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2
Aprender Antropologia 
Francois Laplantine 
2003
2
Conteudo 
I Marcos Para Uma Historia Do Pensamento An-tropol 
ogio 23 
1 A Pre-Historia Da Antropologia: 25 
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27 
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32 
2 O Seculo XVIII: 39 
3 O Tempo Dos Pioneiros: 47 
4 Os Pais Fundadores Da Etnogra
a: 57 
4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 
4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 
5 Os Primeiros Teoricos Da Antropologia: 67 
II As Principais Tend^encias Do Pensamento An-tropol 
ogico Contempor^aneo 73 
6 Introduc~ao: 75 
6.1 Campos De Investigac~ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 
6.2 Determinac~oes Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 
6.3 Os Cinco Polos Teoricos Do Pensamento Antropologico Con-tempor^ 
aneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 
7 A Antropologia Dos Sistemas Simbolicos 87 
8 A Antropologia Social: 91 
9 A Antropologia Cultural: 95 
3
4 CONTEUDO 
10 A Antropologia Estrutural E Sist^emica: 103 
11 A Antropologia Din^amica: 113 
III A Especi
cidade Da Pratica Antropologica 119 
12 Uma Ruptura Metodologica: 121 
13 Uma Invers~ao Tematica: 125 
14 Uma Exig^encia: 129 
15 Uma Abordagem: 133 
16 As Condic~oes De Produc~ao Social Do Discurso Antropologico137 
17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139 
18 Antropologia E Literatura: 143 
19 As Tens~oes Constitutivas Da Pratica Antropologica: 149 
19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 
19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 
19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 
20 Sobre o autor: 163
CONTEUDO 5 
Prefacio 
A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens~ao do homem 
Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma area do conhe-cimento 
e tracar-lhe a historia, mostrando como foi variando o seu colorido 
atraves dos tempos, como deitou rami
cac~oes novas que alteraram seu tema 
de base ampliando-o. Para tanto e requerida uma erudic~ao di
cilmente en-contrada 
entre os especialistas, pois erudic~ao e especializac~ao constituem-se 
em opostos: a erudic~ao abrindo- se na ^ansia de dominar a maior quantidade 
possvel de saber, a especializac~ao se fechando no pequeno espaco de um co-nhecimento 
minucioso. 
O livro do antropologo franc^es Francois Laplantine, professor da Univer-sidade 
de Lyon II, autor de varias obras importantes e que hoje efetua pes-quisas 
no Brasil, reune as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento 
antropologico atraves da historia e mostrando as diversas perspectivas atuais. 
Em primeiro lugar, efetua a analise de seu desenvolvimento, que permite uma 
compreens~ao melhor de suas caractersticas espec
cas; em seguida, apresenta 
as tend^encias contempor^aneas e,
nalmente, um panorama dos problemas co-locados 
pela pratica e por suas possibilidades de aplicac~ao. 
Trata-se de uma introduc~ao a Antropologia que parece fabricada de enco-menda 
para estudantes brasileiros. A formac~ao nacional em Ci^encias Sociais 
(e a Antropologia n~ao foge a regra. . .) segue a via da especializac~ao, muito 
mais do que a da formac~ao geral. Os estudantes l^eem e discutem determi-nados 
autores, ou ent~ao os componentes de uma escola bem delimitada; o 
conhecimento lhes e inculcado atraves do conhecimento de um problema ou 
de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que susci-tou, 
nas respostas e soluc~oes que inspirou. A historia da disciplina, assim 
como da area de conhecimentos a que pertence, o exame crtico de todas 
as proposic~oes tematicas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem 
muitas vezes fora das cogitac~oes do curso, como se fosse algo de somenos 
import^ancia. 
No Brasil o presente tem muita forca; nele se vive intensamente, e ele que se 
busca compreender profundamente, na convicc~ao de que nele est~ao as razes 
do futuro. Pas em construc~ao, seus habitantes em geral, seus estudiosos em 
particular, tem consci^encia ntida de que est~ao criando algo, de que sua ac~ao 
e de import^ancia capital como fator por excel^encia do provir. E, para chegar
6 CONTEUDO 
a ela escolhe-se uma unica via preferencial, a especializac~ao numa direc~ao, 
como se fora dela n~ao existisse salvac~ao. 
No entanto, com esta maneira de ser t~ao mercante, perdem-se de vista com-ponentes 
fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por 
outro lado a multipli-cidade de caminhos que t^em sido tracados para cons-tru 
-lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ci^encias 
Sociais, e o reforco do conhecimento do passado de sua propria disciplina e 
da variedade de ramos que foi originando ate a atualidade. Este livro, em 
muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An-tropologia 
e seu lugar no ^ambito do saber. 
Construdo dentro da tradic~ao francesa do pensamento analtico e da cla-reza 
de express~ao, esta introduc~ao ao conhecimento da Antropologia atinge, 
na verdade, um publico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e 
especialistas de Ci^encias Sociais. Sua difus~ao se fara sem duvida entre todos 
aqueles atrados para os problemas do homem enquanto tal, que buscam co-nhecer 
ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo outro. 
Maria Isaura Pereira de Queiroz 1 
1Maria Isaura Pereira de Queiroz e professora do Departamento de Sociologia e pes-quisadora 
do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
CONTEUDO 7 
Introduc~ao 
O Campo e a Abordagem Antropologicos 
O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie-dades 
existiram homens que observavam homens. Houve ate alguns que eram 
teoricos e forjaram, como diz Levi-Strauss, modelos elaborados em casa. 
A re
ex~ao do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaborac~ao de um 
saber s~ao, portanto, t~ao antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na 
Asia como na Africa, na America, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto 
de fundar uma ci^encia do homem - uma antropologia - e, ao contrario, muito 
recente. De fato, apenas no
nal do seculo XVIII e que comeca a se constituir 
um saber cient
co (ou pretensamente cient
co) que toma o homem como 
objeto de conhecimento, e n~ao mais a natureza; apenas nessa epoca e que o 
esprito cient
co pensa, pela primeira vez, em aplicar ao proprio homem os 
metodos ate ent~ao utilizados na area fsica ou da biologia. 
Isso constitui um evento consideravel na historia do pensamento do homem 
sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n~ao estejamos medindo 
todas as consequ^encias. Esse pensamento tinha sido ate ent~ao mitologico, 
artstico, teologico,
loso
co, mas nunca cient
co no que dizia respeito ao 
homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ultimo do estatuto de 
sujeito do conhecimento ao de objeto da ci^encia. Finalmente, a antropolo-gia, 
ou mais precisamente, o projeto antropologico que se esboca nessa epoca 
muito tardia na Historia - n~ao podia existir o conceito de homem enquanto 
regi~oes da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi~ao 
muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trara, evidentemente, como vere-mos 
mais adiante, consequ^encias importantes. 
Para que esse projeto alcance suas primeiras realizac~oes, para que o novo 
saber comece a adquirir um incio de legitimidade entre outras disciplinas 
cient
cas, sera preciso esperar a segunda metade do seculo XIX, durante o 
qual a antropologia se atribui objetos empricos aut^onomos: as sociedades 
ent~ao ditas primitivas, ou seja, exteriores as areas de civilizac~ao europeias 
ou norte-americanas. A ci^encia, ao menos tal como e concebida na epoca, 
sup~oe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que 
a separac~ao (sem a qual n~ao ha experimentac~ao possvel) entre o sujeito ob-servante 
e o objeto observado e obtida na fsica (como na biologia, bot^anica, 
ou zoologia) pela natureza su
cientemente diversa dos dois termos presentes, 
na historia, pela dist^ancia no tempo que separa o historiador da sociedade
8 CONTEUDO 
estudada, ela consistira na antropologia, nessa epoca - e por muito tempo - 
em uma dist^ancia de
nitivamente geogra
ca. As sociedades estudadas pelos 
primeiros antropologos s~ao sociedades longnquas as quais s~ao atribudas as 
seguintes caractersticas: sociedades de dimens~oes restritas; que tiveram pou-cos 
contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia e pouco desenvolvida 
em relac~ao a nossa; e nas quais ha uma menor especializac~ao das atividades 
e func~oes sociais. S~ao tambem quali
cadas de simples; em consequ^encia, 
elas ir~ao permitir a compreens~ao, como numa situacao de laboratorio, da 
organizac~ao complexade nossas proprias sociedades. 
* * * 
A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe e proprio: 
o estudo das populac~oes que n~ao pertencem a civilizac~ao ocidental. Ser~ao ne-cess 
arias ainda algumas decadas para elaborar ferramentas de investigac~ao 
que permitam a coleta direta no campo das observac~oes e informac~oes. Mas 
logo apos ter
rmado seus proprios metodos de pesquisa - no incio do seculo 
XX - a antropologia percebe que o objeto emprico que tinha escolhido (as 
sociedades primitivas) esta desaparecendo; pois o proprio Universo dos 
selvagensn~ao e de forma alguma poupado pela evoluc~ao social. Ela se v^e, 
portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma 
quest~ao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu 
nascimento: o
m do selvagemou, como diz Paul Mercier (1966), sera que 
a morte do primitivoha de causar a morte daqueles que haviam se dado 
como tarefa o seu estudo? A essa pergunta varios tipos de resposta puderam 
e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em tr^es deles. 
1) O antropologo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ^ambito das 
outras ci^encias humanas. Ele resolve a quest~ao da autonomia problematica 
de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente 
o que e chamado de sociologia comparada. 
2) Ele sai em busca de uma outra area de investigac~ao: 0 campon^es, este 
selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem ade-quado, 
ja que foi deixado de lado pelos outros ramos das ci^encias do homem. 
2 
2A pesquisa etnogra
ca cujo objeto pertence a mesma sociedade que i) observador foi, 
de incio, quali
cada pelo nome de folklore. Foi Van uenncp que elaborou os metodos 
proprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
CONTEUDO 9 
3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n~ao exclui 
o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele a
rma a especi
ci-dade 
de sua pratica, n~ao mais atraves de um objeto emprico constitudo 
(o selvagem, o campon^es), mas atraves de uma abordagem epistemologica 
constituinte. Essa e a terceira via que comecaremos a esbocar nas paginas 
que se seguem, e que sera desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto 
teorico da antropologia n~ao esta ligado, na perspectiva na qual comecamos 
a nos situar a partir de agora, a um espaco geogra
co, cultural ou historico 
particular. Pois a antropologia n~ao e sen~ao um certo olhar, um certo enfoque 
que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em 
todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em 
todas as epocas. 
O estudo do homem inteiro 
So pode ser considerada como antropologica uma abordagem integrativa que 
objetive levar em considerac~ao as multiplas dimens~oes do ser humano em so-ciedade. 
Certa-mente, o acumulo dos dados colhidos a partir de observac~oes 
diretas, bem como o aperfeicoamento das tecnicas de investigac~ao, conduzem 
necessariamente a uma especializac~ao do saber. Porem, uma das vocac~oes 
maiores de nossa abordagem consiste em n~ao parcelar o homem mas, ao 
contrario, em tentar relacionar campos de investigac~ao frequentemente se-parados. 
Ora, existem cinco areas principais da antropologia, que nenhum 
pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve 
estar sensibilizado quando trabalha de forma pro
ssional em algumas delas, 
dado que essas cinco areas mantem relac~oes estreitas entre si. 
A antropologia biologica (designada antigamente sob o nome de antropologia 
fsica) consiste no estudo das variac~oes dos caracteres biologicos do homem 
no espaco e no tempo. Sua problematica e a das relac~oes entre o patrim^onio 
genetico e o meio (geogra
co, ecologico, social), ela analisa as particulari-dades 
morfologicas e
siologicas ligadas a um meio ambiente, bem como a 
evoluc~ao destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a 
este patrim^onio, mas tambem, o que esse patrim^onio (que se transforma) 
deve a cultura? Assim, o antropologo biologista levara em considerac~ao os 
fatores culturais que in
uenciam o crescimento e a maturac~ao do indivduo. 
forma magistral) as tradic~oes populares camponesas, a dist^ancia social e cultural que 
separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a dist^ancia geogra
ca da antropologia 
exotica.
10 CONTEUDO 
Ele se perguntara, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da 
crianca africana e mais adiantado do que o da crianca europeia? Essa parte 
da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de cr^anios, 
mensurac~oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada 
as racas c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela genetica 
das populac~oes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao ad-quirido, 
sendo que um e outro est~ao interagindo continuamente. Ela tem, a 
meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n~ao sejam 
rompidas as relac~oes entre as pesquisas das ci^encias da vida e as das ci^encias 
humanas. 
A antropologia pre-historica e o estudo do homem atraves dos vestgios mate-riais 
enterrados no solo (ossadas, mas tambem quaisquer marcas da atividade 
humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as socie-dades 
desaparecidas, tanto em suas tecnicas e organizac~oes sociais, quanto 
em suas produc~oes culturais e artsticas. Notamos que esse ramo da antro-pologia 
trabalha com uma abordagem id^entica as da antropologia historica 
e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O histo-riador 
e antes de tudo um historiografo, isto e, um pesquisador que trabalha 
a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pre-historia reco-lhe, 
pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como 
o realizado na antropologia social na qual se bene
cia de depoimentos vivos.3 
4 antropologia lingustica. A linguagem e, com toda evid^encia, parte do 
patrim^onio cultural de uma sociedade. E 
atraves dela que os indivduos 
que comp~oem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas 
preocupac~oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da lngua permite com-preender: 
o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto e, 
suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolingistica); o como eles 
expressam o universo e o social (estudo da literatura, n~ao apenas escrita, mas 
tambem de tradic~ao oral); o como,
nalmente, eles interpretam seus proprios 
saber e saber-fazer (area das chamadas etnoci^encias). 
A antropologia lingustica, que e uma disciplina que se situa no encontro 
3Foi notadamente gracas a pesquisadores como Paul Rivet e Andre Leroi-Gourhan 
(1964) que a articulac~ao entre as areas da antropologia fsica, biologica e socio-cultural 
nunca foi rompida na Franca. Mas continua sempre ameacada de ruptura devido a um 
movimento de especializac~ao facilmente compreensvel. Assim, colocando-se do ponto de 
vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a desagradavel obrigac~ao de 
fazer menage a trois com os representantes da arqueologia pre-historica e da antropologia 
fsica, comparando-a a coabitac~ao dos psicologos e dos especialistas da observac~ao de 
ratos em laboratorio
CONTEUDO 11 
de varias outras, 4 n~ao diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos 
(dialetologia). Ela se interessa tambem pelas imensas areas abertas pelas no-vas 
tecnicas modernas de comunicac~ao (mass media e cultura do audiovisual). 
A antropologia psicologica. Aos tr^es primeiros polos de pesquisa que foram 
mencionados, e que s~ao habitualmente os unicos considerados como constitu-tivos 
(com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do 
campo global da antropologia, fazemos quest~ao pessoalmente de acrescentar 
um quinto polo: o da antropologia psicologica, que consiste no estudo dos 
processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropologo e 
em primeira inst^ancia confrontado n~ao a conjuntos sociais, e sim a indivduos. 
Ou seja, somente atraves dos comportamentos - conscientes e inconscientes - 
dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual 
n~ao e antropologia. E 
a raz~ao pela qual a dimens~ao psicologica (e tambem 
psicopatologica) e absolutamente indissociavel do campo do qual procuramos 
aqui dar conta. Ela e parte integrante dele. 
A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos detera por muito mais 
tempo. Apenas nessa area temos alguma compet^encia, e este livro tra-tar 
a essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir 
de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo 
a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es-quecer 
que ela e apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos 
cuja abrang^encia e consideravel, ja que diz respeito a tudo que constitui 
uma sociedade: seus modos de produc~ao econ^omica, suas tecnicas, sua or-ganiza 
c~ao poltica e jurdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de 
conhecimento, suas crencas religiosas, sua lngua, sua psicologia, suas criac~oes 
artsticas. 
Isso posto, esclarecamos desde ja que a antropologia consiste menos no levan-tamento 
sistematico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular 
com a qual est~ao relacionados entre si e atraves da qual aparece a especi
- 
cidade de uma sociedade. E 
precisamente esse ponto de vista da totalidade, 
e o fato de que o antropologo procura compreender, como diz Levi-Strauss, 
aquilo que os homens n~ao pensam habitualmente em
xar ria pedra ou no 
papel(nossos gestos, nossas trocas simbolicas, os menores detalhes dos nos- 
4Foi o antropologo Edward Sapir (1967) quem, alem de introduzir o estudo da lin-guagem 
entre os materiais antropologicos, comecou tambem a mostrar que um estudo 
antropologico da lngua (a lngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura) 
conduzia a um estudo lingustico da cultura (a lngua como modelo de conhecimento da 
cultura).
12 CONTEUDO 
sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamental-mente 
diferente dos utilizados setorial- mente pelos geografos, economistas, 
juristas, sociologos, psicologos. . . 
O estudo do homem em sua totalidade 
A antropologia n~ao e apenas o estudo de tudo que com-p~oe uma sociedade. 
Ela e o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja, 
das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades historicas 
e geogra
cas. Visando constituir os arquivosda humanidade em suas di-feren 
cas signi
cativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as areas de 
civilizac~ao exteriores a nossa. Mas a antropologia n~ao poderia ser de
nida 
por um objeto emprico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao 
qual ela a princpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente). 
Se seu campo de observac~ao consistisse no estudo das sociedades preservadas 
do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como ja comentamos, 
sem objeto. 
Ocorre, porem, que se a especi
cidade da contribuic~ao dos antropologos em 
relac~ao aos outros pesquisadores em ci^encias humanas n~ao pode ser con-fundida 
com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades 
extra-europeias), ela e a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhe-cimento 
que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observac~ao 
direta, por impregnac~ao lenta e contnua de grupos humanos minusculos com 
os quais mantemos uma relac~ao pessoal. 
Alem disso, apenas a dist^ancia em relac~ao a nossa sociedade (mas uma 
dist^ancia que faz com que nos tornemos extremamente proximos daquilo que 
e longnquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomavamos por 
natural em nos mesmos e, de fato, cultural; aquilo que era evidente e In
nita-mente 
problematico. Disso decorre a necessidade, na formac~ao antropologica, 
daquilo que n~ao hesitarei em chamar de estranhamento(depaysement), a 
perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s~ao para nos as mais 
distantes, e cujo encontro vai levar a uma modi
cac~ao do olhar que se tinha 
sobre si mesmo. De fato, presos a uma Unica cultura, somos n~ao apenas 
cegos a dos outros, mas mopes quando se trata da nossa. A experi^encia 
5Os antropologos comecaram a se dedicar ao estudo das sociedades' industriais 
avancadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como 
vimos, dos aspectos tradicionaisdas sociedades n~ao tradicionais(as comunidades cam-ponesas 
europeias), em seguida, dos grupos marginais, e
nalmente, ha alguns anos apenas 
na Franca, do setor urbano.
CONTEUDO 13 
da alteridade (e a elaborac~ao dessa experi^encia) leva-nos a ver aquilo que 
nem teramos conseguido imaginar, dada a nossa di
culdade em
xar nossa 
atenc~ao no que nos e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evi-dente. 
Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (ges-tos, 
mmicas, posturas, reac~oes afetivas) n~ao tem realmente nada de natu-ral. 
Comecamos, ent~ao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a 
nos mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropologico) da nossa cultura 
passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos es-pecialmente 
reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras, 
mas n~ao a unica. 
Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropo-logia, 
como ja o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest~ao, e sua 
aptid~ao praticamente in
nita para inventar modos de vida e formas de orga-niza 
c~ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina 
permite notar, com a maior proximidade possvel, que essas formas de com-portamento 
e de vida em sociedade que tomavamos todos espontaneamente 
por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, 
comemorar os eventos de nossa exist^encia. . .) s~ao, na realidade, o produto 
de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos t^em em comum 
e sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, 
lnguas, modos de conhecimento, instituic~oes, jogos profundamente diversos; 
pois se ha algo natural nessa especie particular que e a especie humana, e 
sua aptid~ao a variac~ao cultural 
O projeto antropologico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, 
juntamente com a compreens~ao de uma humanidade plural. Isso sup~oe ao 
mesmo tempo a ruptura com a
gura da monotonia do duplo, do igual, do 
id^entico, e com a exclus~ao num irredutvel alhures. As sociedades mais di-ferentes 
da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, 
s~ao na realidade t~ao diferentes entre si quanto o s~ao da nossa. E, mais ainda, 
elas s~ao para cada uma delas muito raramente homog^eneas (como seria de se 
esperar) mas, pelo contrario, extremamente diversi
cadas, participando ao 
mesmo tempo de uma comum humanidade. 
A abordagem antropologica provoca, assim, uma verdadeira revoluc~ao epis-temol 
ogica, que comeca por uma revoluc~ao do olhar. Ela implica um des-centramento 
radical, uma ruptura com a ideia de que existe um centro do 
mundo, e, correlativamente, uma ampliac~ao do saber 6 e uma mutac~ao de 
6Veremos que a antropologia sup~oe n~ao apenas esse desmembramento (eclatement)
14 CONTEUDO 
si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andre Gide: 
Eu sou mil possveis em mim; mas n~ao posso me resignar a querer apenas 
um deles. 
A descoberta da alteridade e a de uma relac~ao que nos permite deixar de 
identi
car nossa pequena provncia de humanidade com a humanidade, e 
correlativamente deixar de rejeitar o presumido selvagemfora de nos mes-mos. 
Confrontados a multiplicidade, a priori enigmatica, das culturas, somos 
aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a 
naturalizac~ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscri-tos 
em nos desde o nascimento, e n~ao fossem adquiridos no contato com a 
cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo classico 
que tambem consiste na identi
cac~ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura 
com a nossa cultura. De fato, a
loso
a classica (antologica com S~ao Tomas, 
re
exiva com Descartes, criticista com Kant, historica com Hegel), mesmo 
sendo
loso
a social, bem como as grandes religi~oes, nunca se deram como 
objetivo o de pensar a diferenca (e muito menos, de pensa-la cienti
camente), 
e sim o de reduzi-la, frequentemente inclusive de uma forma igualitaria e com 
do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de Lery) ou no ceticismo (de um 
Montaigne), ligados ao questionamento da cultura a qual se pertence, mas tambem uma 
nova pesquisa e uma reconstituic~ao deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest~ao: 
sera que a Antropologia e o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade? 
Evidentemente, o europeu n~ao foi o unico a interessar-se pelos habitos e pelas ins-titui 
c~oes do n~ao-europeu. A recproca tambem e verdadeira, como atestam notadamente 
os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Media, por viajantes vindos 
da Asia. E os ndios Flathead de quem nos fala Levi-Strauss eram t~ao curiosos do que 
ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedic~oes a
m 
de encontra-los. Poderamos multiplicar os exemplos. Isso n~ao impede que a constituic~ao 
de um saber de vocac~ao cient
ca sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido 
a partir da cultura europeia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um 
africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um europesmo, que 
teria se constitudo como campo de saber teorico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania. 
Isso posto, as condic~oes de produc~ao historicas, geogra
cas, sociais e culturais da 
antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropologico perder 
de vista, mas que n~ao devem ocultar a vocac~ao (evidentemente problematica) de nossa 
disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve Levi-Strauss: 
N~ao se trata apenas de elevar-se acima dos valores proprios da sociedade ou do grupo 
do observador, e sim de seus metodos de pensamento; e preciso alcancar formulac~ao 
valida, n~ao apenas para um observador honesto mas para todos os observadores possveis. 
Lembremos que a antropologia so comecou a ser ensinada nas universidades ha al-gumas 
decadas. Na Gr~a-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Franca a 
partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
CONTEUDO 15 
as melhores intenc~oes do mundo. 
O pensamento antropologico, por sua vez, considera que, assim como uma 
civilizac~ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve 
igualmente aceitar a diversidade das culturas, tambem adultas. Estamos, 
evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade p^ode per-manecer 
por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si 
propria e fazendo, de tudo que n~ao eram suas ideologias dominantes sucessi-vas, 
um objeto de exclus~ao. Descon
emos porem do pensamento - que seria 
o cumulo em se tratando de antropologia - de que estamos
nalmente mais 
lucidos, mais conscientes, mais livres, mais adultos, como acaba-mos 
de escrever, do que em uma epoca da qual seria err^oneo pensar que esta 
de
nitivamente encerrada. Pois essa transgress~ao de uma das tend^encias do-minantes 
de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas 
formas econ^omicas, polticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que 
signi
ca de forma alguma que o antropologo esteja destinado, seja levado por 
alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a logica das outras socie-dades 
e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contrario, mostrar nesse livro 
que a duvida e a crtica de si mesmo so s~ao cienti
camente fundamentadas 
se forem acompanhadas da interpelac~ao crtica dos de outrem. 
Di
culdades 
Se os antropologos est~ao hoje convencidos de que uma das caractersticas 
maiores de sua pratica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto e, 
convencidos do fato de que os fen^omenos sociais que estudamos s~ao fen^omenos 
que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles 
s~ao tambem un^animes em pensar que ha uni-dade da famlia humana, a 
famlia dos antropologos e, por sua vez, muito dividida, quando se trata de 
dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e 
de forma geral a todos aqueles que t^em o direito de saber o que verdadei-ramente 
fazem os antropologos) dessa unidade multipla, desses materiais e 
dessa experi^encia. 
1) A primeira di
culdade se manifesta, como sempre, ao nvel das pala-vras. 
Mas ela e, tambem aqui, particularmente reveladora da juventude de 
nossa disciplina,6 que n~ao sendo, como a fsica, uma ci^encia constituda, con-tinua 
n~ao tendo ainda optado de
nitivamente pela sua propria designac~ao. 
Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradic~ao 
terminologica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredutvel das 
etnias, isto e, das culturas. No segundo (que e mais usado nos pases anglo-
16 CONTEUDO 
sax^onicos), sobre a unidade do g^enero humano. E optando-se por antro-pologia, 
deve-se falar (com os autores brit^anicos) em antropologia social - 
cujo objeto privilegiado e o estudo das instituic~oes - ou (com os autores 
americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos com-portamentos. 
7 
2) A segunda di
culdade diz respeito ao grau de cienti
cidade que convem 
atribuir a antropologia. O homem esta em condic~oes de estudar cienti
ca-mente 
o homem, isto e, um objeto que e de mesma natureza que o sujeito? 
E nossa pratica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com 
Radclie-Brown (1968), que as sociedade s~ao sistemas naturais que devem 
ser estudados segundo os metodos comprovados pelas ci^encias da natureza,8 e 
os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que e preciso tratar as socieda-des 
n~ao como sistemas org^anicos, mas como sistemas simbolicos. Para estes 
ultimos, longe de ser uma ci^encia natural da sociedade(Radclie-Brown), a 
antropologia deve antes ser considerada como uma arte(Evans-Pritchard). 
3) Uma terceira di
culdade provem da relac~ao ambgua que a antropolo-gia 
mantem desde sua g^enese com a Historia. Estreitamente vinculadas nos 
seculos XVIII e XIX, as duas praticas v~ao rapidamente se emancipar uma 
da outra no seculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perio-dicamente. 
As rupturas manifestas se devem essencialmente a antropologos. 
Evans-Pritchard: O conhecimento da historia das sociedades n~ao e de ne- 
7Para que o leitor que n~ao tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa 
localizar-se, vale a pena especi
car bem o signi
cado dessas palavras. Estabelecamos, 
como Levi-Strauss, que a etnogra
a, a etnologia e a antropologia constituem os tr^es mo-mentos 
de uma mesma abordagem. A etnogra
a e a coleta direta, e o mais minuciosa 
possvel, dos fen^omenos que observamos, por uma impregnac~ao duradoura e contnua e 
um processo que se realiza por aproximac~oes sucessivas. Esses fen^omenos podem ser reco-lhidos 
tomando-se notas, mas tambem por gravac~ao sonora, fotogra
ca ou cinematogra
ca. 
A etnologia consiste em um primeiro nvel de abstrac~ao: analisando os materiais colhidos, 
fazer aparecer a logica espec
ca da sociedade que se estuda. A antropologia,
nalmente, 
consiste era um segundo nvel de inteligibilidade: construir modelos que permitam com-parar 
as sociedades entre si. Como escreve Levi-Strauss, seu objetivo e alcancar, alem da 
imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventario 
das possibilidades inconscientes, que n~ao existem em numero ilimitado. 
8Ao modelo org^anico dos funcionalistas ingleses, Levi-Strauss substituiu, como vere-mos, 
um modelo lingustico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza 
(o inato) e da cultura (tudo o que n~ao e hereditariamente programado e deve ser inven-tado 
pelos homens onde a natureza n~ao programou nada), a antropologia deve aspirar a 
tornar-se uma ci^encia natural: A antropologia pertence as ci^encias humanas, seu nome o 
proclama su
cientemente; mas se se resigna em fazer seu purgatorio entre as ci^encias soci-ais, 
e porque n~ao desespera de despertar entre as ci^encias naturais na hora do julgamento
nal(Levi-Strauss, 1973)
CONTEUDO 17 
nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das insti-tui 
c~oes. Mais categorico ainda, Leach escreve: A gerac~ao de antropologos 
a qual pertenco tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Historia 
em considerac~ao. Convem tambem lembrar aqui a distinc~ao agora famosa 
de Levi-Strauss opondo as sociedades frias, isto e, proximas do grau zero 
de temperatura historica, que s~ao menos sociedades sem historia, do que 
sociedades que n~ao querem ter estorias(unicos objetos da antropologia 
classica) a nossas proprias sociedades quali
cadas de sociedades quentes. 
Essa preocupac~ao de separac~ao entre as abordagens historica e antropologica 
esta longe, como veremos, de ser un^anime, e a historia recente da antropo-logia 
testemunha tambem um desejo de coabitac~ao entre as duas disciplinas. 
Aqui, no Nordeste do Brasil, onde comeco a escrever este livro, desde 1933, 
um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a formac~ao 
da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do 
conhecimento historico. 
4) Uma quarta di
culdade provem do fato de que nossa pratica oscila sem 
parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode quali
car de 
fundamental e aquilo que e designado sob o termo de antropologia aplicada. 
Comecaremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e 
que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim conside-rava 
que a sociologia n~ao valeria sequer uma hora de dedicac~ao se ela n~ao 
pudesse ser util, e muitos antropologos compartilham sua opini~ao. Margaret 
Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas 
Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaurac~ao de 
uma sociedade melhor, e, mais especi
camente a aplicac~ao de uma pedagogia 
menos frustrante a sociedade americana. Hoje varios colegas nossos consi-deram 
que a antropologia deve colocar-se a servico da revoluc~ao(segundo 
especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent~ao, um mili-tante, 
um antropologo revolucionario, contribuindo na construc~ao de uma 
antropologia da libertac~ao. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a 
qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos pro-gramas 
de desenvolvimento e das decis~oes polticas relacionadas a elaborac~ao 
desses programas. Queramos simplesmente observai aqui que a antropolo-gia 
aplicada9 n~ao e uma grande novidade. E 
por ela que, com a colonizac~ao, 
a antropologia teve inicio.10 
9Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971 
10A maioria dos antropologos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
18 CONTEUDO 
Foi com ela, inclusive, que se deu o incio da Antropologia, durante a co-loniza 
c~ao. No extremo oposto das atitudes engajadasdas quais acabamos 
de falar, encontramos a posic~ao determinada de um Claude Levi-Strauss que, 
apos ter lembrado que o saber cient
co sobre o homem ainda se encontrava 
num estagio extremamente primitivo em relac~ao ao saber sobre a natureza, 
escreve: 
Supondo que nossas ci^encias um dia possam ser colocadas a servico da 
ac~ao pratica, elas n~ao t^em, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O 
verdadeiro meio de permitir sua exist^encia, e dar muito a elas, mas sobretudo 
n~ao lhes pedir nada. 
As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia puraou a antro-pologia 
diluidacomo diz ainda Levi-Strauss encontram na realidade suas 
primeiras formulac~oes desde os primordios da confrontac~ao do europeu com 
o selvagem. Desde o seculo XVI, de fato, comeca a se implantar aquilo o 
que alguns chamariam de arquetiposdo discurso etnologico, que podem ser 
ilustrados pelas posic~oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. 
Jean de Lery foi um huguenote* franc^es que permaneceu algum tempo no 
Brasil entre os Tupinambas. Longe de procurar convencer seus hospedes da 
superioridade da cultura europeia e da religi~ao reformada, ele os interroga 
e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns 
anos mais tarde realizou uma verdadeira investigac~ao no Mexico. 
Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava la enquanto missionario 
a
m de converter a populac~ao que estuda.11 
O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers~ao 
religiosa, a revoluc~ao, a ajuda ao Terceiro Mundo, as estrategias daquilo 
que e hoje chamado desenvolvimentoou ainda mudanca social) n~ao al-tera 
nada quanto ao ^amago do problema, que e o seguinte: 0 antropologo 
deve contribuir, enquanto antropologo, para B transformac~ao das sociedades 
que ele estuda 11 
dido das administrac~oes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo 
brit^anico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi 
conselheiro do governo do Sud~ao, etc 
11Essa dupla abordagem da relac~ao ao outro pode muito bem sei realizada por um unico 
pesquisador. Assim Malinowski chegando as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa 
literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas varios anos depois (trad. 
franc., 1968) participa do que chama uma experi^encia controladado desenvolvimento
CONTEUDO 19 
Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abor-dagem, 
que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos e mais 
familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) 
e em tornar mais familiar aquilo que nos e estranho (os comportamentos, as 
crencas, os costumes das sociedades que n~ao s~ao as nossas, mas nas quais po-der 
amos ter nascido), esta diretamente confrontada hoje a um movimento de 
homogeneizac~ao, ao meu ver, sem precedente' na Historia: o desenvolvimento 
de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento 
que e a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias 
sucessivas entre os Berberes do Medio Atlas e entre os Baules da Costa do 
Mar
m, perceber realmente o fascnio que exerce este modelo, perturbando 
completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de 
se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos 
que n~ao decorrem de uma escolha) 
A quest~ao que esta hoje colocada para qualquer antropologo e a seguinte: 
ha uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo-lhe 
o acesso a um estagio de sociedade industrial (ou pos-industrial) sem 
con
ito dramatico, sem risco de despersonalizac~ao? 
Minha convicc~ao e de que o antropologo, para ajudar os atores sociais a 
responder a essa quest~ao, n~ao deve, pelo menos enquanto antropologo, tra-balhar 
para a transformac~ao das sociedades que estuda. Caso contrario, seria 
conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agr^onomo, medico, 
poltico, a n~ao ser que ele seja motivado por alguma concepc~ao messi^anica 
da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicitac~ao para ela 
mesma de sua propria diferenca e uma coisa; organizar poltica, econ^omica e 
socialmente a evoluc~ao dessa diferenca e uma outra coisa. Ou seja, a parti-cipa 
c~ao do antropologo naquilo que e hoje a vanguarda do anticolonialismo 
e da luta para os direitos humanos e das minorias etnicas e, a meu ver, uma 
consequ^encia de nossa pro
ss~ao, mas n~ao e a nossa pro
ss~ao propriamente 
dita. 
Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urg^encia a 
qual temos o dever de responder. 
12As mutac~oes de comportamentos geradas por essa forma de civilizac~ao mundialista 
podem tambem evidentemente ser encontradas nas nossa; proprias culturas rurais e ur-banas. 
Em compensac~ao, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde 
comecou a redigir este livro
20 CONTEUDO 
a) Urg^encia de preservac~ao dos patrim^onios culturais locais ameacados (e 
a respeito disso a etnologia esta desde o seu nascimento lutando contra o 
tempo para que a transcric~ao dos arquivos orais e visuais possa ser realizada 
a tempo, enquanto os ultimos depositarios das tradic~oes ainda est~ao vivos) 
e, sobretudo, de restituic~ao aos habitantes das diversas regi~oes nas quais tra-balhamos, 
de seu proprio saber e saber-fazer. Isso sup~oe uma ruptura com 
a concepc~ao assimetrica da pesquisa, baseada na captac~ao de informac~oes. 
N~ao ha, de fato, antropologia sem troca, isto e, sem itinerario no decor-rer 
do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da 
necessidade de n~ao deixar se perder formas de pensamento e atividade unicas. 
b) Urg^encia de analise das mutac~oes culturais impostas pelo desenvolvimento 
extremamente rapido de todas as sociedades contempor^aneas, que n~ao s~ao 
mais sociedades tradicionais, e sim sociedades que est~ao passando por um 
desenvolvimento tecnologico absolutamente inedito, por mutac~oes de suas 
relac~oes sociais, por movimentos de migrac~ao Interna, e por um processo de 
urbanizac~ao acelerado. Atraves da especi
cidade de sua abordagem, nossa 
disciplina deve, n~ao fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for-mular 
quest~oes com eles, elaborar com eles uma re
ex~ao racional (e n~ao mais 
magica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tambem uma 
crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto e, o encontro 
de lnguas, tecnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropologica, que 
n~ao e de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem 
nunca se substituir aos projetos e as decis~oes dos proprios atores sociais, 
tem hoje como vocac~ao maior a de propor n~ao soluc~oes mas instrumentos 
de investigac~ao que poder~ao ser utilizados em especial para reagir ao choque 
da aculturac~ao, isto e, ao risco de um desenvolvimento con
ituoso levando a 
viol^encia negadora das particularidades econ^omicas, sociais, culturais de um 
povo. 
5) Uma quinta di
culdade diz respeito,
nalmente, a natureza desta obra que 
deve apresentar, em um numero de paginas reduzido, um campo de pesquisa 
imenso, cujo desenvolvimento recente e extremamente especializado. No
- 
nal do seculo XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo 
global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, 
lingustica, pre-historica, e tambem mais recentemente o caso de Ktoeber, 
provavemente o ultimo antropologo que explorou: com sucesso uma area t~ao 
extensa). N~ao e, evidentemente, o caso hoje em dia. O antropologo considera 
agora { com raz~ao { que e competente apenas dentro de uma area restrita 13 
13A antropologia das tecnicas, a antropologia econ^omica, poltica, a antropologia do
CONTEUDO 21 
de sua propria disciplina e para uma area geogra
ca delimitada. 
Era-me portanto impossvel, dentro de um texto de dimens~oes t~ao restri-tas, 
dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos 
campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar 
um certo numero de refer^encias, de
nir alguns conceitos a partir dos quais o 
leitor podera, espero, interessar-se em ir mais adiante. 
Ver-se-a que este livro caminha em espiral. As preocupac~oes que est~ao no 
centro de qualquer abordagem antropologica e que acabam de ser mencio-nadas 
ser~ao retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em 
primeiro lugar quais foram as principais etapas da constituic~ao de nossa dis-ciplina 
e como, atraves dessa historia da antropologia, foram se colocando 
progressivamente as quest~oes que continuam nos interessando ate hoje. Em 
seguida, esbocarei os polos teoricos - a meu ver cinco - em volta dos quais 
oscilam o pensamento e a pratica antropologica. Teria sido, de fato, surpreen-dente, 
se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse 
monoltica. Ela e ao contrario claramente plural. Veremos no decorrer deste 
livro que existem perspectivas complementares, mas tambem mutuamente 
exclusivas, entre as quais e preciso escolher. E, em vez de
ngir ter ado-tado 
o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que 
nas ci^encias humanas e um engodo, esforcando-me ao mesmo tempo para 
apresentar com o maximo de objetividade o pensamento dos outros, n~ao 
dissimularei as minhas proprias opc~oes. Finalmente, em uma ultima parte, 
os principais eixos anteriormente examinados ser~ao, em um movimento por 
assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de de
nir aquilo que cons-titui, 
a meu ver, a especi
cidade da antropologia. 
Eu queria
nalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo 
publico possvel. N~ao aqueles que t^em por pro
ss~ao a antropologia { du-vido 
que encontrem nele um grande interesse { mas a todos que, em algum 
momento de sua vida (pro
ssional, mas tambem pessoal), possam ser levados 
a utilizar o modo de conhecimento t~ao caracterstico da antropologia. Esta 
e a raz~ao pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem tecnica 
e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente 
pela segunda. Pois a antropologia, que e a ci^encia do homem por excel^encia, 
pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos nos. 
parentesco, das organizac~oes sociais, a antropologia religiosa, artstica, a antropologia dos 
sistemas de comunicac~oes...
22 CONTEUDO
Parte I 
Marcos Para Uma Historia Do 
Pensamento Antropologio 
23
Captulo 1 
A Pre-Historia Da 
Antropologia: 
a descoberta das diferencas pelos vi-ajantes 
do seculo e a dupla resposta 
ideologica dada daquela epoca ate nos-sos 
dias 
A g^enese da re
ex~ao antropologica e contempor^anea a descoberta do Novo 
Mundo. O Renascimento explora espacos ate ent~ao desconhecidos e comeca 
a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espacos.1 A 
grande quest~ao que e ent~ao colocada, e que nasce desse primeiro confronto 
visual com a alteridade, e a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco-bertos 
pertencem a humanidade? O criterio essencial para saber se convem 
atribuir-lhes um estatuto humano e, nessa epoca, religioso: O selvagem tem 
uma alma? O pecado original tambem lhes diz respeito? {quest~ao capital 
para os missionarios, ja que da resposta ira depender o fato de saber se e 
possvel trazer-lhes a revelac~ao. Notamos que se, no seculo XIV, a quest~ao 
1As primeiras observac~oes e os primeiros discursos sobre os povos distantesde que 
dispomos prov^em de duas fontes: 1) as reac~oes dos primeiros viajantes, formando o que 
habitualmente chamamos de literatura de viagem. Dizem respeito em primeiro lugar a 
Persia e a Turquia, em seguida a America, a Asia e a Africa. Em 1556, Andre Thevet 
escreve As Singularidades da Franca Antartica, em 1558 Jean de Lery, A Historia de Uma 
Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tambem como exemplo, para um perodo 
anterior (seculo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um perodo posterior (seculo 
XVII) Y. d'Evreux (reed. 1985), bom como a colet^anea de textos de J. P. Duviols (1978); 
2) os relatorios dos missionarios e particularmente as Relac~oesdos jesutas (seculo XVII) 
nc Canada, no Jap~ao, na China, Cf., por exemplo, as Lettres ^Edi
antes et Curieuses de la 
Chine par des Missionnaires Jesuites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979. 
25
26 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
e colocada, n~ao e de forma alguma solucionada. Ela sera de
nitivamente 
resolvida apenas dois seculos mais tarde. 
Nessa epoca e que comecam a se esbocar as duas ideologias concorrentes, 
mas das quais uma consiste no simetrico invertido da outra: a recusa do es-tranho 
apreendido a partir de uma falta, e cujo corolario e a boa consci^encia 
que se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascinac~ao pelo estranho cujo corolario 
e a ma consci^encia que se tem sobre si e sua sociedade. 
Ora, os proprios termos dessa dupla posic~ao est~ao colocados desde a me-tade 
do seculo XIV: no debate, que se torna uma controversia publica, que 
durara varios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op~oe o 
dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera. 
Las Casas: 
  Aqueles que pretendem que os ndios s~ao barbaros, responderemos que essas 
pessoas t^em aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem poltica que, 
em alguns reinos, e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou 
ate superavam muitas nac~oes e uma ordem poltica que, em alguns reinos, e 
melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate superavam muitas 
nac~oes do mundo conhecidas como policiadas e razoaveis, e n~ao eram infe-riores 
a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e 
ate, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tambem a 
Inglaterra, a Franca, e algumas de nossas regi~oes da Espanha. (...) Pois a 
maioria dessas nac~oes do mundo, sen~ao todas, foram muito mais pervertidas, 
irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prud^encia e saga-cidade 
em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nos 
mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens~ao 
de nossa Espanha, pela barbarie de nosso modo de vida e pela depravac~ao de 
nossos costumes. 
Sepulvera: 
Aqueles que superam os outros em prud^encia e raz~ao, mesmo que n~ao se-jam 
superiores em forca fsica, aqueles s~ao, por natureza, os senhores; ao 
contrario, porem, os preguicosos, os espritos lentos, mesmo que tenham as 
forcas fsicas para cumprir todas as tarefas necessarias, s~ao por natureza ser- 
2Sendo, as duas variantes dessa
gura: 1) a condescend^encia e a protec~ao, paternalista 
do outro: 2) sua exclus~ao
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27 
vos. E e justo e util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela propria 
lei divina. Tais s~ao as nac~oes barbaras e desumanas, estranhas a vida civil 
e aos costumes pac
cos. E sera sempre justo e conforme o direito natural 
que essas pessoas estejam submetidas ao imperio de prncipes e de nac~oes 
mais cultas e humanas, de modo que, gracas a virtude destas e a prud^encia 
de suas leis, eles abandonem a barbarie e se conformem a uma vida mais 
humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imperio, pode-se 
imp^o-lo pelo meio das armas e essa guerra sera justa, bem como o declara 
o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos 
dominem aqueles que n~ao t^em essas virtudes. 
Ora, as ideologias que est~ao por tras desse duplo discurso, mesmo que n~ao se 
expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro seculos 
apos a pol^emicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s~ao estereotipos 
que envenenam essa antropologia espont^anea de que temos ainda hoje tanta 
di
culdade para nos livrarmos, convem nos determos sobre eles. 
1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom 
Civilizado 
A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho-mens 
como um fato, e sim como uma aberrac~ao exigindo uma justi
cac~ao. 
A antiguidade grega designava sob o nome de barbaro tudo o que n~ao par-ticipava 
da helenidade (em refer^encia a inarticulac~ao do canto dos passaros 
oposto a signi
cac~ao da linguagem humana), o Renascimento, os seculos 
XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto e, seres da 
oresta), 
opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos e que triun-far 
a no seculo XIX, enquanto optamos preferencialmente na epoca atual pelo 
de subdesenvolvidos. 
Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto e, para a natureza to-dos 
aqueles que n~ao participam da faixa de humanidade a qual pertencemos 
e com a qual nos identi
camos, e, como lembra Levi-Strauss, a mais comum 
3Essa oscilac~ao entre dois polos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento 
de p^endulo ininterrupto, pode ser encontrada n~ao apenas em uma mesma epoca, mas em 
um mesmo autor. Cf., por exemplo, Lery (1972) ou Buon (1984).
28 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracterstica dos selvagens.4 
Entre os criterios utilizados a partir do seculo XIV pelos europeus para julgar 
se convem conferir aos ndios um estatuto humano, alem do criterio religioso 
do qual ja falamos, e que pede, na con
gurac~ao na qual nos situamos, uma 
resposta negativa (sem religi~ao nenhuma, s~ao mais diabos), citaremos: 
 a apar^encia fsica: eles est~ao nus ou vestidos de peles de animais; 
 os comportamentos alimentares: eles comem carne crua, e e todo o 
imaginario do canibalismo que ira aqui se elaborar;5 
 a intelig^encia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles 
falam uma lngua ininteligvel. 
Assim, n~ao acreditando em Deus, n~ao tendo alma, n~ao tendo acesso a 
linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, 
o selvagem e apreendido nos modos de um bestiario. E esse discurso so-bre 
a alteridade, que recorre constantemente a metafora zoologica, abre o 
grande leque das aus^encias: sem moral, sem religi~ao, sem lei, sem escrita, 
sem Estado, sem consci^encia, sem raz~ao, sem objetivo, sem arte, sem pas-sado, 
sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentara ate, no seculo XVIII: 
sem barba, sem sobrancelhas, sem p^elos, sem espritosem ardor para 
com sua f^emea. 
E 
a grande gloria e a honra de nossos reis e dos espanhois, escreve Go-mara 
em sua Historia Geral dos ndios, ter feito aceitar aos ndios um unico 
Deus, uma unica fe e um unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa-crif 
cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus 
pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos 
deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais; 
4Assim, escreve Levi-Strauss (1961), Ocorrem curiosas situac~oes onde dois interlo-cutores 
d~ao-se cruelmente a replica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos apos a descoberta 
da America, enquanto os espanhois enviavam comiss~oes de inquerito para pesquisar se os 
indgenas possuam ou n~ao uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio-neiros 
a
m de veri
car, por uma observac~ao demorada, se seus cadaveres eram ou n~ao 
sujeitos a putrefac~ao 
5Cf. especialmente Hans Staden, Veritable Histoire et Descriptiou d'un Pays Habite 
par des Hommes Sauvages, Nus. Feroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M. 
JVletailie, 1979. 
6Essa falta pode ser apreendida atraves de duas variantes: I) n~ao t^em, irremediavel-mente, 
futuro e n~ao temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) e possvel faz^e-los 
evoluir. Pela ac~ao missionaria (a partir seculo XVI). Assim como pela ac~ao administrativa
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29 
mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s~ao como animais e o uso do 
ferro que e t~ao necessario ao homem. Tambem lhes mostramos varios bons 
habitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso { e 
ate cada uma dessas coisas { vale mais que as penas, as perolas, o ouro que 
tomamos deles, ainda mais porque n~ao utilizavam esses metais como moeda. 
As pessoas desse pas, por sua natureza, s~ao t~ao ociosas, viciosas, de pouco 
trabalho, melancolicas, covardes, sujas, de ma condic~ao, mentirosas, de mole 
const^ancia e
rmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo-min 
aveis pecados dessas pessoas selvagens, rusticas e bestiais, que fossem 
atirados e banidos da superfcie da Terra. escreve na mesma epoca (1555) 
Oviedo em sua Historia das ndias. 
Opini~oes desse tipo s~ao inumeraveis, e passaram tranquilamente para nossa 
epoca. No seculo XIX, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Li-vingstone, 
compara os africanos aos macacos de um jardim zoologico, e 
convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que 
foi o discurso colonial dos franceses na Argelia. 
Mais dois textos ir~ao deter mais demoradamente nossa atenc~ao, por nos pa-recerem 
muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso 
do civilizado. S~ao as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes 
para servir a Historia da Especie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado 
em 1774, e a famosa Introduc~ao a Filoso
a da Historia, de Hegel. 
1) De Pauw nos prop~oe suas re
ex~oes sobre os ndios da America do Norte. 
Sua convicc~ao e a de que sobre estes lllimos a in
u^encia da natureza e total, 
ou mais precisamente negativa. Se essa raca inferior n~ao tem historia e esta 
pura sempre condenada, por seu estado degenerado, a permanecer fora do 
movimento da Historia, a raz~ao deve ser atribuda ao clima de uma extrema 
umidade: 
Deve existir, na organizac~ao dos americanos, uma causa qualquer que em-brutece 
sua sensibilidade e seu esprito. A qualidade do clima, a grosseria 
de seus humores, o vcio radical do sangue, a constituic~ao de seu tempera-mento 
excessivamente 
eumatico podem ter diminudo o tom e o saracoteio 
dos nervos desses homens embrutecidos. 
Eles t^em, prossegue Pauw, um temperamento t~ao umido quanto o ar e 
a terra onde vegetame que explica que eles n~ao tenham nenhum desejo se-xual. 
Em suma, s~ao infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
30 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
na escurid~ao das 
orestas, parecem mais animais do que vegetais. Apos a 
degeneresc^encia ligada a um vcio de constituic~ao fsica, Pauw chega a de-grada 
c~ao moral. E 
a quinta parte do livro, cuja primeira sec~ao e intitulada: 
O g^enio embrutecido dos Americanos. 
A insensibilidade, escreve nosso autor, e neles um vcio de sua constituic~ao 
alterada; eles s~ao de uma preguica imperdoavel, n~ao inventam nada, n~ao em-preendem 
nada, e n~ao estendem a esfera de sua concepc~ao alem do que v^eem 
pusil^animes, covardes, irritados, sem nobreza de esprito, o des^animo e a 
falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inuteis para 
si mesmos e para a sociedade. En
m, os californianos vegetam mais do que 
vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma. 
Essa separac~ao entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir-remediavelmente 
imutavel, e o estado de civilizac~ao, pode ser visualizado 
num mapa mundi. No seculo XVIII, a enciclopedia efetua dois tracados: um 
longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, 
a Africa e a Asia, de outro a America, e um latitudinal dividindo o que se 
encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buon, a proxi-midade 
ou o afastamento da linha equatorial s~ao explicativos n~ao apenas da 
constituic~ao fsica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filoso
cas 
sobre os Americanos escolhe claramente o criterio latitudinal, fundamento 
aos seus olhos da distribuic~ao da populac~ao mundial, distribuic~ao essa n~ao 
cultural e sim natural da civilizac~ao e da barbarie: A natureza tirou tudo 
de um hemisferio deste globo para da-lo ao outro. A diferenca entre um 
hemisferio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) e total, t~ao grande quanto 
poderia ser e quanto podemos imagina-la: de um lado, a humanidade, e de 
outro, a estupidez na qual vegetamesses seres indiferenciados: 
Igualmente barbaros, vivendo igualmente da caca e da pesca, em pases 
frios, estereis, cobertos de 
orestas, que desproporc~ao se queria imaginar 
entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de sa-tisfaz^ 
e-los s~ao os mesmos, onde as in
u^encias do ar s~ao t~ao semelhantes, e 
possvel haver contradic~ao nos costumes ou variac~oes nas ideias? 
Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os indgenas america-nos 
vivem em um estado de embrutecimentogeral. T~ao degenerados uns 
quanto os outros, seria em v~ao procurar entre eles variedades distintivas da-quilo 
que se pareceria com uma cultura e com uma historia.7 
7Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31 
2) Os julgamentos que acabamos de relatar { que est~ao, notamos, em ruptura 
com a ideologia dominante do seculo XVIII, da qual falaremos mais adiante, 
e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado 
vinte anos antes { por excessivos que sejam, apenas radicalizam ideias com-partilhadas 
por muitas pessoas nessa epoca. Ideias que ser~ao retomadas e 
expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introduc~ao 
a Filoso
a da Historia, nos exp~oe o horror que ele ressente frente ao es-tado 
de natureza, que e o desses povos que jamais-ascender~ao a historiae 
a consci^encia de si. 
Na leitura dessa Introduc~ao, a America do Sul parece mais estupida ainda 
do que a do Norte. A Asia aparentemente n~ao esta muito melhor. Mas e 
a Africa, e, em especial, a Africa profunda do interior, onde a civilizac~ao 
nessa epoca ainda n~ao penetrou, que representa para o
losofo a forma mais 
nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: 
E 
o pas do ouro, fechado sobre si mesmo, o pas da inf^ancia, que, alem 
do dia e da historia consciente, esta envolto na cor negra da noite. 
Tudo, na Africa, e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ne-gros 
n~ao respeitam nada, nem mesmo eles proprios, ja que comem carne 
humana e fazem comercio da carnede seus proximos. Vivendo em uma 
ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado 
bruto, eles n~ao t^em moral, nem instituic~oes sociais, religi~ao ou Estado.8 Pe-tri
cados em uma desordem inexoravel, nada, nem mesmo as forcas da colo-niza 
c~ao, podera nunca preencher o fosso que os separa da Historia universal 
da humanidade. 
Na descric~ao dessa africanidade estagnante da qual n~ao ha absolutamente 
nada a esperar { e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a 
indianidade em Pauw { , o autor da Fenomenologia do Esprito vai, vale a 
pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filoso
cas sobre os Ameri-canos. 
O negronem mesmo se v^e atribuir o estatuto de vegetal. Ele cai, 
escreve Hegel, para o nvel de uma coisa, de um objeto sem valor. 
8O fato de devorar homens corresponde ao princpio africano.Ou ainda: S~ao os 
seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante e para eles apenas uma carne 
como qualquer outra, suas guerras s~ao feroze: e sua religi~ao pura superstic~ao.
32 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau 
Civilizado 
A
gura de uma natureza ma na qual vegeta um selvagem embrutecido e emi-nentemente 
suscetvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza 
dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribuic~ao 
permanecem, como veremos, rigorosamente id^enticos, da mesma forma que 
o par constitudo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natu-ral). 
Mas efetua-se dessa vez a invers~ao daquilo que era apreendido como um 
vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como 
um menos que se torna um mais. O carater privativo dessas sociedades sem 
escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi~ao organizada, sem clero, 
sem sacerdotes, sem polcia, sem leis, sem Estado {acrescentar-se-a no seculo 
XX sem Complexo de Edipo { n~ao constitui uma desvantagem. O selvagem 
n~ao e quem pensamos. 
Evidentemente, essa representac~ao concorrente (mas que consiste apenas 
em inverter a atribuic~ao de signi
cac~oes e valores dentro de uma estrutura 
id^entica) permanece ainda bastante rgida na epoca na qual o Ocidente desco-bre 
povos ainda desconhecidos. A
gura do bom selvagem so encontrara sua 
formulac~ao mais sistematica e mais radical dois seculos apos o Renascimento: 
no rousseausmo do seculo XVIII, e, em seguida, no Romantismo. N~ao deixa 
porem de estar presente, pelo menos em estado embrionario, na percepc~ao 
que t^em os primeiros viajantes. Americo Vespucio descobre a America: 
As pessoas est~ao nuas, s~ao bonitas, de pele escura, de corpo elegante. . 
. Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo e colocado em comum. 
E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua 
m~ae, sua irm~a, ou sua amiga, entre as quais eles n~ao fazem diferenca. . . 
Eles vivem cinquenta anos. E n~ao t^em governo. 
Cristov~ao Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tambem o paraso; 
Eles s~ao muito mansos e ignorantes do que e o mal, eles n~ao sabem se 
matar uns aos outros (...) Eu n~ao penso que haja no mundo homens melho-res, 
como tambem n~ao ha terra melhor. 
Toda a re
ex~ao de Lery e de Montaigne no seculo XVI sobre os naturaisbaseia-se 
sobre o tema da noc~ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela 
primeira vez, instaura-se uma crtica da civilizac~ao e um elogio da ingenui-
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33 
dade originaldo estado de natureza. Lery, entre os Tupinambas, interroga-se 
sobre o que se passa aquem, isto e, na Europa. Ele escreve, a respeito de 
nossos grandes usurarios: Eles s~ao mais crueis do que os selvagens dos 
quais estou falando. E Montaigne, sobre esses ultimos: Podemos portanto 
de fato chama-los de barbaros quanto as regras da raz~ao, mas n~ao quanto 
a nos mesmos que os superamos em toda sorte de barbarie. Para o autor 
dos Ensaios, esse estado paradisaco que teria sido o nosso outrora, talvez 
esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei ate o 
encontrou. 
Esse fascnio exercido pelo indgena americano, e em especial por le Hu-ron, 
9protegido da civilizac~ao e que nos convida a reencontrar o universo ca-loroso 
da natureza, triunfa nos seculos XVII e XVIII. Nas primeiras Relac~oes 
dos jesutas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: 
Eles s~ao afaveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que 
frequentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente 
entre eles do que entre nos. Seu ideal: viver em comum sem processo, 
contentar-se de pouco sem avareza, ser assduo no trabalho. 
Do lado dos livres-pensadores, e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: 
Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris~oes e sem torturas passam a 
vida na docura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida 
dos franceses. 
Essa admirac~ao n~ao e compartilhada apenas pelos navegadores estupefa-tos. 
10 O selvagem ingressa progressivamente na
loso
a { os pensadores 
9Um dos primeiros textos sobre os Hurons e publicado em 1632: Le Grand Vayage 
au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux 
Voyages du Baron de La Hontan ou ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1'Auteur et 
un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Americains, de La
tau; em 1767, Vlngenu, de 
Vol-taire.. 
Notemos que de cada populac~ao encontrada nasce um estereotipo. Se o discurso euro-peu 
sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, refer^encia a crueldade, o 
discurso sobre os Esquimos a sua hospitalidade, estes ultimos n~ao hesitando em oferecer 
suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente e sem duvida predominante 
em grande parte na literatura sobre os ndios. 
10No seculo XVIII, um marinheiro franc^es escreve em seu diario de viagem: A inoc^encia 
e a tranquilidade esta entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n~ao trocariam essa 
vida e seu pas por qualquer coisa no mundo(comentarios relatados por ). P. Duviols, 
1978).
34 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
das Lumieresu 11{ , mas tambem nos sal~oes literarios e nos teatros parisien-ses. 
Em 1721, e montado um espetaculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0 
personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco: 
Voc^es s~ao loucos, pois procuram com muito empenho uma in
nidade de 
coisas inuteis; voc^es s~ao pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez 
de simplesmente gozar da criac~ao, como nos, que n~ao queremos nada a
m 
de desfrutar mais livremente de tudo. 
E 
a epoca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca-bou 
de escrever, a epoca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. 
Manifestac~oes essas que constituem uma verdadeira acusac~ao contra a civi-liza 
c~ao. Depois, o fascnio pelos ndios sera substitudo progressivamente, a 
partir do
m do seculo XVIII, pelo charme e prazer idlico que provoca o 
encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquipelagos 
polinesios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Pascoa, e so-bretudo 
o Taiti. Aqui esta, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua 
Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980): 
Seja dia ou noite, as casas est~ao abertas. Cada um colhe as frutas na 
primeira arvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ocio 
e compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar e sua mais preciosa 
ocupac~ao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres 
pareciam n~ao querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada 
instante as docuras do amor, tudo incita ao abandono. 
Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exal-tam 
a docura das sociedades selvagens, e, correlativamente fustigam tudo 
que pertence ao Ocidente ainda s~ao atuais. Se n~ao o fossem, n~ao nos seriam 
diretamente acessveis, n~ao nos tocariam mais nada. Ora, e precisamente a 
esse imaginario da viagem, a esse desejo de fazer existir em um alhuresuma 
sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas 
virtudes se estendam a magni
c^encia da fauna e da 
ora (Chateau-briand, 
Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu 
sucesso com o publico. 
O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar 
11Condillac escreve: Nos que nos consideramos instrudos, precisaramos ir entre os 
povos mais ignorantes, para aprender destes o comeco de nossas descobertas: pois e so-bretudo 
desse comeco que precisaramos: ignoramo-lo porque deixamos ha tempo de ser 
os discpulos da natureza
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35 
ao Ocidente mortfero lic~oes de grandeza, como acabamos de ver, n~ao e novi-dade. 
Mas grande parte do publico esta in
nitamente mais disponvel agora 
do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da 
abstrac~ao, do calculo e da impessoalidade das relac~oes humanas, op~oem-se 
sociedades de solidariedade comunitaria, abrigadas na suntuosidade de uma 
natureza generosa. A decepc~ao ligada aos benefciosdo progresso (nos quais 
muitos entre nos acreditam cada vez menos) bem como a solid~ao e o ano-nimato 
do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos 
so aspirem a se projetar nesses paraso (perdido) dos tropicos ou dos mares 
do Sul, que o Ocidente teria substitudo pelo inferno da sociedade tecnologica. 
Mas convem, a meu ver, ir mais longe. O etnologo, como o militar, e recru-tado 
no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a 
sua, as mesmas insatisfac~oes,-angustias, desejos. Se essa busca do Ultimo dos 
Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo vento dos coqueiros(que e na 
realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa 
disciplina, ela esta presente nas motivac~oes dos proprios etnologos. Mali-nowski 
tera a franqueza de escrever e sera muito criticado por isso: 
Um dos refugios fora dessa pris~ao mec^anica da cultura e o estudo das for-mas 
primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades 
longnquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga 
rom^antica para longe de nossa cultura uniformizada. 
Ora, essa nostalgia do neoltico, de que fala Alfred Metraux e que es-teve 
na origem de sua propria vocac~ao de Ctnologo, e encontrada em muitos 
autores, especialmente nas descric~oes de populac~oes preservadas do contato 
corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transpar^encia. 
O quali
cativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que 
s~ao caracterizadas pela riqueza das trocas simbolicas, foi certamente o de 
aut^entico(oposto a alienac~ao das sociedades industriais adiantadas), termo 
proposto por Sapir em 1925, e que e erroneamente atribudo a Levi-Strauss. 
* * * 
A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si 
mesmo) n~ao parou, portanto, de oscilar entre os polos de um verdadeiro 
movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: 
 era um monstro, um animal com
gura humana(Lery), a meio cami-nho 
entre a animalidade e a humanidade mas tambem que os monstros
36 CAPITULO 1. A PRE-HIST  ORIA DA ANTROPOLOGIA: 
eramos nos, sendo que ele tinha lic~oes de humanidade a nos dar; 
 levava uma exist^encia infeliz e miseravel, ou, pelo contrario, vivia num 
estado de beatitude, adquirindo sem esforcos os produtos maravilhosos 
da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a 
assumir as duras tarefas da industria; 
 era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre guicoso; 
 n~ao tinha alma e n~ao acreditava em nenhum deus, ou era profunda-mente 
religioso; 
 vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na 
harmonia 
 era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um 
comunista decidido a tudo compartilhar, ate e inclusive suas proprias 
mulheres; 
 era admiravelmente bonito, ou feio; 
 era movido por uma impulsividade criminalmente cong^enita quando era 
legtimo temer, ou devia ser considerado como uma crianca precisando 
de protec~ao; 
 era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid~ao 
permanente, ou, pelo contrario, um ser preso, obedecendo estritamente 
aos tabus e as proibic~oes de seu grupo; 
 era atrasado, estupido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente 
virtuoso e eminentemente complexo; 
 era um animal, um vegetal(de Pauw), uma coisa, um objeto sem 
valor(Hegel), ou participava, pelo contrario, de uma humanidade da 
qual tinha tudo como aprender. 
Tais s~ao as diferentes construc~oes em presenca (nas quais a repuls~ao se trans-forma 
rapidamente em fascnio) dessa alteridade fantasmatica que n~ao tem 
muita relac~ao com a realidade. O outro { o ndio, o taitiano, mas recente-mente 
o basco ou o bret~ao{ e simplesmente utilizado como suporte de um 
imaginario cujo lugar de refer^encia nunca e a America, Taiti, o Pas Basco 
ou a Bretanha. S~ao objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com 
vistas a explorac~ao econ^omica, quanto ao militarismo poltico, a convers~ao 
religiosa ou a emoc~ao estetica. Mas, em todos os casos, o outro n~ao e consi-derado 
para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37 
Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v~ao, tal-vez 
anacr^onico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento 
etnologico, t~ao problematico, como acabamos de observar, ainda no
nal do 
seculo XX. N~ao basta viajar e surpreender-se com o que se v^e para tornar-se 
etnologo (n~ao basta mesmo ter numerosos anos de campo, como se diz 
hoje). Porem, numerosos viajantes nessa epoca colocam problemas (o que 
n~ao signi
ca uma problematica) aos quais sera necessariamente confrontado 
qualquer antropologo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ira 
se tornar a etnologia. Jean de Lery, entre os indgenas brasileiros, pergunta-se: 
e preciso rejeita-los fora da humanidade? Considera-los como virtualida-des 
de crist~aos? Ou questionar a vis~ao que temos da propria humanidade, 
isto e, reconhecer que a cultura e plural? Atraves de muitas contradic~oes (a 
oscilac~ao permanente entre a convers~ao e o olhar, os objetivos teologicos e os 
que poderamos chamar de etnogra
cos, o ponto de vista normativo e o ponto 
de vista narrativo), o autor da Viagem n~ao tem resposta. Mas as quest~oes 
(e para o que nos interessa aqui, mas especi

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Aprender antropologia

  • 1. 1
  • 2. 2
  • 4. 2
  • 5. Conteudo I Marcos Para Uma Historia Do Pensamento An-tropol ogio 23 1 A Pre-Historia Da Antropologia: 25 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado . . . . . . . 27 1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado . . . . . . . 32 2 O Seculo XVIII: 39 3 O Tempo Dos Pioneiros: 47 4 Os Pais Fundadores Da Etnogra
  • 6. a: 57 4.1 BOAS (1858-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 4.2 MALINOWSKI (1884-1942) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 5 Os Primeiros Teoricos Da Antropologia: 67 II As Principais Tend^encias Do Pensamento An-tropol ogico Contempor^aneo 73 6 Introduc~ao: 75 6.1 Campos De Investigac~ao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75 6.2 Determinac~oes Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 6.3 Os Cinco Polos Teoricos Do Pensamento Antropologico Con-tempor^ aneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80 7 A Antropologia Dos Sistemas Simbolicos 87 8 A Antropologia Social: 91 9 A Antropologia Cultural: 95 3
  • 7. 4 CONTEUDO 10 A Antropologia Estrutural E Sist^emica: 103 11 A Antropologia Din^amica: 113 III A Especi
  • 8. cidade Da Pratica Antropologica 119 12 Uma Ruptura Metodologica: 121 13 Uma Invers~ao Tematica: 125 14 Uma Exig^encia: 129 15 Uma Abordagem: 133 16 As Condic~oes De Produc~ao Social Do Discurso Antropologico137 17 O Observador, Parte Integrante Do Objeto De Estudo: 139 18 Antropologia E Literatura: 143 19 As Tens~oes Constitutivas Da Pratica Antropologica: 149 19.1 O Dentro E O Fora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 19.2 A Unidade E A Pluralidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 19.3 O Concreto E O Abstrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 20 Sobre o autor: 163
  • 9. CONTEUDO 5 Prefacio A ANTROPOLOGIA: uma chave para a compreens~ao do homem Uma das maneiras mais proveitosas de se dar a conhecer uma area do conhe-cimento e tracar-lhe a historia, mostrando como foi variando o seu colorido atraves dos tempos, como deitou rami
  • 10. cac~oes novas que alteraram seu tema de base ampliando-o. Para tanto e requerida uma erudic~ao di
  • 11. cilmente en-contrada entre os especialistas, pois erudic~ao e especializac~ao constituem-se em opostos: a erudic~ao abrindo- se na ^ansia de dominar a maior quantidade possvel de saber, a especializac~ao se fechando no pequeno espaco de um co-nhecimento minucioso. O livro do antropologo franc^es Francois Laplantine, professor da Univer-sidade de Lyon II, autor de varias obras importantes e que hoje efetua pes-quisas no Brasil, reune as duas perspectivas: vai balizando o conhecimento antropologico atraves da historia e mostrando as diversas perspectivas atuais. Em primeiro lugar, efetua a analise de seu desenvolvimento, que permite uma compreens~ao melhor de suas caractersticas espec
  • 12. cas; em seguida, apresenta as tend^encias contempor^aneas e,
  • 13. nalmente, um panorama dos problemas co-locados pela pratica e por suas possibilidades de aplicac~ao. Trata-se de uma introduc~ao a Antropologia que parece fabricada de enco-menda para estudantes brasileiros. A formac~ao nacional em Ci^encias Sociais (e a Antropologia n~ao foge a regra. . .) segue a via da especializac~ao, muito mais do que a da formac~ao geral. Os estudantes l^eem e discutem determi-nados autores, ou ent~ao os componentes de uma escola bem delimitada; o conhecimento lhes e inculcado atraves do conhecimento de um problema ou de um ramo do saber na maioria de seus aspectos, nos debates que susci-tou, nas respostas e soluc~oes que inspirou. A historia da disciplina, assim como da area de conhecimentos a que pertence, o exame crtico de todas as proposic~oes tematicas que foi suscitando ao longo do tempo, permanecem muitas vezes fora das cogitac~oes do curso, como se fosse algo de somenos import^ancia. No Brasil o presente tem muita forca; nele se vive intensamente, e ele que se busca compreender profundamente, na convicc~ao de que nele est~ao as razes do futuro. Pas em construc~ao, seus habitantes em geral, seus estudiosos em particular, tem consci^encia ntida de que est~ao criando algo, de que sua ac~ao e de import^ancia capital como fator por excel^encia do provir. E, para chegar
  • 14. 6 CONTEUDO a ela escolhe-se uma unica via preferencial, a especializac~ao numa direc~ao, como se fora dela n~ao existisse salvac~ao. No entanto, com esta maneira de ser t~ao mercante, perdem-se de vista com-ponentes fundamentais desse mesmo provir: o passado, por um lado, e por outro lado a multipli-cidade de caminhos que t^em sido tracados para cons-tru -lo. A necessidade real, no preparo dos estudiosos brasileiros em Ci^encias Sociais, e o reforco do conhecimento do passado de sua propria disciplina e da variedade de ramos que foi originando ate a atualidade. Este livro, em muito boa ora traduzido, oferece a eles um primeiro panorama geral da An-tropologia e seu lugar no ^ambito do saber. Construdo dentro da tradic~ao francesa do pensamento analtico e da cla-reza de express~ao, esta introduc~ao ao conhecimento da Antropologia atinge, na verdade, um publico mais amplo do que simplesmente o dos estudantes e especialistas de Ci^encias Sociais. Sua difus~ao se fara sem duvida entre todos aqueles atrados para os problemas do homem enquanto tal, que buscam co-nhecer ao homem enquanto seu igual e ao mesmo tempo outro. Maria Isaura Pereira de Queiroz 1 1Maria Isaura Pereira de Queiroz e professora do Departamento de Sociologia e pes-quisadora do Centro de Estudos Rurais e Urbanos da I I FLCH-USP.
  • 15. CONTEUDO 7 Introduc~ao O Campo e a Abordagem Antropologicos O homem nunca parou de interrogar-se sobre si mesmo. Em todas as socie-dades existiram homens que observavam homens. Houve ate alguns que eram teoricos e forjaram, como diz Levi-Strauss, modelos elaborados em casa. A re ex~ao do homem sobre o homem e sua sociedade, e a elaborac~ao de um saber s~ao, portanto, t~ao antigos quanto a humanidade, e se deram tanto na Asia como na Africa, na America, na Oceania ou na Europa. Mas o projeto de fundar uma ci^encia do homem - uma antropologia - e, ao contrario, muito recente. De fato, apenas no
  • 16. nal do seculo XVIII e que comeca a se constituir um saber cient
  • 18. co) que toma o homem como objeto de conhecimento, e n~ao mais a natureza; apenas nessa epoca e que o esprito cient
  • 19. co pensa, pela primeira vez, em aplicar ao proprio homem os metodos ate ent~ao utilizados na area fsica ou da biologia. Isso constitui um evento consideravel na historia do pensamento do homem sobre o homem. Um evento do qual talvez ainda hoje n~ao estejamos medindo todas as consequ^encias. Esse pensamento tinha sido ate ent~ao mitologico, artstico, teologico,
  • 20. loso
  • 21. co, mas nunca cient
  • 22. co no que dizia respeito ao homem em si. Trata-se, desta vez, de fazer passar este ultimo do estatuto de sujeito do conhecimento ao de objeto da ci^encia. Finalmente, a antropolo-gia, ou mais precisamente, o projeto antropologico que se esboca nessa epoca muito tardia na Historia - n~ao podia existir o conceito de homem enquanto regi~oes da humanidade permaneciam inexploradas - surge * em uma regi~ao muito pequena do mundo: a Europa.. Isso trara, evidentemente, como vere-mos mais adiante, consequ^encias importantes. Para que esse projeto alcance suas primeiras realizac~oes, para que o novo saber comece a adquirir um incio de legitimidade entre outras disciplinas cient
  • 23. cas, sera preciso esperar a segunda metade do seculo XIX, durante o qual a antropologia se atribui objetos empricos aut^onomos: as sociedades ent~ao ditas primitivas, ou seja, exteriores as areas de civilizac~ao europeias ou norte-americanas. A ci^encia, ao menos tal como e concebida na epoca, sup~oe uma dualidade radical entre o observador e seu objeto. Enquanto que a separac~ao (sem a qual n~ao ha experimentac~ao possvel) entre o sujeito ob-servante e o objeto observado e obtida na fsica (como na biologia, bot^anica, ou zoologia) pela natureza su
  • 24. cientemente diversa dos dois termos presentes, na historia, pela dist^ancia no tempo que separa o historiador da sociedade
  • 25. 8 CONTEUDO estudada, ela consistira na antropologia, nessa epoca - e por muito tempo - em uma dist^ancia de
  • 27. ca. As sociedades estudadas pelos primeiros antropologos s~ao sociedades longnquas as quais s~ao atribudas as seguintes caractersticas: sociedades de dimens~oes restritas; que tiveram pou-cos contatos com os grupos vizinhos; cuja tecnologia e pouco desenvolvida em relac~ao a nossa; e nas quais ha uma menor especializac~ao das atividades e func~oes sociais. S~ao tambem quali
  • 28. cadas de simples; em consequ^encia, elas ir~ao permitir a compreens~ao, como numa situacao de laboratorio, da organizac~ao complexade nossas proprias sociedades. * * * A antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe e proprio: o estudo das populac~oes que n~ao pertencem a civilizac~ao ocidental. Ser~ao ne-cess arias ainda algumas decadas para elaborar ferramentas de investigac~ao que permitam a coleta direta no campo das observac~oes e informac~oes. Mas logo apos ter
  • 29. rmado seus proprios metodos de pesquisa - no incio do seculo XX - a antropologia percebe que o objeto emprico que tinha escolhido (as sociedades primitivas) esta desaparecendo; pois o proprio Universo dos selvagensn~ao e de forma alguma poupado pela evoluc~ao social. Ela se v^e, portanto, confrontada a uma crise de identidade. Muito rapidamente, uma quest~ao se coloca, a qual, como veremos neste livro, permanece desde seu nascimento: o
  • 30. m do selvagemou, como diz Paul Mercier (1966), sera que a morte do primitivoha de causar a morte daqueles que haviam se dado como tarefa o seu estudo? A essa pergunta varios tipos de resposta puderam e podem ainda ser dados. Detenhamo-nos em tr^es deles. 1) O antropologo aceita, por assim dizer, sua morte, e volta para o ^ambito das outras ci^encias humanas. Ele resolve a quest~ao da autonomia problematica de sua disciplina reencontrando, especialmente a sociologia, e notadamente o que e chamado de sociologia comparada. 2) Ele sai em busca de uma outra area de investigac~ao: 0 campon^es, este selvagem de dentro, objeto ideal de seu estudo, particularmente bem ade-quado, ja que foi deixado de lado pelos outros ramos das ci^encias do homem. 2 2A pesquisa etnogra
  • 31. ca cujo objeto pertence a mesma sociedade que i) observador foi, de incio, quali
  • 32. cada pelo nome de folklore. Foi Van uenncp que elaborou os metodos proprios desse campo de estudo, empenhando-se em explorar exclusivamente (mas de uma
  • 33. CONTEUDO 9 3) Finalmente, e aqui temos um terceiro caminho, que inclusive n~ao exclui o anterior (pelo menos enquanto campo de estudo), ele a
  • 35. ci-dade de sua pratica, n~ao mais atraves de um objeto emprico constitudo (o selvagem, o campon^es), mas atraves de uma abordagem epistemologica constituinte. Essa e a terceira via que comecaremos a esbocar nas paginas que se seguem, e que sera desenvolvida no conjunto deste trabalho. O objeto teorico da antropologia n~ao esta ligado, na perspectiva na qual comecamos a nos situar a partir de agora, a um espaco geogra
  • 36. co, cultural ou historico particular. Pois a antropologia n~ao e sen~ao um certo olhar, um certo enfoque que consiste em: a) o estudo do homem inteiro; b) o estudo do homem em todas as sociedades, sob todas as latitudes em todos os seus estados e em todas as epocas. O estudo do homem inteiro So pode ser considerada como antropologica uma abordagem integrativa que objetive levar em considerac~ao as multiplas dimens~oes do ser humano em so-ciedade. Certa-mente, o acumulo dos dados colhidos a partir de observac~oes diretas, bem como o aperfeicoamento das tecnicas de investigac~ao, conduzem necessariamente a uma especializac~ao do saber. Porem, uma das vocac~oes maiores de nossa abordagem consiste em n~ao parcelar o homem mas, ao contrario, em tentar relacionar campos de investigac~ao frequentemente se-parados. Ora, existem cinco areas principais da antropologia, que nenhum pesquisador pode, evidentemente, dominar hoje em dia, mas as quais ele deve estar sensibilizado quando trabalha de forma pro
  • 37. ssional em algumas delas, dado que essas cinco areas mantem relac~oes estreitas entre si. A antropologia biologica (designada antigamente sob o nome de antropologia fsica) consiste no estudo das variac~oes dos caracteres biologicos do homem no espaco e no tempo. Sua problematica e a das relac~oes entre o patrim^onio genetico e o meio (geogra
  • 38. co, ecologico, social), ela analisa as particulari-dades morfologicas e
  • 39. siologicas ligadas a um meio ambiente, bem como a evoluc~ao destas particularidades. O que deve, especialmente, a cultura a este patrim^onio, mas tambem, o que esse patrim^onio (que se transforma) deve a cultura? Assim, o antropologo biologista levara em considerac~ao os fatores culturais que in uenciam o crescimento e a maturac~ao do indivduo. forma magistral) as tradic~oes populares camponesas, a dist^ancia social e cultural que separa o objeto do sujeito, substituindo nesse caso a dist^ancia geogra
  • 40. ca da antropologia exotica.
  • 41. 10 CONTEUDO Ele se perguntara, por exemplo: por que o desenvolvimento psicomotor da crianca africana e mais adiantado do que o da crianca europeia? Essa parte da antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de cr^anios, mensurac~oes do esqueleto, tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada as racas c dos sexos, interessa-se em especial - desde os anos 50 - pela genetica das populac~oes, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao ad-quirido, sendo que um e outro est~ao interagindo continuamente. Ela tem, a meu ver, um papel particularmente importante a exercer para que n~ao sejam rompidas as relac~oes entre as pesquisas das ci^encias da vida e as das ci^encias humanas. A antropologia pre-historica e o estudo do homem atraves dos vestgios mate-riais enterrados no solo (ossadas, mas tambem quaisquer marcas da atividade humana). Seu projeto, que se liga a arqueologia, visa reconstituir as socie-dades desaparecidas, tanto em suas tecnicas e organizac~oes sociais, quanto em suas produc~oes culturais e artsticas. Notamos que esse ramo da antro-pologia trabalha com uma abordagem id^entica as da antropologia historica e da antropologia social e cultural de que trataremos mais adiante. O histo-riador e antes de tudo um historiografo, isto e, um pesquisador que trabalha a partir do acesso direto aos textos. O especialista em pre-historia reco-lhe, pessoalmente, objetos no solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na antropologia social na qual se bene
  • 42. cia de depoimentos vivos.3 4 antropologia lingustica. A linguagem e, com toda evid^encia, parte do patrim^onio cultural de uma sociedade. E atraves dela que os indivduos que comp~oem uma sociedade se expressam e expressam seus valores, suas preocupac~oes, seus pensamentos. Apenas o estudo da lngua permite com-preender: o como os homens pensam o que vivem e o que sentem, isto e, suas categorias psicoafetivas e psicocognitivas (etnolingistica); o como eles expressam o universo e o social (estudo da literatura, n~ao apenas escrita, mas tambem de tradic~ao oral); o como,
  • 43. nalmente, eles interpretam seus proprios saber e saber-fazer (area das chamadas etnoci^encias). A antropologia lingustica, que e uma disciplina que se situa no encontro 3Foi notadamente gracas a pesquisadores como Paul Rivet e Andre Leroi-Gourhan (1964) que a articulac~ao entre as areas da antropologia fsica, biologica e socio-cultural nunca foi rompida na Franca. Mas continua sempre ameacada de ruptura devido a um movimento de especializac~ao facilmente compreensvel. Assim, colocando-se do ponto de vista da antropologia social, Edmund Leach (1980) fala d,a desagradavel obrigac~ao de fazer menage a trois com os representantes da arqueologia pre-historica e da antropologia fsica, comparando-a a coabitac~ao dos psicologos e dos especialistas da observac~ao de ratos em laboratorio
  • 44. CONTEUDO 11 de varias outras, 4 n~ao diz respeito apenas, e de longe, ao estudo dos dialetos (dialetologia). Ela se interessa tambem pelas imensas areas abertas pelas no-vas tecnicas modernas de comunicac~ao (mass media e cultura do audiovisual). A antropologia psicologica. Aos tr^es primeiros polos de pesquisa que foram mencionados, e que s~ao habitualmente os unicos considerados como constitu-tivos (com antropologia social e a cultural, das quais falaremos a seguir) do campo global da antropologia, fazemos quest~ao pessoalmente de acrescentar um quinto polo: o da antropologia psicologica, que consiste no estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. De fato, o antropologo e em primeira inst^ancia confrontado n~ao a conjuntos sociais, e sim a indivduos. Ou seja, somente atraves dos comportamentos - conscientes e inconscientes - dos seres humanos particulares podemos apreender essa totalidade sem a qual n~ao e antropologia. E a raz~ao pela qual a dimens~ao psicologica (e tambem psicopatologica) e absolutamente indissociavel do campo do qual procuramos aqui dar conta. Ela e parte integrante dele. A antropologia social e cultural (ou etnologia) nos detera por muito mais tempo. Apenas nessa area temos alguma compet^encia, e este livro tra-tar a essencialmente dela. Assim sendo, toda vez que utilizarmos a partir de agora o termo antropologia mais genericamente, estaremos nos referindo a antropologia social e cultural (ou etnologia), mas procuraremos nunca es-quecer que ela e apenas um dos aspectos da antropologia. Um dos aspectos cuja abrang^encia e consideravel, ja que diz respeito a tudo que constitui uma sociedade: seus modos de produc~ao econ^omica, suas tecnicas, sua or-ganiza c~ao poltica e jurdica, seus sistemas de parentesco, seus sistemas de conhecimento, suas crencas religiosas, sua lngua, sua psicologia, suas criac~oes artsticas. Isso posto, esclarecamos desde ja que a antropologia consiste menos no levan-tamento sistematico desses aspectos do que em mostrar a maneira particular com a qual est~ao relacionados entre si e atraves da qual aparece a especi
  • 45. - cidade de uma sociedade. E precisamente esse ponto de vista da totalidade, e o fato de que o antropologo procura compreender, como diz Levi-Strauss, aquilo que os homens n~ao pensam habitualmente em
  • 46. xar ria pedra ou no papel(nossos gestos, nossas trocas simbolicas, os menores detalhes dos nos- 4Foi o antropologo Edward Sapir (1967) quem, alem de introduzir o estudo da lin-guagem entre os materiais antropologicos, comecou tambem a mostrar que um estudo antropologico da lngua (a lngua como objeto de pesquisa inscrevendo-se na cultura) conduzia a um estudo lingustico da cultura (a lngua como modelo de conhecimento da cultura).
  • 47. 12 CONTEUDO sos comportamentos), que faz dessa abordagem um tratamento fundamental-mente diferente dos utilizados setorial- mente pelos geografos, economistas, juristas, sociologos, psicologos. . . O estudo do homem em sua totalidade A antropologia n~ao e apenas o estudo de tudo que com-p~oe uma sociedade. Ela e o estudo de todas as sociedades humanas (a nossa inclusive 5 ), ou seja, das culturas da humanidade como um todo em suas diversidades historicas e geogra
  • 48. cas. Visando constituir os arquivosda humanidade em suas di-feren cas signi
  • 49. cativas, ela, inicialmente privilegiou claramente as areas de civilizac~ao exteriores a nossa. Mas a antropologia n~ao poderia ser de
  • 50. nida por um objeto emprico qualquer (e, em especial, pelo tipo de sociedade ao qual ela a princpio se dedicou preferencialmente ou mesmo exclusivamente). Se seu campo de observac~ao consistisse no estudo das sociedades preservadas do contato com o Ocidente, ela se encontraria hoje, como ja comentamos, sem objeto. Ocorre, porem, que se a especi
  • 51. cidade da contribuic~ao dos antropologos em relac~ao aos outros pesquisadores em ci^encias humanas n~ao pode ser con-fundida com a natureza das primeiras sociedades estudadas (as sociedades extra-europeias), ela e a meu ver indissociavelmente ligada ao modo de conhe-cimento que foi elaborado a partir do estudo dessas sociedades: a observac~ao direta, por impregnac~ao lenta e contnua de grupos humanos minusculos com os quais mantemos uma relac~ao pessoal. Alem disso, apenas a dist^ancia em relac~ao a nossa sociedade (mas uma dist^ancia que faz com que nos tornemos extremamente proximos daquilo que e longnquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomavamos por natural em nos mesmos e, de fato, cultural; aquilo que era evidente e In
  • 52. nita-mente problematico. Disso decorre a necessidade, na formac~ao antropologica, daquilo que n~ao hesitarei em chamar de estranhamento(depaysement), a perplexidade provo- cada pelo encontro das culturas que s~ao para nos as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modi
  • 53. cac~ao do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma Unica cultura, somos n~ao apenas cegos a dos outros, mas mopes quando se trata da nossa. A experi^encia 5Os antropologos comecaram a se dedicar ao estudo das sociedades' industriais avancadas apenas muito recentemente. As primeiras pesquisas trataram primeiro, como vimos, dos aspectos tradicionaisdas sociedades n~ao tradicionais(as comunidades cam-ponesas europeias), em seguida, dos grupos marginais, e
  • 54. nalmente, ha alguns anos apenas na Franca, do setor urbano.
  • 55. CONTEUDO 13 da alteridade (e a elaborac~ao dessa experi^encia) leva-nos a ver aquilo que nem teramos conseguido imaginar, dada a nossa di
  • 57. xar nossa atenc~ao no que nos e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos evi-dente. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (ges-tos, mmicas, posturas, reac~oes afetivas) n~ao tem realmente nada de natu-ral. Comecamos, ent~ao, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nos mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropologico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos es-pecialmente reconhecer que somos uma cultura possvel entre tantas outras, mas n~ao a unica. Aquilo que, de fato, caracteriza a unidade do homem, de que a antropo-logia, como ja o dissemos e voltaremos a dizer, faz tanta quest~ao, e sua aptid~ao praticamente in
  • 58. nita para inventar modos de vida e formas de orga-niza c~ao social extremamente diversos. E, a meu ver, apenas a nossa disciplina permite notar, com a maior proximidade possvel, que essas formas de com-portamento e de vida em sociedade que tomavamos todos espontaneamente por inatas (nossas maneiras de andar, dormir, nos encontrar, nos emocionar, comemorar os eventos de nossa exist^encia. . .) s~ao, na realidade, o produto de escolhas culturais. Ou seja, aquilo que os seres humanos t^em em comum e sua capacidade para se diferenciar uns dos outros, para elaborar costumes, lnguas, modos de conhecimento, instituic~oes, jogos profundamente diversos; pois se ha algo natural nessa especie particular que e a especie humana, e sua aptid~ao a variac~ao cultural O projeto antropologico consiste, portanto, no reconhecimento, conhecimento, juntamente com a compreens~ao de uma humanidade plural. Isso sup~oe ao mesmo tempo a ruptura com a
  • 59. gura da monotonia do duplo, do igual, do id^entico, e com a exclus~ao num irredutvel alhures. As sociedades mais di-ferentes da nossa, que consideramos espontaneamente como indiferenciadas, s~ao na realidade t~ao diferentes entre si quanto o s~ao da nossa. E, mais ainda, elas s~ao para cada uma delas muito raramente homog^eneas (como seria de se esperar) mas, pelo contrario, extremamente diversi
  • 60. cadas, participando ao mesmo tempo de uma comum humanidade. A abordagem antropologica provoca, assim, uma verdadeira revoluc~ao epis-temol ogica, que comeca por uma revoluc~ao do olhar. Ela implica um des-centramento radical, uma ruptura com a ideia de que existe um centro do mundo, e, correlativamente, uma ampliac~ao do saber 6 e uma mutac~ao de 6Veremos que a antropologia sup~oe n~ao apenas esse desmembramento (eclatement)
  • 61. 14 CONTEUDO si mesmo. Como escreve Roger Bastide em sua Anatomia de Andre Gide: Eu sou mil possveis em mim; mas n~ao posso me resignar a querer apenas um deles. A descoberta da alteridade e a de uma relac~ao que nos permite deixar de identi
  • 62. car nossa pequena provncia de humanidade com a humanidade, e correlativamente deixar de rejeitar o presumido selvagemfora de nos mes-mos. Confrontados a multiplicidade, a priori enigmatica, das culturas, somos aos poucos levados a romper com a abordagem comum que opera sempre a naturalizac~ao do social (como se nossos comportamentos estivessem inscri-tos em nos desde o nascimento, e n~ao fossem adquiridos no contato com a cultura na qual nascemos). A romper igualmente com o humanismo classico que tambem consiste na identi
  • 63. cac~ao do sujeito com ele mesmo, e da cultura com a nossa cultura. De fato, a
  • 64. loso
  • 65. a classica (antologica com S~ao Tomas, re exiva com Descartes, criticista com Kant, historica com Hegel), mesmo sendo
  • 66. loso
  • 67. a social, bem como as grandes religi~oes, nunca se deram como objetivo o de pensar a diferenca (e muito menos, de pensa-la cienti
  • 68. camente), e sim o de reduzi-la, frequentemente inclusive de uma forma igualitaria e com do saber, que se expressa no relativismo (de um Jean de Lery) ou no ceticismo (de um Montaigne), ligados ao questionamento da cultura a qual se pertence, mas tambem uma nova pesquisa e uma reconstituic~ao deste saber. Mas nesse ponto coloca-se uma quest~ao: sera que a Antropologia e o discurso do Ocidente (e somente dele) sobre a alteridade? Evidentemente, o europeu n~ao foi o unico a interessar-se pelos habitos e pelas ins-titui c~oes do n~ao-europeu. A recproca tambem e verdadeira, como atestam notadamente os relatos de viagens realizadas na Europa desde a Idade Media, por viajantes vindos da Asia. E os ndios Flathead de quem nos fala Levi-Strauss eram t~ao curiosos do que ouviam dizer dos brancos que tomaram um dia a iniciativa de organizar expedic~oes a
  • 69. m de encontra-los. Poderamos multiplicar os exemplos. Isso n~ao impede que a constituic~ao de um saber de vocac~ao cient
  • 70. ca sobre a alteridade sempre tenha se desenvolvido a partir da cultura europeia. Esta elaborou um orientalismo, um americanismo, um africanismo, um oceanismo, enquanto que nunca ouvimos falar de um europesmo, que teria se constitudo como campo de saber teorico a partir da Asia, da Africa ou da Oceania. Isso posto, as condic~oes de produc~ao historicas, geogra
  • 71. cas, sociais e culturais da antropologia constituem um aspecto que seria rigorosamente antiantropologico perder de vista, mas que n~ao devem ocultar a vocac~ao (evidentemente problematica) de nossa disciplina, que visa superar a irredutibilidade das culturas. Como escreve Levi-Strauss: N~ao se trata apenas de elevar-se acima dos valores proprios da sociedade ou do grupo do observador, e sim de seus metodos de pensamento; e preciso alcancar formulac~ao valida, n~ao apenas para um observador honesto mas para todos os observadores possveis. Lembremos que a antropologia so comecou a ser ensinada nas universidades ha al-gumas decadas. Na Gr~a-Bretanha a partir de 1908 (Frazer em Liverpool), e na Franca a partir de 1943 (Griaule na Sorbonne, seguido por Leroi-Gourhan).
  • 72. CONTEUDO 15 as melhores intenc~oes do mundo. O pensamento antropologico, por sua vez, considera que, assim como uma civilizac~ao adulta deve aceitar que seus membros se tornem adultos, ela deve igualmente aceitar a diversidade das culturas, tambem adultas. Estamos, evidentemente, no direito de nos perguntar como a humanidade p^ode per-manecer por tanto tempo cega para consigo mesma, amputando parte de si propria e fazendo, de tudo que n~ao eram suas ideologias dominantes sucessi-vas, um objeto de exclus~ao. Descon
  • 73. emos porem do pensamento - que seria o cumulo em se tratando de antropologia - de que estamos
  • 74. nalmente mais lucidos, mais conscientes, mais livres, mais adultos, como acaba-mos de escrever, do que em uma epoca da qual seria err^oneo pensar que esta de
  • 75. nitivamente encerrada. Pois essa transgress~ao de uma das tend^encias do-minantes de nossa sociedade - o expansionismo ocidental sob todas as suas formas econ^omicas, polticas, intelectuais - deve ser sempre retomada. O que signi
  • 76. ca de forma alguma que o antropologo esteja destinado, seja levado por alguma crise de identidade, ao adotar ipso facto a logica das outras socie-dades e a censurar a sua. Procuraremos, pelo contrario, mostrar nesse livro que a duvida e a crtica de si mesmo so s~ao cienti
  • 77. camente fundamentadas se forem acompanhadas da interpelac~ao crtica dos de outrem. Di
  • 78. culdades Se os antropologos est~ao hoje convencidos de que uma das caractersticas maiores de sua pratica reside no confronto pessoal com a alteridade, isto e, convencidos do fato de que os fen^omenos sociais que estudamos s~ao fen^omenos que observamos em seres humanos, com os quais estivemos vi-vendo; se eles s~ao tambem un^animes em pensar que ha uni-dade da famlia humana, a famlia dos antropologos e, por sua vez, muito dividida, quando se trata de dar conta (aos interessados, aos seus colegas, aos estudantes, a si mesmo, e de forma geral a todos aqueles que t^em o direito de saber o que verdadei-ramente fazem os antropologos) dessa unidade multipla, desses materiais e dessa experi^encia. 1) A primeira di
  • 79. culdade se manifesta, como sempre, ao nvel das pala-vras. Mas ela e, tambem aqui, particularmente reveladora da juventude de nossa disciplina,6 que n~ao sendo, como a fsica, uma ci^encia constituda, con-tinua n~ao tendo ainda optado de
  • 80. nitivamente pela sua propria designac~ao. Etnologia ou antropologia? No primeiro caso (que corresponde a tradic~ao terminologica dos franceses), insiste- se sobre a pluraridade irredutvel das etnias, isto e, das culturas. No segundo (que e mais usado nos pases anglo-
  • 81. 16 CONTEUDO sax^onicos), sobre a unidade do g^enero humano. E optando-se por antro-pologia, deve-se falar (com os autores brit^anicos) em antropologia social - cujo objeto privilegiado e o estudo das instituic~oes - ou (com os autores americanos) de antropologia cultural - que consiste mais no estudo dos com-portamentos. 7 2) A segunda di
  • 82. culdade diz respeito ao grau de cienti
  • 83. cidade que convem atribuir a antropologia. O homem esta em condic~oes de estudar cienti
  • 84. ca-mente o homem, isto e, um objeto que e de mesma natureza que o sujeito? E nossa pratica se encontra novamente dividida entre os que pensam, com Radclie-Brown (1968), que as sociedade s~ao sistemas naturais que devem ser estudados segundo os metodos comprovados pelas ci^encias da natureza,8 e os que pensam, com Evans-Pritchard (1969), que e preciso tratar as socieda-des n~ao como sistemas org^anicos, mas como sistemas simbolicos. Para estes ultimos, longe de ser uma ci^encia natural da sociedade(Radclie-Brown), a antropologia deve antes ser considerada como uma arte(Evans-Pritchard). 3) Uma terceira di
  • 85. culdade provem da relac~ao ambgua que a antropolo-gia mantem desde sua g^enese com a Historia. Estreitamente vinculadas nos seculos XVIII e XIX, as duas praticas v~ao rapidamente se emancipar uma da outra no seculo XX, procurando ao mesmo tempo se reencontrar perio-dicamente. As rupturas manifestas se devem essencialmente a antropologos. Evans-Pritchard: O conhecimento da historia das sociedades n~ao e de ne- 7Para que o leitor que n~ao tenha nenhuma familiaridade com esses conceitos possa localizar-se, vale a pena especi
  • 86. car bem o signi
  • 87. cado dessas palavras. Estabelecamos, como Levi-Strauss, que a etnogra
  • 88. a, a etnologia e a antropologia constituem os tr^es mo-mentos de uma mesma abordagem. A etnogra
  • 89. a e a coleta direta, e o mais minuciosa possvel, dos fen^omenos que observamos, por uma impregnac~ao duradoura e contnua e um processo que se realiza por aproximac~oes sucessivas. Esses fen^omenos podem ser reco-lhidos tomando-se notas, mas tambem por gravac~ao sonora, fotogra
  • 91. ca. A etnologia consiste em um primeiro nvel de abstrac~ao: analisando os materiais colhidos, fazer aparecer a logica espec
  • 92. ca da sociedade que se estuda. A antropologia,
  • 93. nalmente, consiste era um segundo nvel de inteligibilidade: construir modelos que permitam com-parar as sociedades entre si. Como escreve Levi-Strauss, seu objetivo e alcancar, alem da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventario das possibilidades inconscientes, que n~ao existem em numero ilimitado. 8Ao modelo org^anico dos funcionalistas ingleses, Levi-Strauss substituiu, como vere-mos, um modelo lingustico, e mostrou que trabalhando no ponto de encontro da natureza (o inato) e da cultura (tudo o que n~ao e hereditariamente programado e deve ser inven-tado pelos homens onde a natureza n~ao programou nada), a antropologia deve aspirar a tornar-se uma ci^encia natural: A antropologia pertence as ci^encias humanas, seu nome o proclama su
  • 94. cientemente; mas se se resigna em fazer seu purgatorio entre as ci^encias soci-ais, e porque n~ao desespera de despertar entre as ci^encias naturais na hora do julgamento
  • 96. CONTEUDO 17 nhuma utilidade quando se procura compreender o funcionamento das insti-tui c~oes. Mais categorico ainda, Leach escreve: A gerac~ao de antropologos a qual pertenco tira seu orgulho de sempre ter-se recusado a tomar a Historia em considerac~ao. Convem tambem lembrar aqui a distinc~ao agora famosa de Levi-Strauss opondo as sociedades frias, isto e, proximas do grau zero de temperatura historica, que s~ao menos sociedades sem historia, do que sociedades que n~ao querem ter estorias(unicos objetos da antropologia classica) a nossas proprias sociedades quali
  • 97. cadas de sociedades quentes. Essa preocupac~ao de separac~ao entre as abordagens historica e antropologica esta longe, como veremos, de ser un^anime, e a historia recente da antropo-logia testemunha tambem um desejo de coabitac~ao entre as duas disciplinas. Aqui, no Nordeste do Brasil, onde comeco a escrever este livro, desde 1933, um autor como Gilberto Freyre, empenhando-se em compreender a formac~ao da sociedade brasileira, mostrou o proveito que a antropologia podia tirar do conhecimento historico. 4) Uma quarta di
  • 98. culdade provem do fato de que nossa pratica oscila sem parar, e isso desde seu nascimento, entre a pesquisa que se pode quali
  • 99. car de fundamental e aquilo que e designado sob o termo de antropologia aplicada. Comecaremos examinando o segundo termo da alternativa aqui colocada e que continua dividindo profundamente os pesquisadores. Durkheim conside-rava que a sociologia n~ao valeria sequer uma hora de dedicac~ao se ela n~ao pudesse ser util, e muitos antropologos compartilham sua opini~ao. Margaret Mead, por exemplo, estudando o comportamento dos adolescentes das ilhas Samoa (1969), pensava que seus estudos deveriam permitir a instaurac~ao de uma sociedade melhor, e, mais especi
  • 100. camente a aplicac~ao de uma pedagogia menos frustrante a sociedade americana. Hoje varios colegas nossos consi-deram que a antropologia deve colocar-se a servico da revoluc~ao(segundo especialmente )ean Copans, 1975). O pesquisador torna-se, ent~ao, um mili-tante, um antropologo revolucionario, contribuindo na construc~ao de uma antropologia da libertac~ao. Numerosos pesquisadores ainda reivindicam a qualidade de especialistas de conselheiros, participando em especial dos pro-gramas de desenvolvimento e das decis~oes polticas relacionadas a elaborac~ao desses programas. Queramos simplesmente observai aqui que a antropolo-gia aplicada9 n~ao e uma grande novidade. E por ela que, com a colonizac~ao, a antropologia teve inicio.10 9Sobre a antropologia aplicada, cf. R. Bastide, 1971 10A maioria dos antropologos ingleses, especialmente, realizou suas pesquisas a pe-
  • 101. 18 CONTEUDO Foi com ela, inclusive, que se deu o incio da Antropologia, durante a co-loniza c~ao. No extremo oposto das atitudes engajadasdas quais acabamos de falar, encontramos a posic~ao determinada de um Claude Levi-Strauss que, apos ter lembrado que o saber cient
  • 102. co sobre o homem ainda se encontrava num estagio extremamente primitivo em relac~ao ao saber sobre a natureza, escreve: Supondo que nossas ci^encias um dia possam ser colocadas a servico da ac~ao pratica, elas n~ao t^em, no momento, nada ou quase nada a oferecer. O verdadeiro meio de permitir sua exist^encia, e dar muito a elas, mas sobretudo n~ao lhes pedir nada. As duas atitudes que acabamos de citar a antropologia puraou a antro-pologia diluidacomo diz ainda Levi-Strauss encontram na realidade suas primeiras formulac~oes desde os primordios da confrontac~ao do europeu com o selvagem. Desde o seculo XVI, de fato, comeca a se implantar aquilo o que alguns chamariam de arquetiposdo discurso etnologico, que podem ser ilustrados pelas posic~oes respectivas de um Jean de Lery e de um Sahagun. Jean de Lery foi um huguenote* franc^es que permaneceu algum tempo no Brasil entre os Tupinambas. Longe de procurar convencer seus hospedes da superioridade da cultura europeia e da religi~ao reformada, ele os interroga e, sobretudo, se interroga. Sahagun foi um franciscano espanhol que alguns anos mais tarde realizou uma verdadeira investigac~ao no Mexico. Perfeitamente a vontade entre os astecas, ele estava la enquanto missionario a
  • 103. m de converter a populac~ao que estuda.11 O fato da diversidade das ideologias sucessivamente defendidas (a convers~ao religiosa, a revoluc~ao, a ajuda ao Terceiro Mundo, as estrategias daquilo que e hoje chamado desenvolvimentoou ainda mudanca social) n~ao al-tera nada quanto ao ^amago do problema, que e o seguinte: 0 antropologo deve contribuir, enquanto antropologo, para B transformac~ao das sociedades que ele estuda 11 dido das administrac~oes: Os Nuers de Evans-Pritchard foram encomendados pelo governo brit^anico, Fortes estudou os Tallensi a pedido do governo da Costa do Ouro. Nadei foi conselheiro do governo do Sud~ao, etc 11Essa dupla abordagem da relac~ao ao outro pode muito bem sei realizada por um unico pesquisador. Assim Malinowski chegando as ilhas Trobriand (trad. franc., 1963) se deixa literalmente levar pela cultura que descobre e que o encanta. Mas varios anos depois (trad. franc., 1968) participa do que chama uma experi^encia controladado desenvolvimento
  • 104. CONTEUDO 19 Eu responderia, no que me diz respeito, da seguinte forma: nossa abor-dagem, que consiste antes em nos surpreender com aquilo que nos e mais familiar (aquilo que vivemos cotidianamente na sociedade na qual nascemos) e em tornar mais familiar aquilo que nos e estranho (os comportamentos, as crencas, os costumes das sociedades que n~ao s~ao as nossas, mas nas quais po-der amos ter nascido), esta diretamente confrontada hoje a um movimento de homogeneizac~ao, ao meu ver, sem precedente' na Historia: o desenvolvimento de uma forma de cultura industrial-urbana e de uma forma de pensamento que e a do racionalismo social. Eu pude, no decorrer de minhas estadias sucessivas entre os Berberes do Medio Atlas e entre os Baules da Costa do Mar
  • 105. m, perceber realmente o fascnio que exerce este modelo, perturbando completamente os modos de vida (a maneira de se alimentar, de se vestir, de se distrair, de se encontrar, de pensar 12 e levando a novos comportamentos que n~ao decorrem de uma escolha) A quest~ao que esta hoje colocada para qualquer antropologo e a seguinte: ha uma possibilidade em minha sociedade (qualquer que seja) permitindo-lhe o acesso a um estagio de sociedade industrial (ou pos-industrial) sem con ito dramatico, sem risco de despersonalizac~ao? Minha convicc~ao e de que o antropologo, para ajudar os atores sociais a responder a essa quest~ao, n~ao deve, pelo menos enquanto antropologo, tra-balhar para a transformac~ao das sociedades que estuda. Caso contrario, seria conveniente, de fato, que se convertesse em economista, agr^onomo, medico, poltico, a n~ao ser que ele seja motivado por alguma concepc~ao messi^anica da antropologia. Auxiliar uma determinada cultura na explicitac~ao para ela mesma de sua propria diferenca e uma coisa; organizar poltica, econ^omica e socialmente a evoluc~ao dessa diferenca e uma outra coisa. Ou seja, a parti-cipa c~ao do antropologo naquilo que e hoje a vanguarda do anticolonialismo e da luta para os direitos humanos e das minorias etnicas e, a meu ver, uma consequ^encia de nossa pro
  • 106. ss~ao, mas n~ao e a nossa pro
  • 107. ss~ao propriamente dita. Somos, por outro lado, diretamente confrontados a uma dupla urg^encia a qual temos o dever de responder. 12As mutac~oes de comportamentos geradas por essa forma de civilizac~ao mundialista podem tambem evidentemente ser encontradas nas nossa; proprias culturas rurais e ur-banas. Em compensac~ao, parecem-me bastante fracas aqui no Nordeste do Brasil, onde comecou a redigir este livro
  • 108. 20 CONTEUDO a) Urg^encia de preservac~ao dos patrim^onios culturais locais ameacados (e a respeito disso a etnologia esta desde o seu nascimento lutando contra o tempo para que a transcric~ao dos arquivos orais e visuais possa ser realizada a tempo, enquanto os ultimos depositarios das tradic~oes ainda est~ao vivos) e, sobretudo, de restituic~ao aos habitantes das diversas regi~oes nas quais tra-balhamos, de seu proprio saber e saber-fazer. Isso sup~oe uma ruptura com a concepc~ao assimetrica da pesquisa, baseada na captac~ao de informac~oes. N~ao ha, de fato, antropologia sem troca, isto e, sem itinerario no decor-rer do qual as partes envolvidas chegam a se convencer reciprocamente da necessidade de n~ao deixar se perder formas de pensamento e atividade unicas. b) Urg^encia de analise das mutac~oes culturais impostas pelo desenvolvimento extremamente rapido de todas as sociedades contempor^aneas, que n~ao s~ao mais sociedades tradicionais, e sim sociedades que est~ao passando por um desenvolvimento tecnologico absolutamente inedito, por mutac~oes de suas relac~oes sociais, por movimentos de migrac~ao Interna, e por um processo de urbanizac~ao acelerado. Atraves da especi
  • 109. cidade de sua abordagem, nossa disciplina deve, n~ao fornecer respostas no lugar dos interessados, e sim for-mular quest~oes com eles, elaborar com eles uma re ex~ao racional (e n~ao mais magica) sobre os problemas colocados pela crise mundial que e tambem uma crise de identidade ou ainda sobre o plurarismo cultural, isto e, o encontro de lnguas, tecnicas, mentalidades. Em suma, a pesquisa antropologica, que n~ao e de forma alguma, como podemos notar, uma atividade de luxo, sem nunca se substituir aos projetos e as decis~oes dos proprios atores sociais, tem hoje como vocac~ao maior a de propor n~ao soluc~oes mas instrumentos de investigac~ao que poder~ao ser utilizados em especial para reagir ao choque da aculturac~ao, isto e, ao risco de um desenvolvimento con ituoso levando a viol^encia negadora das particularidades econ^omicas, sociais, culturais de um povo. 5) Uma quinta di
  • 111. nalmente, a natureza desta obra que deve apresentar, em um numero de paginas reduzido, um campo de pesquisa imenso, cujo desenvolvimento recente e extremamente especializado. No
  • 112. - nal do seculo XIX, um unico pesquisador podia, no limite, dominar o campo global da antropologia (Boas fez pesquisas em antropologia social, cultural, lingustica, pre-historica, e tambem mais recentemente o caso de Ktoeber, provavemente o ultimo antropologo que explorou: com sucesso uma area t~ao extensa). N~ao e, evidentemente, o caso hoje em dia. O antropologo considera agora { com raz~ao { que e competente apenas dentro de uma area restrita 13 13A antropologia das tecnicas, a antropologia econ^omica, poltica, a antropologia do
  • 113. CONTEUDO 21 de sua propria disciplina e para uma area geogra
  • 114. ca delimitada. Era-me portanto impossvel, dentro de um texto de dimens~oes t~ao restri-tas, dar conta, mesmo de uma forma parcial, do alcance e da riqueza dos campos abertos pela antropologia. Muito mais modestamente, tentei colocar um certo numero de refer^encias, de
  • 115. nir alguns conceitos a partir dos quais o leitor podera, espero, interessar-se em ir mais adiante. Ver-se-a que este livro caminha em espiral. As preocupac~oes que est~ao no centro de qualquer abordagem antropologica e que acabam de ser mencio-nadas ser~ao retomadas, mas de diversos pontos de vista. Eu lembrarei em primeiro lugar quais foram as principais etapas da constituic~ao de nossa dis-ciplina e como, atraves dessa historia da antropologia, foram se colocando progressivamente as quest~oes que continuam nos interessando ate hoje. Em seguida, esbocarei os polos teoricos - a meu ver cinco - em volta dos quais oscilam o pensamento e a pratica antropologica. Teria sido, de fato, surpreen-dente, se, procurando dar conta da pluraridade, a antropologia permanecesse monoltica. Ela e ao contrario claramente plural. Veremos no decorrer deste livro que existem perspectivas complementares, mas tambem mutuamente exclusivas, entre as quais e preciso escolher. E, em vez de
  • 116. ngir ter ado-tado o ponto de vista de Sirius, em vez de pretender uma neutralidade, que nas ci^encias humanas e um engodo, esforcando-me ao mesmo tempo para apresentar com o maximo de objetividade o pensamento dos outros, n~ao dissimularei as minhas proprias opc~oes. Finalmente, em uma ultima parte, os principais eixos anteriormente examinados ser~ao, em um movimento por assim dizer retroativo, reavaliados com o objetivo de de
  • 117. nir aquilo que cons-titui, a meu ver, a especi
  • 119. nalmente acrescentar que este livro dirige-se o mais amplo publico possvel. N~ao aqueles que t^em por pro
  • 120. ss~ao a antropologia { du-vido que encontrem nele um grande interesse { mas a todos que, em algum momento de sua vida (pro
  • 121. ssional, mas tambem pessoal), possam ser levados a utilizar o modo de conhecimento t~ao caracterstico da antropologia. Esta e a raz~ao pela qual, entre o inconveniente de utilizar uma linguagem tecnica e o de adotar uma linguagem menos especializada, optei voluntariamente pela segunda. Pois a antropologia, que e a ci^encia do homem por excel^encia, pertence a todo o mundo. Ela diz respeito a todos nos. parentesco, das organizac~oes sociais, a antropologia religiosa, artstica, a antropologia dos sistemas de comunicac~oes...
  • 123. Parte I Marcos Para Uma Historia Do Pensamento Antropologio 23
  • 124.
  • 125. Captulo 1 A Pre-Historia Da Antropologia: a descoberta das diferencas pelos vi-ajantes do seculo e a dupla resposta ideologica dada daquela epoca ate nos-sos dias A g^enese da re ex~ao antropologica e contempor^anea a descoberta do Novo Mundo. O Renascimento explora espacos ate ent~ao desconhecidos e comeca a elaborar discursos sobre os habitantes que povoam aqueles espacos.1 A grande quest~ao que e ent~ao colocada, e que nasce desse primeiro confronto visual com a alteridade, e a seguinte: aqueles que acabaram de serem desco-bertos pertencem a humanidade? O criterio essencial para saber se convem atribuir-lhes um estatuto humano e, nessa epoca, religioso: O selvagem tem uma alma? O pecado original tambem lhes diz respeito? {quest~ao capital para os missionarios, ja que da resposta ira depender o fato de saber se e possvel trazer-lhes a revelac~ao. Notamos que se, no seculo XIV, a quest~ao 1As primeiras observac~oes e os primeiros discursos sobre os povos distantesde que dispomos prov^em de duas fontes: 1) as reac~oes dos primeiros viajantes, formando o que habitualmente chamamos de literatura de viagem. Dizem respeito em primeiro lugar a Persia e a Turquia, em seguida a America, a Asia e a Africa. Em 1556, Andre Thevet escreve As Singularidades da Franca Antartica, em 1558 Jean de Lery, A Historia de Uma Viagem Feita na Terra do Brasil. Consultar tambem como exemplo, para um perodo anterior (seculo XIII), G. de Rubrouck (reed. 1985), para um perodo posterior (seculo XVII) Y. d'Evreux (reed. 1985), bom como a colet^anea de textos de J. P. Duviols (1978); 2) os relatorios dos missionarios e particularmente as Relac~oesdos jesutas (seculo XVII) nc Canada, no Jap~ao, na China, Cf., por exemplo, as Lettres ^Edi
  • 126. antes et Curieuses de la Chine par des Missionnaires Jesuites: 1702-1776, Paris reed. Garnier-Flammarion, 1979. 25
  • 127. 26 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: e colocada, n~ao e de forma alguma solucionada. Ela sera de
  • 128. nitivamente resolvida apenas dois seculos mais tarde. Nessa epoca e que comecam a se esbocar as duas ideologias concorrentes, mas das quais uma consiste no simetrico invertido da outra: a recusa do es-tranho apreendido a partir de uma falta, e cujo corolario e a boa consci^encia que se tem sobre si e sua sociedade;2 a fascinac~ao pelo estranho cujo corolario e a ma consci^encia que se tem sobre si e sua sociedade. Ora, os proprios termos dessa dupla posic~ao est~ao colocados desde a me-tade do seculo XIV: no debate, que se torna uma controversia publica, que durara varios meses (em 1550, na Espanha, em Valladolid), e que op~oe o dominicano Las Casas e o jurista Sepulvera. Las Casas: Aqueles que pretendem que os ndios s~ao barbaros, responderemos que essas pessoas t^em aldeias, vilas, cidades, reis, senhores e uma ordem poltica que, em alguns reinos, e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate superavam muitas nac~oes e uma ordem poltica que, em alguns reinos, e melhor que a nossa. (...) Esses povos igualavam ou ate superavam muitas nac~oes do mundo conhecidas como policiadas e razoaveis, e n~ao eram infe-riores a nenhuma delas. Assim, igualavam-se aos gregos e os romanos, e ate, em alguns de seus costumes, os superavam. Eles superavam tambem a Inglaterra, a Franca, e algumas de nossas regi~oes da Espanha. (...) Pois a maioria dessas nac~oes do mundo, sen~ao todas, foram muito mais pervertidas, irracionais e depravadas, e deram mostra de muito menos prud^encia e saga-cidade em sua forma de se governarem e exercerem as virtudes morais. Nos mesmos fomos piores, no tempo de nossos ancestrais e sobre toda a extens~ao de nossa Espanha, pela barbarie de nosso modo de vida e pela depravac~ao de nossos costumes. Sepulvera: Aqueles que superam os outros em prud^encia e raz~ao, mesmo que n~ao se-jam superiores em forca fsica, aqueles s~ao, por natureza, os senhores; ao contrario, porem, os preguicosos, os espritos lentos, mesmo que tenham as forcas fsicas para cumprir todas as tarefas necessarias, s~ao por natureza ser- 2Sendo, as duas variantes dessa
  • 129. gura: 1) a condescend^encia e a protec~ao, paternalista do outro: 2) sua exclus~ao
  • 130. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 27 vos. E e justo e util que sejam servos, e vemos isso sancionado pela propria lei divina. Tais s~ao as nac~oes barbaras e desumanas, estranhas a vida civil e aos costumes pac
  • 131. cos. E sera sempre justo e conforme o direito natural que essas pessoas estejam submetidas ao imperio de prncipes e de nac~oes mais cultas e humanas, de modo que, gracas a virtude destas e a prud^encia de suas leis, eles abandonem a barbarie e se conformem a uma vida mais humana e ao culto da virtude. E se eles recusarem esse imperio, pode-se imp^o-lo pelo meio das armas e essa guerra sera justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados, inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que n~ao t^em essas virtudes. Ora, as ideologias que est~ao por tras desse duplo discurso, mesmo que n~ao se expressem mais em termos religiosos, permanecem vivas hoje, quatro seculos apos a pol^emicaque opunha Las Casas a Sepulvera.3 Como s~ao estereotipos que envenenam essa antropologia espont^anea de que temos ainda hoje tanta di
  • 132. culdade para nos livrarmos, convem nos determos sobre eles. 1.1 A Figura Do Mau Selvagem E Do Bom Civilizado A extrema diversidade das sociedades humanas raramente apareceu aos ho-mens como um fato, e sim como uma aberrac~ao exigindo uma justi
  • 133. cac~ao. A antiguidade grega designava sob o nome de barbaro tudo o que n~ao par-ticipava da helenidade (em refer^encia a inarticulac~ao do canto dos passaros oposto a signi
  • 134. cac~ao da linguagem humana), o Renascimento, os seculos XVII e XVIII falavam de naturais ou de selvagens (isto e, seres da oresta), opondo assim a animalidade a humanidade. O termo primitivos e que triun-far a no seculo XIX, enquanto optamos preferencialmente na epoca atual pelo de subdesenvolvidos. Essa atitude, que consiste em expulsar da cultura, isto e, para a natureza to-dos aqueles que n~ao participam da faixa de humanidade a qual pertencemos e com a qual nos identi
  • 135. camos, e, como lembra Levi-Strauss, a mais comum 3Essa oscilac~ao entre dois polos concorrentes, mas ligados entre si por um movimento de p^endulo ininterrupto, pode ser encontrada n~ao apenas em uma mesma epoca, mas em um mesmo autor. Cf., por exemplo, Lery (1972) ou Buon (1984).
  • 136. 28 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: a toda a humanidade, e, em especial, a mais caracterstica dos selvagens.4 Entre os criterios utilizados a partir do seculo XIV pelos europeus para julgar se convem conferir aos ndios um estatuto humano, alem do criterio religioso do qual ja falamos, e que pede, na con
  • 137. gurac~ao na qual nos situamos, uma resposta negativa (sem religi~ao nenhuma, s~ao mais diabos), citaremos: a apar^encia fsica: eles est~ao nus ou vestidos de peles de animais; os comportamentos alimentares: eles comem carne crua, e e todo o imaginario do canibalismo que ira aqui se elaborar;5 a intelig^encia tal como pode ser apreendida a partir da linguagem: eles falam uma lngua ininteligvel. Assim, n~ao acreditando em Deus, n~ao tendo alma, n~ao tendo acesso a linguagem, sendo assustadoramente feio e alimentando-se como um animal, o selvagem e apreendido nos modos de um bestiario. E esse discurso so-bre a alteridade, que recorre constantemente a metafora zoologica, abre o grande leque das aus^encias: sem moral, sem religi~ao, sem lei, sem escrita, sem Estado, sem consci^encia, sem raz~ao, sem objetivo, sem arte, sem pas-sado, sem futuro.6 Cornelius de Pauw acrescentara ate, no seculo XVIII: sem barba, sem sobrancelhas, sem p^elos, sem espritosem ardor para com sua f^emea. E a grande gloria e a honra de nossos reis e dos espanhois, escreve Go-mara em sua Historia Geral dos ndios, ter feito aceitar aos ndios um unico Deus, uma unica fe e um unico batismo e ter tirado deles a idolatria, os sa-crif cios humanos, o canibalismo, a sodomia; e ainda outras grandes e maus pecados, que nosso bom Deus detesta e que pune. Da mesma forma, tiramos deles a poligamia, velho costume e prazer de todos esses homens sensuais; 4Assim, escreve Levi-Strauss (1961), Ocorrem curiosas situac~oes onde dois interlo-cutores d~ao-se cruelmente a replica. Nas Grandes Antilhas, alguns anos apos a descoberta da America, enquanto os espanhois enviavam comiss~oes de inquerito para pesquisar se os indgenas possuam ou n~ao uma alma, estes empenhavam-se em imergir brancos prisio-neiros a
  • 139. car, por uma observac~ao demorada, se seus cadaveres eram ou n~ao sujeitos a putrefac~ao 5Cf. especialmente Hans Staden, Veritable Histoire et Descriptiou d'un Pays Habite par des Hommes Sauvages, Nus. Feroces et Anthropo phages, 1557, reed. Paris, A. M. JVletailie, 1979. 6Essa falta pode ser apreendida atraves de duas variantes: I) n~ao t^em, irremediavel-mente, futuro e n~ao temos realmente nada a esperar dele (Hegel); 2) e possvel faz^e-los evoluir. Pela ac~ao missionaria (a partir seculo XVI). Assim como pela ac~ao administrativa
  • 140. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 29 mostramo-lhes o alfabeto sem o qual os homens s~ao como animais e o uso do ferro que e t~ao necessario ao homem. Tambem lhes mostramos varios bons habitos, artes, costumes policiados para poder melhor viver. Tudo isso { e ate cada uma dessas coisas { vale mais que as penas, as perolas, o ouro que tomamos deles, ainda mais porque n~ao utilizavam esses metais como moeda. As pessoas desse pas, por sua natureza, s~ao t~ao ociosas, viciosas, de pouco trabalho, melancolicas, covardes, sujas, de ma condic~ao, mentirosas, de mole const^ancia e
  • 141. rmeza (...). Nosso Senhor permitiu, para os grandes, abo-min aveis pecados dessas pessoas selvagens, rusticas e bestiais, que fossem atirados e banidos da superfcie da Terra. escreve na mesma epoca (1555) Oviedo em sua Historia das ndias. Opini~oes desse tipo s~ao inumeraveis, e passaram tranquilamente para nossa epoca. No seculo XIX, Stanley, em seu livro dedicado a pesquisa de Li-vingstone, compara os africanos aos macacos de um jardim zoologico, e convidamos o leitor a ler ou reler Franz Fanon (1968), que nos lembra o que foi o discurso colonial dos franceses na Argelia. Mais dois textos ir~ao deter mais demoradamente nossa atenc~ao, por nos pa-recerem muito reveladores desse pensamento que faz do selvagem o inverso do civilizado. S~ao as Pesquisas sobre os Americanos ou Relatos Interessantes para servir a Historia da Especie Humana, de Cornelius de Pauw, publicado em 1774, e a famosa Introduc~ao a Filoso
  • 142. a da Historia, de Hegel. 1) De Pauw nos prop~oe suas re ex~oes sobre os ndios da America do Norte. Sua convicc~ao e a de que sobre estes lllimos a in u^encia da natureza e total, ou mais precisamente negativa. Se essa raca inferior n~ao tem historia e esta pura sempre condenada, por seu estado degenerado, a permanecer fora do movimento da Historia, a raz~ao deve ser atribuda ao clima de uma extrema umidade: Deve existir, na organizac~ao dos americanos, uma causa qualquer que em-brutece sua sensibilidade e seu esprito. A qualidade do clima, a grosseria de seus humores, o vcio radical do sangue, a constituic~ao de seu tempera-mento excessivamente eumatico podem ter diminudo o tom e o saracoteio dos nervos desses homens embrutecidos. Eles t^em, prossegue Pauw, um temperamento t~ao umido quanto o ar e a terra onde vegetame que explica que eles n~ao tenham nenhum desejo se-xual. Em suma, s~ao infelizes que suportam todo o peso da vida agreste
  • 143. 30 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: na escurid~ao das orestas, parecem mais animais do que vegetais. Apos a degeneresc^encia ligada a um vcio de constituic~ao fsica, Pauw chega a de-grada c~ao moral. E a quinta parte do livro, cuja primeira sec~ao e intitulada: O g^enio embrutecido dos Americanos. A insensibilidade, escreve nosso autor, e neles um vcio de sua constituic~ao alterada; eles s~ao de uma preguica imperdoavel, n~ao inventam nada, n~ao em-preendem nada, e n~ao estendem a esfera de sua concepc~ao alem do que v^eem pusil^animes, covardes, irritados, sem nobreza de esprito, o des^animo e a falta absoluta daquilo que constitui o animal racional os tornam inuteis para si mesmos e para a sociedade. En
  • 144. m, os californianos vegetam mais do que vivem, e somos tentados a recusar-lhes uma alma. Essa separac~ao entre um estado de natureza concebido por Pauw como ir-remediavelmente imutavel, e o estado de civilizac~ao, pode ser visualizado num mapa mundi. No seculo XVIII, a enciclopedia efetua dois tracados: um longitudinal, que passa por Londres e Paris, situando de um lado a Europa, a Africa e a Asia, de outro a America, e um latitudinal dividindo o que se encontra ao norte e ao sul do equador. Mas, enquanto para Buon, a proxi-midade ou o afastamento da linha equatorial s~ao explicativos n~ao apenas da constituic~ao fsica mas do moral dos povos, o autor das Pesquisas Filoso
  • 145. cas sobre os Americanos escolhe claramente o criterio latitudinal, fundamento aos seus olhos da distribuic~ao da populac~ao mundial, distribuic~ao essa n~ao cultural e sim natural da civilizac~ao e da barbarie: A natureza tirou tudo de um hemisferio deste globo para da-lo ao outro. A diferenca entre um hemisferio e o outro (o Antigo e o Novo Mundo) e total, t~ao grande quanto poderia ser e quanto podemos imagina-la: de um lado, a humanidade, e de outro, a estupidez na qual vegetamesses seres indiferenciados: Igualmente barbaros, vivendo igualmente da caca e da pesca, em pases frios, estereis, cobertos de orestas, que desproporc~ao se queria imaginar entre eles? Onde se sente as mesmas necessidades, onde os meios de sa-tisfaz^ e-los s~ao os mesmos, onde as in u^encias do ar s~ao t~ao semelhantes, e possvel haver contradic~ao nos costumes ou variac~oes nas ideias? Pauw responde, evidentemente, de forma negativa. Os indgenas america-nos vivem em um estado de embrutecimentogeral. T~ao degenerados uns quanto os outros, seria em v~ao procurar entre eles variedades distintivas da-quilo que se pareceria com uma cultura e com uma historia.7 7Sobre C. de Pauw, cf. os trabalhos de M. Duchet (1971, 1985).
  • 146. 1.1. A FIGURA DO MAU SELVAGEM E DO BOM CIVILIZADO 31 2) Os julgamentos que acabamos de relatar { que est~ao, notamos, em ruptura com a ideologia dominante do seculo XVIII, da qual falaremos mais adiante, e em especial com o Discurso sobre a Desigualdade, de Rousseau, publicado vinte anos antes { por excessivos que sejam, apenas radicalizam ideias com-partilhadas por muitas pessoas nessa epoca. Ideias que ser~ao retomadas e expressas nos mesmos termos em 1830 por Hegel, o qual, em sua Introduc~ao a Filoso
  • 147. a da Historia, nos exp~oe o horror que ele ressente frente ao es-tado de natureza, que e o desses povos que jamais-ascender~ao a historiae a consci^encia de si. Na leitura dessa Introduc~ao, a America do Sul parece mais estupida ainda do que a do Norte. A Asia aparentemente n~ao esta muito melhor. Mas e a Africa, e, em especial, a Africa profunda do interior, onde a civilizac~ao nessa epoca ainda n~ao penetrou, que representa para o
  • 148. losofo a forma mais nitidamente inferior entre todas nessa infra-humanidade: E o pas do ouro, fechado sobre si mesmo, o pas da inf^ancia, que, alem do dia e da historia consciente, esta envolto na cor negra da noite. Tudo, na Africa, e nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os ne-gros n~ao respeitam nada, nem mesmo eles proprios, ja que comem carne humana e fazem comercio da carnede seus proximos. Vivendo em uma ferocidade bestial inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles n~ao t^em moral, nem instituic~oes sociais, religi~ao ou Estado.8 Pe-tri
  • 149. cados em uma desordem inexoravel, nada, nem mesmo as forcas da colo-niza c~ao, podera nunca preencher o fosso que os separa da Historia universal da humanidade. Na descric~ao dessa africanidade estagnante da qual n~ao ha absolutamente nada a esperar { e que ocupa rigorosamente em Hegel o lugar destinado a indianidade em Pauw { , o autor da Fenomenologia do Esprito vai, vale a pena notar, mais longe que o autor das Pesquisas Filoso
  • 150. cas sobre os Ameri-canos. O negronem mesmo se v^e atribuir o estatuto de vegetal. Ele cai, escreve Hegel, para o nvel de uma coisa, de um objeto sem valor. 8O fato de devorar homens corresponde ao princpio africano.Ou ainda: S~ao os seres mais atrozes que tenha no mundo, seu semelhante e para eles apenas uma carne como qualquer outra, suas guerras s~ao feroze: e sua religi~ao pura superstic~ao.
  • 151. 32 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: 1.2 A Figura Do Bom Selvagem E Do Mau Civilizado A
  • 152. gura de uma natureza ma na qual vegeta um selvagem embrutecido e emi-nentemente suscetvel de se transformar em seu oposto: a da boa natureza dispensando suas benfeitorias a um selvagem feliz. Os termos da atribuic~ao permanecem, como veremos, rigorosamente id^enticos, da mesma forma que o par constitudo pelo sujeito do discurso (o civilizado) e seu objeto (o natu-ral). Mas efetua-se dessa vez a invers~ao daquilo que era apreendido como um vazio que se torna um cheio (ou plenitude), daquilo que era apreendido como um menos que se torna um mais. O carater privativo dessas sociedades sem escrita, sem tecnologia, sem economia, sem religi~ao organizada, sem clero, sem sacerdotes, sem polcia, sem leis, sem Estado {acrescentar-se-a no seculo XX sem Complexo de Edipo { n~ao constitui uma desvantagem. O selvagem n~ao e quem pensamos. Evidentemente, essa representac~ao concorrente (mas que consiste apenas em inverter a atribuic~ao de signi
  • 153. cac~oes e valores dentro de uma estrutura id^entica) permanece ainda bastante rgida na epoca na qual o Ocidente desco-bre povos ainda desconhecidos. A
  • 154. gura do bom selvagem so encontrara sua formulac~ao mais sistematica e mais radical dois seculos apos o Renascimento: no rousseausmo do seculo XVIII, e, em seguida, no Romantismo. N~ao deixa porem de estar presente, pelo menos em estado embrionario, na percepc~ao que t^em os primeiros viajantes. Americo Vespucio descobre a America: As pessoas est~ao nuas, s~ao bonitas, de pele escura, de corpo elegante. . . Nenhum possui qualquer coisa que seja, pois tudo e colocado em comum. E os homens tomam por mulheres aquelas que lhes agradam, sejam elas sua m~ae, sua irm~a, ou sua amiga, entre as quais eles n~ao fazem diferenca. . . Eles vivem cinquenta anos. E n~ao t^em governo. Cristov~ao Colombo, aportando no Caribe, descobre, ele tambem o paraso; Eles s~ao muito mansos e ignorantes do que e o mal, eles n~ao sabem se matar uns aos outros (...) Eu n~ao penso que haja no mundo homens melho-res, como tambem n~ao ha terra melhor. Toda a re ex~ao de Lery e de Montaigne no seculo XVI sobre os naturaisbaseia-se sobre o tema da noc~ao de crueldade respectiva de uns e outros, e, pela primeira vez, instaura-se uma crtica da civilizac~ao e um elogio da ingenui-
  • 155. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 33 dade originaldo estado de natureza. Lery, entre os Tupinambas, interroga-se sobre o que se passa aquem, isto e, na Europa. Ele escreve, a respeito de nossos grandes usurarios: Eles s~ao mais crueis do que os selvagens dos quais estou falando. E Montaigne, sobre esses ultimos: Podemos portanto de fato chama-los de barbaros quanto as regras da raz~ao, mas n~ao quanto a nos mesmos que os superamos em toda sorte de barbarie. Para o autor dos Ensaios, esse estado paradisaco que teria sido o nosso outrora, talvez esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei ate o encontrou. Esse fascnio exercido pelo indgena americano, e em especial por le Hu-ron, 9protegido da civilizac~ao e que nos convida a reencontrar o universo ca-loroso da natureza, triunfa nos seculos XVII e XVIII. Nas primeiras Relac~oes dos jesutas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: Eles s~ao afaveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que frequentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre nos. Seu ideal: viver em comum sem processo, contentar-se de pouco sem avareza, ser assduo no trabalho. Do lado dos livres-pensadores, e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris~oes e sem torturas passam a vida na docura, na tranquilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses. Essa admirac~ao n~ao e compartilhada apenas pelos navegadores estupefa-tos. 10 O selvagem ingressa progressivamente na
  • 156. loso
  • 157. a { os pensadores 9Um dos primeiros textos sobre os Hurons e publicado em 1632: Le Grand Vayage au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux Voyages du Baron de La Hontan ou ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1'Auteur et un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Americains, de La
  • 158. tau; em 1767, Vlngenu, de Vol-taire.. Notemos que de cada populac~ao encontrada nasce um estereotipo. Se o discurso euro-peu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, refer^encia a crueldade, o discurso sobre os Esquimos a sua hospitalidade, estes ultimos n~ao hesitando em oferecer suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente e sem duvida predominante em grande parte na literatura sobre os ndios. 10No seculo XVIII, um marinheiro franc^es escreve em seu diario de viagem: A inoc^encia e a tranquilidade esta entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n~ao trocariam essa vida e seu pas por qualquer coisa no mundo(comentarios relatados por ). P. Duviols, 1978).
  • 159. 34 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: das Lumieresu 11{ , mas tambem nos sal~oes literarios e nos teatros parisien-ses. Em 1721, e montado um espetaculo intitulado O Arlequim Selvagem. 0 personagem de um Huron trazido para Paris declama no palco: Voc^es s~ao loucos, pois procuram com muito empenho uma in
  • 160. nidade de coisas inuteis; voc^es s~ao pobres, pois limitam seus bens ao dinheiro, em vez de simplesmente gozar da criac~ao, como nos, que n~ao queremos nada a
  • 161. m de desfrutar mais livremente de tudo. E a epoca em que todos querem ver os Indes Galantes que Rameau aca-bou de escrever, a epoca em que se exibem nas feiras verdadeiros selvagens. Manifestac~oes essas que constituem uma verdadeira acusac~ao contra a civi-liza c~ao. Depois, o fascnio pelos ndios sera substitudo progressivamente, a partir do
  • 162. m do seculo XVIII, pelo charme e prazer idlico que provoca o encanto das paisagens e dos habitantes dos mares do sul, dos arquipelagos polinesios, em especial Samoa, as ilhas Marquises, a ilha de Pascoa, e so-bretudo o Taiti. Aqui esta, por exemplo, o que escreve Bougainville em sua Viagem ao Redor do Mundo (reed. 1980): Seja dia ou noite, as casas est~ao abertas. Cada um colhe as frutas na primeira arvore que encontra, ou na casa onde entra. . . Aqui um doce ocio e compartilhado pelas mulheres, e o empenho em agradar e sua mais preciosa ocupac~ao. . . Quase todas aquelas ninfas estavam nuas. . . As mulheres pareciam n~ao querer aquilo que elas mais desejavam. . . Tudo lembra a cada instante as docuras do amor, tudo incita ao abandono. Todos os discursos que acabamos de citar, e especialmente, os que exal-tam a docura das sociedades selvagens, e, correlativamente fustigam tudo que pertence ao Ocidente ainda s~ao atuais. Se n~ao o fossem, n~ao nos seriam diretamente acessveis, n~ao nos tocariam mais nada. Ora, e precisamente a esse imaginario da viagem, a esse desejo de fazer existir em um alhuresuma sociedade de prazer e de saudade, em suma, uma humanidade convivial cujas virtudes se estendam a magni
  • 163. c^encia da fauna e da ora (Chateau-briand, Segalen, Conrad, Melville. . .), que a etnologia deve grande parte de seu sucesso com o publico. O tema desses povos que podem eventualmente nos ensinar a viver e dar 11Condillac escreve: Nos que nos consideramos instrudos, precisaramos ir entre os povos mais ignorantes, para aprender destes o comeco de nossas descobertas: pois e so-bretudo desse comeco que precisaramos: ignoramo-lo porque deixamos ha tempo de ser os discpulos da natureza
  • 164. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 35 ao Ocidente mortfero lic~oes de grandeza, como acabamos de ver, n~ao e novi-dade. Mas grande parte do publico esta in
  • 165. nitamente mais disponvel agora do que antes para se deixar persuadir que as sociedades constrangedoras da abstrac~ao, do calculo e da impessoalidade das relac~oes humanas, op~oem-se sociedades de solidariedade comunitaria, abrigadas na suntuosidade de uma natureza generosa. A decepc~ao ligada aos benefciosdo progresso (nos quais muitos entre nos acreditam cada vez menos) bem como a solid~ao e o ano-nimato do nosso ambiente de vida, fazem com que parte de nossos sonhos so aspirem a se projetar nesses paraso (perdido) dos tropicos ou dos mares do Sul, que o Ocidente teria substitudo pelo inferno da sociedade tecnologica. Mas convem, a meu ver, ir mais longe. O etnologo, como o militar, e recru-tado no civil. Ele compartilha com os que pertencem a mesma cultura que a sua, as mesmas insatisfac~oes,-angustias, desejos. Se essa busca do Ultimo dos Moicanos, essa etnologia do selvagem do tipo vento dos coqueiros(que e na realidade uma etnologia selvagem) contribui para a popularidade de nossa disciplina, ela esta presente nas motivac~oes dos proprios etnologos. Mali-nowski tera a franqueza de escrever e sera muito criticado por isso: Um dos refugios fora dessa pris~ao mec^anica da cultura e o estudo das for-mas primitivas da vida humana, tais como existem ainda nas sociedades longnquas do globo. A antropologia, para mim, pelo menos, era uma fuga rom^antica para longe de nossa cultura uniformizada. Ora, essa nostalgia do neoltico, de que fala Alfred Metraux e que es-teve na origem de sua propria vocac~ao de Ctnologo, e encontrada em muitos autores, especialmente nas descric~oes de populac~oes preservadas do contato corruptor com o mundo moderno, vivendo na harmonia e na transpar^encia. O quali
  • 166. cativo que fez sucesso para designar o estado dessas sociedades, que s~ao caracterizadas pela riqueza das trocas simbolicas, foi certamente o de aut^entico(oposto a alienac~ao das sociedades industriais adiantadas), termo proposto por Sapir em 1925, e que e erroneamente atribudo a Levi-Strauss. * * * A imagem que o ocidental se fez da alteridade (e correlativamente de si mesmo) n~ao parou, portanto, de oscilar entre os polos de um verdadeiro movimento pendular. Pensou-se alternadamente que o selvagem: era um monstro, um animal com
  • 167. gura humana(Lery), a meio cami-nho entre a animalidade e a humanidade mas tambem que os monstros
  • 168. 36 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA: eramos nos, sendo que ele tinha lic~oes de humanidade a nos dar; levava uma exist^encia infeliz e miseravel, ou, pelo contrario, vivia num estado de beatitude, adquirindo sem esforcos os produtos maravilhosos da natureza, enquanto que o Ocidente era, por sua vez, obrigado a assumir as duras tarefas da industria; era trabalhador e corajoso, ou essencialmente pre guicoso; n~ao tinha alma e n~ao acreditava em nenhum deus, ou era profunda-mente religioso; vivia num eterno pavor do sobrenatural, ou, ao inverso, na paz e na harmonia era um anarquista sempre pronto a massacrar seus semelhantes, ou um comunista decidido a tudo compartilhar, ate e inclusive suas proprias mulheres; era admiravelmente bonito, ou feio; era movido por uma impulsividade criminalmente cong^enita quando era legtimo temer, ou devia ser considerado como uma crianca precisando de protec~ao; era um embrutecido sexual levando uma vida de orgia e devassid~ao permanente, ou, pelo contrario, um ser preso, obedecendo estritamente aos tabus e as proibic~oes de seu grupo; era atrasado, estupido e de uma simplicidade brutal, ou profundamente virtuoso e eminentemente complexo; era um animal, um vegetal(de Pauw), uma coisa, um objeto sem valor(Hegel), ou participava, pelo contrario, de uma humanidade da qual tinha tudo como aprender. Tais s~ao as diferentes construc~oes em presenca (nas quais a repuls~ao se trans-forma rapidamente em fascnio) dessa alteridade fantasmatica que n~ao tem muita relac~ao com a realidade. O outro { o ndio, o taitiano, mas recente-mente o basco ou o bret~ao{ e simplesmente utilizado como suporte de um imaginario cujo lugar de refer^encia nunca e a America, Taiti, o Pas Basco ou a Bretanha. S~ao objetos-pretextos que podem ser mobilizados tanto com vistas a explorac~ao econ^omica, quanto ao militarismo poltico, a convers~ao religiosa ou a emoc~ao estetica. Mas, em todos os casos, o outro n~ao e consi-derado para si mesmo. Mal se olha para ele. Olha-se a si mesmo nele.
  • 169. 1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO 37 Voltemos ao nosso ponto de partida: o Renascimento. Seria em v~ao, tal-vez anacr^onico, descobrir nele o que poderia aparentar-se a um pensamento etnologico, t~ao problematico, como acabamos de observar, ainda no
  • 170. nal do seculo XX. N~ao basta viajar e surpreender-se com o que se v^e para tornar-se etnologo (n~ao basta mesmo ter numerosos anos de campo, como se diz hoje). Porem, numerosos viajantes nessa epoca colocam problemas (o que n~ao signi
  • 171. ca uma problematica) aos quais sera necessariamente confrontado qualquer antropologo. Eles abrem o caminho daquilo que laboriosamente ira se tornar a etnologia. Jean de Lery, entre os indgenas brasileiros, pergunta-se: e preciso rejeita-los fora da humanidade? Considera-los como virtualida-des de crist~aos? Ou questionar a vis~ao que temos da propria humanidade, isto e, reconhecer que a cultura e plural? Atraves de muitas contradic~oes (a oscilac~ao permanente entre a convers~ao e o olhar, os objetivos teologicos e os que poderamos chamar de etnogra
  • 172. cos, o ponto de vista normativo e o ponto de vista narrativo), o autor da Viagem n~ao tem resposta. Mas as quest~oes (e para o que nos interessa aqui, mas especi
  • 173. camente a ultima) est~ao no en-tanto implicitamente colocadas. Montaigne (hoje as vezes criticado), mesmo se o que o preocupa e menos a humanidade dos ndios do que a inumanidade dos europeus, seguindo nisso Lery que transporta para o Novo Mundoos con itos do antigo, comeca a introduzir a duvida no edifcio do pensamento europeu. Ele testemunha o desmoronamento possvel deste pensamento, me-nos inclusive ao pronunciar a condenac~ao da civilizac~ao do que ao considerar que a selvagerian~ao e nem inferior nem superior, e sim diferente. Assim, essa epoca, muito timidamente, e verdade, e por alguns apenas de seus espritos os menos ortodoxos, a partir da observac~ao direta de um ob-jeto distante (Lery) e da re ex~ao a dist^ancia sobre este objeto (Montaigne), permite a constituic~ao progressiva, n~ao de um saber antropologico, muito me-nos de uma ci^encia antropologica, mas sim de um saber pre-antropologico.
  • 174. 38 CAPITULO 1. A PRE-HIST ORIA DA ANTROPOLOGIA:
  • 175. Captulo 2 O Seculo XVIII: a invenc~ao do conceito de homem Se durante o Renascimento esbocou-se, com a explorac~ao geogra
  • 176. ca de conti-nentes desconhecidos, a primeira interrogac~ao sobre a exist^encia multipla do homem, essa interrogac~ao fechou-se muito rapidamente no seculo seguinte, no qual a evid^encia do cogito, fundador da ordem do pensamento classico, exclui da raz~ao o louco, a crianca, o selvagem, enquanto
  • 177. guras da anorma-lidade. Sera preciso esperar o seculo XVIII para que se constitua o projeto de fun-dar uma ci^encia do homem, isto e, de um saber n~ao mais exclusivamente especulaivo, e sim positivo sobre o homem. Enquanto encontramos no seculo XVI elementos que permitem compreender a pre-historia da antropologia, en-quanto o seculo XVII (cujos discursos n~ao nos s~ao mais diretamente acessveis hoje) interrompe nitidamente essa evoluc~ao, apenas no seculo XVIII e que entramos verdadeiramente, como mostrou Michel Foucault (1966), na mo-dernidade. Apenas nessa epoca, e n~ao antes, e que se pode apreender as condic~oes historicas, culturais e epistemologicas de possibilidade daquilo que vai se tornar a antropologia. Antes do
  • 178. nal do seculo XVIII, escreve Fou-cauilt, o homem n~ao existia. Como tambem o poder du vida, a fecundidade do trabalho ou a densidade historica da linguagem. E uma criatura muito recente que o demiurgo do sa-ber fabricou com suas proprias m~aos, ha menos de duzentos anos (...) Uma coisa em todo caso e certa, o homem n~ao e o mais antigo problema, nem o mais constante que tenha sido colocado ao saber humano. O homem e uma invenc~ao e a arqueologia de nosso pensamento mostra o quanto e recente. E, acrescenta Foucault no
  • 179. nal de As Palavras e as Coisas, qu~ao proximo 39
  • 180. 40 CAPITULO 2. O SECULO XVIII: talvez seja o seu
  • 181. m. O projeto antropologico (e n~ao a realizac~ao da antropologia como a enten-demos hoje) sup~oe: 1) a construc~ao de um certo numero de conceitos, comecando pelo proprio conceito de homem, n~ao apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do saber; abordagem totalmente inedita, ja que consiste em introduzir dualidade caracterstica das ci^encias exatas (o sujeito observante e o objeto observado) no corac~ao do proprio homem; 2) a constituic~ao de um saber que n~ao seja apenas de re ex~ao, e sim de observac~ao, isto e, de um novo modo de acesso ao homem, que passa a ser considerado em sua exist^encia concreta, envolvida nas determinac~oes de seu organismo, de suas relac~oes de produc~ao, de sua linguagem, de suas insti-tui c~oes, de seus comportamentos. Assim comeca a constituic~ao dessa posi-tividade de um saber emprico (e n~ao mais transcendental) sobre o homem enquanto ser vivo (biologia), que trabalha (economia), pensa (psicologia) e fala (lingustica). . . Montesquieu, em O Esprito das Leis (1748), ao mos-trar a relac~ao de interdepend^encia que e a dos fen^omenos sociais, abriu o caminho para Saint-Simon que foi o primeiro (no seculo seguinte) a falar em uma ci^encia da sociedade. Da mesma forma, antes dessa epoca, a lin-guagem, quando tomada em considerac~ao, era objeto de
  • 182. loso
  • 183. a ou exegese. Tornou-se paulatinamente (com de Brosses, Rousseau) o objeto espec
  • 184. co de um saber cient
  • 185. co (ou, pelo menos, de vocac~ao cient
  • 186. ca); 3) uma problematica essencial: a da diferenca. Rompendo com a convicc~ao de uma transpar^encia imediata do cogito, coloca-se pela primeira vez no seculo XVIII a quest~ao da relac~ao ao impensado, bem como a dos possveis processos de reapropriac~ao dos nossos condicionamentos
  • 187. siologicos, das nos-sas relac~oes de produc~ao, dos nossos sistema de organizac~ao social. Assim, inicia-se uma ruptura com o pensamento do mesmo, e a constituic~ao da ideia de que a linguagem nos precede, pois somos antes exteriores a ela. Ora, tais re ex~oes sobre os limites do saber, assim como sobre as relac~oes de sentido e poder (que anunciam o
  • 188. m da metafsica) eram inimaginaveis antes. A sociedade do seculo XVIII vive uma crise da identidade do humanismo e da consci^encia europeia. Parte de suas elites busca suas refer^encias em um con-fronto com o distante. Em 1724, ao publicar Os Costumes dos Selvagens Americanos Compara-dos aos Costumes dos Primeiros Tempos, La
  • 189. tau se da por objetivo o de
  • 190. 41 fundar uma ci^encia dos costumes e habitos, que, alem da conting^encia dos fatos particulares, podera servir de comparac~ao entre varias formas de hu-manidade. Em 1801, Jean Itard escreve Da Educac~ao do Jovem Selvagem do Aveyron. Ele se interroga sobre a comum humanidade a qual pertencem o homem da civilizac~ao em que nos transportamos e o homem da natureza, a crianca-lobo.1 Mas foi Rousseau quem tracou, em seu Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, o programa que se tornara o da etnologia classica, no seu campo tematico2 tanto quanto na sua abordagem: a induc~ao de que falaremos agora; 4) um metodo de observac~ao e analise: o metodo indutivo. Os grupos sociais (que comecam a ser comparados a organismos vivos, podem ser considerados como sistemas naturaisque devem ser estudados empiricamente, a partir du observac~ao de fatos, a
  • 191. m de extrair princpios gerais, que hoje chamaramos de leis. Esse naturalismo, que consiste numa emancipac~ao de
  • 192. nitiva em relac~ao ao pensamento teologico, imp~oe-se em especial na Inglaterra,3 com Adam Smith e, antes dele, David Hume, que escreve em 1739 seu Tratado sobre a Natureza Humana, cujo ttulo completo e: Tratado sobre a natureza Humana: tenta-tiva de introduc~ao de um metodo experimental de raciocnio para o estudo de assuntos de moral. Os
  • 193. losofos ingleses colocam as premissas de todas as pesquisas que procurar~ao fundar, no seculo XVIII, uma moral natural, um direito natural, ou ainda uma religi~ao natural. * * * Esse projeto de um conhecimento positivo do homem { isto e, de um estudo de sua exist^encia emprica considerada por sua vez como objeto do saber { constitui um evento consideravel na historia da humanidade. Um evento que se deu no Ocidente no seculo XVIII, que, evidentemente, n~ao ocorreu da noite para o dia, mas que terminou impondo-se ja que se tornou de
  • 195. lme de Francois Truaut, VEnfant Sauvage (1970), e o livro de Lucien Malson que the serviu de base. 2Rousseau estabelece a lista das regi~oes devedoras de viagens
  • 196. loso
  • 197. cas: o mundo inteiro menos a Europa ocidental. 3A precocidade e preemin^encia, no pensamento ingl^es, do empirismo em relac~ao ao pensamento franc^es, caracterizado antes pelo racionalismo (e idealismo), podem a meu ver explicar em parte o crescimento rapido (no comeco do seculo XX) da antropologia brit^anica e o atraso da antropologia francesa.
  • 198. 42 CAPITULO 2. O SECULO XVIII: constitutivo da modernidade na qual, a partir dessa epoca, entramos. A
  • 199. m de avaliar melhor a natureza dessa verdadeira revoluc~ao do pensamento { que instaura uma ruptura tanto com o humanismodo Renascimento como com o racionalismodo seculo classico {, examinemos de mais perto o que mudou radicalmente desde o seculo XVI. 1)Trata-se em primeiro lugar da natureza dos objetos observados. Os relatos dos viajantes dos seculos XVI e XVII eram mais uma busca cosmogra
  • 200. ca do que uma pesquisa etnogra
  • 201. ca. Afora algumas incurs~oes tmidas para area das inclinac~oese dos costumes,4o objeto de observac~ao, nessa epoca era mais o ceu, a terra, a fauna e a ora, do que o homem em si, e, quando se tratava deste, era essencialmente o homem fsico que era tomado em considerac~ao. Ora, o seculo XVIII traca o primeiro esboco daquilo que se tornara uma antropologia social e cultural, constituindo-se inclusive, ao mesmo tempo, tomando como modelo a antropologia fsica, e instaurando uma ruptura do monopolio desta (especialmente na Franca). 2) Simultaneamente, o destaque se desloca pouco a pouco do objeto de estudo para a atividade epistemologica, que se torna cada vez mais organizada. Os viajantes dos seculos XVI e XVII coletavam curiosidades. Espritos curio-sos reuniam colec~oes que iam formar os famosos gabinetes de curiosidades, ancestrais dos nossos museus contempor^aneos. No seculo XVIII, a quest~ao e: como coletar? E como dominar em seguida o que foi coletado? Com a Historia Geral das Viagens, do padre Prevost (1746), passa-se da coleta dos materiais para a colec~ao das coletas. N~ao basta mais observar, e preciso pro-cessar a observac~ao. N~ao basta mais interpretar o que e observado, e preciso interpretar interpretac~oes.5 E e desse desdobramento, isto e, desse discurso, que vai justamente brotar uma atividade de organizac~ao e elaborac~ao. Em 1789, Chavane, o primeiro, dara a essa atividade um nome. Ele a chamara: a etnologia. * * * Finalmente, e no seculo XVIII que se forma o par do viajante e do
  • 202. losofo: o viajante: Bougainville, Maupertuis, La Condamine, Cook, La Perouse. . realizando o que e chamado na epoca de viagens
  • 203. loso
  • 204. cas, precursoras das 4Cf. em especial UHistoire Naturetle et Morale des Indes, de Acosta (1591), ou o questionario que Beauvilliers envia aos intendentes em 1697 para obter informac~oes sobre o estado das mentalidades populares no reino. 5Cf sobre isso G. Leclerc. 1979
  • 207. losofo Buon, Voltaire, Rous-seau, Diderot (cf. em especial o seu Suplemento a Viagem de Bougainville) esclarecendocom suas re ex~oes as observac~oes trazidas pelo viajante. Mas esse par n~ao tem realmente nada de idlico. Que pena, pensa Rous-seau, que os viajantes n~ao sejam
  • 208. losofos! Bougainville retruca (em 1771 em sua Viagem ao Redor do Mundo): que pena que os
  • 209. losofos n~ao sejam viajantes!6 Para o primeiro, bem como para todos os
  • 210. losofos naturalistas do seculo das luzes, se e essencial observar, e preciso ainda que a observac~ao seja esclarecida. Uma prioridade e portanto conferida ao observador, sujeito que, para apreender corretamente seu objeto, deve possuir um certo numero de qualidades. E e assim que se constitui, na passagem do seculo XVIII para o seculo XIX, a Sociedade dos Observadores do Homem (1799-1805), formada pelos ent~ao chamados ideologos, que s~ao moralistas,
  • 212. nem muito claramente o que deve ser o campo da nova area de saber (o homem nos seus aspectos fsicos, psquicos, sociais, culturais) e quais devem ser suas exig^encias epistemologicas. As Considerac~oes sobre os Diversos Metodos a Seguir na Observac~ao dos Povos Selvagens, de De Gerando (1800) s~ao, quanto a isso, exemplares. Pri-meira metodologia da viagem, destinada aos pesquisadores de uma miss~ao nas Terras Austrais, esse texto e uma crtica da observac~ao selvagem do selvagem, que procura orientar o olhar do observador. O cientista naturalista deve ser ele proprio testemunha ocular do que observa, pois a nova ci^encia { quali
  • 213. cada de ci^encia do homemou ci^encia natural-- e uma ci^encia de observac~ao, devendo o observador participar da propria exist^encia dos gru-pos sociais observados.7 6Rousseau: Suponhamos um Montesquieu, um Buon, um Diderot, um d'Alembert, um Condillac, ou homens de igual capacidade, viajando para instruir seus compatriotas, observando como sabem faz^e-lo a Turquia, o Egito, a Barbaria. . . Suponhamos que esses novos Hercules, de volta de suas andancas memoraveis,
  • 214. zessem a seguir a historia natural, moral e poltica do que teriam visto, veramos nascer de seus escritos um mundo novo, e aprenderamos assim a conhecer o nosso. Bougainville: Sou viajante e marinheiro, isto e, um mentiroso e um imbecil aos olhos dessa classe de escritores preguicosos e soberbos que, na sombra de seu gabinete,
  • 216. m sobre o mundo e seus habitantes, e submetem imperiosamente a natureza a suas imaginac~oes. Modos bastante singulares e inconcebveis da parte de pessoas que, n~ao tendo observado nada por si proprias, so escrevem e dogmatizam a partir de observac~oes tomadas desses mesmos viajantes aos quais recusam a faculdade de ver e pensar. 7Estamos longe de Montaigne, que se contenta em acreditar nas palavras de um homem simples e rude, um huguenote que esteve no Brasil, a respeito dos ndios entre os quais esteve.
  • 217. 44 CAPITULO 2. O SECULO XVIII: Porem, o projeto de De Gerando n~ao foi aplicado por aqueles a que se des-tinava diretamente, e n~ao sera, por muito tempo ainda, levado em conta.8 Se esse programa que consiste em ligar uma re ex~ao organizada a uma ob-serva c~ao sistematica, n~ao apenas do homem fsico, mas tambem do homem social e cultural, n~ao p^ode ser realizado, e porque a epoca ainda n~ao o per-mitia. O
  • 218. nal do seculo XVIII teve um papel essencial na elaborac~ao dos fundamentos de uma ci^encia humana. N~ao podia ir mais longe, e n~ao po-der amos credita-lo aquilo que so sera possvel um seculo depois. Mais especi
  • 219. camente, o obstaculo maior ao advento de uma antropologia cient
  • 220. ca, no sentido no qual a entendemos hoje, esta ligado, ao meu ver, a dois motivos essenciais. 1) A distinc~ao entre o saber cient
  • 221. co e o saber
  • 222. loso