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ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
                           ISSN - 0100-3437




                               Publicação do
                      Círculo Brasileiro de Psicanálise

                            Julho/2010 – Aracaju-Se
                                  Número 33




Estudos de Psicanálise	   Aracaju-Se    N. 33	        P. 13 - 158   Julho / 2010
Indexada em:
                             CLASE (UNAM – México)
                IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br

       CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
      ANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia

           Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas
           da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP




Ficha Catalográfica


  	     ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Aracaju. Círculo Brasileiro de Psicanálise,
  n. 33, jul., 2010. 158 p.

  	       Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm




  	       1. Psicanálise – periódicos
Revista Estudos de Psicanálise
           EDITORES DA REVISTA
             Déborah Pimentel (CPS)
             Ricardo Azevedo Barreto (CPS)

           CONSELHO CONSULTIVO
             Anchyses Jobim Lopes (CBP/RJ)
             Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG)
             Carlos Pinto Corrêa (CPB)
             Cibele Prado Barbieri (CPB)
             Fernando Cesar Bezerra de Andrade (SPP)
             Isabela Santoro Campanário (CPMG)
             Luis Martinho Ferreira Maia (SPP)
             Marcelo Wanderley Bouwman (CPP)
             Noeli Reck Maggi (CPRS)
             Philippe Bessoles (Paris 7 - França)
             Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP/RJ)

           CONSELHO EDITORIAL
             Cecília Tereza Nascimento Rodrigues (CPS)
             Déborah Pimentel (CPS)
             Maria das Graças Araújo (CPS)
             Patrícia Aranda Garcia de Souza (CPS)
             Ricardo Azevedo Barreto (CPS)

           CAPA
             Trabalho em tapeçaria
             Título: Fim de sessão
             Maria Aparecida Nascimento Dias
             Psicóloga - Psicoterapia infantil
             Imagem cedida pela autora
           FOTOGRAFIA:
             Sérgio Silva

           ENDEREÇO DA REDAÇÃO
             Praça Tobias Barreto, nº 510 - São José
             Ed. Centro Médico Odontológico,
             12º andar, sala 1208
             CEP: 49015-130 Aracaju - Se
             cbp_br@ig.com.br
             www.cbp.org.br

           PROJETO GRÁFICO
             Valdinei do Carmo

           EDITORAÇÃO DE TEXTO E IMAGEM
             Antônio Almeida

           REVISÃO
             José Araújo Filho (UFS) - Português
             Fernanda Gurgel Raposo - Inglês
Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP

                      DIRETORIA

                       Presidente
                    Déborah Pimentel
                     Vice-presidente
                     Cleo Malmann
                    Primeira Secretária
              Patrícia Aranda Garcia de Souza
                  Segunda Secretária
                 Maria das Graças Araújo
                    Primeira Tesoureira
           Cecília Tereza Nascimento Rodrigues
                    Segunda Tesoureira
              Patrícia Aranda Garcia de Souza
                  Editores da Revista
       Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto
     Consultoria Administrativa e Diretoria Científica
                   Carlos Pinto Corrêa
                  Cibele Prado Barbieri
             Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
                  Anchyses Jobim Lopes
             Revista Eletrônica e home-page
                  Cibele Prado Barbieri
          Representante junto à Articulação das
           Entidades Psicanalíticas Brasileiras
                 Anchyses Jobim Lopes
Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP

                         INSTITUIÇÕES FILIADAS

  Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro - CBP/RJ
  Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 - Copacabana
  CEP: 20050-002 - Rio de Janeiro - RJ
  Tel: (21) 2236 0655 Fax: (21) 2236 0279
  E-mail: cbp.rj@terra.com.br
  Site: www.cbp-rj.com.br

  Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB
  Av. Adhemar de Barros, 1156/101, Ed. Máster Center - Ondina
  CEP: 40170-110 - Salvador - Ba
  Tel /Fax: () 3245 6015
  E-mail: circulopsi.ba@veloxmail.com.br
  Site: www.circulopsibahia.org.br

  Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
  R: Maranhão, 734/3º andar - Santa Efigênia
  CEP: 30150-330 - Belo Horizonte - MG
  Tel: (31) 3223 6115 Fax: (31) 3287 1170
  E-mail: cpmg@cpmg.org.br
  Site: www.cpmg.org.br

  Círculo Psicanalítico de Pernambuco - CPP
  R: Desembargador Martins Pereira, 165 - Rosarinho
  CEP: 52050-220 - Recife - Pe
  Tel: (81) 3242 2352 Fax: (81) 3242 2353
  E-mail: circulopsicanaliticope@yahoo.com.br
  Site: www.circulopsicanaliticope.com.br

  Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul - CPRS
  R: Senhor dos Passos, 235 / 1001 - Centro
  CEP: 90020-180 - Porto Alegre - RS
  Tel/Fax: (51) 3221 3292
  E-mail: circulopsicanaliticors@gmail.com
  Site: www.cbp.org.br/cprs

  Círculo Psicanalítico de Sergipe - CPS
  Praça Tobias Barreto, 510/1208 - São José Ed. Centro Médico Odontológico
  CEP: 49015-130 - Aracaju - Se
  Tel: (79) 3211 2055
  E-mail: cps@infonet.com.br
  Site: www.circulopsicanalitico-se.com.br

  Sociedade Psicanalítica da Paraíba - SPP
  Av. Presidente Epitácio Pessoa, 753 sl.803/804 - Bairro dos Estados
  Ed. Central Parque
  CEP: 58030-000 - João Pessoa - Pb
  Tel/Fax: (83) 3247 4025
  E-mail: sppb@uol.com.br
  Site: www.sppb.com.br
Sumário        11	
               13	
                     Editorial

                     Psicopatia da vida cotidiana
          	          Psychopath of everyday life
          	          Déborah Pimentel

               21	   O ofício – quase impossível - do psicanalista
          	          The job – almost impossible - of the psychoanalyst
           	         Anchyses Jobim Lopes

               33	   Casa da árvore, um lugar para brincar e conversar:
          	          uma proposta de atendimento coletivo para crianças
          	          de zero a doze anos em comunidades carentes do Rio 		
          	          de Janeiro e Niterói
          	          Casa da Árvore, a place for talking and playing: a 		
          	          collective treatment proposal for children from 0 to 12 		
          	          years old in destitute communities in the cities of Rio de 		
          	          Janeiro and Niterói
          	          Beatriz de Souza Lima

               49	   O nome do pai e o laço social no Grande Sertão: 		
          	          Veredas
          	          The Name of the Father and the social bonds in “Grande 		
          	          Sertão: Veredas”
          	          Eliana Rodrigues Pereira Mendes

               55	   Questões sobre a psicopatologia do amor quotidiano
          	          Questions about the psychopathology of everyday love
          	          Isabela Santoro Campanário

               61	   Mídia e o espelho da masculinidade?
          	          The media and the mirror of masculinity?
          	          Júlio César Diniz Hoenisch
          	          Carlos da Silva Cirino

               75	   Nachträglichkeit: leituras sobre o tempo na 			
          	          metapsicologia e na clínica
          	          Nachträglichkeit: readings about time in
          	          metapsychology and clinic
          	          Luis Maia
          	          Fernando Cézar Bezerra de Andrade

               91	   O escorpião e o sapo: o quê da perversão
          	          The scorpion and the frog: the point of perversion
          	          Maria Beatriz Jacques Ramos

          101	       Das origens da sexualidade feminina ao feminino nas 	
          	          origens da psicossexualidade humana
          	          From the feminine sexuality to the feminine into the 		
          	          human psychosexuality origin
          	          Maria das Mêrces Maia Muribeca
109	   A clínica do traumatismo sexual: mediação e 		
	      desengajamento do traumático
	      The clinic of sexual trauma: mediation and trauma 		
	      disengagement
	      Philippe Bessoles
	      Marilúcia Lago

117	   O que será: indagações da paixão
	      What will it be: investigations of passion
	      Miriam Elza Gorender

125	   A patologização da normalidade
	      The pathologization of normality
	      Paulo Roberto Ceccarelli

137	   Psicanálise e arte: o programa de humanização no 		
	      hospital São Lucas em Sergipe
	      Psychoanalysis and art: the humanization programme in 		
	      São Lucas hospital in Sergipe
	      Ricardo Azevedo Barreto

147	   Psicanálise e crítica literária
	      Psychoanalysis, literature and literary criticism
	      Stetina Trani de Meneses e Dacorso
Editorial

      O Círculo Brasileiro de Psicanálise fomenta uma convivência frutífera da hete-
rogeneidade do pensamento psicanalítico em seu meio. Não defendemos uma Psica-
nálise enclausurada e dogmática, mas um lugar para o psicanalista atento às proble-
máticas atuais.
       Nossa perspectiva teórico-metodológica se reflete em nossas produções cien-
tíficas. Alcançamos com êxito e muito esforço nesta edição o número 33 da revista
Estudos de Psicanálise que – como um caleidoscópio – desenha uma pluralidade de
saberes e/ou práticas psicanalíticas de membros de nossa Federada e expoentes de
diferentes instituições de nosso país e do exterior.
      Muito nos honra produzirmos, como editores da revista, no biênio vigente da
Diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise, nosso segundo exemplar. Mais ainda,
por termos travado, como meta, a produção de dois periódicos por ano, com notável
qualidade técnico-científica, o que só se tornou possível com as valiosas contribuições
dos conselheiros de nossa publicação e dos profissionais que trabalham conosco na
consecução do projeto gráfico, da editoração de texto/imagem e da revisão sistemática
de linguagem.
      A história de nossa revista de quatro décadas e o alcance de nossas produções,
que chegam à totalidade da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia e
ultrapassam as fronteiras da brasilidade, exige-nos cada vez mais rigor científico. É o
que buscamos incessantemente.
      Por outro lado, a beleza da Psicanálise nos motiva e permite enfrentar os desa-
fios e o mal-estar na civilização. A capa que reveste os instigantes textos que aqui se
encontram, portanto, não poderia ser menos do que encantadora, um convite ao ima-
ginário, a nos depararmos com as dualidades e profundezas da alma humana. Convite
esse que, de forma calorosa, reiteramos a todos os leitores deste acervo de escritos.

                                        Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto
     					                                                 Editores
Psicopatia Da Vida Cotidiana1
                                                                  Psychopath of everyday life

                                                                                Déborah Pimentel2
Palavras-chave
Psicopatia, perversão, lei, tratamento.

Resumo
A autora faz uma análise das notícias veiculadas pela imprensa e a partir delas percebe-se o
grande número de pessoas que são vítimas de gente inescrupulosa e mentirosa e a dificuldade
que temos de identificar esses sujeitos perversos que gravitam ao nosso redor. São pessoas
que se recusam a viver frustrações e capazes de atrocidades e de recursos ilícitos ou agres-
sivos para alcançarem o que desejam a despeito da lei e que recorrem às mentiras, trapaças
e crueldades. A autora conclui que não existe uma resposta psicanalítica para os psicopatas,
pois ela só existe para um pedido daquele que se dirige a um psicanalista. O tratamento para
a psicopatia, se é que existe, é de ordem social e de caráter educativo.

      O homem é a medida de todas as coisas.                  Vivemos uma terceira fase: a socieda-
                                    Platão              de do espetáculo, narcísica e perversa.
                                                              Palavras antes usuais, como solida-
    Estou triste. Muito triste. Vi os homens de         riedade e companheirismo, por exemplo,
                         perto. De muito perto.         desapareceram do vocabulário e das rela-
                   Antoine de Saint-Exupéry             ções do cotidiano. Os índices de violência
                                                        são crescentes, quer nas ruas, quer nas áreas
      Houve um período em que a maioria                 privadas; reinam a intolerância e a insegu-
da população era bem neurótica. Para me-                rança.
lhor definição, histérica. Estragavam tudo no                 Somos uma sociedade em que o sta-
melhor da festa para dormir com um gigante              tus social e a imagem que o sujeito constrói
sentimento de culpa, cheios de ansiedade e              e vende de si mesmo é que vão dizer da sua
de tranquilizantes.                                     importância como sujeito. Há uma cultu-
      Mais adiante a sociedade deprimiu e               ra da mais valia, da Lei do Gérson, do le-
nunca se falou tanto, e se prescreveram tan-            var vantagens em tudo, ser esperto. Valores
tos psicofármacos para a alegria dos labora-            como honestidade, nobreza, generosidade,
tórios.                                                 amizade são ignorados ou tidos como atri-
      Os tempos mudaram, e as manifesta-                butos de pessoas bobas ou ingênuas.
ções psíquicas apresentam-se de forma vis-                    Talvez esta seja uma grande oportu-
tosa, quer no uso das drogas, no consumo                nidade de dialogarmos com outras áreas do
exacerbado, no jogo patológico, no uso alie-            conhecimento e oxalá, articularmos melhor
nante do computador, no culto ao corpo, nos             nossos pensamentos entre a Lei e a Cultura,
transtornos alimentares, ou ainda nas trans-            em um momento em que vivemos uma cri-
gressões e violência.                                   se que denuncia a falência das instituições

1	 Discurso proferido na abertura do XVIII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, dia 20 de maio de
   2010 no Rio de Janeiro.
2	 Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise para o Biênio 2008-2010. Editora da Revista Estudos de
   Psicanálise. Doutoranda em Ciências da Saúde, curso do Núcleo de Pós-graduação em Medicina da Univer-
   sidade Federal de Sergipe.
                                            Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010   13
Psicopatia da vida cotidiana

     pilares da sociedade: família, igreja e gover-                 A Igreja Católica também tem sido,
     no.                                                     nos últimos meses, a vedete de grande cons-
            No seio familiar, protegem-se demais             trangimento público e tenta, desarticulada e
     os filhos, e se diz a eles apenas o que eles            desajeitadamente, se redimir dos seus peca-
     querem ouvir; os pais antecipam-se aos seus             dos, porquanto, por décadas, as autoridades
     desejos, não permitindo que aos filhos nada             eclesiásticas têm sido omissas e até coniven-
     falte. Gravíssimo pecado dos tempos atuais.             tes com os padres pedófilos, que por sua vez,
            Observem, pois, os filhos da atualidade.         passam o dia falando no amor e temor às leis
     Eles são esvaziados de desejos e de projetos.           de Deus. São simulados.
     Não sabem o que querem ser no futuro, não                      Há poucos dias, uma notícia na Folha
     sabem o que vão fazer amanhã, não querem                de São Paulo nos arrebatou pelo seu conte-
     pensar. Estão insuportavelmente insatisfeitos,          údo: um falso padre enganou fiéis por dois
     se dizem infelizes e incompreendidos.                   anos com homilias impecáveis, realização
            Quando frustrados, se são crianças, fa-          de casamentos, batizados, missas e ouvindo
     zem crise de birra, deitam no chão, gritam e            confissões.
     esperneiam e conseguem o que querem ime-                       É frequente assistirmos governantes
     diatamente, principalmente se estão em pú-              explicarem com naturalidade desvios de
     blico, por saberem como constranger os pais.            verbas públicas, caixa dois, mensalões, ma-
     Desde muito pequenos aprendem rápido                    las de dinheiro, frutos de improbidades, cor-
     como manipular os adultos, principalmente               rupção e sonegação.
     os que se sentem culpados pelo seu estilo de                   Há uma ausência de culpa ou remorso
     vida: muito trabalho e pouca atenção aos fi-            e total falta de constrangimento dessa tribo
     lhos, que crescem cheios de presentes e pouca           política, quando pegos em flagrante com
     presença dos pais. Quando se tornam adultos,            dinheiro nas cuecas e meias, ou mentindo,
     são intolerantes às diferenças e se recusam a           como certa candidata ao cargo de presiden-
     viver frustrações; são capazes de atrocidades           te da República que fraudou seu curriculum
     e de recursos ilícitos ou agressivos para al-           lattes, dizendo que era mestre e doutora sem
     cançar o que desejam a despeito da lei e de             ser uma coisa ou outra.
     obstáculos de qualquer natureza. Recorrem                      Os políticos possuem, como bons psi-
     às mentiras, trapaças, crueldades.                      copatas, um grande talento para distorcer as
            Se abrirmos os jornais ou assistirmos            regras, reinterpretar as leis a seu favor, ou as
     ao noticiário da televisão com um novo                  reinventar e, simultaneamente, levantam a
     olhar, facilmente perceberemos a extensão               ética como bandeira e entram em movimen-
     desse problema que é absolutamente estar-               tos de combate à corrupção. Claro que nem
     recedor. Senão, vejamos.                                todos os políticos são psicopatas, mas não
            Há poucas semanas, nos noticiários,              há dúvida de que psicopatas amam o poder
     vimos a condenação dos pastores Estevam e               e por isso se interessam tanto pela política.
     Sonia Hernandes, líderes da igreja Renascer                    Definitivamente não há, aparentemen-
     em Cristo, que deixaram de prestar contas               te, mais nenhuma reserva ética e moral. So-
     de uma das suas ONGs, mas que também                    brou muito pouco ou quase nada. Vivemos
     vêm sendo processados por centenas de fi-               em um mundo competitivamente selvagem
     éis e pelo próprio Ministério Público por               e sem lei, principalmente para muitos que
     sonegação, fraudes e enriquecimento ilícito             estão no poder e que manipulam as regras
     às custas das doações dos seguidores de sua             de acordo com as suas conveniências.
     igreja. A dupla já cumpriu pena de prisão em                   Sem leis rígidas, a violência se torna
     Miami por tentar ingressar nos Estados Uni-             crescente, e, em contrapartida, a impuni-
     dos com 56.000 dólares não declarados.                  dade em alguns segmentos torna-se uma
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Psicopatia da vida cotidiana

aberração e uma agressão ao bom-senso dos           31 anos criou dispositivos financeiros que
cidadãos do bem.                                    arruinaram muitos clientes, principalmente
       Estamos próximos ao período eleitoral        viúvas ingênuas, em favor do banco, venden-
e, é assustador vermos a grande massa abso-         do papéis que sabia serem podres, atitude
lutamente desinformada e manipulada e as-           descrita por ele mesmo em e-mails confes-
sim capaz, pelo seu número de eleitores, de         sionais para a namorada como monstruosi-
deflagrar resultados em troca de cestas bási-       dade, mas que renderam muito para o banco
cas. É espúria a relação do governo federal         e muitos bônus e prestígio para ele próprio.
com grupos rurais organizados que recebem                  Há de se desfiar um rosário de exem-
sua ajuda, aval, financiamento e leniência e        plos sobre as psicopatias do cotidiano. Nunca
invadem terras produtivas, destroem, depre-         se falou tanto em assédio moral e, mais recen-
dam e saqueiam propriedades privadas em             temente em bullying, outra modalidade de as-
cenas de banditismo explícito.                      sédio caracterizada pela humilhação promo-
       Na polícia, floresce um meio propício        vida entre escolares, crianças e adolescentes,
para os psicopatas e talvez isso seja mais um       que desestabiliza as vítimas, promovendo si-
ponto a ser estudado, pois não há procedi-          nais de depressão, ansiedade, angústia, com
mentos para evitar que eles entrem nessa            muitas lágrimas, medo e constrangimentos e
instituição, que é bastante atraente, por lhes      com francos efeitos no corpo e na alma.
conferir poder e legitimidade para as suas                 Por vivermos em tempos modernos,
ações, não raro descritas pela mídia como de        era cibernética, agora falamos também em
muita crueldade.                                    cyberbullying: os agressores também es-
       Existem empresas que têm essas carac-        tão on-line. Como mais de dez milhões de
terísticas também, pois não respeitam acio-         jovens brasileiros têm uma relação quase
nistas, sócios, funcionários, nem consumido-        visceral com a internet, local de encontros
res e clientes. Organizações que burlam seus        e bate-papos no MSN, Orkut, Facebook e
resultados para vender melhor as suas ações         agora Twitter, os agressores, quando criam
na bolsa ou as que fraudam o peso de merca-         falsos perfis ou comunidades especializadas
dorias, como as duas importantes fábricas de        em agredir e denegrir, conseguem promo-
chocolates Lacta e Garoto, que foram autua-         ver uma dor inexorável ao manchar uma
das no mês de maio deste ano pela Secretaria        identidade e uma imagem ainda em cons-
de Direito Econômico do Ministério da Jus-          trução. É o inferno cibernético.
tiça, por não avisarem aos consumidores que                Precisamos, sem dúvida, revisitar
seus ovos de páscoa estavam pesando menos           conceitos básicos que parecem perdidos:
do que os tamanhos anunciados e assim aufe-         ética, empatia e tolerância; eles farão di-
riram importante lucro com estas manobras.          ferença na nossa compreensão do mundo
       Nas empresas, portanto, psicopatas es-       moderno que traz como marca a psicopatia
tão instalados com sucesso. Eles possuem os         da vida cotidiana.
principais atributos desejados pelos líderes               Há alguns dias, vimos uma cena no
empresariais, como ambição, inteligência,           noticiário que beira o inimaginável: uma
capacidade analítica e de liderança, carisma        mulher sendo assaltada e lutando com o
e disposição para enfrentar desafios.               bandido para defender sua bolsa dentro de
       Muitos se sentem atraídos por ativida-       uma delegacia, enquanto os policiais assis-
des de alto risco com perspectivas de altos         tiam à cena e não moveram um único mús-
retornos. A Revista Veja do dia 5 de maio de        culo, esboçando sequer um discreto gesto
2010 traz a história de Fabrice Tourre que tra-     de impedimento da agressão.
balhava para o mais importante banco de Wall               A violência dos dias atuais tanto pode
Street: Goldman Sachs. O jovem executivo de         ser à luz do dia, nas ruas ou na delegacia,
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Psicopatia da vida cotidiana

     explícita, como aquela protagonizada pela               mos ou voltarmos a nos instrumentalizar de
     ilustre promotora na intimidade de sua casa,            forma adequada para estas reações.
     onde torturava covardemente sua indefesa                       Quem sabe, os pais e professores não
     filha adotiva de apenas dois anos de idade;             poderiam ser mais bem instrumentados para
     como aquela outra, não se sabe qual mais                perceber, ainda nas crianças e adolescentes,
     perversa, praticada pelo Estado omisso, em              sinais precoces de transtornos de conduta:
     que se veem crianças, adultos e velhos aban-            mentiras, crueldade e frieza emocional com
     donados nas ruas à própria sorte e privados             ausência de culpa, transferência de respon-
     de satisfações mínimas para uma existência              sabilidades, postura de desafio com pais e
     com dignidade e, por conseguinte, dos seus              professores, vandalismo, fraudes, uso preco-
     direitos como cidadãos, garantidos, parado-             ce de álcool e drogas.
     xalmente, por que não dizer, ironicamente,                     Sabe-se que a psicopatia não tem cura,
     pela nossa Carta Magna.                                 mas, quem sabe, se um olhar mais atento
             O pior, entretanto, pasmem, nós es-             não poderia ser útil, senão, de forma exa-
     tamos entorpecidos diante dessas notícias e             geradamente otimista, evitando um quadro
     cenas brutais e assistimos a elas muitas vezes          mais exacerbado de psicopatia na vida adul-
     sem reação, sem afeto, sem nenhuma indig-               ta, mas também, principalmente, protegen-
     nação. E com essa capacidade perdida, já há             do possíveis vítimas e evitando suas trágicas
     algum tempo, na verdade, cremos que em-                 e nefastas ações.
     botamos também a capacidade reflexiva. É a                     Nem sempre os psicopatas são identi-
     mídia, repetindo exaustivamente relatos dos             ficados, depende muito do grau de psicopa-
     dramas familiares e cenas de barbárie, como             tia, se baixa, moderada ou grave. Muitas ve-
     as que envolvem o goleiro Bruno que mandou              zes, convive-se com eles no cotidiano, pois
     assassinar a sua ex namorada com requintes              nem todos se transformam em marginais ou
     de crueldade, que cria em nós um efeito de              assassinos, e levam uma vida aparentemente
     comoção, que não sabemos ser natural ou ar-             normal, exercendo seu grande poder de se-
     tificial.                                               dução, manipulando, traindo, tirando van-
             A violência e a vida foram banali-              tagens e fragilizando os mais vulneráveis,
     zadas. A maldade dança sob nossos olhos                 em relacionamentos predatórios com quem
     ininterruptamente e se maquia e se masca-               cruzam pelo caminho e que podem tornar-
     ra de diversas formas, de sorte que para os             se presas fáceis do seu gozo perverso.
     que tomam conhecimento dela, quer como                         Existem também aqueles que se trans-
     testemunhas oculares, quer nos noticiários,             formam em homicidas ou, pior, serial killers.
     seus efeitos são inócuos e é aceita como algo           Não faltam exemplos. O mais recente foi há
     natural do cotidiano. Entretanto ela é devas-           três meses, um fato de grande comoção e re-
     tadora para quem é a vítima, a ponto de o               percussão social. Mediante o regime de pro-
     sujeito, em certas circunstâncias, não mais se          gressão de pena, um benefício foi concedido
     equilibrar, e fenecer, morrer.                          ao pedreiro Admar que trazia Jesus no nome,
             No reino animal, o homem é o único              assassino confesso de seis jovens de Luziânia
     capaz de matar e tem inclusive o requinte de            (GO), e que cumpria pena por crime de pe-
     planejar a morte de outros de sua espécie,              dofilia. Por ter bom comportamento, o juiz
     movido por retaliação, ambição, conveniên-              decidiu pela soltura, mesmo havendo um pe-
     cia, pela incapacidade de gerenciar as dife-            dido da promotora do caso para um segun-
     renças ou por mero prazer.                              do exame criminológico. Ele foi liberado e
             Uma das perguntas que podemos nos               voltou a matar. Ato contínuo e tardio, dia 15
     fazer é se de alguma sorte não poderíamos               de abril de 2010, o Ministro da Justiça, Luiz
     resgatar a nossa capacidade de nos indignar-            Paulo Barreto, defendeu a realização obriga-
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Psicopatia da vida cotidiana

tória de exames criminológicos com avaliação       to a estuprar”. Perversa, portanto, é a lei que
ampla da capacidade para convivência social,       quer tratar os diferentes de forma igual aos
antes da soltura de presos que apresentem dis-     demais e que deixa a sociedade desprotegi-
túrbios de comportamento, evitando riscos          da. Parece que passou da hora de se rever
para a segurança da sociedade.                     a lei para crimes hediondos. Da psicopatia
        A psiquiatra forense Hilda Morana foi      não se pode esperar cura, redenção ou rea-
a Brasília em 2004 tentar convencer deputa-        bilitação social.
dos a criar prisões especiais para psicopatas.            O Ministro da Justiça reconhece que
Conseguiu fazer a ideia virar um projeto de        as pulseiras eletrônicas também não resol-
lei, que não foi aprovado. Parece que se faz       vem o problema, mas podem ser uma fer-
necessária a comoção nacional diante de um         ramenta importante na fase de reintegração
novo crime que poderia ter sido evitado para       (que não deveria existir) e liberdade condi-
que se force o endurecimento da lei.               cional. Preso novamente, Admar de Jesus,
       As nações que fazem o diagnóstico dos       morreu na prisão em condições pouco es-
marginais reclusos têm a reincidência dos cri-     clarecedoras. Possivelmente foi punido pela
minosos diminuída em dois terços, uma vez          lei dos presos, que abominam pedófilos e
que mantêm mais psicopatas longe das ruas.         estupradores. Lá a lei é dura e invariavel-
       Se tivesse havido a aplicação de algum      mente é aplicada.
sistema de segurança, com exames e até pul-               Enfim, a psicopatia cotidiana está aí,
seiras eletrônicas, após a soltura desses de-      está aqui, ao nosso redor, e é muitas vezes
linquentes, quem sabe, teriam sido evitadas        imperceptível e passa-se a conviver com
novas vítimas.                                     ela. Disfarçados, os psicopatas vivem suas
       Apesar de a origem da palavra psicopatia    vidas quer como cândidos religiosos, bons
vir do grego (psyche = mente e pathos = doen-      políticos, quer como amantes encantadores
ça) ela não é considerada uma doença mental.       e amigos queridos, entretanto simultanea-
O Ministro da Justiça parece saber que os psi-     mente arruínam emocional, física ou finan-
copatas não são loucos e, portanto, imputáveis,    ceiramente os incautos que a eles se asso-
pois essas pessoas não apresentam nenhum           ciam, profissional ou pessoalmente.
sofrimento mental, nem sofrem de alucinações               Existem múltiplas teorias e explica-
ou qualquer tipo de desorientação.                 ções acerca da gênese da psicopatia, incluin-
       Os psicopatas sabem o que estão fa-         do aquelas sobre as quais nós, psicanalistas,
zendo, têm ampla consciência dos atos que          sabemos tão bem discorrer e que dizem
praticam e não sentem nenhuma culpa ou             respeito às questões do romance familiar,
remorso por nenhuma maldade feita. Eles            o nome do pai e o meio cultural, mas, em
sabem distinguir as diversas nuances da rea-       tempos de francos avanços nos estudos ge-
lidade, sabem o que é certo e o que é errado,      néticos, não podemos ignorar outras con-
ou que é bom e ruim, sabem reconhecer a lei        tribuições inclusive as que apontam altera-
e, se a transgridem, é pelo simples prazer de      ções do sistema límbico, área responsável
fazê-lo: é de sua natureza.                        pelas emoções justificando a racionalização
       A experiência do judiciário revela tam-     e a frieza desses indivíduos. Para os neuro-
bém que psicopatas são reincidentes, e devem       logistas, a organização e sinapses do cérebro
ficar reclusos para sempre, para a segurança       de um psicopata são estruturalmente dife-
da sociedade, a despeito das leis brasileiras      rentes dos de uma pessoa normal. No ano
que não permitem que alguém cumpra mais            2000, dois neurocientistas, o neuropsiquia-
de trinta anos de reclusão. Muitos psicopatas      tra Ricardo de Oliveira-Souza e o neurolo-
dizem de forma desafiadora, despudorada e          gista Jorge Moll Neto, identificaram, através
escancarada: “se me soltar, volto a matar, vol-    de ressonância magnética, as partes do cé-
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Psicopatia da vida cotidiana

     rebro ativadas quando as pessoas fazem jul-             final de uma análise, espera-se que o sujeito
     gamentos morais.                                        possa perceber, no seu sofrimento, a parte de
             A maioria dos voluntários ativou uma            gozo que o compromete. O que muda não é o
     área chamada Brodmann 10 ao responder                   sintoma, nem tampouco é o sofrimento, mas
     às perguntas. Esses mesmos pesquisadores,               a posição subjetiva, e isso vai na contramão
     cinco anos depois, repetiram o experimento              da psicoterapia. Assim, conclui-se que quem
     com pessoas diagnosticadas como psicopatas              tem algo a fazer nas instituições é a psica-
     e verificaram que elas ativavam menos essa              nálise como uma teoria e forma de refletir e
     área cerebral, ratificando que os sujeitos com          entender os processos, e não os psicanalistas,
     transtornos dessa natureza são incompetentes            como bem apregoa Jean-Jacques Rassial. De-
     para sentir o que é certo e o que é errado.             finitivamente, não existe uma resposta psica-
             Do nosso lado, verificamos, como psi-           nalítica para os psicopatas, ela só existe para
     canalistas, que a lei paterna, ou o Nome-do-            um pedido daquele que se dirige a um psica-
     pai, dá consistência simbólica à linguagem e            nalista. O tratamento para a psicopatia, se é
     tem como função inaugurar o social através              que existe, é de ordem social e, portanto, não
     da separação mãe-filho, o que favorece a en-            é terapêutico e, sim, educativo.
     trada do sujeito no mundo das representa-                      A psicanálise não é capaz de modificar
     ções simbólicas, ou seja, a criança vai ter que         a natureza humana, mas talvez possa revelar
     colocar alguma coisa no lugar da ausência da            possibilidades para essas inclinações pouco
     mãe, fazendo articulações e substituições de            nobres.
     ordem simbólica. Na psicopatia, o que falha                    Banalizar a violência é, de alguma
     não é o pai simbólico nem o pai imaginário,             sorte, preservá-la ativa, diluindo simboli-
     mas o pai real. Nome-do-Pai é o não fundan-             camente seus efeitos daninhos e de alguma
     te, o primeiro, o inicial, é o pai que diz não. O       forma não se comprometendo com suas ma-
     pai real é, por conseguinte, este que diz não           nifestações. Não podemos nos esconder em
     para permitir que exista o nome.                        frases feitas: “violência é da natureza do ho-
             A perversão é a maneira como um su-             mem” e sucumbirmos a sua virulência.
     jeito, na sua relação com o outro, recusa a im-                Vale a pena lembrar Freud, que nos diz
     possibilidade de um gozo infinito e completo.           que a violência não é resultado da constru-
     Considerando que o discurso do pai é aquele             ção social, mas é fundante: existimos como
     que organiza o Édipo na constituição do su-             grupo social a partir do assassinato do pai
     pereu edípico, e o discurso do mestre é o que           da horda primitiva. Existimos e nos organi-
     organiza o Édipo na constituição do supereu             zamos a partir de um ato violento. Violento,
     cultural, percebemos que o psicopata não faz            é verdade, mas também justo e necessário,
     a passagem do discurso do pai para o discur-            pois deu um basta ao gozo ilimitado do pai,
     so do mestre, que parecem contraditórios e              criando um código de ética que gravita em
     requerem dele uma escolha: um ou outro. E,              torno da culpa e no qual ficou estabelecido
     se na psicopatia o que falha é o supereu cul-           também que matar não era mais legítimo ou
     tural, a primeira resposta deve ser, portanto,          permitido. Violência e poder estão no DNA
     institucional. A razão específica disso é que as        da lei fundante da civilização.
     instituições, assim como as psicoterapias têm                  A cultura terá que se haver com es-
     um projeto bem definido, que é o ideal de               sas questões. Na atual sociedade, na qual há
     normalização e que não tem nada em comum                uma busca da satisfação a qualquer preço e o
     com a psicanálise que praticamos na nossa               ser sucumbe ao ter, percebemos uma grande
     clínica, que não quer normalizar ninguém.               valorização da satisfação da pulsão, favore-
             No final de uma terapia, espera-se que          cendo um gozo sem limite que impede uma
     haja uma mudança do quadro patológico. No               genuína relação afetiva com o objeto e que
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Psicopatia da vida cotidiana

significa um crescente desligamento dos va-                    manteiga mais frescos, flores em minha jane-
lores éticos e morais.                                         la e algumas belas árvores em frente à minha
       Os psicanalistas não têm fórmulas má-                   porta; e, se Deus quiser tornar completa a mi-
gicas ou saídas. Em um momento em que a                        nha felicidade, me concederá a alegria de ver
sociedade busca nova ordem de valores, talvez                  seis ou sete de meus inimigos enforcados nes-
a psicanálise possa colaborar com orientações                  sas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado
por ser capaz de explicar a subjetividade e o                  em meu coração, lhes perdoarei todo o mal
não-todo-racional que compõem o sujeito.                       que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade,
       Talvez os psicanalistas tenham algo a                   perdoar os inimigos - mas não antes de terem
dizer e dividir suas reflexões com as demais                   sido enforcados.
áreas do saber, exercitando a sua dimensão
antropológica, buscando possibilidades de                      Encerramos fazendo nossas as pala-
melhor compreender os laços sociais em                  vras de Bion em uma entrevista de 1992:
uma interlocução interdisciplinar com edu-              “leva-se um longo tempo para que alguém
cadores, filósofos, antropólogos, sociólogos,           saiba o pouco que sabe e um tempo mais
assistentes sociais, profissionais do Direito,          longo ainda para que esse alguém saiba o
cientistas políticos e outros mais, inclusive           muito que é saber sobre esse tão pouco”.
com os profissionais do mundo financeiro,                      Construamos juntos um pouco desse
pois o poder desejado pelos psicopatas tem              saber.
importante interface com a economia. Mas
lembremos: certamente aqui não se trata                 Keywords
de psicanálise clínica. Por outro lado, exis-           Psychopath, perversion, law, treatment.
tem perversões e perversões, e havemos de
considerar essa psicopatia do cotidiano, essa           Abstract
perversão comum, e reconhecer que ela diz               The author makes an analysis of news related
respeito em graus diversos a qualquer um.               by the press and from them we see the large
       Propomos uma nova distribuição dos               number of people who are victims of unscru-
papéis dentro de uma nova responsabilidade              pulous people and liars and the difficulty we
do sujeito, poderíamos dizer ainda, respon-             have to identify these perverse individuals
sabilidade pelo destino do coletivo. Parece             who gravitate around us. They refuse to live
que a única possibilidade de produzir sujei-            frustrations and they are capable of atroci-
tos capazes de identificar o que devem ao co-           ties. They use illegal or aggressive resources
letivo é a condição de que antes tenham eles            in order to achieve what they want regardless
próprios sido introduzidos pelo coletivo à              of the law and they resort to lying, cheating
condição humana via educação.                           and cruelty. The author concludes that there
       Uma coisa é certa, é preciso falar des-          is no psychotherapy response to psychopaths,
sa violência que impera no cotidiano, e até,            because it only exists for a demand that it is
quem sabe, elaborar a violência que nos fun-            directed to a psychoanalyst. The treatment
da, e isso talvez possa ser feito nos tornando          for psychopaths, if it exists, has a social and
responsáveis por um caminho simbólico para              an educational character.
a violência que habita em cada sujeito. Freud,
para ilustrar isso em 1930, no seu texto Mal-
estar na civilização, cita o poeta Heine:

      Minha disposição é a mais pacífica. Os meus
      desejos são: uma humilde cabana com um teto
      de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a

                                            Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010    19
Psicopatia da vida cotidiana

     Tramitação

     Recebido: 31/05/2010
     Aprovado: 14/06/2010
     Nome do autor responsável:
     Déborah Pimentel
     Endereço: Praça Tobias Barreto 	
     510/1212. Bairro São José.
     CEP: 49015-130. Aracaju-SE
     Fone: (79) 3214 1948
     E-mail: deborah@infonet.com.br




20   Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010
O ofício – quase impossível – do psicanalista
                                 The job – almost impossible - of the psychoanalyst

                                                                                 Anchyses Jobim Lopes1

Palavras-chave
Reparação, cisão, clima incestual, resto inanalisável.

Resumo
A escolha do ofício de psicanalista: sublimação e reparação maníaca. Cisão e perda na relação
terapêutica. Quebra de ética: casos mais sutis. O clima incestual no divã. Manipulação de pa-
cientes sob o disfarce de técnicas mais modernas ou humanas. O resto de análise e a escolha
do ofício psicanalítico.

       Na Instituição Psicanalítica a produção            cípios clássicos em uso. Mais que mantê-los
científica se faz sobre os restos inanalisáveis,          - eles constituem a salvaguarda ética da psi-
fazendo desses traços secretos uma condição               canálise e de sua eficácia terapêutica - trata-
de formação permanente.                                   se de aperfeiçoá-los.
              Carta de Princípios do Círculo                     O Centro de Atendimento Psicanalíti-
                    Brasileiro de Psicanálise             co (CAP) do Círculo Brasileiro de Psicaná-
                                                          lise (CBP-RJ) constitui uma forma de clíni-
                                                          ca social, atendendo a preços muito abaixo
       [...] a formação compõe-se de um tripé:            do usual. Recebeu 299 (duzentos e noventa
análise pessoal, teoria e prática clínica super-          e nove) pacientes em pouco mais de quatro
visionada, sendo o primeiro item o mais im-               anos (17/11/2005 a 18/3/2010). Com a pro-
portante. Igrejas ou universidades não podem              posta de que todos os pacientes estejam em
exigir ou garantir uma análise pessoal [...]              supervisão coletiva ou individual, é exclu-
           Maria Mazzarello Cotta Ribeiro e               sivo para tratamento pelos Candidatos do
                    Anchyses Jobim Lopes                  Curso de Formação Psicanalítica. Através
                                                          do CAP, mais de duas dezenas de candida-
                                                          tos realizaram parte de sua prática clínica
INTRODUÇÃO:                                               supervisionada.
O RETORNO À CLÍNICA                                              Enquanto o trabalho em uma insti-
                                                          tuição psicanalítica permanecer no campo
       Preceitos como neutralidade, abstinên-             das aulas e seminários, por mais que temas
cia, sem conselhos ou tapinhas no ego para                clínicos sejam escolhidos, mais parece-
muitos se trata de uma ortodoxia fria e ob-               rá uma reunião de chefs de cuisine discu-
soleta. Será? E como concorrer com o festival             tindo tratados de culinária. Mas, quando
de terapias intervencionistas ou receitas da              uma instituição psicanalítica toma a deci-
auto-ajuda tão em moda? Mantendo os prin-                 são política de sentar à mesa, investir em

1	 Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise- Seção Rio de Janeiro, Médico e Bacharel
   em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ, Doutor em Filosofia
   pela UFRJ, Prof. Adjunto de Psicologia da UNESA; Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção
   Rio de Janeiro, ex-Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise.
                                              Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010   21
O ofício - quase impossível - do psicanalista

     sua clínica social, em supervisões coletivas                       ESCOLHA DO OFÍCIO
     e na apresentação de casos clínicos, sobre-                     De acordo com uma perspectiva freu-
     vém uma azia crônica. Mal-estar para o                   diana, a sublimação seria um dos meca-
     qual o único remédio eficaz é reviver todo               nismos fundamentais para a compreensão
     o nascimento da clínica psicanalítica. Para              de todas as escolhas profissionais. Por uma
     surpresa de alguns, por mais que os textos               ótica kleiniana, a sublimação, conceito tão
     tenham sido lidos, na prática reencontramos              valorizado e tão mal explicado na obra de
     que os fundamentos dos Artigos Sobre Técni-              Sigmund Freud, teria por base a reparação
     ca de Freud (1978, xii) são todos válidos. E             dos objetos primários. Na passagem da po-
     extremamente necessários. Através do CAP,                sição esquizoparanoide para a posição de-
     permanentemente redescobre-se que os pre-                pressiva, com a integração do objeto bom
     ceitos encontrados por Freud, no início da               e do objeto mau em um único objeto, com
     Psicanálise, originaram-se de muita tentati-             o reconhecimento de que o objeto amado é
     va e erro, de desastres clínicos e de alguns             o mesmo que foi odiado e atacado, preva-
     impensáveis sucessos terapêuticos.                       lecendo a pulsão de vida sobre a pulsão de
            Simultaneamente, o aumento no nú-                 morte, a reparação surge para minorar o
     mero de membros efetivos, que dobrou                     sentimento de culpa. Tal como o dito popu-
     no período de dez anos, fez ressurgir ou                 lar: a criança morde e assopra. Com a cons-
     agudizar a dispepsia institucional crônica               tatação de que o objeto é um só, cai-se no
     de que todas as instituições psicanalíticas              dilema primeiro para que se mantenham
     sofrem, o que também nos leva a repensar                 todas as relações internas e externas: a re-
     a questão da clínica, e de seus efeitos cola-            velação íntima para cada um de nós da tão
     terais, no seio da política institucional. Da            decantada ambivalência universal dos seres
     discussão dos tratados teóricos já nascem                humanos. Ambivalência: um dos conceitos
     acerbas, ou melhor, neuróticas, discussões.              fundamentais para a compreensão de todo
     Mas as discussões sobre uma clínica efeti-               o pensamento de Sigmund Freud e sua visão
     va conduzem tanto a propostas perversas                  trágica da natureza humana. A descoberta
     de abandono dos princípios clínicos bási-                de que o objeto amado foi também odiado
     cos de Freud, quanto ao outro extremo, à                 e atacado torna-se um dos grandes motivos
     dificuldade também perversa de aceitar-se                do sentimento de culpa. A integração do eu e
     a diferença, a de que há tantas psicanáli-               da percepção do mundo na posição depres-
     ses quanto analistas e pacientes. Tornou-se              siva também conduz a apreensão do tempo
     patente durante as supervisões que o afas-               em seu sentido mais usual: passado, presen-
     tamento da técnica e da ética estava estrei-             te e futuro. E agora não há como desfazer os
     tamente correlacionado com a análise pes-                ataques do passado. Nem como evitar que
     soal dos candidatos.                                     eventuais ataques sejam feitos no futuro.
            O efeito do manjar psicanalítico, tanto           Surge, então, o cuidar dos objetos primários
     para os terapeutas quanto para a instituição,            e a necessidade de procurar por novos obje-
     mais se parece com a sequela dos alimentos               tos, para os quais agora os ataques possam
     defumados: deliciosos, mas devem ser inge-               ser menores, uma preocupação maior, tanto
     ridos com parcimônia e cautela, pois pos-                para evitar a agressão, como para minorar
     suem todos os hidrocarbonetos canceríge-                 as agressões feitas pelos objetos secundários
     nos do cigarro. E do charuto.                            contra si mesmos.
            Iniciemos pelo princípio: algumas re-                     A integração dos objetos parciais em
     flexões do por que se escolhe ser psicanalista.          um objeto único conduz ao sentimento de
22   Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
O ofício - quase impossível - do psicanalista

que não são coisas para minha satisfação,         inato, um perigoso deslize biologizante de
mas seres humanos. Apenas dessa forma             sua teoria. Para Klein as primeiras repara-
ocorre a passagem para identificar-se ao ou-      ções são maníacas: basta um desejo onipo-
tro e sua diferença. Aqui estamos na verten-      tente da criança e pouca ou nenhuma ação
te positiva da ética kantiana (KANT, 1974),       concreta para consertar. Assim é o reino
a proposta iluminista de uma ética: racio-        das fadas e dos duendes, e o da maior parte
nal, universal e igualitária. É verdade que       da religião. A integração crescente do eu e
esta proposta, ao longo da história, como         da realidade interna, paralela à integração
bem foi estudada por Horkheimer e Adorno          crescente da percepção da realidade exter-
(1989) (e que inspiraram Lacan [1986]), re-       na, conduz à percepção de quão ineficaz é
velou seu outro lado, ou sua deturpação, em       a reparação maníaca. Mas é um processo
algo desumano, mecânico e sádico. Mas de-         longo. Falar em onipotência, em posição
vemos propor um retorno a Kant, em que o          esquizoparanoide é falar em uma era em
preceito básico da ética é o reconhecimento       que predomina o narcisismo infantil. Já na
da alteridade, de que o outro não é apenas        posição depressiva, esse narcisismo tem de
um meio para obter meus fins, mas de que          ser desinflado. Ou também podemos laca-
também se trata de pessoa com sentimen-           nianamente complementar, que, sendo o
tos e necessidades, um fim em si mesmo. Só        imaginário a fonte especular do narcisismo,
assim se pode dizer: coloquei-me na pele de       tem de haver a predominância gradual do
alguém. Esse colocar-se dentro da pele de         simbólico. De qualquer modo, Klein e La-
alguém, que fundamenta o imperativo cate-         can concordariam que as feridas narcísicas
górico kantiano, que podemos compreender          são inevitáveis.
psicanaliticamente através da identificação,             A observação e a prática mostram que
e sem o qual a transferência seria impossí-       aqueles que se dirigem a escolhas profissio-
vel. Tanto quanto o supereu, que o próprio        nais na esfera terapêutica precisam inter-
Freud afirmou ser herdeiro do imperativo          namente realizar mais reparações internas
categórico, ambos são criaturas híbridas.         e externas do que aqueles que optam por
Ambos, Freud e Kant, demonstraram que,            ocupações mais saudáveis. Desde os aca-
sem uma internalização amorosa da lei, se-        dêmicos de Medicina que frequentemente
ríamos sociopatas.                                desejam curar o câncer (quando não desco-
       Para a Sra. Klein, esse zelo, essa cura    brir a cura definitiva), passando pelos estu-
do outro (cura - palavra latina, dentre outros    dantes de Psicologia, ávidos por teorias que
sentidos, para cuidado, encargo, inquieta-        englobem tudo desde o fio de cabelo até o
ção amorosa, guarda, vigília) não cai do céu      último axônio da medula, indo aos psicana-
instantaneamente. Não se passa da posição         listas que “explicam tudo” (o que é adjudi-
esquizoparanoide para a depressiva num pis-       cado a Freud, para quem era bem diferente
car de olhos. Logo não se passa à reparação       acreditar na tese de que tudo poderia algum
instantaneamente. Um longo processo, em           dia ser compreendido e não na crença de
que a pulsão de vida deve predominar sobre        que pessoalmente poderia elucidar tudo).
a de morte, conduz desde mecanismos ne-           Não nos esqueçamos de: terapeutas ocu-
cessários, mas ainda pouco eficazes, esquizo-     pacionais, enfermeiros, arteterapeutas, etc.
paranoides, aos depressivos. Talvez por que       Dito em kleinianês, as escolhas profissionais
não tenha sido possível a Freud um insight        nas áreas terapêuticas são frequentemente
maior na natureza complexa da sublimação,         fundamentadas em projetos de reparação
frequentemente ele a coloque como um dom          maníaca. O fato é que todos os sistemas

                                       Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010   23
O ofício - quase impossível - do psicanalista

     religiosos, e mesmo os filosóficos em sua                CISÃO E PERDA
     maioria, tiveram em sua origem, e têm até o
                                                                     Os mecanismos esquizoparanoides
     presente, por função, socorrer o ser humano
                                                              são necessários para a psique saudável duran-
     diante do desamparo e da angústia da mor-
                                                              te toda vida. A cisão do eu, tão cara a Freud
     te, do sofrimento da doença e da injustiça.
                                                              (1978, xxi, xxiii), principalmente em alguns
     Mesmo numa era em que a ciência falha em
                                                              de seus últimos escritos, não estabelece ape-
     ocupar parte dessa função, não se justifica
                                                              nas uma fonte para as perversões. Para Klein
     o messianismo manifesto ou disfarçado de
                                                              a cisão é patológica quando permanente, seja
     muitos terapeutas, principalmente no caso
                                                              por não ter ocorrido o predomínio dos me-
     dos psicanalistas. Muito menos suas crenças
                                                              canismos da posição depressiva, ou por uma
     na associação com terapias alternativas, eso-
                                                              regressão à posição esquizoparanoide. Existe
     terismos ou na mistura de psicologias com
                                                              a cisão permanente que origina o fetichismo,
     religião. No caso da psicanálise, em sua cren-
                                                              um dos conceitos básicos para a compreen-
     ça da terapia pela palavra, não é ético que se
                                                              são das perversões. A importância das cisões,
     confunda o trabalho por meio do simbóli-
                                                              reversíveis ou não, constitui um conceito clí-
     co com propostas ancoradas no imaginário.
                                                              nico essencial também para o entendimento
     Principalmente se relembrarmos a função
                                                              das psicoses. Mas pode-se defender a ideia de
     do imaginário no espelho e como receptácu-
                                                              uma cisão benigna, parcialmente reversível,
     lo do narcisismo, no reforço do pensamento
                                                              na vida diária e na prática profissional. Ao se-
     mágico e onipotente.
                                                              parar o intelectual do afetivo, o eu-realidade
            Um analista ainda muito ungido de
                                                              do eu-prazer, a cisão permite que a realida-
     seu narcisismo pode configurar um preda-
                                                              de seja fria e desapaixonadamente percebi-
     dor terapêutico. O messianismo, e a asso-
                                                              da. Isolando-se a angústia podemos tomar a
     ciação com práticas ancoradas no imagi-
                                                              conduta mais útil em momentos de perigo e
     nário, são inevitavelmente potencializados
                                                              manter a racionalidade quando decisões im-
     pela maior arma psicanalítica: a transfe-
                                                              portantes devem ser tomadas. Pela cisão uma
     rência. Todo paciente possui problemas
                                                              parte do eu é sustentada como mero observa-
     com sua imago paterna, logo o analista será
                                                              dor de si mesmo e do mundo.
     empossado principalmente, e ainda mais
                                                                      Nenhuma das atividades na esfera
     no início da análise, como pai imaginário.
                                                              terapêutica poderia ser exercida sem uma
     A investitura pelo suposto saber ocupa o
                                                              grande tendência do profissional para a ci-
     lugar de um desejo falho, o de um pai que
                                                              são. Um cirurgião em segundos pode ter
     tudo saiba, que tudo possa, que tudo salve:
                                                              de tomar decisões dramáticas e executá-las
     o lugar de Deus. Por isso é necessário que
                                                              com uma frieza impecável, deixando de lado
     o terapeuta, em sua análise pessoal, tenha
                                                              que sob seu bisturi está um ser humano. E
     padecido de uma boa dose de feridas em
                                                              Freud gostava de comparar a terapêutica
     seu narcisismo. Concordamos com Quinet
                                                              psicanalítica com o procedimento cirúrgi-
     (2009, p. 121):
                                                              co. O analista tem o dilema de ter de trans-
            O analista em sua análise deve ter experimen-     ferir, mas ao mesmo tempo manter um eu
            tado a destituição narcísica e deve poder refa-   observador implacável. Simultaneamente
            zer a terceira revolução copernicana, descrita    deixar se envolver e não se envolver pelo
            por Freud, na qual o homem não é senhor           paciente significa mantê-lo em certo tipo
            em sua própria casa, descascando uma a uma        de fetichização, na qual não se pode negar
            como uma cebola suas identificações imaginá-      a castração, tal como na defesa maníaca e
            rias que constituem sua persona, seu little me.   nas verdadeiras perversões, mas que, à se-
                                                              melhança do paciente de Freud (xxi, p.152)
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O ofício - quase impossível - do psicanalista

atraído por mulheres com um certo brilho no                Relatos profissionais da área de en-
nariz (em alemão: Glanz auf der Nase), foca e       fermagem ou de profissionais que cuidam
posiciona a visão do analista, colocando toda       de pacientes idosos ou terminais, por ve-
realidade inter e intrassubjetiva entre parên-      zes expõem que a frieza, da qual muitas
teses, dando-lhe o dom de supervalorizar o          vezes são acusados, também possui outra
que passa por insignificante e desapercebido.       motivação: as sucessivas perdas. O pouco
Caso contrário, o analista tem seu trabalho         ou não envolvimento, para muitos, é o que
paralisado: pela angústia do paciente, por          permite o cuidar de pessoas com as quais
todos os disfarces da resistência, pelas moti-      se sabe que o relacionamento inevitavel-
vações para ganhos primários e secundários          mente terá um fim próximo e irreversível.
dos sintomas e, mesmo, pela pura manipula-          Neste, porém, temos o reflexo de outra
ção por pacientes pouco escrupulosos.               das características do ofício de analista.
       Outro exemplo, se o analista se dei-         Apesar de opiniões contrárias, o analista
xar conduzir (ou melhor, seduzir), pelo que         será sempre o ex-analista. Isso quer dizer:
é dito, esquece da importância de observar          a possibilidade de um convívio social ou
como é dito. Não se consegue notar os atos          institucional é sempre limitada, artificial
falhos, o duplo sentido dos significantes, a        ou francamente desaconselhável. Por me-
predominância de palavras-chave no campo            lhor que seja trabalhada a transferência,
semântico. Assim, se, como o sultão Xariar,         de ambas as partes, é inumano acreditar
das Mil e uma Noites, o analista ficar com-         em uma elaboração completa. Além do
pletamente deslumbrado pelas estórias de            fato de que todo analista conhece fatos e
sua Xerazade, não vai conseguir matar a cha-        fantasias do paciente que não foram con-
rada de sua neurose. Isto é, sem cisão, ou se       tadas a nenhuma outra pessoa. A relação
transfere demais ou de menos.                       analista/paciente difere completamente de
       Claro que a importância da cisão e da        qualquer outra, social ou institucional. E
fetichização com o trabalho analítico implica       é um caminho sem volta. O que implica
graves riscos. Todo fetiche constitui um obje-      que, mesmo em uma análise que dure dez
to idealizado. O terapeuta também se coloca         anos ou mais, o caminho do paciente é ao
a serviço da idealização e fetichização pelo        mundo e aos outros. Distante ou próximo,
paciente. Condição que pode ser útil ao iní-        o fim do trabalho analítico é sempre a meta
cio da terapia. Mas, em médio prazo, deve-se        desejável. E justamente, quando bem reali-
lembrar sempre que a cisão benigna pode de-         zada, a análise conduz sempre a seu fim ir-
generar em um processo tipicamente esqui-           reversível, sobretudo se acreditarmos que
zoparanoide, e que idealização, além do nar-        uma nova terapia ou uma re-análise futura
cisismo incluído, constitui uma clássica de-        deveria ser feita com outro profissional. A
fesa maníaca. O analisando pode agudizar o          clínica analítica, ao mesmo tempo em que
pai idealizado e superegoico transferindo ao        implica um investimento afetivo do tera-
analista, numa figura ainda mais narcísica, o       peuta, maior do que em qualquer outra
lugar no imaginário de Deus e do fetiche. E,        modalidade de clínica, também implica
tal o fetichista de carteirinha, o analista tam-    perdas maiores que em qualquer outra.
bém pode permanentemente desumanizar                Aqui, derivados da cisão ou de mecanis-
todo o resto do paciente em detrimento de           mos independentes como o controle, o
suas teorias e crenças, reduzindo-o ao certo        triunfo ou o desprezo pelo paciente ocor-
brilho no nariz. A frieza transitória de uma        rem para minorar a perda. Controle, triun-
situação cirúrgica torna-se a frieza perma-         fo ou desprezo, nomeava assim a Sra. Klein
nente do perverso.                                  as defesas maníacas.

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O ofício - quase impossível - do psicanalista

     O NÃO LUGAR DO GOZO                                      vidade de outros modos de gozo, aparente-
                                                              mente menores. A experiência trazida pelo
            Ao longo do tempo, o setting deve                 relato de leigos, por alunos e candidatos à
     deixar de ser lugar de gozo do sintoma do                formação, também em supervisões indivi-
     paciente. Se o paciente apresenta direta-                duais ou coletivas, subscreve outro lado da
     mente o sintoma na consulta ao início do                 questão, tão grave quanto o abuso sexual.
     tratamento, ou se passar a fazê-lo através da            Escreve Simon (2009, p.198): “Pela minha
     neurose de transferência, desfazer o sinto-              experiência, os pacientes, são com mais fre-
     ma, ou a transferência, é desfazer o gozo.               quência, explorados por dinheiro que por
     Do mesmo modo, é eticamente inadmissí-                   sexo”. Cremos que poucos analistas expe-
     vel que seja local de gozo do terapeuta. A               rientes discordariam. Também foi feito o
     satisfação do terapeuta teria de advir do                relato, em reuniões do Movimento de Ar-
     pagamento em dinheiro e do regojizo pelo                 ticulação das Entidades Psicanalíticas, de
     sucesso profissional. Teoricamente, porque               que a primeira sugestão do aparelhamento
     uma quantia exagerada como pagamen-                      psicanalítico de pastores tenha sido feita na
     to também pode ser gerada por um dese-                   década de 80 do século passado pela igreja
     jo perverso de gozo. E, para completar, as               evangélica mais famosa por sua avidez pelo
     motivações que conduziram o terapeuta a                  lucro e pelo poder político, assim como por
     sua escolha profissional, como vimos, ul-                seu descomunal patrimônio. Quanto ao
     trapassam muito a necessidade concreta de                problema da convivência institucional den-
     um ganha-pão. Grande parte do prazer do                  tro das sociedades psicanalíticas, a possibi-
     terapeuta está em reparar, através dos ou-               lidade de exploração política é igualmente
     tros, seus próprios objetos internos. Como               observável. Não que haja, na maioria dos
     tudo o mais quantitativamente exagerado,                 casos, uma intenção direta de dolo. Salvo
     o prazer terapêutico, derivado da sobra                  daqueles que podemos rotular predadores
     da análise pessoal, também pode ser ou se                terapêuticos.
     transformar em algo perverso quando em                          O mesmo autor menciona que a maio-
     sua busca de gozo. Devem-se franzir ligei-               ria das quebras de ética começa de forma
     ramente as sobrancelhas quando se escuta                 insidiosa, principalmente “entre a cadeira
     de alguém, que é paciente, algo como ter                 e a porta” (SIMON, 2009, p.199). Algumas
     tido uma sessão ótima porque meu analista                perguntas aparentemente inofensivas pelos
     jogou um monte de verdades na minha cara.                pacientes, outras respostas supostamente
     E também quando algum candidato ou co-                   anódinas pelo analista, mas que revelam
     lega relata algo como eu não sabia que era               gostos pessoais. À parte sugestões de to-
     tão divertido tratar crianças.                           dos os tipos pelo terapeuta, seja no setting,
            Quando a quebra da ética é menciona-              seja fora dele. Opiniões políticas sortidas
     da, ou é suposta a passagem de informações               reveladas pelo analista. Um passo além e
     confidenciais a terceiros, ou quase sempre               a solicitação de pequenos favores. No caso
     se pensa em uma relação sexual. Usemos o                 de vínculos institucionais, comentários so-
     chavão - rios de tinta foram escritos - para             bre problemas da sociedade psicanalítica e
     assinalar a questão da quebra de ética na re-            sobre colegas, ou até a indução de que se
     lação analista/paciente. Além da bibliogra-              tome determinada posição partidária. Ou
     fia psicanalítica, muitos livros e filmes utili-         seja, todos aqueles pequenos comentários
     zaram o tema, mas quase sempre se atendo                 sociais aos quais a não resposta fica pare-
     ao ato sexual. O que não pode ofuscar a gra-             cendo falta de educação ou uma ortodoxia

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O ofício - quase impossível - do psicanalista

técnica exagerada. Mas não o é. Transferên-            mais se o analista, ao mesmo tempo, ocu-
cia, resistência, regressão, Édipo, não desa-          pa o lugar de professor na formação psi-
parecem pelo simples ato mecânico de se                canalítica (merece lembrança a proposta
levantar do divã ou de uma cadeira. Pede-              inicial do CBP-RJ, de que os professores
se a devolução ou compra de um livro, de               não podiam ser analistas dos candidatos e
doces e salgados, uma pequena arrumação                vice-versa, proposta que, em longo prazo,
em algo do consultório, uma conversa social            mostrou-se inviável). Alunos e professo-
após a sessão, uma pequena extensão desta              res, análises à parte. E deixar-se o jargão
para poder se opinar melhor, talvez mar-               psicanalítico de lado. Todo jargão simpli-
car a sessão após o último paciente, quem              fica o diálogo entre os pares de uma co-
sabe é ainda melhor em um lugar fora da                munidade científica, mas se constitui de
neutralidade do setting, por exemplo, um               reducionismos e chavões. Uma tarefa fun-
barzinho. Caso o exemplo seja um tanto ca-             damental do analista é embarcar no campo
ricatural, temos a gravíssima afirmação de             semântico dos pacientes, sejam candidatos
Simon (2009, p.199):                                   ou não. Sem dar o valor de significado a
                                                       palavras abstrusas e usar os próprios ter-
      Os estudos também mostram que a revelação        mos que o paciente utiliza no vocabulário
      de informações pessoais por parte do terapeu-    de sua vida cotidiana. Aliás, fato que não
      ta para o paciente, em particular de fantasias   constitui qualquer novidade trazida pela
      sexuais e de sonhos, está correlacionada com     psicanálise. Já no ensino médico se apren-
      uma transgressão sexual futura.                  dia a usar o máximo possível as palavras
                                                       e expressões do paciente, entender através
       É direito dos pacientes atuar como Xe-          delas suas queixas e, através delas, tentar
razade: na forma e no conteúdo, o discurso             explicar o tratamento. Usar termos técni-
da sedução. No caso do analista, é sua fun-            cos com pacientes, além de ser pedante,
ção primária estabelecer os limites. Tem-se            é perigoso. Seja para médicos ou outros
de reconhecer que pequenos comentários                 profissionais, para os que desconhecem a
pessoais, a revelação de gostos e preferências,        área psi, ou para colegas e futuros colegas
posições políticas, além de inibir os pacientes        analistas, é útil e bom lembrar, como o faz
de manifestar opiniões opostas, também es-             Hirigoyen (2009, p.116) que:
tabelecem uma sutil ponte para criar nos pa-
cientes imagens do terapeuta. Imagens cuja                    Um outro procedimento verbal habitual nos
tendência é serem investidas narcisicamente,                  perversos é o de utilizar uma linguagem téc-
ao auxílio da transferência e da idealização.                 nica, abstrata, dogmática, para levar o outro
O manejo da linguagem é arte do ofício psi-                   a considerações que ele não compreende, e
canalítico, mas também do de políticos e per-                 para as quais não ousa pedir explicações, por
versos. O analista sabe que o suposto saber                   medo de passar por imbecil.
com que é investido é uma espécie de farsa a
ser usada no bom sentido. Os pacientes não             O CLIMA INCESTUAL
possuem esse conhecimento. Ou, quando, no
caso de candidatos já em formação psicanalí-                 A dúvida se o trauma infantil foi real
tica, eles o possuem e pela transferência, pas-        ou apenas fantasiado, ou uma combinação
sam a deixar de lado sua racionalidade.                de ambos, atormentou Freud durante a
       O conhecimento teórico igualmente               primeira década de suas descobertas. Em
pode ser mais uma arma de sedução. Ainda               realidade, tratou-se de um fantasma que
                                            Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010   27
O ofício - quase impossível - do psicanalista

     nunca deixou de afligi-lo e que foi revivido                    Em outro polo, podemos rotular de
     em suas discussões com Ferenczi. Discus-                 incestual um clima em que a intimidade en-
     são atualíssima, quando da descoberta, nas               tre pais ou cuidadores e a criança ou o ado-
     últimas décadas, de que a incidência do                  lescente é utilizado de forma abusiva, uma
     abuso sexual infantil e do incesto é muito               cumplicidade doentia. Neste caso, ocorre
     mais extensa do que o próprio Freud su-                  uma transgressão permanente da fronteira
     punha há um século. Assim como no caso                   entre relações de parentesco e relações so-
     de que a perda da ética, por uma posição                 ciais, em que os adultos, não suportando
     de gozo do terapeuta, é mais frequente                   seus problemas e angústias, tratam os filhos
     por abuso monetário que sexual, também                   como se fossem adultos, amigos íntimos e
     se deve pensar que o trauma não precisa                  até suplentes de cônjuge.
     ter se originado de um contato físico con-                      A aproximação ocorrida nas últimas
     creto, mas de todo um clima que podemos                  décadas entre pais e seus substitutos e fi-
     denominar de incestual. Escreve Hirigoyen                lhos, pela qual a psicanálise teve um gran-
     (2009, p.60):                                            de mérito, tem seu lado negativo em que
                                                              muitas vezes se perde a noção de que pai ou
            O incestual é um clima: um clima em que sopra     mãe, e melhor amigo(a) ou amigos(as) dos
            um vento de incesto sem que haja incesto. É o     filhos, ou deles mesmos, são funções dife-
            que eu chamaria de incesto soft. Não há nada      rentes. Dois exemplos quase caricaturais: a
            juridicamente condenável, mas a violência per-    mãe que trata o filho como confidente ín-
            versa está presente, sem sinais aparentes.        timo de seus problemas afetivos e sexuais,
                                                              ou até como suplente do ex-marido; o pai
           Claro que este clima se torna mais                 que incentiva e acompanha voyeuristica-
     ou menos patogênico na medida em que é                   mente as primeiras experiências sexuais e
     potencializado pela situação edípica e pelas             afetivas dos filhos. Consideram-se incestu-
     fantasias primevas. Englobam-se como in-                 ais esses e todos os casos em que se nega
     cestuais várias condutas. Num polo, a ero-               ser o relacionamento parental, e familiar
     tização exagerada na primeira infância, na               em graus mais distantes, carregado de tin-
     direção de uma sexualidade genital e fálica              tas edípicas exageradas. Justamente o prin-
     e não daquela perversa polimorfa da crian-               cipal motivo para a necessidade de amigos,
     ça. O que pode ocorrer por estímulos físicos             e outros relacionamentos fora do núcleo
     diretos ou, o que é muito mais comum nos                 familiar, é a sua função exogâmica. A apa-
     dias atuais, pelos estímulos visuais e sonoros           rente camaradagem ou intimidade, que
     da mídia. Há diferença entre o tesão adulto e            muitas vezes em realidade encobre condu-
     ternura infantil (sem a qual os adultos tam-             tas transgressivas entre pais e filhos, dife-
     bém não vivem). Como escreveu Ferenczi                   re do trabalho de: se preocupar, mas sem
     (1999, p.300, tradução do autor):                        exagerar na ansiedade transmitida; infor-
                                                              mar, mas sem cair no pornográfico; vigiar
            (...) na verdade as crianças não querem, de
                                                              e escoltar discretamente dando à criança e,
            fato, não podem ficar sem ternura (...) se mais
                                                              principalmente, ao adolescente a sensação
            amor e amor de um tipo diferente do que elas
                                                              de que está sendo livre, mas dando espaço
            precisam é forçado sobre as crianças no esta-
                                                              para sua intimidade e experiências sexuais;
            do da ternura, pode conduzir a conseqüências
                                                              mas, acima de tudo não transmitir em exa-
            patológicas do mesmo modo que a frustração
                                                              gero suas próprias angústias e fantasias se-
            ou a retirada do amor (...).
                                                              xuais, que serão sempre vivenciadas como

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O ofício - quase impossível - do psicanalista

incestuosas pelos filhos. Com o agravante          ma sessão e mesmo de que volte; um dia não
de que essas fantasias sexuais colocam a           voltará nunca mais. Dentre os motivos que
criança ou adolescente a serviço do desejo         podem causar ou acentuar o clima inces-
do adulto e inibem aquelas fantasias que se-       tual entre pais ou substitutos e filhos, está
riam próprias deles mesmos e de sua idade.         a incapacidade de aceitar a perda e a pró-
Difere da pedofilia explícita e da sedução         pria depressão. Reparar os objetos internos
de menores prevista no código penal, mas           através dos filhos ou substitutos implica o
o cerne da ética kantiana também é negado,         reconhecimento de que a própria infância e
e se instrumentaliza o outro como coisa a          juventude ficaram para trás. Se todo pacien-
serviço de si mesmo.                               te coloca o terapeuta como pai e mãe, para
                                                   o analista ele é sempre uma espécie de filho
O CLIMA INCESTUAL NA TERAPIA                       ou filha. A situação transferencial repete o
                                                   mesmo sentimento de ameaça da ausência
       O clima incestual pode ser criado e re-     futura. A incapacidade de aceitar esse sen-
vivido em qualquer terapia. A crítica contra       timento, associada à fantasia de que, em se
a neutralidade psicanalítica como algo anti-       tornando colega, o paciente estará sempre
quado frequentemente serve de justificativa        presente e sua falta nunca será sentida, le-
para tratamentos mais modernos, em que             vam a um clima de promíscua intimida-
o terapeuta se coloque ao lado do paciente.        de. Mas, como acontece na vida real, não
À parte muitos casos em que a neutralida-          adianta que o filho adulto seja feliz e bem
de encobre a incapacidade técnica, deve-se         sucedido: o bebê gordinho foi embora para
pensar duas vezes quando se fala de frieza,        sempre e, pior, sempre se casa com quem
indiferença ou apatia do analista. Fornecer        não se escolhe.
opiniões pessoais sobre assunto como polí-               Portanto, as escolhas dos pacientes
tica e instituição, contar de sua vida pessoal,    ao longo da análise são outro problema.
falar de suas crenças e esperanças. Seria mui-     Mesmo no mais ortodoxo psicanalista
ta ingenuidade não perceber que, no setting,       corre o sangue de um possível terapeuta
toda informação objetiva é acompanhada de          de ego. As escolhas dos pacientes muitas
fantasia inconsciente, e já vimos que se trata     vezes abalam a tão decantada neutralida-
de uma forma de sedução. Tenha o paciente          de analítica (especialmente no caso das
passado ou não por ele em sua infância ou          opções sexuais). Já correu também muita
adolescência, surge o clima incestual. Além        tinta sobre o perigo da análise de ego em
do que, se o analista sabe que não é a mãe         sua tentativa de moldar o paciente tendo
ou o pai verdadeiro, muito mais deve saber         o analista em sua suposta sanidade men-
que não é o melhor amigo ou companheiro            tal como modelo identificatório, e insistir
de bar. Por sua ancoragem na cisão benigna         no terrível: eu sei o que é melhor para você.
do eu, a análise é a mais íntima das relações,     O problema do modelo é que se trata do
num grau que o melhor amigo ou o compa-            eu ideal do terapeuta. E, em se tratando
nheiro de bar não podem ser e, ao mesmo            de eu ideal, caímos novamente na questão
tempo, uma relação mais artificial e distante      do narcisismo e do imaginário. Caímos no
que a de um cirurgião e seu paciente na mesa       reforço superegóico, no lado negro e cas-
de operação.                                       trador do supereu, e também nas fantasias
       Outro complicador é o eternamente           e fantasmas do terapeuta. À semelhança
presente sentimento de perda: não há garan-        dos pais que, por sua angústia e depressão
tia alguma de que o paciente volte na próxi-       jogam suas fantasias e condutas sexuais

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O ofício - quase impossível - do psicanalista

     sobre os filhos, a transmissão excessiva des-            aceitas, temos ainda de pensar em suas va-
     sas fantasias e fantasmas, que sempre ocor-              riantes. A mais frequente é a mistura de
     re em algum grau, também cria um clima                   esoterismo e psicanálise, em que crenças
     incestual. E deixa-se de estar a serviço do              pessoais e transferência são embrulhadas
     desejo do paciente para se estar a serviço do            junto com aconselhamento e auto-ajuda.
     desejo do terapeuta.                                     Ao contrário do intervencionismo explíci-
           Pode-se pensar, num primeiro mo-                   to do comportamentalismo, que se realiza
     mento, que o prejuízo ao paciente advém                  em um contexto terapêutico muito diferen-
     apenas porque, “quando você tempera os                   te, temos: o amável e modernoso terapeuta
     rigores da análise com doses criteriosas de              new-age, que pode ir de crenças orientais
     bondade e amabilidade, retira a liberdade                ao espiritismo; a bondosa beata, que asso-
     do paciente, pois é você quem decide o que é             cia seu certificado de teologia com um de
     melhor para ele” (MALCOLM, 2005, p.86).                  pseudopsicanálise; a psicanalista revolta-
     A realidade é mais perversa. A construção                da com sua instituição, que passa metade
     do clima incestual no setting, pela desculpa             da sessão falando de política institucional.
     de técnicas menos ortodoxas que mascaram                 Todos fidedignamente recriam o trauma
     práticas intervencionistas, recria o trauma              do clima incestual. Pensando bem, Anna
     do clima incestual da infância. Lembrando                Freud e Hartmann eram melhores.
     que o paciente é, por criação do analista e
     direito próprio, um regredido e um edípico               CONCLUSÃO:
     acentuado, sua resposta não será a de um                 RESTOS E SUBLIMAÇÃO
     adulto, mas a de uma criança dependente
     da ternura do adulto. Em grau mais leve, a                      Se o desejo de se tornar analista surge
     criança tentará sempre se moldar às solici-              durante uma análise, trata-se de um sinto-
     tações do adulto. Citando novamente Fe-                  ma. Sem esse sintoma, neurótico, até meio
     renczi em seu mais famoso artigo (FEREN-                 psicótico, se tornar analista apenas calculan-
     CZI, 1999, p.294, tradução do autor):                    do na ponta do lápis o ganho financeiro e a
                                                              reputação profissional, trata-se de um sinto-
            Cheguei à conclusão de que os pacientes pos-      ma perverso, por não estar ancorado na an-
            suem uma sensibilidade extraordinariamente        siedade e na culpa, apenas na satisfação do
            refinada para as vontades, tendências, capri-     ego e do narcisismo. Além de também ser
            chos, simpatias e antipatias de seu analista      uma má decisão em termos financeiros, hoje
            [...] ao invés de contradizerem o analista ou     também é um pouco duvidosa no que tange
            o acusarem por seus erros e cegueira, os pa-      a reputação.
            cientes se identificam eles próprios com ele             O fato de o CBP-RJ constituir uma
            [...].                                            instituição ancorada em uma predominân-
                                                              cia absoluta de analistas leigos permite al-
           Num grau mais patológico, cria-se                  gumas constatações. Médicos e psicólogos,
     ou recria-se uma sedução não menos grave                 à parte de qual especialidade ou corrente
     que a de uma relação sexual concreta, com o              sigam, possuem os problemas de onipotên-
     agravante de que o terapeuta permanece im-               cia e sentimento de culpa, de sublimação e
     pune diante do código de ética profissional e            reparação que discutimos no início.
     da legislação criminal.                                         Mas, tendo acompanhado dezenas
           Se hoje as condutas intervencionistas              de candidatos leigos em formação, obser-
     de Anna Freud ou Heinz Hartmann, e toda                  vamos algumas vezes que o sintoma de se
     a escola de psicologia do ego, não são mais              querer ser analista simplesmente desapa-

30   Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
O ofício - quase impossível - do psicanalista

rece. O candidato chega à saudável con-              Referências
clusão de que deve continuar em análise e
permanecer em sua profissão de origem.
Em alguns outros casos, o recalque ganha             CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE. Esta-
a vez, o sintoma dá lugar a outro mais gra-          tuto - Carta de princípios. Estudos de Psicanálise, Rio
ve, e o candidato abandona a formação e a            de Janeiro, n. 29, p. 13, set. 2006.
análise. Apenas em uma percentagem, tal-
                                                     FERENCZI, S. Confusion of tongues between adults
vez de um terço dos candidatos iniciais, o
                                                     and the child (The language of tenderness and of
sintoma seja ainda mais grave, indicando
                                                     passion) [1933]. In:____. Selected writings. Penguin
que restos provavelmente inanalisáveis im-
                                                     Books,1999.
pelem o candidato até o final da formação.
       Chegamos à conclusão de que uma               FREUD, S. Fetichism. In: ____. The standard edition
ligeira ansiedade e um sentimento de cul-            of the complete psychological works of Sigmund Freud,
pa não tratável, junto com a cronificação de         xxi. London: The Hogarth Press and the Institute of
uma necessidade de sublimação e reparação,           Psycho-Analysis, 1978.
associadas à incapacidade de completa desti-         FREUD, S. Papers on technique. In ____. The stan-
tuição narcísica, assim como uma recorren-           dard edition of the complete psychological works of
te cisão do eu, constituem requisitos indis-         Sigmund Freud, xii. London : The Hogarth Press and
pensáveis para a efetivação do desejo de ser         the Institute of Psycho-Analysis, 1978.
analista. O que pode dar subsídio para um
bom terapeuta, mas, sem dúvida, uma per-             FREUD, S. Splitting of the ego in the process of de-
                                                     fence. In: ____. The standard edition of the complete
sonalidade complicada para o convívio ins-
                                                     psychological works of Sigmund Freud, xxiii. London:
titucional.
                                                     The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Ana-
                                                     lysis, 1978.
Keywords
Reparation, splitting, loss, incestous climate,      HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral - a violência per-
non-analyzable remains.                              versa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
                                                     2009.
Abstract                                             HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. La dialetique de
The choice of psychoanalysis as a job: subli-        la raison. Gallimard, 1989.
mation and maniacal reparation. Features of
splitting and loss in the therapeutic relation-      KANT, E. Fundamentação da metafísica dos costu-
ship. Rupture in the ethics: more subtle cases.      mes. Os Pensadores, vol. XXV. São Paulo: Abril Cul-
Incestous climate on the couch. Artful and           tural, 1974.
unfair means disguised as more modern or             KLEIN, M. On identification. Envy and gratitude
human techniques. Unalysable remains and             and other works. Second impression. London: The
the choice of psychoanalysis as a job.               Hogarth Press and The Institute of Psycho-Analysis,
                                                     1980.

                                                     LACAN, J. Kant avec Sade. In: ____: Ecrits. Paris:
                                                     Seuil, 1986.

                                                     LOPES, A.; RIBEIRO, M. M. C. Apresentação das reu-
                                                     niões da articulação das entidades psicanalíticas bra-
                                                     sileiras. In ALBERTI, S.; AMENDOEIRA, W.; LAN-
                                                     NES, E.; LOPES, A.; ROCHA, E. (Orgs.). O ofício do
                                                     psicanalista. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009

                                          Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010     31
O ofício - quase impossível - do psicanalista
     MALCOLM, J. Psicanálise - a profissão impossível. Rio
     de Janeiro: Relume-Dumará, 2005.

     QUINET, A. A estranheza da psicanálise – a escola de
     Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
     2009.

     SIMON, R.I. Homens maus fazem o que homens bons
     sonham. Porto Alegre: Artmed, 2009.


     Tramitação

     Recebido: 06/04/2010
     Aprovado: 23/06/2010
     Nome do autor responsável:
     Anchyses Jobim Lopes
     End: Rua Marechal Mascarenhas de Morais
     132 ap. 308
     Copacabana
     CEP: 22030-040. Rio de Janeiro - RJ
     Fone: (21) 2549 5298
     E-mail: anchyses@terra.com.br




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Estudos de psicanálise
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  • 1. ESTUDOS DE PSICANÁLISE ISSN - 0100-3437 Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise Julho/2010 – Aracaju-Se Número 33 Estudos de Psicanálise Aracaju-Se N. 33 P. 13 - 158 Julho / 2010
  • 2. Indexada em: CLASE (UNAM – México) IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP Ficha Catalográfica ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Aracaju. Círculo Brasileiro de Psicanálise, n. 33, jul., 2010. 158 p. Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm 1. Psicanálise – periódicos
  • 3. Revista Estudos de Psicanálise EDITORES DA REVISTA Déborah Pimentel (CPS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) CONSELHO CONSULTIVO Anchyses Jobim Lopes (CBP/RJ) Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG) Carlos Pinto Corrêa (CPB) Cibele Prado Barbieri (CPB) Fernando Cesar Bezerra de Andrade (SPP) Isabela Santoro Campanário (CPMG) Luis Martinho Ferreira Maia (SPP) Marcelo Wanderley Bouwman (CPP) Noeli Reck Maggi (CPRS) Philippe Bessoles (Paris 7 - França) Stetina Trani de Meneses e Dacorso (CBP/RJ) CONSELHO EDITORIAL Cecília Tereza Nascimento Rodrigues (CPS) Déborah Pimentel (CPS) Maria das Graças Araújo (CPS) Patrícia Aranda Garcia de Souza (CPS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) CAPA Trabalho em tapeçaria Título: Fim de sessão Maria Aparecida Nascimento Dias Psicóloga - Psicoterapia infantil Imagem cedida pela autora FOTOGRAFIA: Sérgio Silva ENDEREÇO DA REDAÇÃO Praça Tobias Barreto, nº 510 - São José Ed. Centro Médico Odontológico, 12º andar, sala 1208 CEP: 49015-130 Aracaju - Se cbp_br@ig.com.br www.cbp.org.br PROJETO GRÁFICO Valdinei do Carmo EDITORAÇÃO DE TEXTO E IMAGEM Antônio Almeida REVISÃO José Araújo Filho (UFS) - Português Fernanda Gurgel Raposo - Inglês
  • 4.
  • 5. Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP DIRETORIA Presidente Déborah Pimentel Vice-presidente Cleo Malmann Primeira Secretária Patrícia Aranda Garcia de Souza Segunda Secretária Maria das Graças Araújo Primeira Tesoureira Cecília Tereza Nascimento Rodrigues Segunda Tesoureira Patrícia Aranda Garcia de Souza Editores da Revista Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto Consultoria Administrativa e Diretoria Científica Carlos Pinto Corrêa Cibele Prado Barbieri Maria Mazzarello Cotta Ribeiro Anchyses Jobim Lopes Revista Eletrônica e home-page Cibele Prado Barbieri Representante junto à Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras Anchyses Jobim Lopes
  • 6.
  • 7. Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP INSTITUIÇÕES FILIADAS Círculo Brasileiro de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro - CBP/RJ Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 - Copacabana CEP: 20050-002 - Rio de Janeiro - RJ Tel: (21) 2236 0655 Fax: (21) 2236 0279 E-mail: cbp.rj@terra.com.br Site: www.cbp-rj.com.br Círculo Psicanalítico da Bahia - CPB Av. Adhemar de Barros, 1156/101, Ed. Máster Center - Ondina CEP: 40170-110 - Salvador - Ba Tel /Fax: () 3245 6015 E-mail: circulopsi.ba@veloxmail.com.br Site: www.circulopsibahia.org.br Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG R: Maranhão, 734/3º andar - Santa Efigênia CEP: 30150-330 - Belo Horizonte - MG Tel: (31) 3223 6115 Fax: (31) 3287 1170 E-mail: cpmg@cpmg.org.br Site: www.cpmg.org.br Círculo Psicanalítico de Pernambuco - CPP R: Desembargador Martins Pereira, 165 - Rosarinho CEP: 52050-220 - Recife - Pe Tel: (81) 3242 2352 Fax: (81) 3242 2353 E-mail: circulopsicanaliticope@yahoo.com.br Site: www.circulopsicanaliticope.com.br Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul - CPRS R: Senhor dos Passos, 235 / 1001 - Centro CEP: 90020-180 - Porto Alegre - RS Tel/Fax: (51) 3221 3292 E-mail: circulopsicanaliticors@gmail.com Site: www.cbp.org.br/cprs Círculo Psicanalítico de Sergipe - CPS Praça Tobias Barreto, 510/1208 - São José Ed. Centro Médico Odontológico CEP: 49015-130 - Aracaju - Se Tel: (79) 3211 2055 E-mail: cps@infonet.com.br Site: www.circulopsicanalitico-se.com.br Sociedade Psicanalítica da Paraíba - SPP Av. Presidente Epitácio Pessoa, 753 sl.803/804 - Bairro dos Estados Ed. Central Parque CEP: 58030-000 - João Pessoa - Pb Tel/Fax: (83) 3247 4025 E-mail: sppb@uol.com.br Site: www.sppb.com.br
  • 8.
  • 9. Sumário 11 13 Editorial Psicopatia da vida cotidiana Psychopath of everyday life Déborah Pimentel 21 O ofício – quase impossível - do psicanalista The job – almost impossible - of the psychoanalyst Anchyses Jobim Lopes 33 Casa da árvore, um lugar para brincar e conversar: uma proposta de atendimento coletivo para crianças de zero a doze anos em comunidades carentes do Rio de Janeiro e Niterói Casa da Árvore, a place for talking and playing: a collective treatment proposal for children from 0 to 12 years old in destitute communities in the cities of Rio de Janeiro and Niterói Beatriz de Souza Lima 49 O nome do pai e o laço social no Grande Sertão: Veredas The Name of the Father and the social bonds in “Grande Sertão: Veredas” Eliana Rodrigues Pereira Mendes 55 Questões sobre a psicopatologia do amor quotidiano Questions about the psychopathology of everyday love Isabela Santoro Campanário 61 Mídia e o espelho da masculinidade? The media and the mirror of masculinity? Júlio César Diniz Hoenisch Carlos da Silva Cirino 75 Nachträglichkeit: leituras sobre o tempo na metapsicologia e na clínica Nachträglichkeit: readings about time in metapsychology and clinic Luis Maia Fernando Cézar Bezerra de Andrade 91 O escorpião e o sapo: o quê da perversão The scorpion and the frog: the point of perversion Maria Beatriz Jacques Ramos 101 Das origens da sexualidade feminina ao feminino nas origens da psicossexualidade humana From the feminine sexuality to the feminine into the human psychosexuality origin Maria das Mêrces Maia Muribeca
  • 10. 109 A clínica do traumatismo sexual: mediação e desengajamento do traumático The clinic of sexual trauma: mediation and trauma disengagement Philippe Bessoles Marilúcia Lago 117 O que será: indagações da paixão What will it be: investigations of passion Miriam Elza Gorender 125 A patologização da normalidade The pathologization of normality Paulo Roberto Ceccarelli 137 Psicanálise e arte: o programa de humanização no hospital São Lucas em Sergipe Psychoanalysis and art: the humanization programme in São Lucas hospital in Sergipe Ricardo Azevedo Barreto 147 Psicanálise e crítica literária Psychoanalysis, literature and literary criticism Stetina Trani de Meneses e Dacorso
  • 11. Editorial O Círculo Brasileiro de Psicanálise fomenta uma convivência frutífera da hete- rogeneidade do pensamento psicanalítico em seu meio. Não defendemos uma Psica- nálise enclausurada e dogmática, mas um lugar para o psicanalista atento às proble- máticas atuais. Nossa perspectiva teórico-metodológica se reflete em nossas produções cien- tíficas. Alcançamos com êxito e muito esforço nesta edição o número 33 da revista Estudos de Psicanálise que – como um caleidoscópio – desenha uma pluralidade de saberes e/ou práticas psicanalíticas de membros de nossa Federada e expoentes de diferentes instituições de nosso país e do exterior. Muito nos honra produzirmos, como editores da revista, no biênio vigente da Diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise, nosso segundo exemplar. Mais ainda, por termos travado, como meta, a produção de dois periódicos por ano, com notável qualidade técnico-científica, o que só se tornou possível com as valiosas contribuições dos conselheiros de nossa publicação e dos profissionais que trabalham conosco na consecução do projeto gráfico, da editoração de texto/imagem e da revisão sistemática de linguagem. A história de nossa revista de quatro décadas e o alcance de nossas produções, que chegam à totalidade da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia e ultrapassam as fronteiras da brasilidade, exige-nos cada vez mais rigor científico. É o que buscamos incessantemente. Por outro lado, a beleza da Psicanálise nos motiva e permite enfrentar os desa- fios e o mal-estar na civilização. A capa que reveste os instigantes textos que aqui se encontram, portanto, não poderia ser menos do que encantadora, um convite ao ima- ginário, a nos depararmos com as dualidades e profundezas da alma humana. Convite esse que, de forma calorosa, reiteramos a todos os leitores deste acervo de escritos. Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto Editores
  • 12.
  • 13. Psicopatia Da Vida Cotidiana1 Psychopath of everyday life Déborah Pimentel2 Palavras-chave Psicopatia, perversão, lei, tratamento. Resumo A autora faz uma análise das notícias veiculadas pela imprensa e a partir delas percebe-se o grande número de pessoas que são vítimas de gente inescrupulosa e mentirosa e a dificuldade que temos de identificar esses sujeitos perversos que gravitam ao nosso redor. São pessoas que se recusam a viver frustrações e capazes de atrocidades e de recursos ilícitos ou agres- sivos para alcançarem o que desejam a despeito da lei e que recorrem às mentiras, trapaças e crueldades. A autora conclui que não existe uma resposta psicanalítica para os psicopatas, pois ela só existe para um pedido daquele que se dirige a um psicanalista. O tratamento para a psicopatia, se é que existe, é de ordem social e de caráter educativo. O homem é a medida de todas as coisas. Vivemos uma terceira fase: a socieda- Platão de do espetáculo, narcísica e perversa. Palavras antes usuais, como solida- Estou triste. Muito triste. Vi os homens de riedade e companheirismo, por exemplo, perto. De muito perto. desapareceram do vocabulário e das rela- Antoine de Saint-Exupéry ções do cotidiano. Os índices de violência são crescentes, quer nas ruas, quer nas áreas Houve um período em que a maioria privadas; reinam a intolerância e a insegu- da população era bem neurótica. Para me- rança. lhor definição, histérica. Estragavam tudo no Somos uma sociedade em que o sta- melhor da festa para dormir com um gigante tus social e a imagem que o sujeito constrói sentimento de culpa, cheios de ansiedade e e vende de si mesmo é que vão dizer da sua de tranquilizantes. importância como sujeito. Há uma cultu- Mais adiante a sociedade deprimiu e ra da mais valia, da Lei do Gérson, do le- nunca se falou tanto, e se prescreveram tan- var vantagens em tudo, ser esperto. Valores tos psicofármacos para a alegria dos labora- como honestidade, nobreza, generosidade, tórios. amizade são ignorados ou tidos como atri- Os tempos mudaram, e as manifesta- butos de pessoas bobas ou ingênuas. ções psíquicas apresentam-se de forma vis- Talvez esta seja uma grande oportu- tosa, quer no uso das drogas, no consumo nidade de dialogarmos com outras áreas do exacerbado, no jogo patológico, no uso alie- conhecimento e oxalá, articularmos melhor nante do computador, no culto ao corpo, nos nossos pensamentos entre a Lei e a Cultura, transtornos alimentares, ou ainda nas trans- em um momento em que vivemos uma cri- gressões e violência. se que denuncia a falência das instituições 1 Discurso proferido na abertura do XVIII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise, dia 20 de maio de 2010 no Rio de Janeiro. 2 Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise para o Biênio 2008-2010. Editora da Revista Estudos de Psicanálise. Doutoranda em Ciências da Saúde, curso do Núcleo de Pós-graduação em Medicina da Univer- sidade Federal de Sergipe. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010 13
  • 14. Psicopatia da vida cotidiana pilares da sociedade: família, igreja e gover- A Igreja Católica também tem sido, no. nos últimos meses, a vedete de grande cons- No seio familiar, protegem-se demais trangimento público e tenta, desarticulada e os filhos, e se diz a eles apenas o que eles desajeitadamente, se redimir dos seus peca- querem ouvir; os pais antecipam-se aos seus dos, porquanto, por décadas, as autoridades desejos, não permitindo que aos filhos nada eclesiásticas têm sido omissas e até coniven- falte. Gravíssimo pecado dos tempos atuais. tes com os padres pedófilos, que por sua vez, Observem, pois, os filhos da atualidade. passam o dia falando no amor e temor às leis Eles são esvaziados de desejos e de projetos. de Deus. São simulados. Não sabem o que querem ser no futuro, não Há poucos dias, uma notícia na Folha sabem o que vão fazer amanhã, não querem de São Paulo nos arrebatou pelo seu conte- pensar. Estão insuportavelmente insatisfeitos, údo: um falso padre enganou fiéis por dois se dizem infelizes e incompreendidos. anos com homilias impecáveis, realização Quando frustrados, se são crianças, fa- de casamentos, batizados, missas e ouvindo zem crise de birra, deitam no chão, gritam e confissões. esperneiam e conseguem o que querem ime- É frequente assistirmos governantes diatamente, principalmente se estão em pú- explicarem com naturalidade desvios de blico, por saberem como constranger os pais. verbas públicas, caixa dois, mensalões, ma- Desde muito pequenos aprendem rápido las de dinheiro, frutos de improbidades, cor- como manipular os adultos, principalmente rupção e sonegação. os que se sentem culpados pelo seu estilo de Há uma ausência de culpa ou remorso vida: muito trabalho e pouca atenção aos fi- e total falta de constrangimento dessa tribo lhos, que crescem cheios de presentes e pouca política, quando pegos em flagrante com presença dos pais. Quando se tornam adultos, dinheiro nas cuecas e meias, ou mentindo, são intolerantes às diferenças e se recusam a como certa candidata ao cargo de presiden- viver frustrações; são capazes de atrocidades te da República que fraudou seu curriculum e de recursos ilícitos ou agressivos para al- lattes, dizendo que era mestre e doutora sem cançar o que desejam a despeito da lei e de ser uma coisa ou outra. obstáculos de qualquer natureza. Recorrem Os políticos possuem, como bons psi- às mentiras, trapaças, crueldades. copatas, um grande talento para distorcer as Se abrirmos os jornais ou assistirmos regras, reinterpretar as leis a seu favor, ou as ao noticiário da televisão com um novo reinventar e, simultaneamente, levantam a olhar, facilmente perceberemos a extensão ética como bandeira e entram em movimen- desse problema que é absolutamente estar- tos de combate à corrupção. Claro que nem recedor. Senão, vejamos. todos os políticos são psicopatas, mas não Há poucas semanas, nos noticiários, há dúvida de que psicopatas amam o poder vimos a condenação dos pastores Estevam e e por isso se interessam tanto pela política. Sonia Hernandes, líderes da igreja Renascer Definitivamente não há, aparentemen- em Cristo, que deixaram de prestar contas te, mais nenhuma reserva ética e moral. So- de uma das suas ONGs, mas que também brou muito pouco ou quase nada. Vivemos vêm sendo processados por centenas de fi- em um mundo competitivamente selvagem éis e pelo próprio Ministério Público por e sem lei, principalmente para muitos que sonegação, fraudes e enriquecimento ilícito estão no poder e que manipulam as regras às custas das doações dos seguidores de sua de acordo com as suas conveniências. igreja. A dupla já cumpriu pena de prisão em Sem leis rígidas, a violência se torna Miami por tentar ingressar nos Estados Uni- crescente, e, em contrapartida, a impuni- dos com 56.000 dólares não declarados. dade em alguns segmentos torna-se uma 14 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010
  • 15. Psicopatia da vida cotidiana aberração e uma agressão ao bom-senso dos 31 anos criou dispositivos financeiros que cidadãos do bem. arruinaram muitos clientes, principalmente Estamos próximos ao período eleitoral viúvas ingênuas, em favor do banco, venden- e, é assustador vermos a grande massa abso- do papéis que sabia serem podres, atitude lutamente desinformada e manipulada e as- descrita por ele mesmo em e-mails confes- sim capaz, pelo seu número de eleitores, de sionais para a namorada como monstruosi- deflagrar resultados em troca de cestas bási- dade, mas que renderam muito para o banco cas. É espúria a relação do governo federal e muitos bônus e prestígio para ele próprio. com grupos rurais organizados que recebem Há de se desfiar um rosário de exem- sua ajuda, aval, financiamento e leniência e plos sobre as psicopatias do cotidiano. Nunca invadem terras produtivas, destroem, depre- se falou tanto em assédio moral e, mais recen- dam e saqueiam propriedades privadas em temente em bullying, outra modalidade de as- cenas de banditismo explícito. sédio caracterizada pela humilhação promo- Na polícia, floresce um meio propício vida entre escolares, crianças e adolescentes, para os psicopatas e talvez isso seja mais um que desestabiliza as vítimas, promovendo si- ponto a ser estudado, pois não há procedi- nais de depressão, ansiedade, angústia, com mentos para evitar que eles entrem nessa muitas lágrimas, medo e constrangimentos e instituição, que é bastante atraente, por lhes com francos efeitos no corpo e na alma. conferir poder e legitimidade para as suas Por vivermos em tempos modernos, ações, não raro descritas pela mídia como de era cibernética, agora falamos também em muita crueldade. cyberbullying: os agressores também es- Existem empresas que têm essas carac- tão on-line. Como mais de dez milhões de terísticas também, pois não respeitam acio- jovens brasileiros têm uma relação quase nistas, sócios, funcionários, nem consumido- visceral com a internet, local de encontros res e clientes. Organizações que burlam seus e bate-papos no MSN, Orkut, Facebook e resultados para vender melhor as suas ações agora Twitter, os agressores, quando criam na bolsa ou as que fraudam o peso de merca- falsos perfis ou comunidades especializadas dorias, como as duas importantes fábricas de em agredir e denegrir, conseguem promo- chocolates Lacta e Garoto, que foram autua- ver uma dor inexorável ao manchar uma das no mês de maio deste ano pela Secretaria identidade e uma imagem ainda em cons- de Direito Econômico do Ministério da Jus- trução. É o inferno cibernético. tiça, por não avisarem aos consumidores que Precisamos, sem dúvida, revisitar seus ovos de páscoa estavam pesando menos conceitos básicos que parecem perdidos: do que os tamanhos anunciados e assim aufe- ética, empatia e tolerância; eles farão di- riram importante lucro com estas manobras. ferença na nossa compreensão do mundo Nas empresas, portanto, psicopatas es- moderno que traz como marca a psicopatia tão instalados com sucesso. Eles possuem os da vida cotidiana. principais atributos desejados pelos líderes Há alguns dias, vimos uma cena no empresariais, como ambição, inteligência, noticiário que beira o inimaginável: uma capacidade analítica e de liderança, carisma mulher sendo assaltada e lutando com o e disposição para enfrentar desafios. bandido para defender sua bolsa dentro de Muitos se sentem atraídos por ativida- uma delegacia, enquanto os policiais assis- des de alto risco com perspectivas de altos tiam à cena e não moveram um único mús- retornos. A Revista Veja do dia 5 de maio de culo, esboçando sequer um discreto gesto 2010 traz a história de Fabrice Tourre que tra- de impedimento da agressão. balhava para o mais importante banco de Wall A violência dos dias atuais tanto pode Street: Goldman Sachs. O jovem executivo de ser à luz do dia, nas ruas ou na delegacia, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010 15
  • 16. Psicopatia da vida cotidiana explícita, como aquela protagonizada pela mos ou voltarmos a nos instrumentalizar de ilustre promotora na intimidade de sua casa, forma adequada para estas reações. onde torturava covardemente sua indefesa Quem sabe, os pais e professores não filha adotiva de apenas dois anos de idade; poderiam ser mais bem instrumentados para como aquela outra, não se sabe qual mais perceber, ainda nas crianças e adolescentes, perversa, praticada pelo Estado omisso, em sinais precoces de transtornos de conduta: que se veem crianças, adultos e velhos aban- mentiras, crueldade e frieza emocional com donados nas ruas à própria sorte e privados ausência de culpa, transferência de respon- de satisfações mínimas para uma existência sabilidades, postura de desafio com pais e com dignidade e, por conseguinte, dos seus professores, vandalismo, fraudes, uso preco- direitos como cidadãos, garantidos, parado- ce de álcool e drogas. xalmente, por que não dizer, ironicamente, Sabe-se que a psicopatia não tem cura, pela nossa Carta Magna. mas, quem sabe, se um olhar mais atento O pior, entretanto, pasmem, nós es- não poderia ser útil, senão, de forma exa- tamos entorpecidos diante dessas notícias e geradamente otimista, evitando um quadro cenas brutais e assistimos a elas muitas vezes mais exacerbado de psicopatia na vida adul- sem reação, sem afeto, sem nenhuma indig- ta, mas também, principalmente, protegen- nação. E com essa capacidade perdida, já há do possíveis vítimas e evitando suas trágicas algum tempo, na verdade, cremos que em- e nefastas ações. botamos também a capacidade reflexiva. É a Nem sempre os psicopatas são identi- mídia, repetindo exaustivamente relatos dos ficados, depende muito do grau de psicopa- dramas familiares e cenas de barbárie, como tia, se baixa, moderada ou grave. Muitas ve- as que envolvem o goleiro Bruno que mandou zes, convive-se com eles no cotidiano, pois assassinar a sua ex namorada com requintes nem todos se transformam em marginais ou de crueldade, que cria em nós um efeito de assassinos, e levam uma vida aparentemente comoção, que não sabemos ser natural ou ar- normal, exercendo seu grande poder de se- tificial. dução, manipulando, traindo, tirando van- A violência e a vida foram banali- tagens e fragilizando os mais vulneráveis, zadas. A maldade dança sob nossos olhos em relacionamentos predatórios com quem ininterruptamente e se maquia e se masca- cruzam pelo caminho e que podem tornar- ra de diversas formas, de sorte que para os se presas fáceis do seu gozo perverso. que tomam conhecimento dela, quer como Existem também aqueles que se trans- testemunhas oculares, quer nos noticiários, formam em homicidas ou, pior, serial killers. seus efeitos são inócuos e é aceita como algo Não faltam exemplos. O mais recente foi há natural do cotidiano. Entretanto ela é devas- três meses, um fato de grande comoção e re- tadora para quem é a vítima, a ponto de o percussão social. Mediante o regime de pro- sujeito, em certas circunstâncias, não mais se gressão de pena, um benefício foi concedido equilibrar, e fenecer, morrer. ao pedreiro Admar que trazia Jesus no nome, No reino animal, o homem é o único assassino confesso de seis jovens de Luziânia capaz de matar e tem inclusive o requinte de (GO), e que cumpria pena por crime de pe- planejar a morte de outros de sua espécie, dofilia. Por ter bom comportamento, o juiz movido por retaliação, ambição, conveniên- decidiu pela soltura, mesmo havendo um pe- cia, pela incapacidade de gerenciar as dife- dido da promotora do caso para um segun- renças ou por mero prazer. do exame criminológico. Ele foi liberado e Uma das perguntas que podemos nos voltou a matar. Ato contínuo e tardio, dia 15 fazer é se de alguma sorte não poderíamos de abril de 2010, o Ministro da Justiça, Luiz resgatar a nossa capacidade de nos indignar- Paulo Barreto, defendeu a realização obriga- 16 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010
  • 17. Psicopatia da vida cotidiana tória de exames criminológicos com avaliação to a estuprar”. Perversa, portanto, é a lei que ampla da capacidade para convivência social, quer tratar os diferentes de forma igual aos antes da soltura de presos que apresentem dis- demais e que deixa a sociedade desprotegi- túrbios de comportamento, evitando riscos da. Parece que passou da hora de se rever para a segurança da sociedade. a lei para crimes hediondos. Da psicopatia A psiquiatra forense Hilda Morana foi não se pode esperar cura, redenção ou rea- a Brasília em 2004 tentar convencer deputa- bilitação social. dos a criar prisões especiais para psicopatas. O Ministro da Justiça reconhece que Conseguiu fazer a ideia virar um projeto de as pulseiras eletrônicas também não resol- lei, que não foi aprovado. Parece que se faz vem o problema, mas podem ser uma fer- necessária a comoção nacional diante de um ramenta importante na fase de reintegração novo crime que poderia ter sido evitado para (que não deveria existir) e liberdade condi- que se force o endurecimento da lei. cional. Preso novamente, Admar de Jesus, As nações que fazem o diagnóstico dos morreu na prisão em condições pouco es- marginais reclusos têm a reincidência dos cri- clarecedoras. Possivelmente foi punido pela minosos diminuída em dois terços, uma vez lei dos presos, que abominam pedófilos e que mantêm mais psicopatas longe das ruas. estupradores. Lá a lei é dura e invariavel- Se tivesse havido a aplicação de algum mente é aplicada. sistema de segurança, com exames e até pul- Enfim, a psicopatia cotidiana está aí, seiras eletrônicas, após a soltura desses de- está aqui, ao nosso redor, e é muitas vezes linquentes, quem sabe, teriam sido evitadas imperceptível e passa-se a conviver com novas vítimas. ela. Disfarçados, os psicopatas vivem suas Apesar de a origem da palavra psicopatia vidas quer como cândidos religiosos, bons vir do grego (psyche = mente e pathos = doen- políticos, quer como amantes encantadores ça) ela não é considerada uma doença mental. e amigos queridos, entretanto simultanea- O Ministro da Justiça parece saber que os psi- mente arruínam emocional, física ou finan- copatas não são loucos e, portanto, imputáveis, ceiramente os incautos que a eles se asso- pois essas pessoas não apresentam nenhum ciam, profissional ou pessoalmente. sofrimento mental, nem sofrem de alucinações Existem múltiplas teorias e explica- ou qualquer tipo de desorientação. ções acerca da gênese da psicopatia, incluin- Os psicopatas sabem o que estão fa- do aquelas sobre as quais nós, psicanalistas, zendo, têm ampla consciência dos atos que sabemos tão bem discorrer e que dizem praticam e não sentem nenhuma culpa ou respeito às questões do romance familiar, remorso por nenhuma maldade feita. Eles o nome do pai e o meio cultural, mas, em sabem distinguir as diversas nuances da rea- tempos de francos avanços nos estudos ge- lidade, sabem o que é certo e o que é errado, néticos, não podemos ignorar outras con- ou que é bom e ruim, sabem reconhecer a lei tribuições inclusive as que apontam altera- e, se a transgridem, é pelo simples prazer de ções do sistema límbico, área responsável fazê-lo: é de sua natureza. pelas emoções justificando a racionalização A experiência do judiciário revela tam- e a frieza desses indivíduos. Para os neuro- bém que psicopatas são reincidentes, e devem logistas, a organização e sinapses do cérebro ficar reclusos para sempre, para a segurança de um psicopata são estruturalmente dife- da sociedade, a despeito das leis brasileiras rentes dos de uma pessoa normal. No ano que não permitem que alguém cumpra mais 2000, dois neurocientistas, o neuropsiquia- de trinta anos de reclusão. Muitos psicopatas tra Ricardo de Oliveira-Souza e o neurolo- dizem de forma desafiadora, despudorada e gista Jorge Moll Neto, identificaram, através escancarada: “se me soltar, volto a matar, vol- de ressonância magnética, as partes do cé- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010 17
  • 18. Psicopatia da vida cotidiana rebro ativadas quando as pessoas fazem jul- final de uma análise, espera-se que o sujeito gamentos morais. possa perceber, no seu sofrimento, a parte de A maioria dos voluntários ativou uma gozo que o compromete. O que muda não é o área chamada Brodmann 10 ao responder sintoma, nem tampouco é o sofrimento, mas às perguntas. Esses mesmos pesquisadores, a posição subjetiva, e isso vai na contramão cinco anos depois, repetiram o experimento da psicoterapia. Assim, conclui-se que quem com pessoas diagnosticadas como psicopatas tem algo a fazer nas instituições é a psica- e verificaram que elas ativavam menos essa nálise como uma teoria e forma de refletir e área cerebral, ratificando que os sujeitos com entender os processos, e não os psicanalistas, transtornos dessa natureza são incompetentes como bem apregoa Jean-Jacques Rassial. De- para sentir o que é certo e o que é errado. finitivamente, não existe uma resposta psica- Do nosso lado, verificamos, como psi- nalítica para os psicopatas, ela só existe para canalistas, que a lei paterna, ou o Nome-do- um pedido daquele que se dirige a um psica- pai, dá consistência simbólica à linguagem e nalista. O tratamento para a psicopatia, se é tem como função inaugurar o social através que existe, é de ordem social e, portanto, não da separação mãe-filho, o que favorece a en- é terapêutico e, sim, educativo. trada do sujeito no mundo das representa- A psicanálise não é capaz de modificar ções simbólicas, ou seja, a criança vai ter que a natureza humana, mas talvez possa revelar colocar alguma coisa no lugar da ausência da possibilidades para essas inclinações pouco mãe, fazendo articulações e substituições de nobres. ordem simbólica. Na psicopatia, o que falha Banalizar a violência é, de alguma não é o pai simbólico nem o pai imaginário, sorte, preservá-la ativa, diluindo simboli- mas o pai real. Nome-do-Pai é o não fundan- camente seus efeitos daninhos e de alguma te, o primeiro, o inicial, é o pai que diz não. O forma não se comprometendo com suas ma- pai real é, por conseguinte, este que diz não nifestações. Não podemos nos esconder em para permitir que exista o nome.  frases feitas: “violência é da natureza do ho- A perversão é a maneira como um su- mem” e sucumbirmos a sua virulência. jeito, na sua relação com o outro, recusa a im- Vale a pena lembrar Freud, que nos diz possibilidade de um gozo infinito e completo. que a violência não é resultado da constru- Considerando que o discurso do pai é aquele ção social, mas é fundante: existimos como que organiza o Édipo na constituição do su- grupo social a partir do assassinato do pai pereu edípico, e o discurso do mestre é o que da horda primitiva. Existimos e nos organi- organiza o Édipo na constituição do supereu zamos a partir de um ato violento. Violento, cultural, percebemos que o psicopata não faz é verdade, mas também justo e necessário, a passagem do discurso do pai para o discur- pois deu um basta ao gozo ilimitado do pai, so do mestre, que parecem contraditórios e criando um código de ética que gravita em requerem dele uma escolha: um ou outro. E, torno da culpa e no qual ficou estabelecido se na psicopatia o que falha é o supereu cul- também que matar não era mais legítimo ou tural, a primeira resposta deve ser, portanto, permitido. Violência e poder estão no DNA institucional. A razão específica disso é que as da lei fundante da civilização. instituições, assim como as psicoterapias têm A cultura terá que se haver com es- um projeto bem definido, que é o ideal de sas questões. Na atual sociedade, na qual há normalização e que não tem nada em comum uma busca da satisfação a qualquer preço e o com a psicanálise que praticamos na nossa ser sucumbe ao ter, percebemos uma grande clínica, que não quer normalizar ninguém. valorização da satisfação da pulsão, favore- No final de uma terapia, espera-se que cendo um gozo sem limite que impede uma haja uma mudança do quadro patológico. No genuína relação afetiva com o objeto e que 18 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010
  • 19. Psicopatia da vida cotidiana significa um crescente desligamento dos va- manteiga mais frescos, flores em minha jane- lores éticos e morais. la e algumas belas árvores em frente à minha Os psicanalistas não têm fórmulas má- porta; e, se Deus quiser tornar completa a mi- gicas ou saídas. Em um momento em que a nha felicidade, me concederá a alegria de ver sociedade busca nova ordem de valores, talvez seis ou sete de meus inimigos enforcados nes- a psicanálise possa colaborar com orientações sas árvores. Antes da morte deles, eu, tocado por ser capaz de explicar a subjetividade e o em meu coração, lhes perdoarei todo o mal não-todo-racional que compõem o sujeito. que em vida me fizeram. Deve-se, é verdade, Talvez os psicanalistas tenham algo a perdoar os inimigos - mas não antes de terem dizer e dividir suas reflexões com as demais sido enforcados. áreas do saber, exercitando a sua dimensão antropológica, buscando possibilidades de Encerramos fazendo nossas as pala- melhor compreender os laços sociais em vras de Bion em uma entrevista de 1992: uma interlocução interdisciplinar com edu- “leva-se um longo tempo para que alguém cadores, filósofos, antropólogos, sociólogos, saiba o pouco que sabe e um tempo mais assistentes sociais, profissionais do Direito, longo ainda para que esse alguém saiba o cientistas políticos e outros mais, inclusive muito que é saber sobre esse tão pouco”. com os profissionais do mundo financeiro, Construamos juntos um pouco desse pois o poder desejado pelos psicopatas tem saber. importante interface com a economia. Mas lembremos: certamente aqui não se trata Keywords de psicanálise clínica. Por outro lado, exis- Psychopath, perversion, law, treatment. tem perversões e perversões, e havemos de considerar essa psicopatia do cotidiano, essa Abstract perversão comum, e reconhecer que ela diz The author makes an analysis of news related respeito em graus diversos a qualquer um. by the press and from them we see the large Propomos uma nova distribuição dos number of people who are victims of unscru- papéis dentro de uma nova responsabilidade pulous people and liars and the difficulty we do sujeito, poderíamos dizer ainda, respon- have to identify these perverse individuals sabilidade pelo destino do coletivo. Parece who gravitate around us. They refuse to live que a única possibilidade de produzir sujei- frustrations and they are capable of atroci- tos capazes de identificar o que devem ao co- ties. They use illegal or aggressive resources letivo é a condição de que antes tenham eles in order to achieve what they want regardless próprios sido introduzidos pelo coletivo à of the law and they resort to lying, cheating condição humana via educação. and cruelty. The author concludes that there Uma coisa é certa, é preciso falar des- is no psychotherapy response to psychopaths, sa violência que impera no cotidiano, e até, because it only exists for a demand that it is quem sabe, elaborar a violência que nos fun- directed to a psychoanalyst. The treatment da, e isso talvez possa ser feito nos tornando for psychopaths, if it exists, has a social and responsáveis por um caminho simbólico para an educational character. a violência que habita em cada sujeito. Freud, para ilustrar isso em 1930, no seu texto Mal- estar na civilização, cita o poeta Heine: Minha disposição é a mais pacífica. Os meus desejos são: uma humilde cabana com um teto de palha, mas boa cama, boa comida, o leite e a Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010 19
  • 20. Psicopatia da vida cotidiana Tramitação Recebido: 31/05/2010 Aprovado: 14/06/2010 Nome do autor responsável: Déborah Pimentel Endereço: Praça Tobias Barreto 510/1212. Bairro São José. CEP: 49015-130. Aracaju-SE Fone: (79) 3214 1948 E-mail: deborah@infonet.com.br 20 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.13-20 – Julho. 2010
  • 21. O ofício – quase impossível – do psicanalista The job – almost impossible - of the psychoanalyst Anchyses Jobim Lopes1 Palavras-chave Reparação, cisão, clima incestual, resto inanalisável. Resumo A escolha do ofício de psicanalista: sublimação e reparação maníaca. Cisão e perda na relação terapêutica. Quebra de ética: casos mais sutis. O clima incestual no divã. Manipulação de pa- cientes sob o disfarce de técnicas mais modernas ou humanas. O resto de análise e a escolha do ofício psicanalítico. Na Instituição Psicanalítica a produção cípios clássicos em uso. Mais que mantê-los científica se faz sobre os restos inanalisáveis, - eles constituem a salvaguarda ética da psi- fazendo desses traços secretos uma condição canálise e de sua eficácia terapêutica - trata- de formação permanente. se de aperfeiçoá-los. Carta de Princípios do Círculo O Centro de Atendimento Psicanalíti- Brasileiro de Psicanálise co (CAP) do Círculo Brasileiro de Psicaná- lise (CBP-RJ) constitui uma forma de clíni- ca social, atendendo a preços muito abaixo [...] a formação compõe-se de um tripé: do usual. Recebeu 299 (duzentos e noventa análise pessoal, teoria e prática clínica super- e nove) pacientes em pouco mais de quatro visionada, sendo o primeiro item o mais im- anos (17/11/2005 a 18/3/2010). Com a pro- portante. Igrejas ou universidades não podem posta de que todos os pacientes estejam em exigir ou garantir uma análise pessoal [...] supervisão coletiva ou individual, é exclu- Maria Mazzarello Cotta Ribeiro e sivo para tratamento pelos Candidatos do Anchyses Jobim Lopes Curso de Formação Psicanalítica. Através do CAP, mais de duas dezenas de candida- tos realizaram parte de sua prática clínica INTRODUÇÃO: supervisionada. O RETORNO À CLÍNICA Enquanto o trabalho em uma insti- tuição psicanalítica permanecer no campo Preceitos como neutralidade, abstinên- das aulas e seminários, por mais que temas cia, sem conselhos ou tapinhas no ego para clínicos sejam escolhidos, mais parece- muitos se trata de uma ortodoxia fria e ob- rá uma reunião de chefs de cuisine discu- soleta. Será? E como concorrer com o festival tindo tratados de culinária. Mas, quando de terapias intervencionistas ou receitas da uma instituição psicanalítica toma a deci- auto-ajuda tão em moda? Mantendo os prin- são política de sentar à mesa, investir em 1 Psicanalista e Membro Efetivo do Círculo Brasileiro de Psicanálise- Seção Rio de Janeiro, Médico e Bacharel em Filosofia pela UFRJ, Mestre em Medicina (Psiquiatria) e em Filosofia pela UFRJ, Doutor em Filosofia pela UFRJ, Prof. Adjunto de Psicologia da UNESA; Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro, ex-Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 21
  • 22. O ofício - quase impossível - do psicanalista sua clínica social, em supervisões coletivas ESCOLHA DO OFÍCIO e na apresentação de casos clínicos, sobre- De acordo com uma perspectiva freu- vém uma azia crônica. Mal-estar para o diana, a sublimação seria um dos meca- qual o único remédio eficaz é reviver todo nismos fundamentais para a compreensão o nascimento da clínica psicanalítica. Para de todas as escolhas profissionais. Por uma surpresa de alguns, por mais que os textos ótica kleiniana, a sublimação, conceito tão tenham sido lidos, na prática reencontramos valorizado e tão mal explicado na obra de que os fundamentos dos Artigos Sobre Técni- Sigmund Freud, teria por base a reparação ca de Freud (1978, xii) são todos válidos. E dos objetos primários. Na passagem da po- extremamente necessários. Através do CAP, sição esquizoparanoide para a posição de- permanentemente redescobre-se que os pre- pressiva, com a integração do objeto bom ceitos encontrados por Freud, no início da e do objeto mau em um único objeto, com Psicanálise, originaram-se de muita tentati- o reconhecimento de que o objeto amado é va e erro, de desastres clínicos e de alguns o mesmo que foi odiado e atacado, preva- impensáveis sucessos terapêuticos. lecendo a pulsão de vida sobre a pulsão de Simultaneamente, o aumento no nú- morte, a reparação surge para minorar o mero de membros efetivos, que dobrou sentimento de culpa. Tal como o dito popu- no período de dez anos, fez ressurgir ou lar: a criança morde e assopra. Com a cons- agudizar a dispepsia institucional crônica tatação de que o objeto é um só, cai-se no de que todas as instituições psicanalíticas dilema primeiro para que se mantenham sofrem, o que também nos leva a repensar todas as relações internas e externas: a re- a questão da clínica, e de seus efeitos cola- velação íntima para cada um de nós da tão terais, no seio da política institucional. Da decantada ambivalência universal dos seres discussão dos tratados teóricos já nascem humanos. Ambivalência: um dos conceitos acerbas, ou melhor, neuróticas, discussões. fundamentais para a compreensão de todo Mas as discussões sobre uma clínica efeti- o pensamento de Sigmund Freud e sua visão va conduzem tanto a propostas perversas trágica da natureza humana. A descoberta de abandono dos princípios clínicos bási- de que o objeto amado foi também odiado cos de Freud, quanto ao outro extremo, à e atacado torna-se um dos grandes motivos dificuldade também perversa de aceitar-se do sentimento de culpa. A integração do eu e a diferença, a de que há tantas psicanáli- da percepção do mundo na posição depres- ses quanto analistas e pacientes. Tornou-se siva também conduz a apreensão do tempo patente durante as supervisões que o afas- em seu sentido mais usual: passado, presen- tamento da técnica e da ética estava estrei- te e futuro. E agora não há como desfazer os tamente correlacionado com a análise pes- ataques do passado. Nem como evitar que soal dos candidatos. eventuais ataques sejam feitos no futuro. O efeito do manjar psicanalítico, tanto Surge, então, o cuidar dos objetos primários para os terapeutas quanto para a instituição, e a necessidade de procurar por novos obje- mais se parece com a sequela dos alimentos tos, para os quais agora os ataques possam defumados: deliciosos, mas devem ser inge- ser menores, uma preocupação maior, tanto ridos com parcimônia e cautela, pois pos- para evitar a agressão, como para minorar suem todos os hidrocarbonetos canceríge- as agressões feitas pelos objetos secundários nos do cigarro. E do charuto. contra si mesmos. Iniciemos pelo princípio: algumas re- A integração dos objetos parciais em flexões do por que se escolhe ser psicanalista. um objeto único conduz ao sentimento de 22 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
  • 23. O ofício - quase impossível - do psicanalista que não são coisas para minha satisfação, inato, um perigoso deslize biologizante de mas seres humanos. Apenas dessa forma sua teoria. Para Klein as primeiras repara- ocorre a passagem para identificar-se ao ou- ções são maníacas: basta um desejo onipo- tro e sua diferença. Aqui estamos na verten- tente da criança e pouca ou nenhuma ação te positiva da ética kantiana (KANT, 1974), concreta para consertar. Assim é o reino a proposta iluminista de uma ética: racio- das fadas e dos duendes, e o da maior parte nal, universal e igualitária. É verdade que da religião. A integração crescente do eu e esta proposta, ao longo da história, como da realidade interna, paralela à integração bem foi estudada por Horkheimer e Adorno crescente da percepção da realidade exter- (1989) (e que inspiraram Lacan [1986]), re- na, conduz à percepção de quão ineficaz é velou seu outro lado, ou sua deturpação, em a reparação maníaca. Mas é um processo algo desumano, mecânico e sádico. Mas de- longo. Falar em onipotência, em posição vemos propor um retorno a Kant, em que o esquizoparanoide é falar em uma era em preceito básico da ética é o reconhecimento que predomina o narcisismo infantil. Já na da alteridade, de que o outro não é apenas posição depressiva, esse narcisismo tem de um meio para obter meus fins, mas de que ser desinflado. Ou também podemos laca- também se trata de pessoa com sentimen- nianamente complementar, que, sendo o tos e necessidades, um fim em si mesmo. Só imaginário a fonte especular do narcisismo, assim se pode dizer: coloquei-me na pele de tem de haver a predominância gradual do alguém. Esse colocar-se dentro da pele de simbólico. De qualquer modo, Klein e La- alguém, que fundamenta o imperativo cate- can concordariam que as feridas narcísicas górico kantiano, que podemos compreender são inevitáveis. psicanaliticamente através da identificação, A observação e a prática mostram que e sem o qual a transferência seria impossí- aqueles que se dirigem a escolhas profissio- vel. Tanto quanto o supereu, que o próprio nais na esfera terapêutica precisam inter- Freud afirmou ser herdeiro do imperativo namente realizar mais reparações internas categórico, ambos são criaturas híbridas. e externas do que aqueles que optam por Ambos, Freud e Kant, demonstraram que, ocupações mais saudáveis. Desde os aca- sem uma internalização amorosa da lei, se- dêmicos de Medicina que frequentemente ríamos sociopatas. desejam curar o câncer (quando não desco- Para a Sra. Klein, esse zelo, essa cura brir a cura definitiva), passando pelos estu- do outro (cura - palavra latina, dentre outros dantes de Psicologia, ávidos por teorias que sentidos, para cuidado, encargo, inquieta- englobem tudo desde o fio de cabelo até o ção amorosa, guarda, vigília) não cai do céu último axônio da medula, indo aos psicana- instantaneamente. Não se passa da posição listas que “explicam tudo” (o que é adjudi- esquizoparanoide para a depressiva num pis- cado a Freud, para quem era bem diferente car de olhos. Logo não se passa à reparação acreditar na tese de que tudo poderia algum instantaneamente. Um longo processo, em dia ser compreendido e não na crença de que a pulsão de vida deve predominar sobre que pessoalmente poderia elucidar tudo). a de morte, conduz desde mecanismos ne- Não nos esqueçamos de: terapeutas ocu- cessários, mas ainda pouco eficazes, esquizo- pacionais, enfermeiros, arteterapeutas, etc. paranoides, aos depressivos. Talvez por que Dito em kleinianês, as escolhas profissionais não tenha sido possível a Freud um insight nas áreas terapêuticas são frequentemente maior na natureza complexa da sublimação, fundamentadas em projetos de reparação frequentemente ele a coloque como um dom maníaca. O fato é que todos os sistemas Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 23
  • 24. O ofício - quase impossível - do psicanalista religiosos, e mesmo os filosóficos em sua CISÃO E PERDA maioria, tiveram em sua origem, e têm até o Os mecanismos esquizoparanoides presente, por função, socorrer o ser humano são necessários para a psique saudável duran- diante do desamparo e da angústia da mor- te toda vida. A cisão do eu, tão cara a Freud te, do sofrimento da doença e da injustiça. (1978, xxi, xxiii), principalmente em alguns Mesmo numa era em que a ciência falha em de seus últimos escritos, não estabelece ape- ocupar parte dessa função, não se justifica nas uma fonte para as perversões. Para Klein o messianismo manifesto ou disfarçado de a cisão é patológica quando permanente, seja muitos terapeutas, principalmente no caso por não ter ocorrido o predomínio dos me- dos psicanalistas. Muito menos suas crenças canismos da posição depressiva, ou por uma na associação com terapias alternativas, eso- regressão à posição esquizoparanoide. Existe terismos ou na mistura de psicologias com a cisão permanente que origina o fetichismo, religião. No caso da psicanálise, em sua cren- um dos conceitos básicos para a compreen- ça da terapia pela palavra, não é ético que se são das perversões. A importância das cisões, confunda o trabalho por meio do simbóli- reversíveis ou não, constitui um conceito clí- co com propostas ancoradas no imaginário. nico essencial também para o entendimento Principalmente se relembrarmos a função das psicoses. Mas pode-se defender a ideia de do imaginário no espelho e como receptácu- uma cisão benigna, parcialmente reversível, lo do narcisismo, no reforço do pensamento na vida diária e na prática profissional. Ao se- mágico e onipotente. parar o intelectual do afetivo, o eu-realidade Um analista ainda muito ungido de do eu-prazer, a cisão permite que a realida- seu narcisismo pode configurar um preda- de seja fria e desapaixonadamente percebi- dor terapêutico. O messianismo, e a asso- da. Isolando-se a angústia podemos tomar a ciação com práticas ancoradas no imagi- conduta mais útil em momentos de perigo e nário, são inevitavelmente potencializados manter a racionalidade quando decisões im- pela maior arma psicanalítica: a transfe- portantes devem ser tomadas. Pela cisão uma rência. Todo paciente possui problemas parte do eu é sustentada como mero observa- com sua imago paterna, logo o analista será dor de si mesmo e do mundo. empossado principalmente, e ainda mais Nenhuma das atividades na esfera no início da análise, como pai imaginário. terapêutica poderia ser exercida sem uma A investitura pelo suposto saber ocupa o grande tendência do profissional para a ci- lugar de um desejo falho, o de um pai que são. Um cirurgião em segundos pode ter tudo saiba, que tudo possa, que tudo salve: de tomar decisões dramáticas e executá-las o lugar de Deus. Por isso é necessário que com uma frieza impecável, deixando de lado o terapeuta, em sua análise pessoal, tenha que sob seu bisturi está um ser humano. E padecido de uma boa dose de feridas em Freud gostava de comparar a terapêutica seu narcisismo. Concordamos com Quinet psicanalítica com o procedimento cirúrgi- (2009, p. 121): co. O analista tem o dilema de ter de trans- O analista em sua análise deve ter experimen- ferir, mas ao mesmo tempo manter um eu tado a destituição narcísica e deve poder refa- observador implacável. Simultaneamente zer a terceira revolução copernicana, descrita deixar se envolver e não se envolver pelo por Freud, na qual o homem não é senhor paciente significa mantê-lo em certo tipo em sua própria casa, descascando uma a uma de fetichização, na qual não se pode negar como uma cebola suas identificações imaginá- a castração, tal como na defesa maníaca e rias que constituem sua persona, seu little me. nas verdadeiras perversões, mas que, à se- melhança do paciente de Freud (xxi, p.152) 24 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
  • 25. O ofício - quase impossível - do psicanalista atraído por mulheres com um certo brilho no Relatos profissionais da área de en- nariz (em alemão: Glanz auf der Nase), foca e fermagem ou de profissionais que cuidam posiciona a visão do analista, colocando toda de pacientes idosos ou terminais, por ve- realidade inter e intrassubjetiva entre parên- zes expõem que a frieza, da qual muitas teses, dando-lhe o dom de supervalorizar o vezes são acusados, também possui outra que passa por insignificante e desapercebido. motivação: as sucessivas perdas. O pouco Caso contrário, o analista tem seu trabalho ou não envolvimento, para muitos, é o que paralisado: pela angústia do paciente, por permite o cuidar de pessoas com as quais todos os disfarces da resistência, pelas moti- se sabe que o relacionamento inevitavel- vações para ganhos primários e secundários mente terá um fim próximo e irreversível. dos sintomas e, mesmo, pela pura manipula- Neste, porém, temos o reflexo de outra ção por pacientes pouco escrupulosos. das características do ofício de analista. Outro exemplo, se o analista se dei- Apesar de opiniões contrárias, o analista xar conduzir (ou melhor, seduzir), pelo que será sempre o ex-analista. Isso quer dizer: é dito, esquece da importância de observar a possibilidade de um convívio social ou como é dito. Não se consegue notar os atos institucional é sempre limitada, artificial falhos, o duplo sentido dos significantes, a ou francamente desaconselhável. Por me- predominância de palavras-chave no campo lhor que seja trabalhada a transferência, semântico. Assim, se, como o sultão Xariar, de ambas as partes, é inumano acreditar das Mil e uma Noites, o analista ficar com- em uma elaboração completa. Além do pletamente deslumbrado pelas estórias de fato de que todo analista conhece fatos e sua Xerazade, não vai conseguir matar a cha- fantasias do paciente que não foram con- rada de sua neurose. Isto é, sem cisão, ou se tadas a nenhuma outra pessoa. A relação transfere demais ou de menos. analista/paciente difere completamente de Claro que a importância da cisão e da qualquer outra, social ou institucional. E fetichização com o trabalho analítico implica é um caminho sem volta. O que implica graves riscos. Todo fetiche constitui um obje- que, mesmo em uma análise que dure dez to idealizado. O terapeuta também se coloca anos ou mais, o caminho do paciente é ao a serviço da idealização e fetichização pelo mundo e aos outros. Distante ou próximo, paciente. Condição que pode ser útil ao iní- o fim do trabalho analítico é sempre a meta cio da terapia. Mas, em médio prazo, deve-se desejável. E justamente, quando bem reali- lembrar sempre que a cisão benigna pode de- zada, a análise conduz sempre a seu fim ir- generar em um processo tipicamente esqui- reversível, sobretudo se acreditarmos que zoparanoide, e que idealização, além do nar- uma nova terapia ou uma re-análise futura cisismo incluído, constitui uma clássica de- deveria ser feita com outro profissional. A fesa maníaca. O analisando pode agudizar o clínica analítica, ao mesmo tempo em que pai idealizado e superegoico transferindo ao implica um investimento afetivo do tera- analista, numa figura ainda mais narcísica, o peuta, maior do que em qualquer outra lugar no imaginário de Deus e do fetiche. E, modalidade de clínica, também implica tal o fetichista de carteirinha, o analista tam- perdas maiores que em qualquer outra. bém pode permanentemente desumanizar Aqui, derivados da cisão ou de mecanis- todo o resto do paciente em detrimento de mos independentes como o controle, o suas teorias e crenças, reduzindo-o ao certo triunfo ou o desprezo pelo paciente ocor- brilho no nariz. A frieza transitória de uma rem para minorar a perda. Controle, triun- situação cirúrgica torna-se a frieza perma- fo ou desprezo, nomeava assim a Sra. Klein nente do perverso. as defesas maníacas. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 25
  • 26. O ofício - quase impossível - do psicanalista O NÃO LUGAR DO GOZO vidade de outros modos de gozo, aparente- mente menores. A experiência trazida pelo Ao longo do tempo, o setting deve relato de leigos, por alunos e candidatos à deixar de ser lugar de gozo do sintoma do formação, também em supervisões indivi- paciente. Se o paciente apresenta direta- duais ou coletivas, subscreve outro lado da mente o sintoma na consulta ao início do questão, tão grave quanto o abuso sexual. tratamento, ou se passar a fazê-lo através da Escreve Simon (2009, p.198): “Pela minha neurose de transferência, desfazer o sinto- experiência, os pacientes, são com mais fre- ma, ou a transferência, é desfazer o gozo. quência, explorados por dinheiro que por Do mesmo modo, é eticamente inadmissí- sexo”. Cremos que poucos analistas expe- vel que seja local de gozo do terapeuta. A rientes discordariam. Também foi feito o satisfação do terapeuta teria de advir do relato, em reuniões do Movimento de Ar- pagamento em dinheiro e do regojizo pelo ticulação das Entidades Psicanalíticas, de sucesso profissional. Teoricamente, porque que a primeira sugestão do aparelhamento uma quantia exagerada como pagamen- psicanalítico de pastores tenha sido feita na to também pode ser gerada por um dese- década de 80 do século passado pela igreja jo perverso de gozo. E, para completar, as evangélica mais famosa por sua avidez pelo motivações que conduziram o terapeuta a lucro e pelo poder político, assim como por sua escolha profissional, como vimos, ul- seu descomunal patrimônio. Quanto ao trapassam muito a necessidade concreta de problema da convivência institucional den- um ganha-pão. Grande parte do prazer do tro das sociedades psicanalíticas, a possibi- terapeuta está em reparar, através dos ou- lidade de exploração política é igualmente tros, seus próprios objetos internos. Como observável. Não que haja, na maioria dos tudo o mais quantitativamente exagerado, casos, uma intenção direta de dolo. Salvo o prazer terapêutico, derivado da sobra daqueles que podemos rotular predadores da análise pessoal, também pode ser ou se terapêuticos. transformar em algo perverso quando em O mesmo autor menciona que a maio- sua busca de gozo. Devem-se franzir ligei- ria das quebras de ética começa de forma ramente as sobrancelhas quando se escuta insidiosa, principalmente “entre a cadeira de alguém, que é paciente, algo como ter e a porta” (SIMON, 2009, p.199). Algumas tido uma sessão ótima porque meu analista perguntas aparentemente inofensivas pelos jogou um monte de verdades na minha cara. pacientes, outras respostas supostamente E também quando algum candidato ou co- anódinas pelo analista, mas que revelam lega relata algo como eu não sabia que era gostos pessoais. À parte sugestões de to- tão divertido tratar crianças. dos os tipos pelo terapeuta, seja no setting, Quando a quebra da ética é menciona- seja fora dele. Opiniões políticas sortidas da, ou é suposta a passagem de informações reveladas pelo analista. Um passo além e confidenciais a terceiros, ou quase sempre a solicitação de pequenos favores. No caso se pensa em uma relação sexual. Usemos o de vínculos institucionais, comentários so- chavão - rios de tinta foram escritos - para bre problemas da sociedade psicanalítica e assinalar a questão da quebra de ética na re- sobre colegas, ou até a indução de que se lação analista/paciente. Além da bibliogra- tome determinada posição partidária. Ou fia psicanalítica, muitos livros e filmes utili- seja, todos aqueles pequenos comentários zaram o tema, mas quase sempre se atendo sociais aos quais a não resposta fica pare- ao ato sexual. O que não pode ofuscar a gra- cendo falta de educação ou uma ortodoxia 26 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
  • 27. O ofício - quase impossível - do psicanalista técnica exagerada. Mas não o é. Transferên- mais se o analista, ao mesmo tempo, ocu- cia, resistência, regressão, Édipo, não desa- pa o lugar de professor na formação psi- parecem pelo simples ato mecânico de se canalítica (merece lembrança a proposta levantar do divã ou de uma cadeira. Pede- inicial do CBP-RJ, de que os professores se a devolução ou compra de um livro, de não podiam ser analistas dos candidatos e doces e salgados, uma pequena arrumação vice-versa, proposta que, em longo prazo, em algo do consultório, uma conversa social mostrou-se inviável). Alunos e professo- após a sessão, uma pequena extensão desta res, análises à parte. E deixar-se o jargão para poder se opinar melhor, talvez mar- psicanalítico de lado. Todo jargão simpli- car a sessão após o último paciente, quem fica o diálogo entre os pares de uma co- sabe é ainda melhor em um lugar fora da munidade científica, mas se constitui de neutralidade do setting, por exemplo, um reducionismos e chavões. Uma tarefa fun- barzinho. Caso o exemplo seja um tanto ca- damental do analista é embarcar no campo ricatural, temos a gravíssima afirmação de semântico dos pacientes, sejam candidatos Simon (2009, p.199): ou não. Sem dar o valor de significado a palavras abstrusas e usar os próprios ter- Os estudos também mostram que a revelação mos que o paciente utiliza no vocabulário de informações pessoais por parte do terapeu- de sua vida cotidiana. Aliás, fato que não ta para o paciente, em particular de fantasias constitui qualquer novidade trazida pela sexuais e de sonhos, está correlacionada com psicanálise. Já no ensino médico se apren- uma transgressão sexual futura. dia a usar o máximo possível as palavras e expressões do paciente, entender através É direito dos pacientes atuar como Xe- delas suas queixas e, através delas, tentar razade: na forma e no conteúdo, o discurso explicar o tratamento. Usar termos técni- da sedução. No caso do analista, é sua fun- cos com pacientes, além de ser pedante, ção primária estabelecer os limites. Tem-se é perigoso. Seja para médicos ou outros de reconhecer que pequenos comentários profissionais, para os que desconhecem a pessoais, a revelação de gostos e preferências, área psi, ou para colegas e futuros colegas posições políticas, além de inibir os pacientes analistas, é útil e bom lembrar, como o faz de manifestar opiniões opostas, também es- Hirigoyen (2009, p.116) que: tabelecem uma sutil ponte para criar nos pa- cientes imagens do terapeuta. Imagens cuja Um outro procedimento verbal habitual nos tendência é serem investidas narcisicamente, perversos é o de utilizar uma linguagem téc- ao auxílio da transferência e da idealização. nica, abstrata, dogmática, para levar o outro O manejo da linguagem é arte do ofício psi- a considerações que ele não compreende, e canalítico, mas também do de políticos e per- para as quais não ousa pedir explicações, por versos. O analista sabe que o suposto saber medo de passar por imbecil. com que é investido é uma espécie de farsa a ser usada no bom sentido. Os pacientes não O CLIMA INCESTUAL possuem esse conhecimento. Ou, quando, no caso de candidatos já em formação psicanalí- A dúvida se o trauma infantil foi real tica, eles o possuem e pela transferência, pas- ou apenas fantasiado, ou uma combinação sam a deixar de lado sua racionalidade. de ambos, atormentou Freud durante a O conhecimento teórico igualmente primeira década de suas descobertas. Em pode ser mais uma arma de sedução. Ainda realidade, tratou-se de um fantasma que Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 27
  • 28. O ofício - quase impossível - do psicanalista nunca deixou de afligi-lo e que foi revivido Em outro polo, podemos rotular de em suas discussões com Ferenczi. Discus- incestual um clima em que a intimidade en- são atualíssima, quando da descoberta, nas tre pais ou cuidadores e a criança ou o ado- últimas décadas, de que a incidência do lescente é utilizado de forma abusiva, uma abuso sexual infantil e do incesto é muito cumplicidade doentia. Neste caso, ocorre mais extensa do que o próprio Freud su- uma transgressão permanente da fronteira punha há um século. Assim como no caso entre relações de parentesco e relações so- de que a perda da ética, por uma posição ciais, em que os adultos, não suportando de gozo do terapeuta, é mais frequente seus problemas e angústias, tratam os filhos por abuso monetário que sexual, também como se fossem adultos, amigos íntimos e se deve pensar que o trauma não precisa até suplentes de cônjuge. ter se originado de um contato físico con- A aproximação ocorrida nas últimas creto, mas de todo um clima que podemos décadas entre pais e seus substitutos e fi- denominar de incestual. Escreve Hirigoyen lhos, pela qual a psicanálise teve um gran- (2009, p.60): de mérito, tem seu lado negativo em que muitas vezes se perde a noção de que pai ou O incestual é um clima: um clima em que sopra mãe, e melhor amigo(a) ou amigos(as) dos um vento de incesto sem que haja incesto. É o filhos, ou deles mesmos, são funções dife- que eu chamaria de incesto soft. Não há nada rentes. Dois exemplos quase caricaturais: a juridicamente condenável, mas a violência per- mãe que trata o filho como confidente ín- versa está presente, sem sinais aparentes. timo de seus problemas afetivos e sexuais, ou até como suplente do ex-marido; o pai Claro que este clima se torna mais que incentiva e acompanha voyeuristica- ou menos patogênico na medida em que é mente as primeiras experiências sexuais e potencializado pela situação edípica e pelas afetivas dos filhos. Consideram-se incestu- fantasias primevas. Englobam-se como in- ais esses e todos os casos em que se nega cestuais várias condutas. Num polo, a ero- ser o relacionamento parental, e familiar tização exagerada na primeira infância, na em graus mais distantes, carregado de tin- direção de uma sexualidade genital e fálica tas edípicas exageradas. Justamente o prin- e não daquela perversa polimorfa da crian- cipal motivo para a necessidade de amigos, ça. O que pode ocorrer por estímulos físicos e outros relacionamentos fora do núcleo diretos ou, o que é muito mais comum nos familiar, é a sua função exogâmica. A apa- dias atuais, pelos estímulos visuais e sonoros rente camaradagem ou intimidade, que da mídia. Há diferença entre o tesão adulto e muitas vezes em realidade encobre condu- ternura infantil (sem a qual os adultos tam- tas transgressivas entre pais e filhos, dife- bém não vivem). Como escreveu Ferenczi re do trabalho de: se preocupar, mas sem (1999, p.300, tradução do autor): exagerar na ansiedade transmitida; infor- mar, mas sem cair no pornográfico; vigiar (...) na verdade as crianças não querem, de e escoltar discretamente dando à criança e, fato, não podem ficar sem ternura (...) se mais principalmente, ao adolescente a sensação amor e amor de um tipo diferente do que elas de que está sendo livre, mas dando espaço precisam é forçado sobre as crianças no esta- para sua intimidade e experiências sexuais; do da ternura, pode conduzir a conseqüências mas, acima de tudo não transmitir em exa- patológicas do mesmo modo que a frustração gero suas próprias angústias e fantasias se- ou a retirada do amor (...). xuais, que serão sempre vivenciadas como 28 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
  • 29. O ofício - quase impossível - do psicanalista incestuosas pelos filhos. Com o agravante ma sessão e mesmo de que volte; um dia não de que essas fantasias sexuais colocam a voltará nunca mais. Dentre os motivos que criança ou adolescente a serviço do desejo podem causar ou acentuar o clima inces- do adulto e inibem aquelas fantasias que se- tual entre pais ou substitutos e filhos, está riam próprias deles mesmos e de sua idade. a incapacidade de aceitar a perda e a pró- Difere da pedofilia explícita e da sedução pria depressão. Reparar os objetos internos de menores prevista no código penal, mas através dos filhos ou substitutos implica o o cerne da ética kantiana também é negado, reconhecimento de que a própria infância e e se instrumentaliza o outro como coisa a juventude ficaram para trás. Se todo pacien- serviço de si mesmo. te coloca o terapeuta como pai e mãe, para o analista ele é sempre uma espécie de filho O CLIMA INCESTUAL NA TERAPIA ou filha. A situação transferencial repete o mesmo sentimento de ameaça da ausência O clima incestual pode ser criado e re- futura. A incapacidade de aceitar esse sen- vivido em qualquer terapia. A crítica contra timento, associada à fantasia de que, em se a neutralidade psicanalítica como algo anti- tornando colega, o paciente estará sempre quado frequentemente serve de justificativa presente e sua falta nunca será sentida, le- para tratamentos mais modernos, em que vam a um clima de promíscua intimida- o terapeuta se coloque ao lado do paciente. de. Mas, como acontece na vida real, não À parte muitos casos em que a neutralida- adianta que o filho adulto seja feliz e bem de encobre a incapacidade técnica, deve-se sucedido: o bebê gordinho foi embora para pensar duas vezes quando se fala de frieza, sempre e, pior, sempre se casa com quem indiferença ou apatia do analista. Fornecer não se escolhe. opiniões pessoais sobre assunto como polí- Portanto, as escolhas dos pacientes tica e instituição, contar de sua vida pessoal, ao longo da análise são outro problema. falar de suas crenças e esperanças. Seria mui- Mesmo no mais ortodoxo psicanalista ta ingenuidade não perceber que, no setting, corre o sangue de um possível terapeuta toda informação objetiva é acompanhada de de ego. As escolhas dos pacientes muitas fantasia inconsciente, e já vimos que se trata vezes abalam a tão decantada neutralida- de uma forma de sedução. Tenha o paciente de analítica (especialmente no caso das passado ou não por ele em sua infância ou opções sexuais). Já correu também muita adolescência, surge o clima incestual. Além tinta sobre o perigo da análise de ego em do que, se o analista sabe que não é a mãe sua tentativa de moldar o paciente tendo ou o pai verdadeiro, muito mais deve saber o analista em sua suposta sanidade men- que não é o melhor amigo ou companheiro tal como modelo identificatório, e insistir de bar. Por sua ancoragem na cisão benigna no terrível: eu sei o que é melhor para você. do eu, a análise é a mais íntima das relações, O problema do modelo é que se trata do num grau que o melhor amigo ou o compa- eu ideal do terapeuta. E, em se tratando nheiro de bar não podem ser e, ao mesmo de eu ideal, caímos novamente na questão tempo, uma relação mais artificial e distante do narcisismo e do imaginário. Caímos no que a de um cirurgião e seu paciente na mesa reforço superegóico, no lado negro e cas- de operação. trador do supereu, e também nas fantasias Outro complicador é o eternamente e fantasmas do terapeuta. À semelhança presente sentimento de perda: não há garan- dos pais que, por sua angústia e depressão tia alguma de que o paciente volte na próxi- jogam suas fantasias e condutas sexuais Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 29
  • 30. O ofício - quase impossível - do psicanalista sobre os filhos, a transmissão excessiva des- aceitas, temos ainda de pensar em suas va- sas fantasias e fantasmas, que sempre ocor- riantes. A mais frequente é a mistura de re em algum grau, também cria um clima esoterismo e psicanálise, em que crenças incestual. E deixa-se de estar a serviço do pessoais e transferência são embrulhadas desejo do paciente para se estar a serviço do junto com aconselhamento e auto-ajuda. desejo do terapeuta. Ao contrário do intervencionismo explíci- Pode-se pensar, num primeiro mo- to do comportamentalismo, que se realiza mento, que o prejuízo ao paciente advém em um contexto terapêutico muito diferen- apenas porque, “quando você tempera os te, temos: o amável e modernoso terapeuta rigores da análise com doses criteriosas de new-age, que pode ir de crenças orientais bondade e amabilidade, retira a liberdade ao espiritismo; a bondosa beata, que asso- do paciente, pois é você quem decide o que é cia seu certificado de teologia com um de melhor para ele” (MALCOLM, 2005, p.86). pseudopsicanálise; a psicanalista revolta- A realidade é mais perversa. A construção da com sua instituição, que passa metade do clima incestual no setting, pela desculpa da sessão falando de política institucional. de técnicas menos ortodoxas que mascaram Todos fidedignamente recriam o trauma práticas intervencionistas, recria o trauma do clima incestual. Pensando bem, Anna do clima incestual da infância. Lembrando Freud e Hartmann eram melhores. que o paciente é, por criação do analista e direito próprio, um regredido e um edípico CONCLUSÃO: acentuado, sua resposta não será a de um RESTOS E SUBLIMAÇÃO adulto, mas a de uma criança dependente da ternura do adulto. Em grau mais leve, a Se o desejo de se tornar analista surge criança tentará sempre se moldar às solici- durante uma análise, trata-se de um sinto- tações do adulto. Citando novamente Fe- ma. Sem esse sintoma, neurótico, até meio renczi em seu mais famoso artigo (FEREN- psicótico, se tornar analista apenas calculan- CZI, 1999, p.294, tradução do autor): do na ponta do lápis o ganho financeiro e a reputação profissional, trata-se de um sinto- Cheguei à conclusão de que os pacientes pos- ma perverso, por não estar ancorado na an- suem uma sensibilidade extraordinariamente siedade e na culpa, apenas na satisfação do refinada para as vontades, tendências, capri- ego e do narcisismo. Além de também ser chos, simpatias e antipatias de seu analista uma má decisão em termos financeiros, hoje [...] ao invés de contradizerem o analista ou também é um pouco duvidosa no que tange o acusarem por seus erros e cegueira, os pa- a reputação. cientes se identificam eles próprios com ele O fato de o CBP-RJ constituir uma [...]. instituição ancorada em uma predominân- cia absoluta de analistas leigos permite al- Num grau mais patológico, cria-se gumas constatações. Médicos e psicólogos, ou recria-se uma sedução não menos grave à parte de qual especialidade ou corrente que a de uma relação sexual concreta, com o sigam, possuem os problemas de onipotên- agravante de que o terapeuta permanece im- cia e sentimento de culpa, de sublimação e pune diante do código de ética profissional e reparação que discutimos no início. da legislação criminal. Mas, tendo acompanhado dezenas Se hoje as condutas intervencionistas de candidatos leigos em formação, obser- de Anna Freud ou Heinz Hartmann, e toda vamos algumas vezes que o sintoma de se a escola de psicologia do ego, não são mais querer ser analista simplesmente desapa- 30 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010
  • 31. O ofício - quase impossível - do psicanalista rece. O candidato chega à saudável con- Referências clusão de que deve continuar em análise e permanecer em sua profissão de origem. Em alguns outros casos, o recalque ganha CÍRCULO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE. Esta- a vez, o sintoma dá lugar a outro mais gra- tuto - Carta de princípios. Estudos de Psicanálise, Rio ve, e o candidato abandona a formação e a de Janeiro, n. 29, p. 13, set. 2006. análise. Apenas em uma percentagem, tal- FERENCZI, S. Confusion of tongues between adults vez de um terço dos candidatos iniciais, o and the child (The language of tenderness and of sintoma seja ainda mais grave, indicando passion) [1933]. In:____. Selected writings. Penguin que restos provavelmente inanalisáveis im- Books,1999. pelem o candidato até o final da formação. Chegamos à conclusão de que uma FREUD, S. Fetichism. In: ____. The standard edition ligeira ansiedade e um sentimento de cul- of the complete psychological works of Sigmund Freud, pa não tratável, junto com a cronificação de xxi. London: The Hogarth Press and the Institute of uma necessidade de sublimação e reparação, Psycho-Analysis, 1978. associadas à incapacidade de completa desti- FREUD, S. Papers on technique. In ____. The stan- tuição narcísica, assim como uma recorren- dard edition of the complete psychological works of te cisão do eu, constituem requisitos indis- Sigmund Freud, xii. London : The Hogarth Press and pensáveis para a efetivação do desejo de ser the Institute of Psycho-Analysis, 1978. analista. O que pode dar subsídio para um bom terapeuta, mas, sem dúvida, uma per- FREUD, S. Splitting of the ego in the process of de- fence. In: ____. The standard edition of the complete sonalidade complicada para o convívio ins- psychological works of Sigmund Freud, xxiii. London: titucional. The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Ana- lysis, 1978. Keywords Reparation, splitting, loss, incestous climate, HIRIGOYEN, M. F. Assédio moral - a violência per- non-analyzable remains. versa no cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009. Abstract HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. La dialetique de The choice of psychoanalysis as a job: subli- la raison. Gallimard, 1989. mation and maniacal reparation. Features of splitting and loss in the therapeutic relation- KANT, E. Fundamentação da metafísica dos costu- ship. Rupture in the ethics: more subtle cases. mes. Os Pensadores, vol. XXV. São Paulo: Abril Cul- Incestous climate on the couch. Artful and tural, 1974. unfair means disguised as more modern or KLEIN, M. On identification. Envy and gratitude human techniques. Unalysable remains and and other works. Second impression. London: The the choice of psychoanalysis as a job. Hogarth Press and The Institute of Psycho-Analysis, 1980. LACAN, J. Kant avec Sade. In: ____: Ecrits. Paris: Seuil, 1986. LOPES, A.; RIBEIRO, M. M. C. Apresentação das reu- niões da articulação das entidades psicanalíticas bra- sileiras. In ALBERTI, S.; AMENDOEIRA, W.; LAN- NES, E.; LOPES, A.; ROCHA, E. (Orgs.). O ofício do psicanalista. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2009 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010 31
  • 32. O ofício - quase impossível - do psicanalista MALCOLM, J. Psicanálise - a profissão impossível. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2005. QUINET, A. A estranheza da psicanálise – a escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. SIMON, R.I. Homens maus fazem o que homens bons sonham. Porto Alegre: Artmed, 2009. Tramitação Recebido: 06/04/2010 Aprovado: 23/06/2010 Nome do autor responsável: Anchyses Jobim Lopes End: Rua Marechal Mascarenhas de Morais 132 ap. 308 Copacabana CEP: 22030-040. Rio de Janeiro - RJ Fone: (21) 2549 5298 E-mail: anchyses@terra.com.br 32 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 33 – p.21-32 – Julho. 2010