ao tendo ainda optado de
80. nitivamente pela sua propria designac~ao.
Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradic~ao
terminologica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredutvel das
etnias, isto e, das culturas. No segundo (que e mais usado nos pases anglo-
81. 16 CONTEUDO
sax^onicos), sobre a unidade do g^enero humano. E optando-se por antro-pologia,
deve-se falar (com os autores brit^anicos) em antropologia social -
cujo objeto privilegiado e o estudo das instituic~oes - ou (com os autores
americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos com-portamentos.
7
2) A segunda di
83. cidade que convem
atribuir a antropologia. O homem esta em condic~oes de estudar cienti
84. ca-mente
o homem, isto e, um objeto que e de mesma natureza que o sujeito?
E nossa pratica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com
Radclie-Brown (1968), que as sociedade s~ao sistemas naturais que devem
ser estudados segundo os metodos comprovados pelas ci^encias da natureza,8 e
os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que e preciso tratar as socieda-des
n~ao como sistemas org^anicos, mas como sistemas simbolicos. Para estes
ultimos, longe de ser uma ci^encia natural da sociedade(Radclie-Brown), a
antropologia deve antes ser considerada como uma arte(Evans-Pritchard).
3) Uma terceira di
85. culdade provem da relac~ao ambgua que a antropolo-gia
mantem desde sua g^enese com a Historia. Estreitamente vinculadas nos
seculos XVIII e XIX, as duas praticas v~ao rapidamente se emancipar uma
da outra no seculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perio-dicamente.
As rupturas manifestas se devem essencialmente a antropologos.
Evans-Pritchard: O conhecimento da historia das sociedades n~ao e de ne-
7Para que o leitor que n~ao tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa
localizar-se, vale a pena especi
88. a, a etnologia e a antropologia constituem os tr^es mo-mentos
de uma mesma abordagem. A etnogra
89. a e a coleta direta, e o mais minuciosa
possvel, dos fen^omenos que observamos, por uma impregnac~ao duradoura e contnua e
um processo que se realiza por aproximac~oes sucessivas. Esses fen^omenos podem ser reco-lhidos
tomando-se notas, mas tambem por gravac~ao sonora, fotogra
93. nalmente,
consiste era um segundo nvel de inteligibilidade: construir modelos que permitam com-parar
as sociedades entre si. Como escreve Levi-Strauss, seu objetivo e alcancar, alem da
imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventario
das possibilidades inconscientes, que n~ao existem em numero ilimitado.
8Ao modelo org^anico dos funcionalistas ingleses, Levi-Strauss substituiu, como vere-mos,
um modelo lingustico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza
(o inato) e da cultura (tudo o que n~ao e hereditariamente programado e deve ser inven-tado
pelos homens onde a natureza n~ao programou nada), a antropologia deve aspirar a
tornar-se uma ci^encia natural: A antropologia pertence as ci^encias humanas, seu nome o
proclama su
94. cientemente; mas se se resigna em fazer seu purgatorio entre as ci^encias soci-ais,
e porque n~ao desespera de despertar entre as ci^encias naturais na hora do julgamento
96. CONTEUDO 17
nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das insti-tui
c~oes. Mais categorico ainda, Leach escreve: A gerac~ao de antropologos
a qual pertenco tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Historia
em considerac~ao. Convem tambem lembrar aqui a distinc~ao agora famosa
de Levi-Strauss opondo as sociedades frias, isto e, proximas do grau zero
de temperatura historica, que s~ao menos sociedades sem historia, do que
sociedades que n~ao querem ter estorias(unicos objetos da antropologia
classica) a nossas proprias sociedades quali
97. cadas de sociedades quentes.
Essa preocupac~ao de separac~ao entre as abordagens historica e antropologica
esta longe, como veremos, de ser un^anime, e a historia recente da antropo-logia
testemunha tambem um desejo de coabitac~ao entre as duas disciplinas.
Aqui, no Nordeste do Brasil, onde comeco a escrever este livro, desde 1933,
um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a formac~ao
da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do
conhecimento historico.
4) Uma quarta di
98. culdade provem do fato de que nossa pratica oscila sem
parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode quali
99. car de
fundamental e aquilo que e designado sob o termo de antropologia aplicada.
Comecaremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e
que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim conside-rava
que a sociologia n~ao valeria sequer uma hora de dedicac~ao se ela n~ao
pudesse ser util, e muitos antropologos compartilham sua opini~ao. Margaret
Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas
Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaurac~ao de
uma sociedade melhor, e, mais especi
100. camente a aplicac~ao de uma pedagogia
menos frustrante a sociedade americana. Hoje varios colegas nossos consi-deram
que a antropologia deve colocar-se a servico da revoluc~ao(segundo
especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent~ao, um mili-tante,
um antropologo revolucionario, contribuindo na construc~ao de uma
antropologia da libertac~ao. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a
qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos pro-gramas
de desenvolvimento e das decis~oes polticas relacionadas a elaborac~ao
desses programas. Queramos simplesmente observai aqui que a antropolo-gia
aplicada9 n~ao e uma grande novidade. E
por ela que, com a colonizac~ao,
a antropologia teve inicio.10
9Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971
10A maioria dos antropologos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
101. 18 CONTEUDO
Foi com ela, inclusive, que se deu o incio da Antropologia, durante a co-loniza
c~ao. No extremo oposto das atitudes engajadasdas quais acabamos
de falar, encontramos a posic~ao determinada de um Claude Levi-Strauss que,
apos ter lembrado que o saber cient
102. co sobre o homem ainda se encontrava
num estagio extremamente primitivo em relac~ao ao saber sobre a natureza,
escreve:
Supondo que nossas ci^encias um dia possam ser colocadas a servico da
ac~ao pratica, elas n~ao t^em, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O
verdadeiro meio de permitir sua exist^encia, e dar muito a elas, mas sobretudo
n~ao lhes pedir nada.
As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia puraou a antro-pologia
diluidacomo diz ainda Levi-Strauss encontram na realidade suas
primeiras formulac~oes desde os primordios da confrontac~ao do europeu com
o selvagem. Desde o seculo XVI, de fato, comeca a se implantar aquilo o
que alguns chamariam de arquetiposdo discurso etnologico, que podem ser
ilustrados pelas posic~oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun.
Jean de Lery foi um huguenote* franc^es que permaneceu algum tempo no
Brasil entre os Tupinambas. Longe de procurar convencer seus hospedes da
superioridade da cultura europeia e da religi~ao reformada, ele os interroga
e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns
anos mais tarde realizou uma verdadeira investigac~ao no Mexico.
Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava la enquanto missionario
a
103. m de converter a populac~ao que estuda.11
O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers~ao
religiosa, a revoluc~ao, a ajuda ao Terceiro Mundo, as estrategias daquilo
que e hoje chamado desenvolvimentoou ainda mudanca social) n~ao al-tera
nada quanto ao ^amago do problema, que e o seguinte: 0 antropologo
deve contribuir, enquanto antropologo, para B transformac~ao das sociedades
que ele estuda 11
dido das administrac~oes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo
brit^anico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi
conselheiro do governo do Sud~ao, etc
11Essa dupla abordagem da relac~ao ao outro pode muito bem sei realizada por um unico
pesquisador. Assim Malinowski chegando as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa
literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas varios anos depois (trad.
franc., 1968) participa do que chama uma experi^encia controladado desenvolvimento
104. CONTEUDO 19
Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abor-dagem,
que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos e mais
familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos)
e em tornar mais familiar aquilo que nos e estranho (os comportamentos, as
crencas, os costumes das sociedades que n~ao s~ao as nossas, mas nas quais po-der
amos ter nascido), esta diretamente confrontada hoje a um movimento de
homogeneizac~ao, ao meu ver, sem precedente' na Historia: o desenvolvimento
de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento
que e a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias
sucessivas entre os Berberes do Medio Atlas e entre os Baules da Costa do
Mar
105. m, perceber realmente o fascnio que exerce este modelo, perturbando
completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de
se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos
que n~ao decorrem de uma escolha)
A quest~ao que esta hoje colocada para qualquer antropologo e a seguinte:
ha uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo-lhe
o acesso a um estagio de sociedade industrial (ou pos-industrial) sem
con
ito dramatico, sem risco de despersonalizac~ao?
Minha convicc~ao e de que o antropologo, para ajudar os atores sociais a
responder a essa quest~ao, n~ao deve, pelo menos enquanto antropologo, tra-balhar
para a transformac~ao das sociedades que estuda. Caso contrario, seria
conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agr^onomo, medico,
poltico, a n~ao ser que ele seja motivado por alguma concepc~ao messi^anica
da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicitac~ao para ela
mesma de sua propria diferenca e uma coisa; organizar poltica, econ^omica e
socialmente a evoluc~ao dessa diferenca e uma outra coisa. Ou seja, a parti-cipa
c~ao do antropologo naquilo que e hoje a vanguarda do anticolonialismo
e da luta para os direitos humanos e das minorias etnicas e, a meu ver, uma
consequ^encia de nossa pro
107. ss~ao propriamente
dita.
Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urg^encia a
qual temos o dever de responder.
12As mutac~oes de comportamentos geradas por essa forma de civilizac~ao mundialista
podem tambem evidentemente ser encontradas nas nossa; proprias culturas rurais e ur-banas.
Em compensac~ao, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde
comecou a redigir este livro
108. 20 CONTEUDO
a) Urg^encia de preservac~ao dos patrim^onios culturais locais ameacados (e
a respeito disso a etnologia esta desde o seu nascimento lutando contra o
tempo para que a transcric~ao dos arquivos orais e visuais possa ser realizada
a tempo, enquanto os ultimos depositarios das tradic~oes ainda est~ao vivos)
e, sobretudo, de restituic~ao aos habitantes das diversas regi~oes nas quais tra-balhamos,
de seu proprio saber e saber-fazer. Isso sup~oe uma ruptura com
a concepc~ao assimetrica da pesquisa, baseada na captac~ao de informac~oes.
N~ao ha, de fato, antropologia sem troca, isto e, sem itinerario no decor-rer
do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da
necessidade de n~ao deixar se perder formas de pensamento e atividade unicas.
b) Urg^encia de analise das mutac~oes culturais impostas pelo desenvolvimento
extremamente rapido de todas as sociedades contempor^aneas, que n~ao s~ao
mais sociedades tradicionais, e sim sociedades que est~ao passando por um
desenvolvimento tecnologico absolutamente inedito, por mutac~oes de suas
relac~oes sociais, por movimentos de migrac~ao Interna, e por um processo de
urbanizac~ao acelerado. Atraves da especi
109. cidade de sua abordagem, nossa
disciplina deve, n~ao fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for-mular
quest~oes com eles, elaborar com eles uma re
ex~ao racional (e n~ao mais
magica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tambem uma
crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto e, o encontro
de lnguas, tecnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropologica, que
n~ao e de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem
nunca se substituir aos projetos e as decis~oes dos proprios atores sociais,
tem hoje como vocac~ao maior a de propor n~ao soluc~oes mas instrumentos
de investigac~ao que poder~ao ser utilizados em especial para reagir ao choque
da aculturac~ao, isto e, ao risco de um desenvolvimento con
ituoso levando a
viol^encia negadora das particularidades econ^omicas, sociais, culturais de um
povo.
5) Uma quinta di
111. nalmente, a natureza desta obra que
deve apresentar, em um numero de paginas reduzido, um campo de pesquisa
imenso, cujo desenvolvimento recente e extremamente especializado. No
112. -
nal do seculo XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo
global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural,
lingustica, pre-historica, e tambem mais recentemente o caso de Ktoeber,
provavemente o ultimo antropologo que explorou: com sucesso uma area t~ao
extensa). N~ao e, evidentemente, o caso hoje em dia. O antropologo considera
agora { com raz~ao { que e competente apenas dentro de uma area restrita 13
13A antropologia das tecnicas, a antropologia econ^omica, poltica, a antropologia do
113. CONTEUDO 21
de sua propria disciplina e para uma area geogra
114. ca delimitada.
Era-me portanto impossvel, dentro de um texto de dimens~oes t~ao restri-tas,
dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos
campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar
um certo numero de refer^encias, de
115. nir alguns conceitos a partir dos quais o
leitor podera, espero, interessar-se em ir mais adiante.
Ver-se-a que este livro caminha em espiral. As preocupac~oes que est~ao no
centro de qualquer abordagem antropologica e que acabam de ser mencio-nadas
ser~ao retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em
primeiro lugar quais foram as principais etapas da constituic~ao de nossa dis-ciplina
e como, atraves dessa historia da antropologia, foram se colocando
progressivamente as quest~oes que continuam nos interessando ate hoje. Em
seguida, esbocarei os polos teoricos - a meu ver cinco - em volta dos quais
oscilam o pensamento e a pratica antropologica. Teria sido, de fato, surpreen-dente,
se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse
monoltica. Ela e ao contrario claramente plural. Veremos no decorrer deste
livro que existem perspectivas complementares, mas tambem mutuamente
exclusivas, entre as quais e preciso escolher. E, em vez de
116. ngir ter ado-tado
o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que
nas ci^encias humanas e um engodo, esforcando-me ao mesmo tempo para
apresentar com o maximo de objetividade o pensamento dos outros, n~ao
dissimularei as minhas proprias opc~oes. Finalmente, em uma ultima parte,
os principais eixos anteriormente examinados ser~ao, em um movimento por
assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de de
119. nalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo
publico possvel. N~ao aqueles que t^em por pro
120. ss~ao a antropologia { du-vido
que encontrem nele um grande interesse { mas a todos que, em algum
momento de sua vida (pro
121. ssional, mas tambem pessoal), possam ser levados
a utilizar o modo de conhecimento t~ao caracterstico da antropologia. Esta
e a raz~ao pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem tecnica
e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente
pela segunda. Pois a antropologia, que e a ci^encia do homem por excel^encia,
pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos nos.
parentesco, das organizac~oes sociais, a antropologia religiosa, artstica, a antropologia dos
sistemas de comunicac~oes...
123. Parte I
Marcos Para Uma Historia Do
Pensamento Antropologio
23
124.
125. Captulo 1
A Pre-Historia Da
Antropologia:
a descoberta das diferencas pelos vi-ajantes
do seculo e a dupla resposta
ideologica dada daquela epoca ate nos-sos
dias
A g^enese da re
ex~ao antropologica e contempor^anea a descoberta do Novo
Mundo. O Renascimento explora espacos ate ent~ao desconhecidos e comeca
a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espacos.1 A
grande quest~ao que e ent~ao colocada, e que nasce desse primeiro confronto
visual com a alteridade, e a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco-bertos
pertencem a humanidade? O criterio essencial para saber se convem
atribuir-lhes um estatuto humano e, nessa epoca, religioso: O selvagem tem
uma alma? O pecado original tambem lhes diz respeito? {quest~ao capital
para os missionarios, ja que da resposta ira depender o fato de saber se e
possvel trazer-lhes a revelac~ao. Notamos que se, no seculo XIV, a quest~ao
1As primeiras observac~oes e os primeiros discursos sobre os povos distantesde que
dispomos prov^em de duas fontes: 1) as reac~oes dos primeiros viajantes, formando o que
habitualmente chamamos de literatura de viagem. Dizem respeito em primeiro lugar a
Persia e a Turquia, em seguida a America, a Asia e a Africa. Em 1556, Andre Thevet
escreve As Singularidades da Franca Antartica, em 1558 Jean de Lery, A Historia de Uma
Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tambem como exemplo, para um perodo
anterior (seculo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um perodo posterior (seculo
XVII) Y. d'Evreux (reed. 1985), bom como a colet^anea de textos de J. P. Duviols (1978);
2) os relatorios dos missionarios e particularmente as Relac~oesdos jesutas (seculo XVII)
nc Canada, no Jap~ao, na China, Cf., por exemplo, as Lettres ^Edi
126. antes et Curieuses de la
Chine par des Missionnaires Jesuites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979.
25
127. 26 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
e colocada, n~ao e de forma alguma solucionada. Ela sera de
128. nitivamente
resolvida apenas dois seculos mais tarde.
Nessa epoca e que comecam a se esbocar as duas ideologias concorrentes,
mas das quais uma consiste no simetrico invertido da outra: a recusa do es-tranho
apreendido a partir de uma falta, e cujo corolario e a boa consci^encia
que se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascinac~ao pelo estranho cujo corolario
e a ma consci^encia que se tem sobre si e sua sociedade.
Ora, os proprios termos dessa dupla posic~ao est~ao colocados desde a me-tade
do seculo XIV: no debate, que se torna uma controversia publica, que
durara varios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op~oe o
dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera.
Las Casas:
Aqueles que pretendem que os ndios s~ao barbaros, responderemos que essas
pessoas t^em aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem poltica que,
em alguns reinos, e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou
ate superavam muitas nac~oes e uma ordem poltica que, em alguns reinos, e
melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate superavam muitas
nac~oes do mundo conhecidas como policiadas e razoaveis, e n~ao eram infe-riores
a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e
ate, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tambem a
Inglaterra, a Franca, e algumas de nossas regi~oes da Espanha. (...) Pois a
maioria dessas nac~oes do mundo, sen~ao todas, foram muito mais pervertidas,
irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prud^encia e saga-cidade
em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nos
mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens~ao
de nossa Espanha, pela barbarie de nosso modo de vida e pela depravac~ao de
nossos costumes.
Sepulvera:
Aqueles que superam os outros em prud^encia e raz~ao, mesmo que n~ao se-jam
superiores em forca fsica, aqueles s~ao, por natureza, os senhores; ao
contrario, porem, os preguicosos, os espritos lentos, mesmo que tenham as
forcas fsicas para cumprir todas as tarefas necessarias, s~ao por natureza ser-
2Sendo, as duas variantes dessa
129. gura: 1) a condescend^encia e a protec~ao, paternalista
do outro: 2) sua exclus~ao
130. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27
vos. E e justo e util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela propria
lei divina. Tais s~ao as nac~oes barbaras e desumanas, estranhas a vida civil
e aos costumes pac
131. cos. E sera sempre justo e conforme o direito natural
que essas pessoas estejam submetidas ao imperio de prncipes e de nac~oes
mais cultas e humanas, de modo que, gracas a virtude destas e a prud^encia
de suas leis, eles abandonem a barbarie e se conformem a uma vida mais
humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imperio, pode-se
imp^o-lo pelo meio das armas e essa guerra sera justa, bem como o declara
o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos
dominem aqueles que n~ao t^em essas virtudes.
Ora, as ideologias que est~ao por tras desse duplo discurso, mesmo que n~ao se
expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro seculos
apos a pol^emicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s~ao estereotipos
que envenenam essa antropologia espont^anea de que temos ainda hoje tanta
di
132. culdade para nos livrarmos, convem nos determos sobre eles.
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom
Civilizado
A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho-mens
como um fato, e sim como uma aberrac~ao exigindo uma justi
133. cac~ao.
A antiguidade grega designava sob o nome de barbaro tudo o que n~ao par-ticipava
da helenidade (em refer^encia a inarticulac~ao do canto dos passaros
oposto a signi
134. cac~ao da linguagem humana), o Renascimento, os seculos
XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto e, seres da
oresta),
opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos e que triun-far
a no seculo XIX, enquanto optamos preferencialmente na epoca atual pelo
de subdesenvolvidos.
Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto e, para a natureza to-dos
aqueles que n~ao participam da faixa de humanidade a qual pertencemos
e com a qual nos identi
135. camos, e, como lembra Levi-Strauss, a mais comum
3Essa oscilac~ao entre dois polos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento
de p^endulo ininterrupto, pode ser encontrada n~ao apenas em uma mesma epoca, mas em
um mesmo autor. Cf., por exemplo, Lery (1972) ou Buon (1984).
136. 28 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracterstica dos selvagens.4
Entre os criterios utilizados a partir do seculo XIV pelos europeus para julgar
se convem conferir aos ndios um estatuto humano, alem do criterio religioso
do qual ja falamos, e que pede, na con
137. gurac~ao na qual nos situamos, uma
resposta negativa (sem religi~ao nenhuma, s~ao mais diabos), citaremos:
a apar^encia fsica: eles est~ao nus ou vestidos de peles de animais;
os comportamentos alimentares: eles comem carne crua, e e todo o
imaginario do canibalismo que ira aqui se elaborar;5
a intelig^encia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles
falam uma lngua ininteligvel.
Assim, n~ao acreditando em Deus, n~ao tendo alma, n~ao tendo acesso a
linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal,
o selvagem e apreendido nos modos de um bestiario. E esse discurso so-bre
a alteridade, que recorre constantemente a metafora zoologica, abre o
grande leque das aus^encias: sem moral, sem religi~ao, sem lei, sem escrita,
sem Estado, sem consci^encia, sem raz~ao, sem objetivo, sem arte, sem pas-sado,
sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentara ate, no seculo XVIII:
sem barba, sem sobrancelhas, sem p^elos, sem espritosem ardor para
com sua f^emea.
E
a grande gloria e a honra de nossos reis e dos espanhois, escreve Go-mara
em sua Historia Geral dos ndios, ter feito aceitar aos ndios um unico
Deus, uma unica fe e um unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa-crif
cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus
pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos
deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais;
4Assim, escreve Levi-Strauss (1961), Ocorrem curiosas situac~oes onde dois interlo-cutores
d~ao-se cruelmente a replica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos apos a descoberta
da America, enquanto os espanhois enviavam comiss~oes de inquerito para pesquisar se os
indgenas possuam ou n~ao uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio-neiros
a
139. car, por uma observac~ao demorada, se seus cadaveres eram ou n~ao
sujeitos a putrefac~ao
5Cf. especialmente Hans Staden, Veritable Histoire et Descriptiou d'un Pays Habite
par des Hommes Sauvages, Nus. Feroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M.
JVletailie, 1979.
6Essa falta pode ser apreendida atraves de duas variantes: I) n~ao t^em, irremediavel-mente,
futuro e n~ao temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) e possvel faz^e-los
evoluir. Pela ac~ao missionaria (a partir seculo XVI). Assim como pela ac~ao administrativa
140. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29
mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s~ao como animais e o uso do
ferro que e t~ao necessario ao homem. Tambem lhes mostramos varios bons
habitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso { e
ate cada uma dessas coisas { vale mais que as penas, as perolas, o ouro que
tomamos deles, ainda mais porque n~ao utilizavam esses metais como moeda.
As pessoas desse pas, por sua natureza, s~ao t~ao ociosas, viciosas, de pouco
trabalho, melancolicas, covardes, sujas, de ma condic~ao, mentirosas, de mole
const^ancia e
141. rmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo-min
aveis pecados dessas pessoas selvagens, rusticas e bestiais, que fossem
atirados e banidos da superfcie da Terra. escreve na mesma epoca (1555)
Oviedo em sua Historia das ndias.
Opini~oes desse tipo s~ao inumeraveis, e passaram tranquilamente para nossa
epoca. No seculo XIX, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Li-vingstone,
compara os africanos aos macacos de um jardim zoologico, e
convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que
foi o discurso colonial dos franceses na Argelia.
Mais dois textos ir~ao deter mais demoradamente nossa atenc~ao, por nos pa-recerem
muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso
do civilizado. S~ao as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes
para servir a Historia da Especie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado
em 1774, e a famosa Introduc~ao a Filoso
142. a da Historia, de Hegel.
1) De Pauw nos prop~oe suas re
ex~oes sobre os ndios da America do Norte.
Sua convicc~ao e a de que sobre estes lllimos a in
u^encia da natureza e total,
ou mais precisamente negativa. Se essa raca inferior n~ao tem historia e esta
pura sempre condenada, por seu estado degenerado, a permanecer fora do
movimento da Historia, a raz~ao deve ser atribuda ao clima de uma extrema
umidade:
Deve existir, na organizac~ao dos americanos, uma causa qualquer que em-brutece
sua sensibilidade e seu esprito. A qualidade do clima, a grosseria
de seus humores, o vcio radical do sangue, a constituic~ao de seu tempera-mento
excessivamente
eumatico podem ter diminudo o tom e o saracoteio
dos nervos desses homens embrutecidos.
Eles t^em, prossegue Pauw, um temperamento t~ao umido quanto o ar e
a terra onde vegetame que explica que eles n~ao tenham nenhum desejo se-xual.
Em suma, s~ao infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
143. 30 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
na escurid~ao das
orestas, parecem mais animais do que vegetais. Apos a
degeneresc^encia ligada a um vcio de constituic~ao fsica, Pauw chega a de-grada
c~ao moral. E
a quinta parte do livro, cuja primeira sec~ao e intitulada:
O g^enio embrutecido dos Americanos.
A insensibilidade, escreve nosso autor, e neles um vcio de sua constituic~ao
alterada; eles s~ao de uma preguica imperdoavel, n~ao inventam nada, n~ao em-preendem
nada, e n~ao estendem a esfera de sua concepc~ao alem do que v^eem
pusil^animes, covardes, irritados, sem nobreza de esprito, o des^animo e a
falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inuteis para
si mesmos e para a sociedade. En
144. m, os californianos vegetam mais do que
vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma.
Essa separac~ao entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir-remediavelmente
imutavel, e o estado de civilizac~ao, pode ser visualizado
num mapa mundi. No seculo XVIII, a enciclopedia efetua dois tracados: um
longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa,
a Africa e a Asia, de outro a America, e um latitudinal dividindo o que se
encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buon, a proxi-midade
ou o afastamento da linha equatorial s~ao explicativos n~ao apenas da
constituic~ao fsica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filoso
145. cas
sobre os Americanos escolhe claramente o criterio latitudinal, fundamento
aos seus olhos da distribuic~ao da populac~ao mundial, distribuic~ao essa n~ao
cultural e sim natural da civilizac~ao e da barbarie: A natureza tirou tudo
de um hemisferio deste globo para da-lo ao outro. A diferenca entre um
hemisferio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) e total, t~ao grande quanto
poderia ser e quanto podemos imagina-la: de um lado, a humanidade, e de
outro, a estupidez na qual vegetamesses seres indiferenciados:
Igualmente barbaros, vivendo igualmente da caca e da pesca, em pases
frios, estereis, cobertos de
orestas, que desproporc~ao se queria imaginar
entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de sa-tisfaz^
e-los s~ao os mesmos, onde as in
u^encias do ar s~ao t~ao semelhantes, e
possvel haver contradic~ao nos costumes ou variac~oes nas ideias?
Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os indgenas america-nos
vivem em um estado de embrutecimentogeral. T~ao degenerados uns
quanto os outros, seria em v~ao procurar entre eles variedades distintivas da-quilo
que se pareceria com uma cultura e com uma historia.7
7Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
146. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31
2) Os julgamentos que acabamos de relatar { que est~ao, notamos, em ruptura
com a ideologia dominante do seculo XVIII, da qual falaremos mais adiante,
e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado
vinte anos antes { por excessivos que sejam, apenas radicalizam ideias com-partilhadas
por muitas pessoas nessa epoca. Ideias que ser~ao retomadas e
expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introduc~ao
a Filoso
147. a da Historia, nos exp~oe o horror que ele ressente frente ao es-tado
de natureza, que e o desses povos que jamais-ascender~ao a historiae
a consci^encia de si.
Na leitura dessa Introduc~ao, a America do Sul parece mais estupida ainda
do que a do Norte. A Asia aparentemente n~ao esta muito melhor. Mas e
a Africa, e, em especial, a Africa profunda do interior, onde a civilizac~ao
nessa epoca ainda n~ao penetrou, que representa para o
148. losofo a forma mais
nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade:
E
o pas do ouro, fechado sobre si mesmo, o pas da inf^ancia, que, alem
do dia e da historia consciente, esta envolto na cor negra da noite.
Tudo, na Africa, e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ne-gros
n~ao respeitam nada, nem mesmo eles proprios, ja que comem carne
humana e fazem comercio da carnede seus proximos. Vivendo em uma
ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado
bruto, eles n~ao t^em moral, nem instituic~oes sociais, religi~ao ou Estado.8 Pe-tri
149. cados em uma desordem inexoravel, nada, nem mesmo as forcas da colo-niza
c~ao, podera nunca preencher o fosso que os separa da Historia universal
da humanidade.
Na descric~ao dessa africanidade estagnante da qual n~ao ha absolutamente
nada a esperar { e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a
indianidade em Pauw { , o autor da Fenomenologia do Esprito vai, vale a
pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filoso
150. cas sobre os Ameri-canos.
O negronem mesmo se v^e atribuir o estatuto de vegetal. Ele cai,
escreve Hegel, para o nvel de uma coisa, de um objeto sem valor.
8O fato de devorar homens corresponde ao princpio africano.Ou ainda: S~ao os
seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante e para eles apenas uma carne
como qualquer outra, suas guerras s~ao feroze: e sua religi~ao pura superstic~ao.
151. 32 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau
Civilizado
A
152. gura de uma natureza ma na qual vegeta um selvagem embrutecido e emi-nentemente
suscetvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza
dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribuic~ao
permanecem, como veremos, rigorosamente id^enticos, da mesma forma que
o par constitudo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natu-ral).
Mas efetua-se dessa vez a invers~ao daquilo que era apreendido como um
vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como
um menos que se torna um mais. O carater privativo dessas sociedades sem
escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi~ao organizada, sem clero,
sem sacerdotes, sem polcia, sem leis, sem Estado {acrescentar-se-a no seculo
XX sem Complexo de Edipo { n~ao constitui uma desvantagem. O selvagem
n~ao e quem pensamos.
Evidentemente, essa representac~ao concorrente (mas que consiste apenas
em inverter a atribuic~ao de signi
153. cac~oes e valores dentro de uma estrutura
id^entica) permanece ainda bastante rgida na epoca na qual o Ocidente desco-bre
povos ainda desconhecidos. A
154. gura do bom selvagem so encontrara sua
formulac~ao mais sistematica e mais radical dois seculos apos o Renascimento:
no rousseausmo do seculo XVIII, e, em seguida, no Romantismo. N~ao deixa
porem de estar presente, pelo menos em estado embrionario, na percepc~ao
que t^em os primeiros viajantes. Americo Vespucio descobre a America:
As pessoas est~ao nuas, s~ao bonitas, de pele escura, de corpo elegante. .
. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo e colocado em comum.
E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua
m~ae, sua irm~a, ou sua amiga, entre as quais eles n~ao fazem diferenca. . .
Eles vivem cinquenta anos. E n~ao t^em governo.
Cristov~ao Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tambem o paraso;
Eles s~ao muito mansos e ignorantes do que e o mal, eles n~ao sabem se
matar uns aos outros (...) Eu n~ao penso que haja no mundo homens melho-res,
como tambem n~ao ha terra melhor.
Toda a re
ex~ao de Lery e de Montaigne no seculo XVI sobre os naturaisbaseia-se
sobre o tema da noc~ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela
primeira vez, instaura-se uma crtica da civilizac~ao e um elogio da ingenui-
155. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33
dade originaldo estado de natureza. Lery, entre os Tupinambas, interroga-se
sobre o que se passa aquem, isto e, na Europa. Ele escreve, a respeito de
nossos grandes usurarios: Eles s~ao mais crueis do que os selvagens dos
quais estou falando. E Montaigne, sobre esses ultimos: Podemos portanto
de fato chama-los de barbaros quanto as regras da raz~ao, mas n~ao quanto
a nos mesmos que os superamos em toda sorte de barbarie. Para o autor
dos Ensaios, esse estado paradisaco que teria sido o nosso outrora, talvez
esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei ate o
encontrou.
Esse fascnio exercido pelo indgena americano, e em especial por le Hu-ron,
9protegido da civilizac~ao e que nos convida a reencontrar o universo ca-loroso
da natureza, triunfa nos seculos XVII e XVIII. Nas primeiras Relac~oes
dos jesutas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler:
Eles s~ao afaveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que
frequentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente
entre eles do que entre nos. Seu ideal: viver em comum sem processo,
contentar-se de pouco sem avareza, ser assduo no trabalho.
Do lado dos livres-pensadores, e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan:
Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris~oes e sem torturas passam a
vida na docura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida
dos franceses.
Essa admirac~ao n~ao e compartilhada apenas pelos navegadores estupefa-tos.
10 O selvagem ingressa progressivamente na
157. a { os pensadores
9Um dos primeiros textos sobre os Hurons e publicado em 1632: Le Grand Vayage
au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux
Voyages du Baron de La Hontan ou ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1'Auteur et
un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Americains, de La
158. tau; em 1767, Vlngenu, de
Vol-taire..
Notemos que de cada populac~ao encontrada nasce um estereotipo. Se o discurso euro-peu
sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, refer^encia a crueldade, o
discurso sobre os Esquimos a sua hospitalidade, estes ultimos n~ao hesitando em oferecer
suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente e sem duvida predominante
em grande parte na literatura sobre os ndios.
10No seculo XVIII, um marinheiro franc^es escreve em seu diario de viagem: A inoc^encia
e a tranquilidade esta entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n~ao trocariam essa
vida e seu pas por qualquer coisa no mundo(comentarios relatados por ). P. Duviols,
1978).
159. 34 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
das Lumieresu 11{ , mas tambem nos sal~oes literarios e nos teatros parisien-ses.
Em 1721, e montado um espetaculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0
personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco:
Voc^es s~ao loucos, pois procuram com muito empenho uma in
160. nidade de
coisas inuteis; voc^es s~ao pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez
de simplesmente gozar da criac~ao, como nos, que n~ao queremos nada a
161. m
de desfrutar mais livremente de tudo.
E
a epoca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca-bou
de escrever, a epoca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens.
Manifestac~oes essas que constituem uma verdadeira acusac~ao contra a civi-liza
c~ao. Depois, o fascnio pelos ndios sera substitudo progressivamente, a
partir do
162. m do seculo XVIII, pelo charme e prazer idlico que provoca o
encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquipelagos
polinesios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Pascoa, e so-bretudo
o Taiti. Aqui esta, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua
Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980):
Seja dia ou noite, as casas est~ao abertas. Cada um colhe as frutas na
primeira arvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ocio
e compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar e sua mais preciosa
ocupac~ao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres
pareciam n~ao querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada
instante as docuras do amor, tudo incita ao abandono.
Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exal-tam
a docura das sociedades selvagens, e, correlativamente fustigam tudo
que pertence ao Ocidente ainda s~ao atuais. Se n~ao o fossem, n~ao nos seriam
diretamente acessveis, n~ao nos tocariam mais nada. Ora, e precisamente a
esse imaginario da viagem, a esse desejo de fazer existir em um alhuresuma
sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas
virtudes se estendam a magni
163. c^encia da fauna e da
ora (Chateau-briand,
Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu
sucesso com o publico.
O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar
11Condillac escreve: Nos que nos consideramos instrudos, precisaramos ir entre os
povos mais ignorantes, para aprender destes o comeco de nossas descobertas: pois e so-bretudo
desse comeco que precisaramos: ignoramo-lo porque deixamos ha tempo de ser
os discpulos da natureza
164. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35
ao Ocidente mortfero lic~oes de grandeza, como acabamos de ver, n~ao e novi-dade.
Mas grande parte do publico esta in
165. nitamente mais disponvel agora
do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da
abstrac~ao, do calculo e da impessoalidade das relac~oes humanas, op~oem-se
sociedades de solidariedade comunitaria, abrigadas na suntuosidade de uma
natureza generosa. A decepc~ao ligada aos benefciosdo progresso (nos quais
muitos entre nos acreditam cada vez menos) bem como a solid~ao e o ano-nimato
do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos
so aspirem a se projetar nesses paraso (perdido) dos tropicos ou dos mares
do Sul, que o Ocidente teria substitudo pelo inferno da sociedade tecnologica.
Mas convem, a meu ver, ir mais longe. O etnologo, como o militar, e recru-tado
no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a
sua, as mesmas insatisfac~oes,-angustias, desejos. Se essa busca do Ultimo dos
Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo vento dos coqueiros(que e na
realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa
disciplina, ela esta presente nas motivac~oes dos proprios etnologos. Mali-nowski
tera a franqueza de escrever e sera muito criticado por isso:
Um dos refugios fora dessa pris~ao mec^anica da cultura e o estudo das for-mas
primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades
longnquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga
rom^antica para longe de nossa cultura uniformizada.
Ora, essa nostalgia do neoltico, de que fala Alfred Metraux e que es-teve
na origem de sua propria vocac~ao de Ctnologo, e encontrada em muitos
autores, especialmente nas descric~oes de populac~oes preservadas do contato
corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transpar^encia.
O quali
166. cativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que
s~ao caracterizadas pela riqueza das trocas simbolicas, foi certamente o de
aut^entico(oposto a alienac~ao das sociedades industriais adiantadas), termo
proposto por Sapir em 1925, e que e erroneamente atribudo a Levi-Strauss.
* * *
A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si
mesmo) n~ao parou, portanto, de oscilar entre os polos de um verdadeiro
movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem:
era um monstro, um animal com
167. gura humana(Lery), a meio cami-nho
entre a animalidade e a humanidade mas tambem que os monstros
168. 36 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
eramos nos, sendo que ele tinha lic~oes de humanidade a nos dar;
levava uma exist^encia infeliz e miseravel, ou, pelo contrario, vivia num
estado de beatitude, adquirindo sem esforcos os produtos maravilhosos
da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a
assumir as duras tarefas da industria;
era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre guicoso;
n~ao tinha alma e n~ao acreditava em nenhum deus, ou era profunda-mente
religioso;
vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na
harmonia
era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um
comunista decidido a tudo compartilhar, ate e inclusive suas proprias
mulheres;
era admiravelmente bonito, ou feio;
era movido por uma impulsividade criminalmente cong^enita quando era
legtimo temer, ou devia ser considerado como uma crianca precisando
de protec~ao;
era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid~ao
permanente, ou, pelo contrario, um ser preso, obedecendo estritamente
aos tabus e as proibic~oes de seu grupo;
era atrasado, estupido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente
virtuoso e eminentemente complexo;
era um animal, um vegetal(de Pauw), uma coisa, um objeto sem
valor(Hegel), ou participava, pelo contrario, de uma humanidade da
qual tinha tudo como aprender.
Tais s~ao as diferentes construc~oes em presenca (nas quais a repuls~ao se trans-forma
rapidamente em fascnio) dessa alteridade fantasmatica que n~ao tem
muita relac~ao com a realidade. O outro { o ndio, o taitiano, mas recente-mente
o basco ou o bret~ao{ e simplesmente utilizado como suporte de um
imaginario cujo lugar de refer^encia nunca e a America, Taiti, o Pas Basco
ou a Bretanha. S~ao objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com
vistas a explorac~ao econ^omica, quanto ao militarismo poltico, a convers~ao
religiosa ou a emoc~ao estetica. Mas, em todos os casos, o outro n~ao e consi-derado
para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
169. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37
Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v~ao, tal-vez
anacr^onico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento
etnologico, t~ao problematico, como acabamos de observar, ainda no
170. nal do
seculo XX. N~ao basta viajar e surpreender-se com o que se v^e para tornar-se
etnologo (n~ao basta mesmo ter numerosos anos de campo, como se diz
hoje). Porem, numerosos viajantes nessa epoca colocam problemas (o que
n~ao signi
171. ca uma problematica) aos quais sera necessariamente confrontado
qualquer antropologo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ira
se tornar a etnologia. Jean de Lery, entre os indgenas brasileiros, pergunta-se:
e preciso rejeita-los fora da humanidade? Considera-los como virtualida-des
de crist~aos? Ou questionar a vis~ao que temos da propria humanidade,
isto e, reconhecer que a cultura e plural? Atraves de muitas contradic~oes (a
oscilac~ao permanente entre a convers~ao e o olhar, os objetivos teologicos e os
que poderamos chamar de etnogra
172. cos, o ponto de vista normativo e o ponto
de vista narrativo), o autor da Viagem n~ao tem resposta. Mas as quest~oes
(e para o que nos interessa aqui, mas especi
173. camente a ultima) est~ao no en-tanto
implicitamente colocadas. Montaigne (hoje as vezes criticado), mesmo
se o que o preocupa e menos a humanidade dos ndios do que a inumanidade
dos europeus, seguindo nisso Lery que transporta para o Novo Mundoos
con
itos do antigo, comeca a introduzir a duvida no edifcio do pensamento
europeu. Ele testemunha o desmoronamento possvel deste pensamento, me-nos
inclusive ao pronunciar a condenac~ao da civilizac~ao do que ao considerar
que a selvagerian~ao e nem inferior nem superior, e sim diferente.
Assim, essa epoca, muito timidamente, e verdade, e por alguns apenas de
seus espritos os menos ortodoxos, a partir da observac~ao direta de um ob-jeto
distante (Lery) e da re
ex~ao a dist^ancia sobre este objeto (Montaigne),
permite a constituic~ao progressiva, n~ao de um saber antropologico, muito me-nos
de uma ci^encia antropologica, mas sim de um saber pre-antropologico.
175. Captulo 2
O Seculo XVIII:
a invenc~ao do conceito de homem
Se durante o Renascimento esbocou-se, com a explorac~ao geogra
176. ca de conti-nentes
desconhecidos, a primeira interrogac~ao sobre a exist^encia multipla do
homem, essa interrogac~ao fechou-se muito rapidamente no seculo seguinte,
no qual a evid^encia do cogito, fundador da ordem do pensamento classico,
exclui da raz~ao o louco, a crianca, o selvagem, enquanto
177. guras da anorma-lidade.
Sera preciso esperar o seculo XVIII para que se constitua o projeto de fun-dar
uma ci^encia do homem, isto e, de um saber n~ao mais exclusivamente
especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no seculo
XVI elementos que permitem compreender a pre-historia da antropologia, en-quanto
o seculo XVII (cujos discursos n~ao nos s~ao mais diretamente acessveis
hoje) interrompe nitidamente essa evoluc~ao, apenas no seculo XVIII e que
entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na mo-dernidade.
Apenas nessa epoca, e n~ao antes, e que se pode apreender as
condic~oes historicas, culturais e epistemologicas de possibilidade daquilo que
vai se tornar a antropologia.
Antes do
178. nal do seculo XVIII, escreve Fou-cauilt, o homem n~ao existia.
Como tambem o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade
historica da linguagem. E
uma criatura muito recente que o demiurgo do sa-ber
fabricou com suas proprias m~aos, ha menos de duzentos anos (...) Uma
coisa em todo caso e certa, o homem n~ao e o mais antigo problema, nem o
mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem e uma
invenc~ao e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto e recente.
E, acrescenta Foucault no
179. nal de As Palavras e as Coisas, qu~ao proximo
39
181. m.
O projeto antropologico (e n~ao a realizac~ao da antropologia como a enten-demos
hoje) sup~oe:
1) a construc~ao de um certo numero de conceitos, comecando pelo proprio
conceito de homem, n~ao apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do
saber; abordagem totalmente inedita, ja que consiste em introduzir dualidade
caracterstica das ci^encias exatas (o sujeito observante e o objeto observado)
no corac~ao do proprio homem;
2) a constituic~ao de um saber que n~ao seja apenas de re
ex~ao, e sim de
observac~ao, isto e, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser
considerado em sua exist^encia concreta, envolvida nas determinac~oes de seu
organismo, de suas relac~oes de produc~ao, de sua linguagem, de suas insti-tui
c~oes, de seus comportamentos. Assim comeca a constituic~ao dessa posi-tividade
de um saber emprico (e n~ao mais transcendental) sobre o homem
enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e
fala (lingustica). . . Montesquieu, em O Esprito das Leis (1748), ao mos-trar
a relac~ao de interdepend^encia que e a dos fen^omenos sociais, abriu o
caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no seculo seguinte) a falar
em uma ci^encia da sociedade. Da mesma forma, antes dessa epoca, a lin-guagem,
quando tomada em considerac~ao, era objeto de
186. ca);
3) uma problematica essencial: a da diferenca. Rompendo com a convicc~ao
de uma transpar^encia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no
seculo XVIII a quest~ao da relac~ao ao impensado, bem como a dos possveis
processos de reapropriac~ao dos nossos condicionamentos
187. siologicos, das nos-sas
relac~oes de produc~ao, dos nossos sistema de organizac~ao social. Assim,
inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constituic~ao da ideia
de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais
re
ex~oes sobre os limites do saber, assim como sobre as relac~oes de sentido
e poder (que anunciam o
188. m da metafsica) eram inimaginaveis antes. A
sociedade do seculo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da
consci^encia europeia. Parte de suas elites busca suas refer^encias em um con-fronto
com o distante.
Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Compara-dos
aos Costumes dos Primeiros Tempos, La
190. 41
fundar uma ci^encia dos costumes e habitos, que, alem da conting^encia dos
fatos particulares, podera servir de comparac~ao entre varias formas de hu-manidade.
Em 1801, Jean Itard escreve Da Educac~ao do Jovem Selvagem
do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade a qual pertencem
o homem da civilizac~ao em que nos transportamos e o homem da natureza,
a crianca-lobo.1 Mas foi Rousseau quem tracou, em seu Discurso sobre a
Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornara o da
etnologia classica, no seu campo tematico2 tanto quanto na sua abordagem:
a induc~ao de que falaremos agora;
4) um metodo de observac~ao e analise: o metodo indutivo. Os grupos sociais
(que comecam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados
como sistemas naturaisque devem ser estudados empiricamente, a partir du
observac~ao de fatos, a
191. m de extrair princpios gerais, que hoje chamaramos
de leis.
Esse naturalismo, que consiste numa emancipac~ao de
192. nitiva em relac~ao ao
pensamento teologico, imp~oe-se em especial na Inglaterra,3 com Adam Smith
e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza
Humana, cujo ttulo completo e: Tratado sobre a natureza Humana: tenta-tiva
de introduc~ao de um metodo experimental de raciocnio para o estudo
de assuntos de moral. Os
193. losofos ingleses colocam as premissas de todas
as pesquisas que procurar~ao fundar, no seculo XVIII, uma moral natural,
um direito natural, ou ainda uma religi~ao natural.
* * *
Esse projeto de um conhecimento positivo do homem { isto e, de um estudo
de sua exist^encia emprica considerada por sua vez como objeto do saber {
constitui um evento consideravel na historia da humanidade. Um evento que
se deu no Ocidente no seculo XVIII, que, evidentemente, n~ao ocorreu da noite
para o dia, mas que terminou impondo-se ja que se tornou de
195. lme de Francois Truaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson
que the serviu de base.
2Rousseau estabelece a lista das regi~oes devedoras de viagens
197. cas: o mundo
inteiro menos a Europa ocidental.
3A precocidade e preemin^encia, no pensamento ingl^es, do empirismo em relac~ao ao
pensamento franc^es, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu
ver explicar em parte o crescimento rapido (no comeco do seculo XX) da antropologia
brit^anica e o atraso da antropologia francesa.
198. 42 CAPITULO 2. O SECULO XVIII:
constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa epoca, entramos. A
199. m
de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revoluc~ao do pensamento {
que instaura uma ruptura tanto com o humanismodo Renascimento como
com o racionalismodo seculo classico {, examinemos de mais perto o que
mudou radicalmente desde o seculo XVI.
1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos
dos viajantes dos seculos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogra
201. ca. Afora algumas incurs~oes tmidas para area das
inclinac~oese dos costumes,4o objeto de observac~ao, nessa epoca era mais
o ceu, a terra, a fauna e a
ora, do que o homem em si, e, quando se tratava
deste, era essencialmente o homem fsico que era tomado em considerac~ao.
Ora, o seculo XVIII traca o primeiro esboco daquilo que se tornara uma
antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo,
tomando como modelo a antropologia fsica, e instaurando uma ruptura do
monopolio desta (especialmente na Franca).
2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo
para a atividade epistemologica, que se torna cada vez mais organizada. Os
viajantes dos seculos XVI e XVII coletavam curiosidades. Espritos curio-sos
reuniam colec~oes que iam formar os famosos gabinetes de curiosidades,
ancestrais dos nossos museus contempor^aneos. No seculo XVIII, a quest~ao
e: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a
Historia Geral das Viagens, do padre Prevost (1746), passa-se da coleta dos
materiais para a colec~ao das coletas. N~ao basta mais observar, e preciso pro-cessar
a observac~ao. N~ao basta mais interpretar o que e observado, e preciso
interpretar interpretac~oes.5 E e desse desdobramento, isto e, desse discurso,
que vai justamente brotar uma atividade de organizac~ao e elaborac~ao. Em
1789, Chavane, o primeiro, dara a essa atividade um nome. Ele a chamara:
a etnologia.
* * *
Finalmente, e no seculo XVIII que se forma o par do viajante e do
202. losofo:
o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La Perouse. .
realizando o que e chamado na epoca de viagens
204. cas, precursoras das
4Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o
questionario que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informac~oes sobre
o estado das mentalidades populares no reino.
5Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
207. losofo Buon, Voltaire, Rous-seau,
Diderot (cf. em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville)
esclarecendocom suas re
ex~oes as observac~oes trazidas pelo viajante.
Mas esse par n~ao tem realmente nada de idlico. Que pena, pensa Rous-seau,
que os viajantes n~ao sejam
210. losofos naturalistas do
seculo das luzes, se e essencial observar, e preciso ainda que a observac~ao seja
esclarecida. Uma prioridade e portanto conferida ao observador, sujeito que,
para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo numero de
qualidades. E e assim que se constitui, na passagem do seculo XVIII para o
seculo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada
pelos ent~ao chamados ideologos, que s~ao moralistas,
212. nem muito claramente o que deve ser o campo da nova area
de saber (o homem nos seus aspectos fsicos, psquicos, sociais, culturais) e
quais devem ser suas exig^encias epistemologicas.
As Considerac~oes sobre os Diversos Metodos a Seguir na Observac~ao dos
Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s~ao, quanto a isso, exemplares. Pri-meira
metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss~ao
nas Terras Austrais, esse texto e uma crtica da observac~ao selvagem do
selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista
deve ser ele proprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ci^encia
{ quali
213. cada de ci^encia do homemou ci^encia natural-- e uma ci^encia de
observac~ao, devendo o observador participar da propria exist^encia dos gru-pos
sociais observados.7
6Rousseau: Suponhamos um Montesquieu, um Buon, um Diderot, um d'Alembert,
um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas,
observando como sabem faz^e-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que
esses novos Hercules, de volta de suas andancas memoraveis,
214. zessem a seguir a historia
natural, moral e poltica do que teriam visto, veramos nascer de seus escritos um mundo
novo, e aprenderamos assim a conhecer o nosso.
Bougainville: Sou viajante e marinheiro, isto e, um mentiroso e um imbecil aos olhos
dessa classe de escritores preguicosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete,
216. m sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas
imaginac~oes. Modos bastante singulares e inconcebveis da parte de pessoas que, n~ao
tendo observado nada por si proprias, so escrevem e dogmatizam a partir de observac~oes
tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar.
7Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de um homem
simples e rude, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ndios entre os quais
esteve.
217. 44 CAPITULO 2. O SECULO XVIII:
Porem, o projeto de De Gerando n~ao foi aplicado por aqueles a que se des-tinava
diretamente, e n~ao sera, por muito tempo ainda, levado em conta.8
Se esse programa que consiste em ligar uma re
ex~ao organizada a uma ob-serva
c~ao sistematica, n~ao apenas do homem fsico, mas tambem do homem
social e cultural, n~ao p^ode ser realizado, e porque a epoca ainda n~ao o per-mitia.
O
218. nal do seculo XVIII teve um papel essencial na elaborac~ao dos
fundamentos de uma ci^encia humana. N~ao podia ir mais longe, e n~ao po-der
amos credita-lo aquilo que so sera possvel um seculo depois.
Mais especi