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Gustavo de Castro
COMUNICAÇÃO E
TRANSCENDÊNCIA
2
Ser é transcender.
Martin Heidegger
A transcendência é, talvez, o desafio
mais secreto e escondido do ser humano.
Leonardo Boff
O mistério apazigua meus olhos, não os cega.
Antonio Porchia
3
SUMÁRIO
Abertura, Edgard de Assis Carvalho
1. Ciência, Comunicação e Espiritualidade, p. 4
2. Palavra e senso de transcendência, p. 22
3. O princípio com, p. 41
4. Mídia, comunicação e sabedoria, p. 48
5. Narrativas e documentos de transcendência, p. 57
Referências bibliográficas, p. 72
4
ABERTURA
A mística e os estudos da arte, da literatura, da poesia, da música e da pintura
efetuam movimentos verticais para as profundezas do ser e conduzem a conclusões do
tipo: é preciso acolher o desconhecido contido no homem. Ao utilizar pensadores
advindos dos estudos midiáticos, artísticos, científicos e espirituais, Gustavo de Castro
traça um panorama complexo das relações entre comunicação e transcendência em sua
intrincada mediação com a poesia. Se o campo comunicacional é mais propício à
religação dos saberes, como o autor afirma, o dispositivo interpretativo está em aberto.
Em cinco blocos, o tema da transcendência é problematizado por intermédio de
fundamentos poéticos, comunicacionais e midiáticos. Experiências pessoais vivenciadas
em diferentes práticas religiosas também são explicitadas, demonstrando que vida e
ideias, ciência e fantasia encontram-se inextricavelmente associadas. Por isso, as artes
expressam necessariamente “devires de transcendência”.
Esse é o sentido de história e de comunicação que tece esse livro. História e
comunicação como partilha, narratividade, testemunho da aventura humana sobre a
terra. Em tempos de insignificância ampliada que contaminam o planeta, o culto da
felicidade, do individualismo, do hedonismo, do efêmero, do consumo conspícuo e da
euforia perpétua, este livro postula, semelhante a Roberto Juarroz, um “modo de ser”
poético, simultaneamente, queda e despertar. Trata-se de uma epistemologia da
comunicação estruturada na poesia e naquilo que Castro chamou de “princípio com”.
Uma vez perguntaram a Ilya Prigogine (1917-2003) o que era o mundo. Sua
resposta foi incisiva e, ao mesmo tempo, dilaceradora. O mundo, ele afirmou, nada mais
é do que o conjunto entrelaçado de saberes sobre a natureza, a terra, a vida, o cosmo,
esse mundo das Mil e uma noites que Sherazade incumbiu-se de transmitir a quem se
dispusesse a ouvi-la. Cabe a cada um de nós afinar a escuta e rearticular o conjunto de
narrativas que construímos sobre nós mesmos e, talvez, formular utopias realizáveis de
um mundo melhor, no qual a banalidade do bem se consolidará como veículo de uma
política de transformação planetária.
Este livro é um pequeno sopro de vitalidade no falatório geral da esfera
comunicacional, espaço saturado de crítica iluminista e técnica, esfera ainda temerosa
do hipercomplexo, do sensível e da transcendência.
Edgard de Assis Carvalho / São Paulo - 2012
5
Ciência, Comunicação e Espiritualidade
I
Existe a sensação global, diz David Bohm, de que a comunicação está
progressivamente se deteriorando. Para ele, é preciso recriá-la constantemente porque
nossa forma de pensar e de falar sobre ela constitui um dos fatores que nos impedem de
tomar consciência da sua real importância em nosso sistema de conhecimento.1
Como
falamos da comunicação ao longo do século XX? Muito cedo começamos a adjetivar a
comunicação de “social”, e voltamos nosso olhar com tenacidade para o conjunto de
suas habilidades técnicas, analíticas, históricas, ideológicas e políticas. Estas palavras
resumem um pouco as categorias chaves do século XX. Também muito cedo
esquecemos, infelizmente, que a comunicação não era apenas “social”, mas também
humana, ecológica, psíquica, filosófica, artística e espiritual. Não falamos, por exemplo,
da comunicação como modo de ser no mundo, princípio e, por isso mesmo, deixamos
de perceber nela a essência do con-vívio; a ação que produz este modo de ser.
Utilizamos frequentemente a palavra comunicação sem atentarmos para a globalidade
dos fenômenos que ela gerencia e comporta.
Nosso sistema de conhecimento nos ensinou que aprender é um processo de
separar e isolar as coisas. Separamos os objetos de seus contextos; separamos a
realidade em disciplinas, categorias, classes de realidade que visam facilitar a
compreensão desta mesma realidade mas, visto que a realidade é feita de laços e
interações, nosso conhecimento por vezes é incapaz de perceber, nestas conexões, o
“círculo mais vasto”, como assinala o poeta Rainer Maria Rilke2
. Este “círculo mais
vasto” é a esfera que destacaremos em nossa analítica da comunicação.
Ao mesmo tempo, nosso sistema de conhecimento nos ensinou que as coisas
obedecem a uma lógica calculável, mecânica, que pode ser prevista e predita. Contudo,
esse mesmo sistema não nos ensinou a perceber o caos deste sistema como um logos
capaz de ver o conjunto complexo que o forma, isto é, capaz, simultaneamente, de
selecionar e isolar uma coisa entre outras ou passar de uma para outra, indo das partes
1
BOHM, D. Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Atena, 2005. Cf. também
BOHM, David. Sobre el diálogo. Barcelona: Kairos, 1997.
2
Cf. RILKE, M. Rainer. Elegias de Duíno. São Paulo: Globo, 2001. Heidegger analisa longamente a
“tarefa para o pensamento”, que é a poesia a partir de R. M. Rilke no ensaio Para quê Poetas IN:
HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1998.
6
para o todo e do todo para as partes. Que campo é mais propício à religação dos saberes
do que o campo comunicacional?
O caminho do conhecimento disciplinar e das explicações racionalistas do
mundo faz também por vezes o homem só e desamparado diante de um mundo,
tornando insuportáveis as realidades da morte (cada vez mais relegada ao depois), da
dor (que todos se apressam em aliviar com artifícios) e do amor (que também é, talvez,
a mais difícil tarefa do homem). Do outro lado, a linguagem do coração e a da
criatividade, a da estética e a sensibilidade em geral costumam ser tratadas como
questões menores à comunicação, ocupando por vezes pouco do nosso tempo.
A complexidade dos caminhos do conhecimento em comunicação favorece a
dinâmica deste modos de ser na e diante a natureza. A conexão é o princípio que
contém o movimento em direção à comunicação. Entender as conexões é uma forma de
entender o sistema-vida, por isso é que entender as conexões com os diversos sistemas
que o integram favorece também a compreensão da comunicação. Um sistema é um
conjunto de partes diferentes, unidas e organizadas, em interações dinâmicas, assim é,
por exemplo, que parte da sociologia define a sociedade como um sistema, pois é
constituída por indivíduos e grupos sociais diversos. Mas não podemos conhecer a
sociedade isolando indivíduos ou grupos num laboratório. É preciso juntar as partes ao
todo e o todo às partes.
A sociedade é um conjunto aberto de partes que produz capacidades e
propriedades como a linguagem, a cultura, e é por elas produzida. Também produz
qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isoladamente. Sabemos,
por exemplo, que uma bactéria não é constituída unicamente de elementos químicos que
encontramos na natureza. A vida é constituída de moléculas, mas a organização vivente
tem qualidades que não podemos encontrar nas moléculas tomadas isoladamente. É
necessário portanto ter um pensamento que possa conceber o sistema, a interação e a
organização e, entre eles, os tipos de conexão, pois tudo o que conhecemos é constituído
da organização de elementos diferentes interagindo entre si.
As conexões não dizem respeito só ao caráter retroativo do sistema como
também aos elos e à forma com que esses elos são compostos. Produtores de
conhecimento, nós também somos produtos dele. O efeito é ao mesmo tempo causa. As
conexões são vistas como “plasmas generativos”, que se alteram em forma e volume
constantemente, necessitando retroagir sobre o sistema para que o mesmo não se
dissipe. Encontrar a forma ideal de retroagir, retroalimentar e conectar-se ao sistema-
7
vida é um dos riscos e um dos desafios da comunicação. Redes multiplicadoras de
informação, operadores transversais, fluxos dialógicos, muitos foram e são os elementos
pensados para que a comunicação circule pelo sistema de forma a alimentá-lo.
II
O conhecimento da ciência unido ao conhecimento da arte e da filosofia é aquilo
que Ítalo Calvino considerou como essencial a ser explorado no século XXI. “Entre os
valores que gostaria que fossem transmitidos para o próximo milênio está
principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e
da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia”3
.Essa
proposta é um componente essencial para manter em relação diferentes sistemas de
conhecimento. Só é possível o diálogo, dirá Edgar Morin, a partir de uma ética da
compreensão4
. Essa ética passa pelo compromisso da ciência e da arte em promover tal
diálogo e não se reduz à formação de especialistas nem à obediência ao conceito, nem
ao uso puro e simples da metáfora, da imagem ou da obra de arte. Conhecemos os
extremismos a que levaram os protocolos de verdades unitárias sobre a condição
humana e os saberes.
O compromisso da ciência em dialogar com o mundo do qual ela é parte, para
que possa se tornar um discurso pertinente sobre o mundo, está em ultrapassar os muros
dos laboratórios e gabinetes e se fazer entender. Nenhum discurso deixará de ser reflexo
desse aspecto tateante e exploratório que são as incursões do pensamento humano na
compreensão da realidade. Enquanto o saber científico cria uma hierarquia entre as
ciências sobre o seu domínio, o saber poético é capaz, segundo Niels Bohr, de “em seu
poder relembrar harmonias que ficam fora da análise sistemática”5
. Harmonias que
representam um alargamento da nossa percepção de existência. Ciência e poesia são
saberes intercomunicantes, dois modos de observação do mundo, opostos entre si, que
podem chegar a formar uma complementaridade ou mesmo uma “unidade de
conhecimento”.
3
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio – lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São
Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 133.
4
MORIN, E. “A ética do sujeito responsável” IN: CARVALHO, E. A;. ALMEIDA, M. C.; FERRARA,
N. F. ; COELHO, N.N; MORIN, E. Ética, Solidariedade e Complexidade. São Paulo: Palas Atena,
1998.
5
BOHR, N. Física atômica e conhecimento humano. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
8
III
Existe entre os saberes da comunicação e os saberes científicos uma conexão
simbionômica, que permite a partir deste ponto rever a nossa própria concepção de
comunicação. Analisemos este ponto um pouco mais.
A concepção moderna de mundo, elaborada a partir da física quântica de Niels
Bohr e da teoria da relatividade de Albert Einstein em combinação com o princípio da
indeterminação de Werner Heisenberg, sugere representar o mundo como uma
complexa combinação de energias. Tudo, no fundo, é energia, dizem essas concepções.
A própria matéria é um momento da energia que se cristaliza e o universo das energias é
constituído por um tecido de relações. Emerge daí uma concepção segundo a qual o que
é humano só pode ser definido a partir de uma interação/integração do homem com os
fluxos e as conexões de energias diversas, seja as plantas, águas, o ar, os animais, os
outros homens; a sociedade e as condições saudáveis de vida material, etc. Esses fluxos
e conexões seriam processos de vitalização, internalização e externalização de forças e
energias no seio da humanidade e não estariam necessariamente relacionados a uma
religião, mas a uma transcendência.
A escolha aqui pela relação comunicação e transcendência é uma forma do
pensamento tentar ir além de seus aspectos filosóficos. Trata-se de entender
parcialmente a permanência do transcendente6
na atualidade.
Vimos que o saber poético é capaz, segundo Niels Bohr, de “relembrar
harmonias que ficam fora da análise sistemática”. É justamente este saber poético que
nos permitirá o acesso à difícil questão do transcendente. É neste sentido que poetas
como Rainer Maria Rilke, Ítalo Calvino, Antonio Porchia e Roberto Juarroz podem nos
ajudar a entender o diálogo entre o poético, a comunicação e o transcendente. Tudo
interage com tudo, diz Juarroz7
, e se tudo interage, toda interação implica certo nível de
vida e de espiritualidade8
. Até as pedras possuem a sua lógica de interação. Elas são
6
“É preciso que o fenômeno da transcendência seja trazido à luz e seja apreendido em toda a sua
estrutura” (Heidegger, 2008, p.343). Para o filósofo, as formas de ligação com o mundo e da compreensão
de ser se tornam mais claras em sua pertinência à transcendência. “Transcender significa ser-no-mundo”
(p.326). Falar de transcendência é tratar da “ultrapassagem do ente” (idem).
7
JUARROZ, Roberto. Decimocuarta poesía vertical. Buenos Aires: Emecé. 1997.
8
Chamamos de espiritualidade a dimensão da pessoa humana que, indo além das confissões religiosas,
pratica um modo de ser característico de um mediador que busca relação com o transcendente-imanente.
Espiritualidade traduz uma dimensão do homem, de auto-cultivo intuitivo, sensitivo e intelectual que
pode inclusive transcender a norma ou a expectativa formal da comunidade de adeptos. De um modo
similar ao mundo da arte, a espiritualidade é sempre algo que se realiza na singularidade. O “estar juntos”
da comunidade, a caracteriza em sua coletividade.
9
mais do que simples composição físico-química, estão em contato com a atmosfera e
influenciam a hidrosfera, interagem com o clima e se relacionam com a biosfera. Sem
contar que as pedras podem falar ao imaginário do poeta e ao coração do místico,
podem evocar imagens de fortaleza, força, majestade, grandeza, solenidade e paciência.
Por volta dos anos trinta do século XX, Theilhard de Chardin havia intuído que, quanto
mais avança o processo evolucionário, mais ele se complexifica, mais se interioriza; e
quanto mais se interioriza, mais consciência possui e quanto mais consciência possui
mais se torna autoconsciente.9
A presença de uma força dinâmica que anima e movimenta as interações requer
a atenção constante dos poetas. O senso de transcendência neste sentido, para o poeta,
tem também característica de autopoiesis. A autopoiesis é fundamental para entender a
comunicação já que nela podemos perceber aquilo que o astrofísico Trinh Xhua Thuan
chamou de “melodia secreta”10
ou o que o poeta Antonio Porchia preferiu nomear como
“logos secreto”11
, presença/acontecimento que vitaliza os corpos, os homens, as
relações, as obras de arte sempre com vistas ao desequilíbrio, como se o universo inteiro
fosse regido por uma sinfonia desconcertante que propicia o encontro e a comunicação,
que une o ínfimo com o máximo, o dentro com o fora, o visível com o invisível.
O universo no qual vivemos não é o universo da ciência. A ciência inscreve-se
no mundo com o discurso de verdade, fornecendo interpretações possíveis da
experiência sensível. O espírito científico progrediu caracterizando-se pelas premissas
da teoria matemática e física, atingiu patamares técnicos assustadores, desbravando
todos os limites do mundo sensível. Aproximar neste sentido comunicação e
transcendência é uma proposta mais do que arriscada. Mais do que um desafio à
comunicação, é uma necessidade premente de os saberes científico e poético
defrontarem-se com o transcendente.
IV
9
Cf. CHARDIN, T. O Fenômeno Humano. São Paulo: Cultrix, 1995.
10
Trinh Xuan Thuan nasceu em Hanói, estudou na Califórnia, no Instituto de Tecnologia da Universidade de
Princeton, onde obteve o seu doutoramento em astrofísica. Desde 1976 é professor de astrofísica na
Universidade da Virgínia. Em La mélodie secrète (1991), interroga-se sobre a realidade e sobre a possibilidade
do universo inteiro ser regido por música secreta, porém, paradoxalmente, manifestante/presente. Abordando
com especial atenção o universo contemporâneo, ou seja, o universo do big-bang, ele aborda a questão que se
põe inevitavelmente: estamos aqui por acaso ou a nossa presença é parte integrante de um conceito de universo
que construimos à nossa medida? Cf. TRINH, Xuan Thua. La melodie secrète. Paris: Gallimard, 1991.
11
Cf. PORCHIA, Antonio, Voces. Valencia: Pré-Textos, 2006.
10
A espiritualidade é um complexo que comporta a necessidade e a liberdade
humana, que envolve o psiquismo, a subjetividade afetiva e sua sensibilidade junto à
emergência do extraordinário e às diversas dimensões energéticas presentes em nós ou
que nos circundam. C. G. Jung12
já dizia que a espiritualidade não é uma coisa que nós
possuímos, que está em nós, mas ao contrário, nós é que estamos nela, ela é que nos
possui com seu poder, sua força. Visto assim, a dimensão da liberdade deixa um tanto a
desejar, já que, se somos possuídos por ela, em que temos liberdade e escolha?
O Instituto de Psicologia Transpessoal, de Palo Alto, fundado em 1975, apostou
na refundação do ideal educativo da Grécia clássica: a integração de todos os aspectos
da experiência humana. Seu programa de estudos visava preparar homens capazes de
investigar as seis dimensões básicas do indivíduo: intelectual, emocional, espiritual,
física, social e criativa. Deste modo, o paradigma científico fundado ali preconizava
uma aproximação com uma nova concepção de homem.
Um dos mais influentes cientistas do século XX depois de Albert Einstein, Ilya
Prigogine, disse, no final dos anos noventa, que o século XXI “ou seria do espírito ou
não seria nada”.13
Desde então, a relação ciência-espiritualidade nunca mais foi a
mesma. Hoje, cientistas em todo o mundo dedicam-se a investigar os chamados
“saberes do amanhã”14
na tentativa de desdogmatizar a ciência, aproximando-a de áreas
mais arejadas. Assim é que fenômenos como os dos ‘mediadores’, também conhecidos
por médiuns, ou os estudos sobre a mente expandida, as experiências paranormais, os
projetos de percepção extra-sensorial, entre outros, avançam em todos os grandes
centros universitários e institutos de pesquisa do mundo.
O fenômeno do “olho gordo” por exemplo, tido como crendice popular vem
sendo estudado há mais de quinze anos pelo físico inglês Rupert Sheldrake. Ele
observou que a crença em influências transmitidas pelos olhos é encontrada em quase
todas as sociedades tradicionais do mundo. Em sua forma negativa, o ‘olho mau’ está
associado à inveja, consegue secar plantas e provocar doenças. Na sua forma positiva, é
conhecido na Índia por “Darshan”, olhar amoroso que, segundo dizem, confere benção e
12
Cf. JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental. Petrópolis: Vozes, 2011.
13
PRIGOGINE. Ilya. O fim das certezas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp, 1996.; Cf. também A
sociedade em busca de valores. Trad. Luis C. Feio. Lisboa: Instituto Piaget, 1998 e Ciência razão e paixão. Trad.
Edgard de Assis Carvalho et alli. Belém, Eduepa, 2001.
14
Cf. SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade – comportamente, corpo e movimento. São
Paulo: Summus, 1991.
11
saúde. O físico desenvolveu uma pesquisa que recebeu o nome de “A sensação de estar
sendo olhado” em que investiga fenômenos da mente humana.15
A hipótese dele é que, se a mente se projeta através do olhar e ‘toca’ o que
vemos, então seríamos capazes de afetar o que vemos apenas com o olhar. Pesquisas
realizadas na Europa e nos EUA revelam que cerca de 80% das pessoas dizem já ter
tido a sensação de estar sendo observadas. Contudo, o impulso de voltar-se para trás não
é comum a todos. Há casos – garçons, artistas e professores, por exemplo,– em que esta
percepção parece atrofiada, ignorada ou evitada. Sheldrake recomenda a experiência de
olhar fixamente para a nuca de uma pessoa e ver o que acontece: ela vai ficando
irrequieta e se volta para trás com um olhar contrafeito. O fenômeno também foi
observado em cães e lobos. Naturalistas puderam constatar que quando um filhote de
lobo se afasta demais do covil, a fêmea ergue a cabeça e mira fixamente; esse olhar, de
alguma forma, tem o mesmo efeito que um chamado: paralisa o filhote como se lhe
enviasse um grito. Se isso acontecesse apenas uma vez, dizem os cientistas, poderíamos
dizer que é mera coincidência, mas acontece repetidamente e do mesmo modo
intrigante. O filhote para súbito, volta-se então como se tivesse recebido uma ordem,
repara no olhar da fêmea e volta como um cão treinado a escutar o assobio.
Podemos tirar implicações transcendentais desta pesquisa? Se a resposta for
positiva, uma delas resulta em entender a comunicação como o grande pólo gestor ou
catalisador de energias dinâmicas que põem em interação uma cadeia de novas
interações humanas e não humanas. Mas é justamente neste ponto que reside o
problema. O homem avançou pouco no entendimento global das energias que nos
circundam. O fenômeno da fé, por exemplo, começa também a ser explorado
cientificamente mediante a dimensão da psique. Sabemos, no entanto, que este recorte
ainda é pouco. Acredita-se que a fé seja o resultado da vontade pessoal com a crença
numa dimensão além. Isso pode ser observado através do “efeito placebo”: tratamento
sem nenhum valor terapêutico que, mesmo assim, ajuda doentes a melhorar. Não se
trata apenas de ver pessoas ficarem curadas ao ingerirem pílulas que não possuem
nenhuma substância química, mas também de cirurgias fictícias e psicoterapias fictícias.
Estudos sobre a mente mostram que ela é capaz de ampliar a própria noção do
que se entende por realidade. O pesquisador italiano Stephano Sabetti ficou espantado
ao descobrir que monges budistas tibetanos brincavam de derreter neve com a mente.
15
Conferir o amplo relatório de pesquisa a este respeito em SHELDRAKE, Rupert. Sete experimentos
que podem mudar o mundo. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.
12
Eles se colocam em estado de meditação, sentados sobre a neve, e apenas com o calor
do corpo e a força da mente, brincam de ver quem derrete o maior diâmetro de neve em
torno de si.16
Muitas outras pesquisas vêm sendo realizadas nesta direção, como a que diz
respeito aos lugares do planeta considerados sagrados e aos efeitos que eles provocam
nas pessoas, ou às pesquisas na área de Biologia Molecular e Bioquímica que sugerem
que pessoas que dizem ter “experiências extraordinárias”, “visões” ou qualquer outra
sensação de teor místico são afetadas pela chamada “epilepsia do lóbulo temporal”. De
acordo com especialistas em neurobiologia, os sintomas dessa epilepsia dependem de
uma atividade elétrica anômala do lóbulo temporal do cérebro. Um levantamento dessas
pesquisas, feito em 2002 pelo jornalista português Joaquim Fernandes, registrou pelo
menos 57 estudos diferentes em várias universidades. Desde a relação astrológica com a
psique, passando pela presença de seres extraterrestres entre nós, a engenharia da mente,
o uso de sensitivos pela CIA, os relatos de experiência entre a vida e a morte, entre
outros. Ao que parece, a ciência e as diversas dimensões do espírito serão as novas
heterodoxias do século XXI.17
V
Se se consegue atingir a instância de uma nova relação comunicacional com os
campos energéticos que nos circundam, talvez a própria ciência comunicacional consiga
alcançar uma visão consideravelmente complexa e ampliada de si mesma. Não que isso
simplesmente irá melhorar o seu status no campo científico, mas será certamente um
motivo a mais para reconsiderarmos as nossas posturas diante do campo.
O homem apenas começou a investigar comunicacionalmente a natureza, e
sequer iniciou uma reflexão lógica e duradoura sobre aquilo que a ciência chama hoje
de “imaterialidade”. Neste sentido, desperta mesmo atenção de forma contundente a
hipótese de Rupert Sheldrake, de que uma “conexão invisível” faz interagir passado e
presente a tal ponto que campos de forças não só atuam no nosso organismo e na nossa
história, como possuem autonomia própria. Entre esses campos de forças autônomos
estão, segundo ele, as entidades ditas sobrenaturais, presentes em outros planos e
esferas, conhecidas na história da humanidade como gênios, fadas, magos, duendes (no
16
SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade – comportamento, corpo e movimento. São Paulo:
Summus, 1991.
17
FERNANDES, Joaquim. Heterodoxia para o século XXI. Lisboa: Campo das Letras, 2001.
13
caso dos relatos imaginários) e santos, virgens, caboclos e exús (no caso dos relatos das
doutrinas).
A ressacralização do mundo há muito já começou e parece que as religiões
tradicionais têm pouco a ver com esse efeito marginal que tomou conta dos corações
humanos. A ciência, sempre alheia a hipóteses aparentemente malucas como a de
Sheldrake, será a primeira a buscar bases explicativas para fenômenos há muito
deixados de lado. Por enquanto, a comunidade científica dá de ombros e torce a boca
quando a assunto são as energias psico-interacionais; futuramente, talvez nos séculos
vindouros, cientistas, místicos e teóricos da comunicação de todas as denominações
possam congregar esforços para a compreensão global das energias da natureza.
Por enquanto, a comunidade científica ainda trata filósofos naturais como
Sheldrake como marginais ou alienígenas, excluem-no dos financiamentos oficiais ou
denegam a sua atividade com o velho chavão: “isso não é ciência”. A posição de
Sheldrake é contestada, entre outros motivos, porque se aproxima do animismo,
concepção que sustenta que todas as partes da matéria implicam consciência e entende
que como o cosmos e a natureza produzem criaturas vivas, deveriam eles mesmos ser
vistos como organismos vivos e animados possuidores de razão, emoção e linguagem.
Religare é a palavra latina que origina o termo religião. Como dissemos, se se
consegue a instância dessa religação, talvez se atinja o patamar mais complexo da
relação entre o homem e a transcendência. Atinge-se a potência mais radical, o universo
dos “impossíveis”, alcançados até hoje somente pelos místicos ou pela fantasia. A
possibilidade radical de vivermos cá com os deuses, em patamares diferentes de co-
penetração nos respectivos mundos, respalda a antiga concepção de que os deuses estão
em tudo, que o mundo é concebido como um organismo complexo, às vezes
denominado pelo nome de Gaia, por sinal uma divindade grega que, segundo a tradição,
é um dos princípios do cosmos junto com Caos e Eros. De Gaia (Terra) nascem o céu
(Urano) e o mar (Ponto).
A doutrina de que toda a matéria é dotada de vida foi assumida ao longo da
história por filósofos e pagãos; entre os cristãos, a personagem mais famosa é São
Francisco de Assis, padroeiro da ecologia, que interagiu com o lobo, o sol, o Papa e o
leproso com a mesma reverência e o mesmo amor. Perceber não só o magnetismo das
coisas como a alma que habita cada rincão do mundo (seja ele a montanha, o deserto, a
pedra, a flor...) é uma experiência que o homem necessita reaprender. É uma outra
14
percepção do mundo que instaura outro tipo de racionalidade e de conhecimento sobre o
próprio mundo.
Entre os físicos é conhecida a história contada por Werner Heisenberg sobre seu
professor e mestre Niels Bohr, prêmio Nobel de física em 191318
. Heisenberg, também
Nobel em 1927, descreve em um texto dedicado à relação entre ciência e religião uma
história que Bohr adorava contar em reuniões informais. Contava que um dos seus
vizinhos em Tisvilde pendurou uma ferradura na porta de casa, quando um conhecido
lhe perguntou se ele era supersticioso e se realmente acreditava que aquela ferradura
possuía algum efeito mágico, respondeu, ponderando, que pessoalmente não acreditava,
mas que haviam lhe dito que ela funcionava assim mesmo; mesmo quando não se
acreditava nela.
Essa história nos ensina alguma coisa. Tão logo a teoria da comunicação comece
a se interessar por conexões e efeitos, como a que Bohr observou em Tisvilde, ela
atingirá um considerável desenvolvimento das relações do homem com a sociedade e a
natureza. Por enquanto a teoria da comunicação não saiu da cancela sociológica e
mesmo com todas as contribuições dadas pelas diferentes escolas, a teoria pode e deve
investigar outras lógicas de interação. Apesar da pesquisa em comunicação estar ainda
sob o jugo de um padrão mecanicista, que coloca o emissor numa ponta e o receptor
noutra, sabe-se hoje do princípio da não-separabilidade entre organismos diversos, que
conservam um misterioso vínculo entre si, simultaneamente de reciprocidade e
oposição, revelando com isso aspectos estranhos e paradoxais da natureza das relações.
Há se não um tabu, um alheamento total na investigação da paranormalidade, por
exemplo, assim como na relação do homem com animais, plantas ou entidades ditas
sobrenaturais. Pouco comum, esse tipo particular de pesquisa pode revolucionar a teoria
da comunicação e despertar para um novo senso de conexões vivas, visíveis e invisíveis,
entre a esfera humana e a vegetal, animal e espiritual.
Há casos de comunicação telepática com animais e entre humanos, há casos de
premonições e aptidões fora do comum de pessoas capazes de uma comunicação com
planos diferentes desses. Poucos são os casos onde os chamados médiuns são estudados
como elementos de mediação que garantem uma comunicação entre as diversas esferas.
Se esses humanos especiais forem desfocados do ambiente religioso ou supersticioso
em que estão encerrados e forem observados como sujeitos capazes de auxiliar a
18
Cf. HEISENBERG. W. A parte e todo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
15
pesquisa e o desenvolvimento da capacidade humana em se comunicar, então pode-se
começar a reconectar o homem à busca de um saber poético, elementar e primordial.
Ignora-se, por exemplo, o modo de coordenação dessas comunicações, não se
sabe se a ocorrência do acaso em nossas vidas está inscrita em um conjunto de
probabilidades, se é somente puro evento casual ou se é fruto de magia, como supõem
alguns povos indígenas.19
Claro, não se pode admitir que todas as ocorrências
imprevistas são frutos de magia, mas que um evento, qual um encontro através de uma
trombada na rua, um acidente ou o que chamamos de sorte ou azar, pode ser resultado
do jogo sútil qualquer de forças que desconhecemos. Nem todos os tipos possíveis de
interconexão entre os campos e organismos são conhecidos, podendo, em princípio, ser
plenamente explicáveis, contudo, como relacionar campos desconhecidos da
comunicação com a teoria vigente? Na percepção de uma comunicação expandida e
animada por uma realidade ampla, observa-se que a religação do homem à natureza
implica o redimensionamento de outras percepções.
A alma não está confinada ao cérebro, mas estende-se pelo corpo e à sua volta.
Liga-se aos ancestrais; prende-se à vida dos animais, das plantas, da terra e dos
céus; pode vagar longe do corpo em sonhos, nos transes e na morte; pode
comunicar-se com uma vasta esfera de espíritos - dos ancestrais, dos animais, da
natureza - e ainda com elfos e fadas, elementais, demônios, deuses e deusas, anjos
e santos.20
Se é isso mesmo o que a física contemporânea sinaliza, pode ser que as palavras
e os pensamentos produzam também efeitos a distância noutras pessoas e grupos, o que
pode fazer da televisão, por exemplo, a fonte privilegiada dos estudos sobre os efeitos
das mensagens veiculadas por ondas magnéticas, efeitos do plasma que interferem na
convivialidade humana.
A pesquisa de Sheldrake verificou a possibilidade de diversas conexões da
natureza ainda serem desconhecidas em suas lógicas. Verificou, em mais de mil
experimentos, que os cães sabem quando os seus donos estão voltando para casa, que os
pombos possuem uma conexão invisível qualquer que lhes permite saber o caminho de
casa; que os humanos possuem uma sensação que lhes permite saber quando estão
sendo observados; que a ação medicinal produzida pelo efeito placebo é plausível de ser
19
Estudos realizados com o povo Bororo, do Mato Grasso, e os Dogon de Mali, mostram que, em muitos
casos, magia e ciência são considerados o mesmo fenômeno. Cf. BARBOSA, Andréa (org.). Imagem-
Conhecimento, antropologia, cinema e outros diálogos. São Paulo: Papirus, 2009.
20
Sheldrake, 2000, p. 32.
16
incorporada ao tratamento das patologias humanas; que o método de organização dos
insetos sociais como abelhas, cupins e formigas é mais complexo que o nosso.
Ele insinua que o conjunto de energias na natureza pode indicar a hipótese de
uma “ressonância mórfica”. A hipótese aparece no seu livro A New Science of Life
(1995) a revelar que há campos ordenadores invisíveis que controlam todos os
sistemas. Esses campos produzem a forma e o comportamento, sem precisar de
energia convencional. Valem-se da energia escalar, virtual, que supera qualquer
barreira de tempo ou espaço. Sempre que um indivíduo de uma espécie aprende
ou descobre um novo hábito, procedimento, atitude, isso repercute no campo
ordenador invisível da espécie toda, mesmo que ligeiramente. Se essa atitude
for repetida por muito tempo imporá uma ressonância mórfica que influenciará
todos os indivíduos da mesma espécie. A partir de Lyan Watson, sabemos que
se um conjunto de macacos numa ilha exibir um novo comportamento, em
outras ilhas distantes o mesmo comportamento novo era ostentado por outros
macacos, sem nenhuma comunicação tradicional.
Na sua pesquisa com cães verificou que há uma relação íntima entre o cão e o
dono e entre o pombo e sua casa. Sheldrake escreveu a vários periódicos pedindo aos
leitores que relatassem a relação que mantinham com seus cães. Para sua surpresa
recebeu cartas de toda a Inglaterra, descrevendo histórias curiosas neste sentido. Do
mesmo modo, Sheldrake procurou anúncios científicos em busca de histórias do tipo,
foi à ficção, leu histórias de outros continentes... Descobriu que o conjunto de
documentos sobre o assunto era significativo. Num caso ocorrido durante a primeira
guerra mundial, um cão atravessou a canal da Mancha, entre a França e a Inglaterra, até
encontrar seu dono nas linhas inimigas. Nossa relação com os cães e gatos é antiga o
bastante para já ter sedimentado uma energia-qualquer-de-relação, possivelmente
amorosa, íntima, que propicia tais eventos. O homem domesticou os cães há vinte e
cinco mil anos, enquanto que os gatos apenas há quatro mil, no Egito.
Num experimento com cães, Sheldrake colocou câmeras dentro das casas
acompanhando-os, num tipo de filmagem comum nos bancos, espécie de vigilância, de
monitoramento. Por outro lado, pesquisadores acompanhavam à rua os donos.
Sheldrake simulou um sem número de situações: os donos decidindo retornar para casa;
os pesquisadores decidindo quando o dono iria voltar; os donos saindo sozinhos, sem a
companhia do pesquisador, e marcando eles mesmos no relógio o segundo da decisão
do retorno. Em todos os casos, a atitude dos cães era recorrente: levantavam-se (no
17
ponto em que estivessem na casa) e dirigiam-se à porta. Em alguns casos, os cães
conseguiam até antecipar em segundos a decisão do dono em retornar. Sheldrake
acredita que os gatos também devem intuir o mesmo, mas a sua atitude não segue a dos
cães.
Na pesquisa sobre os pombos não foi diferente. Diversas simulações foram
feitas, situações criadas e modificadas à exaustão para descobrir o que já suspeitavam.
Um dos relatos dá conta que um pombo chegou a salvar 12 pessoas na queda de uma
aeronave no oceano atlântico. Durante uma tempestade, um monomotor sofreu uma
pane e caiu sobre o mar revolto, mas o capitão conseguiu anotar a latitude e a longitude
da queda; anotou a informação em um papel e lançou o pombo ao rugido do tempo. O
bicho voou contra o vento por mais de seis horas com uma tempestade ruidosa à sua
volta. Chegou na base militar em tempo de salvar a todos. Salvos, homenagearam o
pombo com uma placa de bronze e um jantar para o qual o pombo foi convidado.
Numa das simulações, Sheldrake colocou um pombal sobre um automóvel,
soltou os pombos e tomou uma direção qualquer seguindo por duzentos quilômetros.
Estacionou o carro e esperou. Horas depois, lá estavam eles, os pombos, em gorjeio,
sem algazarra.
As outras experiências vão na mesma direção. Experiências mostram que
existem muitos campos de interação desconhecidos. Como o homem sabe, na maioria
das vezes, que está sendo observado? O que desperta nele essa sensação? Os olhos do
outro? O pensamento, a intenção? Em uma pesquisa quase sem custo (apenas uma
caneta e um papel) Sheldrake simulou situações em que grupos de dois onde o primeiro
sentava-se costas para o segundo. Os grupos tinham que marcar se estavam olhando ou
não, e se o olhado se sentia ou não mirado. A relação com os acertos era superior a
sessenta por cento. Se os homens sabem que estão sendo observados, como é que eles
ficam sabendo disso? Que sensorialidade há, capaz de detectar um movimento ocular
alheio?
As sete experiências do físico inglês podem ser recriadas em muitas situações
onde essa comunicação extrasensorial acontece. Certamente, conhecemos casos da
comunicação (como a da mãe com o filho) onde tais relações aparecem subscritas numa
”Ordem Implícita”, como descreveu o físico David Bohm.21
Segundo Bohm, as pessoas intuem uma forma de inteligência que, no passado,
organizou o universo, e a personalizam chamando-a Deus. Imaginamos o místico como
21
BOHM, David. A totalidade e a ordem implicada. São Paulo: Madras, 2008.
18
alguém em contato com espantosas profundezas da matéria ou da mente sutil, não
importa o nome que lhes atribuamos. Em sua teoria da Ordem Implícita sobre a origem
do universo visível, da vida, da realidade que vemos, tocamos, medimos e
quantificamos, ele vai muito além da ciência tradicional. Pesquisando a natureza da
consciência, devido aos problemas que encontrou na mecânica quântica, Bohm
procurou Krishnamurti – filósofo hindu -, com quem manteve grande amizade. Juntos,
promoveram palestras e debates sobre assuntos importantes e que depois foram
publicados em livros. Bohm é um dos cientistas que “por intermédio da ciência”
percebeu um universo vivo, inteligente, belo e até mesmo bondoso; tornando essa
percepção convincentemente viva para os demais.
A teoria da ‘Ordem Implícita’ emergiu dos estudos de Bohm sobre as variáveis
ocultas e a interpretação superficial da mecânica quântica – “propondo que uma ordem
oculta atua sob aparente caos e falta de continuidade das partículas individuais de
matéria. Em geral, a totalidade da ordem abrangente não pode se tornar manifesta para
nós; somente um certo aspecto dela se manifesta. Quando trazemos essa ordem
abrangente para o aspecto manifesto, temos uma experiência de percepção. Mas isso
não quer dizer que a totalidade da ordem seja apenas aquilo que se manifesta. Na visão
cartesiana, a totalidade da ordem, pelo menos potencialmente, é manifesta, embora não
saibamos como manifestá-la por nós mesmos. Precisaríamos de microscópios,
telescópios e outros instrumentos. A sugestão básica da teoria de Bohm, de início, é a de
que vivemos num mundo multidimensional e a nossa moradia está situada no nível o
mais óbvio e superficial: o mundo tridimensional dos objetos, espaço-tempo, ou seja, na
Ordem Explícita. Neste nível, diz Bohm, “a matéria é densa e embora possa ser descrita
em relação a si mesma, não é a maneira de explicá-la e entendê-la com clareza.
Infelizmente é basicamente nesse nível que a maioria dos físicos trabalha hoje em dia;
por isso suas descobertas são apresentadas na forma de equação de significado
obscuro”. Então, o que fazer? Bohm entende que avançar para um nível mais profundo:
a – Ordem Implícita – “Fonte” e “Fundo” abrangente de toda a nossa experiência física,
mental e espiritual, Fonte que está situada numa dimensão de extrema sutileza, ou seja,
na Ordem Superimplícita, implica postular também muitas ordens semelhantes:
“mergulhando numa fonte ou esfera infinita–n-dimensional”.
O que sabemos a fundo deste modelo de comunicação? Qual o seu processo
interno, o seu funcionamento, a sua ordem e em que estrutura se orienta? Se nada
sabemos, bem que poderíamos dizer que ainda estamos no “ano zero da comunicação”,
19
como escreve Ciro Marcondes Filho22
. Se nada sabemos, bem que poderíamos adotar na
pesquisa uma postura mais simples e atenta e escutar mais a natureza, espreitar os
“mistérios” cá entre nós, dispor o coração ao entendimento de uma razão que, por
enquanto, a própria razão desconhece.
VII
Cada um de nós, ao se defrontar com a hipótese de que forças diferentes e
variadas atuam em nossa existência, não pode deixar de se perguntar pelo sentido dessa
presença. Ao nos defrontarmos com causas e efeitos aparentemente científicos como o
revelado na pesquisa com pombos e cães, não podemos deixar de levar em conta nossa
experiência com as conexões ainda inexplicáveis. Conhecemos pelo menos um caso de
pessoas que nos revelaram um tipo qualquer de sensação não frequente ao dia-a-dia,
como aparições, sonhos ou estados de êxtase, comunhão, iluminação... Mas quando
somos defrontados com a vida cotidiana somos intensamente levados a rejeitar essas
experiências, descartando-as como superstições.
Em levantamentos preliminares feitos na Inglaterra e nos Estados Unidos, em
populações escolhidas aleatoriamente, aparece em mais de um terço das pessoas
interrogadas, que elas constataram “uma presença ou uma força” pelo menos uma vez
na vida.23
Nos relatos coletados pela Unidade de Pesquisa sobre Experiências
Religiosas, de Oxford, a maioria deles apresenta sentimentos de ligação com a natureza,
mas, paralelamente, tais experiências são tratadas com dificuldade pelos entrevistados,
semelhante muitas vezes à discussão sobre assuntos sexuais íntimos.
O tabu no relato ou com as narrativas das relações com o que não podemos
explicar facilmente na natureza ainda permanece. A radicalidade que tais relatos não
conseguem esconder aparece sob o signo da co-presença na natureza de campos de
forças inteligentes, energias capazes de se condensar numa forma e fazer contatos
conosco, sem que para tanto sejam visíveis, e quando o são, os relatos enchem-se de
descrições próximas aos da literatura fantástica.
Pode ser que estas energias não sejam nada além da alma que os gregos antigos
acreditavam estar misturada ao universo. Talvez seja por esta razão que Tales de Mileto
(585 a.C.) acreditava que tudo estava pleno de deuses, que a alma era capaz de produzir
22
MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação ano zero. Abr./jun.,1990. Portcom Intercom. In:
www.portcom.intercom.org.br/novosite/navegacaoDetalhe.php?option=artigo&id=7771
23
SHELDRAKE, R. O Renascimento da Natureza. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 212.
20
movimento e que ela estava presente até mesmo em coisas inertes como a pedra, o
âmbar e o imã.
Sabemos que a proximidade entre ciência e religião parece nunca ter feito muito
bem à ciência, em especial. Durante toda a idade média a ciência involuiu devido à
limitação da mentalidade religiosa da época, e que, somente após o iluminismo, é que
esse laço foi desfeito. Agora, novamente, as pesquisas físicas começam a se aproximar
novamente do que há muito a religião procurou tratar. Mesmo com a evolução da
ciência laboratorial tais investigações não deixam de parecer exóticas. Quando se fala
de inteligências desencarnadas ou entidades espirituais não-humanas logo o assunto
parece fugir inteiramente do âmbito científico. Devido ao tremendo número de relatos
dessas entidades ditas sobrenaturais em todos os povos e civilizações, um outro campo
do saber, além da antropologia, poderia investigar tais relatos com rigor laboratorial.
Trata-se de aproximar tais energias das pesquisas físicas, químicas e biológicas. De
qualquer forma, sabemos que isso vem sendo feito, ainda que muito discretamente. Em
Paris, fala-se de grupos de doutores em química que realizam experiências laboratoriais
com o objetivo de transmutar substâncias em outras substâncias; seriam eles os
alquímicos modernos?
Não se pode dizer que tais forças e manifestações interessem apenas a diletantes
ou obscurantistas. São inúmeros os relatos de cientistas que tiveram uma relação com
experiências místicas. Sabemos hoje que o próprio René Descartes (1596-1650)
interessava-se pelo ocultismo24
. Conta-se, inclusive, que num sonho um anjo havia
aparecido e lhe dito que o segredo da conquista da natureza estava na medida e no
número. Friedrich August Kekulé (1829-1896), descobridor do anel benzênico, sonhou
com o símbolo urobórico (a cobra que morde a própria cauda) e entendeu que estava ali
a solução de um problema de estrutura molecular que vinha procurando.
Desde o empirismo pré-iluminista de John Locke (1632-1704) já se falava da
necessidade de uma religião natural. Talvez se fale nisso há muito tempo, se é que
podemos assim caracterizar o pensamento pré-socrático, especialmente em ‘físicos-
filósofos’ como Tales de Mileto e ‘místicos’ e médicos como Empédocles de Agrigento
(493-433 a.C.). Depende de Locke, substancialmente, um tipo de deísmo que
influenciou os livre-pensadores iluministas, notadamente na França. Deísmo
caracterizado de religião natural, racional e universal, ainda sem conotações
sobrenaturais. Deísmo, contudo, que resvala quase sempre para um panteísmo abstrato,
sem que se consiga ir além do discurso de que é necessário devolver a humanidade à
sua religião originária e primordial, que é o culto à natureza.
24
Cf. DESCARTES, R. Meditações metafísicas (1641). Rio de Janeiro: WMF Martins Fontes, 2011.
21
Ir além do discurso significa começarmos a ser “intérpretes e inventores entre a
natureza e os homens” como autodefiniu-se Leonardo Da Vinci25
. Podemos mais do que
constatar tais eventos ditos sobrenaturais, tentar dialogar, catalogar, pesquisar sua
dinâmica e suas ocorrências. Podemos pelo menos, começar a tentar fazê-lo, já que
nesse campo tudo parece ainda incipiente e difuso.
Interessante é notar que a comunidade científica tenha visto a ocorrência de tais
fenômenos como algo irrelevante à pesquisa, sem propósito ou relação com a vida do
dia-a-dia. Em várias partes do planeta a união da pesquisa científica à investigação da
imaterialidade presente nas crenças religiosas substancia uma terceira via, que se funde
entre fé e ciência. Dessa união abrem-se novas hipóteses e possibilidades como a do
desenvolvimento da física das novas energias, com destaque para a física da energia
vital. Historicamente, o vitalismo é a doutrina filosófica que afirma a existência de uma
força autodeterminada, hereditária, atuando em todos os fenômenos. A força surgida da
religação entre os saberes da análise, verificação e classificação e os domínios
noológicos apresenta-se, também historicamente, sob a forma de uma visão de mundo
que trabalha com as probabilidades de interconexões, ou seja, uma forma de produção
científica dialógica, com os elementos laboratoriais e o rigor analítico, colaborando para
redescobrir o fluxo de energias do mundo natural.
O vitalismo na ciência ou a pesquisa das energias psico-interacionais não é
assunto recente. Paracelso, em 1530, nomeava tal força de “munia” ou “mumia”,
Johannes Kepler (1620) chamou de “facultas formatrix”; Sigmund Freud (1895) de
“libido”; Rudolf Steiner (1900) entendeu por “força formativa etéria”; Henri Bergson
(1920) chamou de ”elã vital”; Wilhelm Reich (1940) de “orgônio”; Erwin Schroedinger
(1948) de “entropia negativa”; Carl Gustav Jung (1951) de “sincronicidade”; Abrahan
Maslow (1960) de “sinergia”; enfim, muitos cientistas e filósofos se interessaram pela
manifestação de certas energias (que podem nem sempre representar a mesma vibração
ou ter o mesmo conceito), nomeando-a de vários modos: “alma do universo”
(Stronberg), “princípio unitário da natureza” (Bertalanffy e Whyte) “paraeletricidade”
(Worral), “energia noética” (Musès), “energia biocósmica” (Brunler), “Spiritus”
(Fludd), “luz astral” (Blavatsky). 26
Somente nessa relação, identifica-se que a ciência e a espiritualidade aparecem
muitas vezes confundidas sob nomenclaturas que visam descrever a mesma
potencialidade da natureza. Fé, dúvida, razão e ciência entrecruzam-se e combatem-se
no espírito do homem. Cientistas e filósofos como Pascal, Spinoza, Galileu, entre
25
DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. Firenze: Neri Pozza, 2000.
26
Cf. SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade. São Paulo: Summus, 1991, p.60 e 61.
22
outros, até contemporâneos como Edgar Morin, David Bohm, Henri Atlan alimentam-se
das contradições e complementaridades entre ciência e religião. Cientistas como Atlan
não vêm conexão possível, mas filósofos como Morin fazem até uma distinção dos tipos
de forças imateriais presentes em nossa vida. Ele entende que são dois os tipos de
entidades imateriais: 1) entidades cosmo-bio-antropomorfas como mitos, gênios,
espíritos e deuses e 2) entidades logomorfas como doutrinas, teorias, filosofias, formas
pensamento que por vezes nos dominam e arrebatam.27
É a relação dessas entidades materiais com a comunicação que nos interessa
investigar como condições de possibilidade de entendermos melhor o senso de
transcendência presente (e por vezes, oculto) nas interações humanas.
27
Cf. MORIN, E. O Método IV - As Ideias. Porto Alegre: Ed. Sulinas, 1998.
23
2. Palavra e senso de transcendência28
Toda palavra chama outra palavra.
Toda palavra é um imã verbal,
um pólo de atração variável
que inaugura sempre novas constelações.
Uma palavra é toda a linguagem,
mas é também a fundação
de todas as transgressões da linguagem,
a base onde se afirma sempre uma antilinguagem.
Uma palavra é todavia o homem.
Duas palavras são já o abismo.
Uma palavra pode abrir uma porta.
Duas palavras a apagam.
Roberto Juarroz
I
A antropóloga e poeta Tereza Vergani pesquisou na África algumas formas de
manifestação da palavra entre o povo Dogon, de Mali, publicando os resultados de sua
investigação no livro Excrementos do sol: a propósito de diversidades culturais
(Lisboa, Pandora, 1995). Ela constatou que o conceito Dogon de palavra é superior
àquele que se limita a abarcar a emissão do conjunto de sons dotados de sentido. Os
Dogon possuem quarenta e oito categorias para classificar o papel da palavra na sua
sociedade. Além de estar relacionada à própria criação do mundo, a palavra é, para eles,
uma semente que pode render diversos frutos que nascem, crescem e morrem tal qual o
homem. O seu entendimento abrange uma dupla complexidade temporal: a da palavra
que cria o homem e a da palavra pela qual o homem cria o mundo.
Naquela sociedade, a pessoa vale o que vale a sua compreensão da palavra. A
fala é vigiada com cuidado extremo, porque basta uma única delas ser pronunciada de
forma vil ou desatenta para que o homem tenha de pagar por sua irresponsabilidade, já
que a palavra é a manifestação energética tornada ação a partir do seu pronunciamento.
Para eles, muitas são as palavras “podres”, “mortas” e “sem sementes” que podem
28
Entendo este ‘senso’ a partir do “caráter estrutural da transcendência” que, segundo Heidegger (2008,
p.362-66), está fundado em dois fenômenos: 1) Ter-sido-jogado e 2) a Nulidade. Ter-sido-jogado à
existência implica em lidar com a multiplicidade das ligações essenciais que nos rodeiam e que permitem,
por sua vez, tornar visível a nulidade. A nulidade revela a finitude, a “ausência de apoio do ser-aí” diante
da existência; revela que nenhum ser-aí existe em função de sua própria resolução e decisão.
24
ocasionar a desgraça daquele que a usa. “Os Dogon não atribuem qualquer grau de
realidade a um pensamento que se não venha a exprimir por palavras, isto é, que se não
revele como força atuante no mundo”. (p.78)
É notável a descrição da poeta a partir da sociedade Dogon: “é impensável, por
exemplo, que uma mulher passe por um campo onde um homem labuta sem lhe dirigir
uma palavra de ânimo, de compreensão, de solidariedade. Negar a palavra a alguém é
como negar-lhe água num deserto. Quem conhece a aridez desta zona de Mali,
compreende que tanto a água como a palavra produzam o mesmo espanto festivo. O
coração emudece-nos quando, depois de horas a atravessar a espessa solidão da areia,
vemos de repente uma pequena (única) árvore levantando-se milagrosamente na secura!
E que dizer quando é um homem que surge subitamente da poeira branca levantada
pelos seus pés? Poder pronunciar uma palavra no deserto transcende tudo o que a
natureza nos consiga vir a dar. É aí que a palavra nos aparece como a verdadeira
fronteira entre o mundo natural e o mundo cultural: só aí sabemos e sentimos que a
palavra está para o homem assim como a água está para a terra”. (p.79)
A sua pesquisa conseguiu mapear a forma peculiar com que esse povo classifica
a palavra. Ela é simultaneamente um corpo astral e físico, ao mesmo tempo divina e
humana. A semente astral da palavra está dividida em sete vibrações que correspondem
às sete notas musicais ou “a natureza vibratório do som”. Às “sementes da palavra”
estão relacionadas ainda aos elementos água, ar, fogo e terra, enquanto que o “corpo da
palavra” à sua natureza e forma de manifestação. Para melhor esclarecer, ela apresenta o
seguinte quadro:
Semente astral da palavra Corpo da palavra humana
Água Saliva, umidade necessária à correta
articulação da palavra
Ar Sopro vital, pulmões, mecanismo de
respiração, vapor d’água que se expira ao
falar
Fogo Temperatura da palavra (relaciona-se com o
calor corporal e as condições psicológicas do
sujeito que fala)
Terra Ossadura da palavra, sentido ou ‘peso’ da
palavra, inteligência do discurso
Fecundidade da semente Tom e natureza da palavra, relacionados
com a força vital do sujeito que a profere.
25
Esse estudo ‘físico’ da retórica humana, se é que podemos assim nomeá-lo, não
pára por aí. O sangue humano é o que confere o encanto à palavra, influindo no timbre
da voz, suave ou quente, amável ou calorosa, a modelar o discurso, provocando ou não
prazer na escuta. A tonalidade da voz revela o estado psicológico daquele que fala e dá
a conhecer as intenções do discurso. As oposições de timbre, intensidade ou altura
traduzem a constante passagem da razão a emoção e da afetividade à consciência por
parte daquele que fala. Do mesmo modo, revela o galanteio, a indiferença, a cólera, a
mágoa, o vigor. Tanto a palavra quanto a voz carregam consigo altos graus de
sexualidade. A boca é o local do tear da palavra. A orelha o ponto de fecundação. Para
os Dogon, a palavra possui cheiro e gosto, e comunica diversos ‘sabores’, podendo ser
“doce como o mel, ardente como a pimenta e amarga como a verdade”, diz Vergani.
Ainda seguindo a sua investigação, a palavra possui perfume, através dela
podemos produzir a nossa purificação, como se ela fosse uma espécie de incenso. Assim
como a “palavra morta” é capaz de produzir “mal cheiro”, a palavra viva é como um
óleo aromático, a produzir embelezamento, saúde e bem estar. Uma palavra que renove
o nosso espírito é escutada entre eles como se aspirassem o aroma das ervas e
fragâncias.
A riqueza do estudo de Vergani sobre os significados da palavra dogon está
também no fato de ser ela uma poeta, que sabe o tom, valor, medida, altura e
profundidade de cada expressão. Sabe que a palavra é capaz de trazer harmonia àquele
que a maneja bem, mas também capaz de fazer com que a pessoa se ‘afogue’ ou se
‘perca’ nela. A palavra, diz ela, é capaz de moldar a personalidade de quem a usa, por
isso e por outros motivos é que ela é o dom mais precioso que os Dogon estimam
possuir.
II
A concepção Dogon se entranha nas definições cosmológicas que penetram (ou
parecem flertar) com a physis e as noções da filosofia da linguagem. A partir do que
vimos anteriormente, a comunicação é potência da necessidade e da intensidade da
physis. A necessidade é força impulsionadora e sedimenta parte do viver. Necessidade e
manutenção da essência são aqui o mesmo. Que força é necessária para sustentar uma
flor, uma borboleta ou uma palavra? Toda obra de arte é filha do seu tempo e mãe dos
26
nossos sentimentos, afirmou Kandinsky29
. A intensidade, por sua vez, é a vivência do
ânimo e o instante (espaço-tempo), seja extraordinário ou ordinário, encantado ou
desencantado, é um fluxo instável, acuado sob o fogo cerrado de Heráclito.
Heidegger entendeu que a essência da arte é a poesia e o artista. Mais poesia do
que artista, visto que a morada do ser é a linguagem. A questão é que o homem é
traspassado de linguagens e, entre elas, as poéticas. Praticando o riso, o jogo, a graça e
a sátira ou, como prefere Edgar Morin, a simpatia (syn pathos), continuamos nosso
“jogo” transcendental com a vida. Para Morin, ao expressar e, sobretudo, ao linguajar
sentimentos mesclados com encantamentos – eis que surge a arte. Mythos e logos
nascem entrelaçados: são os motores da poiesis. Da linguagem30
.
Os nascimentos da condição humana passam pelo mito, pela contemplação da
palavra e do silêncio, pela interpretação apaixonada da natureza e pela releitura de si e
do mundo. A referência ao uso do barro, a pintura parietal e a de corpos por nossos
antepassados tem longa história. Já na Bíblia vemos citações às maquiagens e antes
mesmo disso, os egípcios que misturam água e carbonato de sal com argila proveniente
do Nilo. A cada manhã, eles esfoliavam braços, pernas, pés, cotovelos, para em seguida,
após o banho, passar óleo de palma e de oliva no corpo, que servia para amaciar a pele,
proteger do sol e afastar os mosquitos. Os egípcios possuíam também cremes, pós,
perfumes, ungüentos, ceras, máscaras, perucas e toda uma sorte de símbolos que
associavam ao corpo. Mas não só ao corpo. Também pintavam, escreviam, desenhavam
e esculpiam. Nnenhuma destas tarefas estava afastada da esfera encantada. A relação
onto-essência ainda não havia sido quebrada.
Thoth, o deus egípicio da arte é também o deus da linguagem e da matemática.
Foi ele que ensinou o homem a pensar por números e letras. Thoth assemelha-se a
Hermes, grego. Hermes é o deus da comunicação, o mensageiro da aurora; o transitante.
O deus do comércio e das trocas. No Brasil, vemos Hermes na logomarca do Sesi/Senai.
É a figura com capacete e asas. Se os egípcios praticavam logos e símbolos divinos, nós
praticamos os mundanos. Mais do que Hermes, certamente, vemos a figura de Che
Guerava por todos os lados. O que pode significar no imaginário da humanidade as
ondas da logo da Coca-Cola?
29
KANDISKY, V. Do Espiritual na arte. São Paulo: Martins, 2000.
30
Cf. MORIN, E. Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Relógio D’água. 1997. Sobre a relação
mito e logos ver também MORIN, E. O Método III – O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre:
Sulina, 2005, p 168-194.
27
Primeiro foram as figuras das cavernas, em seguida, os desenhos, as imagens
todas que nos acompanharam até o advento da fotografia, do cinema e da publicidade.
A união imaginário-publicidade-tecnologias da comunicação gerou a superdifusão de
imagens em uma escala nunca vista. Surgiu a cultura visual. A cura e a peste pelas
imagens sobreveio. Sabemos hoje31
, devido aos estudos embrionários, que um dos
primeiros desenvolvimentos do feto é justamente aquilo que vai configurar amanhã no
olho humano. Será a visão o que temos de mais arcaico, embrionário e sensível?
Duvido. Primeiro foi a figura nas cavernas, o canto da chuva na floresta, os grunhidos
de amor, as onomatopeias da natureza e dos animais; em seguida o desenho e as
técnicas, para recebermos, a difusão das/dos logos, a nova simbologia contemporânea
(marcas, heróis, cores, maquiagens, filmes, narrativas em estruturas de linguagens
diversas). Identificamos em estudos anteriores 32
a questão da transcendência ligada
àquilo que Gaston Bachelard chamou de “dimensão vertical”, sendo a verticalidade a
dimensão-símbolo do ser, fonte e fim de todas as coisas no coração do homem. Centro
cósmico e ontológico, a busca pelo alto entendida como princípio ativo da criação: o
homem evolui para ascender. Descobrir o que há de elevação e verticalidade nos
fenômenos é um desafio não só para a comunicação mas para o espírito humano. Esse
desafio Bachelard viu bem:
Uma verticalidade real se apresentará no próprio âmago dos fenômenos psíquicos. Essa
verticalidade não é uma vã metáfora; é um princípio de ordem, uma lei de filiação, uma
escala ao longo da qual experimentamos os graus de uma sensibilidade especial.
Finalmente, a vida da alma, todas as emoções finas e contidas, todas as esperanças,
todos os temores, todas as forças morais que envolvem um porvir têm uma diferencial
vertical em toda acepção matemática do termo. Bergson diz em La pensée et le mouvant
que a ideia de diferencial leibniziana, ou antes, a ideia de fluxo newtoniana, foi sugerida
por uma intuição filosófica da mudança e do movimento. Acreditamos que se pode
precisá-la mais e que o eixo vertical bem explorado pode ajudar-nos a determinar a
evolução psíquica humana, a diferencial de valorização humana.(...) Formularemos,
pois, este primeiro princípio da imaginação ascensional: de todas as metáforas, as
metáforas da altura, da elevação, da profundidade, do abaixamento, da queda, são por
excelência metáforas axiomáticas. Nada as explica, e elas explicam tudo. Mais
simplesmente: quando queremos vivê-las, senti-las e sobretudo compará-las,
percebemos que elas trazem uma marca essencial e que são mais naturais que todas as
outras. (...) A valorização vertical é tão essencial, tão segura, sua supremacia é tão
indiscutível, que o espírito não pode esquivar-se a ela depois de tê-la reconhecido uma
31
Estudos no campo do desenvolvimento embrionário revelam que, a partir do segundo mês de gravidez,
já se pode identificar a formação dos olhos na formação do feto.
32
Sobretudo trabalhos publicados em periódicos: CASTRO, Gustavo de., DRAVET, F. “Razão-Poesia:
Comunicação, Poesia e Pensamento”. Contracampo (UFF). , v.18, p.112 - 123, 2008; CASTRO E
SILVA, G. “Imaginação, linguagem e consumo”. Comunicação, Mídia e Consumo (São Paulo). , v.4,
p.55 - 69, 2007; CASTRO, Gustavo de., DRAVET, F. “Mediação dos saberes e pensamento
comunicacional”. Revista FAMECOS. , v.32, p.71 - 77, 2007.
28
vez em seu sentido imediato e direto. Não se pode dispensar o eixo vertical para
exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de
uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda
valorização é verticalização.33
Para Juarroz a verticalidade é uma noção que se pode associar com o movimento
de queda, que traz em si um ensinamento ontológico e que implica outro movimento
contrário, de subida ou de plenitude. Cair, rebotar, subir. Cair.
O poema atua como um tempo de outra dimensão, um tempo vertical. Por isso,
para mim, o poema tem sido cada vez mais uma presença, põe adiante algo que
antes não estava e isso é o que lhe dá sua razão de ser. De todos os movimentos
do homem há um para o qual inevitavelmente vamos, que se repete ao longo da
vida até que se dá na forma definitiva: a queda. O cair abarca desde a folha da
árvore até tudo o que existe no universo. A queda é algo assim como o centro
de nossas vidas e de nós mesmos. Certamente senti que paradoxalmente se
produzia também o movimento inverso. Como se no fundo da queda tivesse
um rebote, e é ali onde se encontra a ascensão. Isto foi tecendo com outros
pensamentos. Diz Heráclito "o caminho que desce é o mesmo caminho que
sobe". Assim como o movimento para baixo é uma resposta ao peso concreto
sobre a terra, se dava um movimento inverso, uma espécie de lei da gravidade
invertida.34
A verticalidade está ligada queda, à experiência poética e à vida interior. “Muito
mais que as vinculações entre poesia e biografía interessa-me a relação entre a poesia
e a vida interior. Meu objetivo é sentir que estou vivendo o que devo viver”. Em outro
momento Juarroz relaciona a poesia a um modo de ser.
A partir do momento em que se dá a experiência poética, ela se confunde com o vital,
se integra. A poesia é um modo de vida ou não é nada: se é um modo da linguagem, da
expressão, é portanto um modo do ser, não de fazer.35
A noção de verticalidade está ligada à de intensidade, mas o que fazer nos
momentos de ausência de intensidade?
Às vezes tenho sonhado um ideal, o da vida humana vivida a fundo, com força,
com decisão poderia converter-se em um traslado de um ponto de intensidade a
outro ponto de intensidade. Saint Exupéry, o escritor e aviador francês, que
33
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 10-11 (ed.original
1943).
34
JUARROZ, R. “Un Rigor para la Intensidade” IN: BRAVO, Luis. La Poesia de Roberto Juarroz.
Especulo - Revista de estúdios literários, Universidad Complutense de Madrid, 1999. Cf. também
www.ucm.es/info/especulo/numero11/juarroz.html
35
JUARROZ, R. Cesar Vallejo. Serie homenajes, Academia Argentina de Letras, Vol.VIII Buenos
Aires, 1994. Cf. Também JUARROZ, R. “Sobre a Transdisciplinaridade” IN: CASTRO, Gustavo;
DRAVET, Florence. (Orgs.) Sob o céu da cultura. Brasília: Ed. Casa das Musas/Thesaurus, 2004.
29
esteve aqui para a instalação do Aeropostal, tem uma expressão que faz a gente
meditar, ela diz; “a vida do espírito é intermitente”. Isso nos leva a outro
problema. Se o homem não pode viver sem a tensão permanente, porque suas
condições são de fragilidade e muitas vezes de fracasso, que faz ele nos
momentos de ausência de intensidade? Quer dizer, na ausência do poema. Nos
movimentos em que o místico chamaria de etapas de aridez, o que fazemos? O
que fazemos é ler outra poesia, é escutar outra música, o que fazemos é ficar na
sombra de uma árvore, como se essa árvore fosse o bosque em um pensamento
oriental.36
Temos nestas referências a base de compreensão de uma estética da poesia e da
verticalidade como algo que direciona no aberto, como diferencial capaz de conectar a
unidade múltipla. Em Bachelard, a verticalidade é um princípio de ordem, um
“axioma”, uma lei de filiação, uma escala ao longo da qual experimentamos os graus
de uma sensibilidade especial. Isto quer dizer que a verticalidade é o eixo fundamental
da vida: a vida da alma, todas as emoções finas e contidas, todas as esperanças, todos
os temores, todas as forças morais que envolvem um porvir. Tudo aquilo que realmente
vale a pena tem uma diferencial vertical. Nos dizeres de Juarroz, a verticalidade é
inevitável. Ela se associa a tudo aquilo que vale a pena, às coisas maiores do homem: o
gozo e a dor, a morte e o amor. Por trás de todas as superfícies da vida existe a
profundidade, ela é o que realmente importa. É por isso que nada pode ser analisado
simplesmente em uma perspectiva horizontal. Juarroz chama também de realidade
aquilo que está escondido no invísivel, nas camadas ascendentes e descendentes do real
aparente e que a linguagem poética pode fazer aflorar ou abrir para a percepção. Para
ele, a verticalidade possui a possibilidade de reunir de uma vez por todas o que tem sido
tão falsamente dividido: o pensar e a emoção. E a busca vertical da realidade se dá
através do pensamento poético.
Juarroz chega a falar37
que a conquista da postura ereta do homem é uma
conquista da verticalidade, ou seja, trata-se de uma velha busca por elevação. Ele
indaga: “Por que, diferente de outros animais, o homem ergueu-se?” O que o levou a
buscar o equilíbrio sobre duas pernas, apontando a cabeça para o alto? Depois que o
homem se ergueu, nunca mais deixou de tentar soerguer tudo o mais. Construiu casas
nas árvores, ergueu prédios, quis voar e criou técnicas que o levaram a invenção do
avião. Morin especula se o fato dos irmãos Wilbur e Orville Wright terem criado o
avião quase no mesmo ano ao da criação do cinematógrafo, pelos irmãos Lumière, não
36
JUARROZ, R. “Un Rigor para la Intensidade”, Op. Cit.
37
Cf. JUARROZ, R. Poesia y Creación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1980.
30
teria a ver com o “sonho de vôo” que habitava o imaginário social no final do século
XIX.
O homem quis aproximar o olho de todos os objetos, para isso sofisticou a
metáfora38
; ao ceder espaço dentro de si para a arte, quis dar asas à imaginação, o que o
levou ainda mais para o alto; quis satisfazer sua necessidade de transcendência, para
isso deu vazão a religiões e filosofias espirituais; quis pela metáfora ir além, evocar
divindades para elevar-se junto com elas e quis registrar-se, para isso também deu vazão
à palavra, à arte e todos os suportes de linguagem.
“Que realidade tem a palavra?”, pergunta Juarroz. Ela nasce da mimesis, da
necessidade do homem em expressar os seus sentimentos e necessidades, da imitação
dos sons da natureza, de uma revelação, dos primórdios de atividades cognitivas ou de
todas essas formas juntas?
Qual a natureza e a realidade da palavra?
Como fazer para transformar os signos em palavras? Como fazer para
transformar as palavras em visões? Como fazer para celebrar aquilo que se dá
sem negar aquilo que se escapa? Como fazer para converter a linguagem em um
refúgio antes que em uma prisão, em um altar ou antes, em um cemitério?39
Como todas as coisas elevadas, a palavra, qualquer que seja ela, é impossível de
ser definida em sua totalidade. O desenvolvimento da filologia e da etimologia a partir
do século XVIII nos revelou isso de maneira menos poética. Podemos dizer que cada
palavra é uma aproximação, um acercamento, por isso mesmo a poesia seria a forma
mais alta, mais plena e mais intensa de comunicação e de relação entre os homens.
Juarroz fala da necessidade de transcender o nome como veículo de designação
das coisas. A poesia, a ciência e a filosofia não podem simplesmente nomear (na
metáfora, na teoria ou no conceito) sem a percepção de que a palavra não só nomeia,
mas também desnomeia. “Se a primeira etapa é nomear, a segunda é desnomear,
38
O desenvolvimento da ótica, sobretudo a partir de Galileu Galilei, propiciou um novo entendimento da
metáfora. A partir do séc. XVI, os homens, paulatinamente, voltam os seus olhos do aparato técnico, com
o qual media e catalogava o cosmos, para a razão, que passa, por sua vez, a tudo esquadrinhar. A noção
de metáfora amplia-se. Já em Aristóteles, na Poética, ela é um aparato técnico que permite à língua
acessar o conhecimento, a verdade, enxergar longas distâncias. Já a metáfora/luneta de Galileu é uma
extensão de si mesmo, prótese do olhar. Ao longo da história, mediante a arte, a literatura e o cinema, a
humanidade passou a se compreender cada vez mais a partir desta extensão. Para uma melhor
compreensão da metáfora na comunicação ver: DRAVET, F. Para uma crítica da razão metafórica –
mito, magia e poesia. Tese/Pós-Doutoramento. PPGCom/FAC, UnB, 2011. Ver também MAILLARD,
C. La creación por la metáfora. Barcelona: Anthopos, 1992.
39
JUARROZ, R. Conferência apresentada na Biblioteca Nacional de Buenos Aires e depois publicada no
periódico Bajo Palabra, Diário de Caracas, Venezuela, 9 de abril de 1995. (Consulta no
www.comala.com/modelo/fragmetaciones)
31
poderíamos suspeitar que há outra função possível da palavra, uma terceira etapa que
unicamente ocorre na poesia: seria uma espécie de transnomear. (...) Desbatizar o
mundo, / sacrificar o nome das coisas / para ganhar sua presença.”40
. Nomear algo
equivale a adquirir poder sobre essa coisa. Desnomear é desfazer o poder, capturando
sua in-significância. Trasnomear é a ultrapassagem destes pólos com vistas à conquista
de uma presença (Dasein).
Na China, dava-se importância capital às denominações corretas. A ordem do
mundo decorria disto. Lá, surge em 479-221 a.C. a Escola dos Nomes (Ming-jia), onde
se acredita que conhecer algo, pronunciando corretamente o seu nome, é uma forma de
exercer poder sobre a pessoa ou objeto nomeado. Esse poder está em absorver a força
do objeto para si ou mesmo jogar sobre ele o que se queira jogar, positiva ou
negativamente. Mas será que é possível esse poder? Conhecemos nas ciências o poder
do conceito e das definições que, ao se associarem à ideia de verdade, tomam para si o
critério do desvendamento da realidade.
Temos dito tantas vezes41
que a comunicação, assim como as coisas importantes
e decisivas da vida, não tem uma definição, como se diz agora, consensuada, aceitada,
unitária. As coisas grandes não se podem definir. O dicionário é uma ajuda pragmática,
operativa, que às vezes nos faz ver com um pouco mais de clareza algum detalhe. Mas
todas as coisas importantes são praticamente indefiníveis. Incompletas, por terminar.
“As letras igualam as estrelas: mesmo poucas são infinitas.”42
Letras e palavras são luminosidades/levezas a abrir a percepção na noite dos
sentidos. Juarroz definiu a palavra em sua Decimocuarta poesia vertical (1996) como
uma estrutura que está permanentemente de “olhos abertos”. Como a poesia, a palavra é
uma forma de despertar; é uma forma de voltar a abrir os olhos do homem para a
realidade, e fazê-lo participar do que todas as correntes da filosofia e da sabedoria
disseram ao longo dos séculos, que não basta nascer uma vez, é preciso voltar a abrir os
olhos; é preciso nascer de novo.
Nascer de novo equivale a uma tomada de consciência por parte do sujeito. Para
nascer, não basta ao homem o parto, é necessário nascer para si mesmo, autoconhecer-
se. Juarroz entende assim a palavra como abertura: não se trata de falar, não se trata de
40
JUARROZ, R. Poesia y Creación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1980, p.147.
41
Sobretudo em aulas, mas também aparece em CASTRO, G. Filosofia da Comunicação –
Comunicologia. Brasília: Casa das Musas, 2005. 3ª Ed.
42
COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1998.
32
calar, se trata de abrir algo entre a palavra e o silêncio. A palavra converte em presença
todo o cosmo de objetos, sentimentos, ideias e seres.
Mas a palavra também rompe e enclausura, porque ao se dizer algo, se deixa de
dizer algo que poderia se dizer. Juarroz acredita que a poesia, por sua vez, possui em si
uma tríplice ruptura: em primeiro lugar é ruptura com certa concepção de realidade, pois
é uma abertura à visão de realidade e de mundo. A segunda ruptura é a da linguagem.
Não se pode continuar usando noções gastas, pragmáticas, convencionais para expressar
novas cosmovisões. A terceira ruptura é com o medo, o medo de abertura que a poesia
provoca em nossa vida ao nos colocar desnudos diante de nós mesmos.
Com todas as rupturas, a poesia é uma das formas de desenlaçar o homem das
amarras da realidade material, do prestígio social, status quo, escalada profissional e
financeira, padrões sociais, enfim, todas essas horizontalidades43
que o cercam e
seduzem a uma vida prosaica. Enquanto a horizontalidade é prosaica, a verticalidade é
poética.44
Mas isso não é tão simples assim. A relação entre prosa e poesia é bem mais
complexa e intercambiada: a penetração de uma na outra vai além da imaginação. A
poesia é uma das formas de verticalidade que o homem encontrou. Mas nem toda poesia
é vertical assim como nem toda a palavra. A palavra da comunicação intersubjetiva, das
trocas cotidianas, da comunicação diária, do jornalismo e até mesmo da poesia que não
tem pretensões transcendentes, não possuem o primado da verticalidade. Ao contrário, a
poesia de R. M. Rilke, a filosofia de Blaise Pascal e Gaston Bachelard, são exemplos de
palavras que buscam senão unir imanência e transcendência, ao menos problematizá-
las, valorizando sem dúvida a dimensão ascensional como marca distintiva do homem.
O homem alça a palavra tentando ouvir o eco que, vindo dali, explique a ele o
mundo e a si mesmo. O poeta, pois, mais do que ninguém, parece viver com as palavras
um jogo tenso e obstinado entre o sentido e a comunicação, entre o ascendente e o
descendente, entre a palavra-enigma e a palavra-revelação. E talvez seja justamente esse
dinamismo da palavra o que transpõe sua função de comunicação usual, dando-lhe outra
função, agora, como signo verbal de elevação.
Uma tensão vertical eleva a palavra; outra força, vertical também, mas
descendente, neutraliza (ou a nega) [...]; ou - ao menos - põe em evidência a
43
Nossos primeiros apontamentos sobre a horizontalidade e a verticalidade da palavra aparecem em
DRAVET, F; CASTRO, G. (Orgs.) Sob o céu da cultura. Brasília: Casa das Musas/Thesaurus, 2006.
44
Sobre diferenças e semelhanças entre ‘vida poética’ e ‘vida prosaica’ ver: MORIN, Edgar. Amor,
poesia e sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
33
incapacidade do instrumento verbal para manter essa delicada equidistância
entre enigma e lucidez, onde o poeta se debate, e onde quer que se debata sua
escritura. Dinamismo interior, fluxo constante e subterrâneo que se, por uma
parte, define o movimento intelectual do escritor, descobre - por outra - a
progressão fecundante da palavra mesma, alheia já às servidões dos
significados.45
A palavra é dotada de força encantada porque toda a palavra é uma e-vocação e
uma in-vocação. O que quer dizer que toda palavra é um chamamento. Quando e-voca o
chamado é de fora, quando in-voca é de dentro. Em ambos os casos, a palavra sempre
con-voca. Na raiz da palavra Vocação está a palavra vox, vocis, voz, isto é, chamamento.
Quando alguém é chamado para exercer uma atividade, ele tem pela frente uma
destinação e uma incerteza. Se falarmos aqui então de vocação vertical implica dizer
que existe aí um chamado à poesia e ao incerto. O que não deixa de ser um serviço aos
deuses e às Musas, esse chamado é, para o poeta, antes de tudo, uma condenação, um
desafio. Por vocação vertical entendemos aquela vocação ao transcendente, que se
apresenta em algum momento da vida com o objetivo de nos conduzir para o Aberto,
nos dizeres de Hölderlin e Rilke, mas também para nós mesmos. Qual a vocação última
do homem e a que ele está sendo chamado?
O homem é chamado a ser totalmente ele mesmo na realização de todas as suas
capacidades latentes. A própria natureza o convida à vida, o que pode ser entendido na
poesia como um convite à elevação. Um dos significados da palavra Deus está no latim,
dies, que significa “dia”, “luz”, “claridade”. A luz não é eminentemente aquilo que se
vê, mas aquilo que permite ver.
Deus não o vemos, não sabemos o que ele é, mas o vemos nas coisas que ele nos
permite contemplar e abordar. Em um primeiro momento, somos chamados à vida,
nossa mãe “dá a luz”, depois somos chamados a crescer e a caminhar, convidados a
participar da natureza presente em todas as coisas, e a perceber a realidade e os seus
níveis.
Penso em duas hipóteses para explicar o chamamento humano à poesia.
Primeiro, como chamado mesmo, segundo, como escolha. No primeiro modelo está o
dom, a destinação; no segundo, está uma incerteza escolhida, um caminho a ser seguido
por vontade própria. No primeiro, a ideia de “vontade própria” não parece definir o
chamado poético. Ela não foi uma escolha consciente e autônoma; o homem foi
45
PADRÓN, Jorge Rodríguez. “La aventura poetica de Roberto Juarroz”. IN: Banda Hispânica,
www.secrel.com.br/jpoesia/bhjuarroz2.htm
34
“arrastado” até aquilo, mesmo sem querer, tem para com aquilo uma missão e um
compromisso.
No segundo, ele escolheu livremente a jornada, assumindo os riscos e as
implicações da escolha. Como saber se o chamado do poeta pertence ao primeiro ou ao
segundo tipo? Há indícios, obviamente de um e outro modo, mas a dimensão do
mistério da escolha perpassa ambos. Em toda vocação, assim como em toda discussão
pela escolha das carreiras profissionais, existe uma dimensão de dom e uma dimensão
de escolha, que podem unir-se, associando-se uma à outra, como uma perspectiva única.
A pessoa pode ter o dom e não seguir aquele caminho, assim como pode segui-lo por
escolha e vontade, sem estar amparada pelo dom.
Mas se cogitarmos que todos os homens possuem intrinsecamente a dimensão
ascensional, transcendente, então podemos supor que todos são chamados a algum tipo
de exercício poético, seja na escritura, seja nas ações cotidianas, seja na visão de
mundo, porque é toda a natureza que o chama. Não necessita fazer uma distinção entre
“a voz de dentro”, a voz do interior da consciência e do coração e “a voz de fora”, a voz
da escritura, do desejo de objetivar e de partilhar o universo das palavras. Quando não
fazemos a distinção entre a “voz de fora” e a “voz de dentro” é porque acreditamos que
a vocação poética reside no fato de que o chamado da arte é integral.
O chamado poético pode advir da contemplação da linguagem, pois na natureza
da palavra árvore, teoria, filete, água, riacho, chaleira, abóbora, conceito, plástico,
águia, luminária, capitel, pneu, abraço, pitomba, penhasco, agulha, paradigma... existe,
para o poeta, uma con-vocação. O chamado da palavra é um chamado ao religamento
do objeto com o sentido, mesmo que aproximado, é uma forma de re-ligar todas as
coisas: homem e deuses, natureza e palavra, coração e razão, ecologia e cultura,
espiritualidade e ciência, filosofia e mitologia, religião e conhecimento. O chamado da
palavra não imiscui a integralidade que envolve e define o próprio homem: natureza,
razão, paixão, família, humanidade, tudo o con-voca (e-voca e in-voca) a participar, seja
na imanência, seja na transcendência, da realidade e dos mistérios da verticalidade.
Primeiro, a palavra poética. Para Sócrates, via Platão (Fedro46
) essa palavra é
Mania, delírio, possessão, inspiração, audiência com níveis diversos. A nosso ver, a
mais arriscada das aproximações é da comunicação com a mística. Tida como
conhecimento ascensional, por vezes inacessível por ser uma experiência particular,
46
PLATÃO. Fedro. Lisboa: Ed. 70/Brasil, 2009.
35
própria a cada ser humano, a mística não possui definição uníssona. Compete a cada
homem sentir na intimidade a força do sagrado, que Hölderlin chamou de Aberto47
.
A primeira grande dificuldade em compreender a mística está portanto no fato
dela não poder ser experimentada coletivamente, como a comunicação e a poesia.
Alega-se que a verdadeira experiência mística ocorre subjetivamente. A segunda grande
dificuldade está na ideia equivocada de que o caminho místico passa necessariamente
por uma religião.
A religião trata de sistemas articulados de crenças, práticas rituais e explicação
do mundo, os quais podem se manifestar nos casos mais fechados, sob o formato
de dogmas ou, nos mais abertos, nas representações coletivas; enquanto a
espiritualidade é o modo que um determinado indivíduo internaliza, absorve e
desenvolve, de maneira idiossincrática, aquele caminho particular ou modelo de
união (ou de re-ligação, se queremos recordar a origem do termo) proposto
pela religião à qual se adere. Assim, espiritualidade implica em uma dimensão
de subjetividade trabalhada, de experiência religiosa que pode inclusive
transcender a norma ou a expectativa formal da comunidade de adeptos. De um
modo similar ao mundo da arte, a espiritualidade é sempre algo que se realiza
na singularidade.48
Podemos dizer que, historicamente, o místico – muitas vezes sem querer – tende
a restabelecer as condições de uma nova concepção de vida dentro da comunidade em
que vive, criando uma comunidade à margem do Estado. Conventos, associações de
anacoretas, ordens religiosas, congregações e sociedades espiritualistas nascem muitas
vezes motivadas por este espírito inicial de retomada da tradição. Essas comunidades
surgem quase sempre num momento de esgotamento dos valores humanos e espirituais.
Devemos ter em mente que falar de comunicação, poesia e mística como gêneses
da busca vertical humana, implica falar que o estado místico é uma norma intrínseca ao
homem, pertença ele a que cultura, credo, raça ou tempo histórico pertencer. Assim
sendo, a dimensão encantada é um componente antropológico essencial, um signo da
universalidade do homem, queira ele ou não. Para Elémire Zolla49
o conhecimento
encantado, notadamente o místico, é uma forma de regresso à unidade, ao Uno.
Enquanto no Ocidente a busca pelo Uno muitas vezes ocorre pela via da
experiência, seja ela intelectual ou vivida, no Oriente a busca passa pela concepção ou
47
Não exageramos ao dizer que F. Holderlin foi o primeiro poeta a pensar o Aberto. Heidegger observa e
trabalha isto no livro dedicado ao poeta. HEIDEGGER, M. Hinos de Holderlin. Lisboa: Instituto Piaget,
2004. Ver também PAU, Antonio. Holderlin – El rayo envuelto em canción. Madrid: Trotta, 2008.
48
CARVALHO, José Jorge de. El misticismo de los espiritus marginales. Conferência. Universidade do
México, 2000.
49
ZOLLA, Elémire. Los místicos de occidente. Vol. I. Barcelona: Paidós, 2000.
36
formulação de um Nada ou Vazio que deve ser meditado, sentido, cogitado. No
Ocidente, por exemplo, é raro encontrar um místico como João da Cruz que instaura
uma linguagem hermética para racionalizar a natureza não compreensível da
experiência mística.
Enquanto a religião tenta reger o homem a partir de dogmas exteriores, a
espiritualidade vai buscar no interior da alma humana os componentes de auto-
conhecimento e graça. A noção de abismo representa o interior da alma humana e em
todas as cosmogonias, os abismos simbolizam a evolução universal, o Ser que devora os
seres para depois vomitá-los, renovados. Mundo das profundezas e das alturas
indefinidas, o abismo é a grande mãe ctoniana, é o arquétipo da mãe amante e terrível,
do caos gerador, da pessoa que se decompõe e dos estados indeterminados da
existência. Por natureza, é um estado místico. Não no sentido dereístico, afastado do
real, mas no sentido de superação do real aparente. O abismo da alma é a integração
suprema da união mística com o cosmo. O místico não se situa por isso fora do real, já
que tal estado se apresenta como uma força de estabelecimento do próprio real, mas se
situa como campo singular de orientação da vida, como encarnação do cosmo.
Por muito tempo, o estado encantado foi tido como essencialmente pré-lógico. O
adjetivo “encantado” representava um estado que não aderia ao regime da razão
esclarecida, algo que não poderia ser elucidado intelectualmente. Assim como o mito, o
encanto se aproximaria apenas do conhecimento discursivo e representacional. Hoje
sabemos que o principal da experiência encantada não se narra porque envolve um
conteúdo subjetivo, emocional, sensível, afecção por demais pessoal para ser alcançada
pela razão ou pela palavra. Há na experiência encantada, um traspassamento poético
porque é o logos ampliado, mais-do-que-racional, o que domina ali, por isso não
necessita de palavra. O encantado pode ser entendido como um estado numinoso de
abertura, de presença do incondicionado e de certas contingências aladas. Assim como
se diz que o sábio é aquele a quem falta a sabedoria, assim o encantado é aquele a quem
falta a completude das deidades, talvez porque sua teologia seja selvagem, numinosa
demais; uma existência plena de instantes de buscas.
III
Ex-sistir é uma secessão, implica apartar-se de algo, separar. É necessário
lembrar que as palavras “místico” e “mistério” vêm do verbo grego muein que significa
37
“calar-se”, fechar a boca e os olhos diante do que só pode ser expresso pelo silêncio.
“Eu gostaria de não falar”, disse certa vez Confúcio aos seus discípulos.50
Mas como é possível a um mestre não falar? O seu dever não é ensinar, exortar,
proferir? Em certo sentido, para Confúcio, as palavras interrompem o fluxo silencioso
das coisas, criam obstáculos e, de certo modo, são desnecessárias porque a lógica da
auto-regulação do cosmo tudo provê e comunica. Ao tomar o mundo por objeto, a
palavra mantém (ou deveria manter) com o mundo uma relação de transcendência,
falando do mundo e constituindo-o como objeto a ser pensado, meditado, dito. Para
Confúcio é no silêncio que tudo se realiza. Ele aspira a não falar em demasia, não
porque veja a palavra como desnecessária, mas porque entende que ela é usada de forma
errônea e em excesso. Enquanto a filosofia “fala”, a sabedoria “cala” ou fala o menos
possível. O místico então usa tanto o silêncio como a palavra no sentido ascensional.
Algo que caracteriza tanto os místicos quanto os poetas é justamente a repetição,
o rito das palavras, a capacidade de dizer o essencial e fazer desse essencial o elemento
de graça e reencantamento da vida. A mística e a poesia são mais do que repetições, são
estruturas e hábitos que agregam determinadas forças. A lembrança, a memória, a
reativação de determinados campos magnéticos, emocionais e inconscientes podem ser
despertos pelo rito essencial presente na poesia e na mística. Em uma civilização que já
não é unânime da importância da experiência iniciática, o rito e a repetição representam
um retorno, um reavivamento, uma recordação involuntária de uma realidade sepultada.
É o regresso a um estado de ânimo arcaico, despreocupado com o acúmulo de riquezas
e o prestígio social.
Na antropologia, é clássica a constatação crítica de que a separação do homem
da natureza, através da exploração desenfreada da Terra foi uma tentativa de subjugá-la,
dominando-a. Tal tentativa afastou o homem ainda mais desses ritos de reencantamento
da vida. Ao explorar a natureza o homem quis não apenas subjugá-la mas também
conhecer todos os seus segredos. Assim, separou os conhecimentos em disciplinas para
melhor compreender. A medicina ‘esquartejou’ os seres em partes que se tornaram
especialidades médicas deixando de vê-los em sua complexidade; a biologia mergulhou
para o microcosmo celular, fazendo a Vida parecer regulada pelo determinismo
genético; a química por sua vez esqueceu-se da alquimia; a filosofia encastelou-se nos
50
JULLIEN, François. Um sábio não tem ideia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
38
departamentos universitários, a antropologia limitou o homem à cultura e assim por
diante.
Ao tentar desvendar todos os conhecimentos da natureza, o homem moderno
parece ter deixado o encantamento de lado como expressão do conhecimento não útil ao
conhecimento, mas também por ser uma noção difícil de ser objetivada e verificada ou
por propor a noção de enigma, segredo, cifra, código como condição de acesso ao
saber. Isso desconcertou cientistas e pensadores pelo crivo paradoxal e por séculos vem
sendo deixado de lado.
No sânscrito, mística é mus e remete ao que é secreto, o que está escondido.
Escutar o que é secreto e o que está escondido em nós e fora de nós; escutar o silêncio
do que é expresso nos momentos numinosos pode nos levar a participar do mistério e do
conhecimento presente na natureza. De fato fascina o silêncio dos espaços amplos:
abismos, vales, pampas, desertos, oceanos, praias, assim como assusta o interior da
alma humana e o que ela é capaz de promover contra a Terra e o próprio homem.
Às vezes, sentimo-nos fascinados por esse não-sei-quê que a mística aponta em
sua amplidão, ao passo que também somos atraídos por ela. Leonardo Boff51
diz que a
mística é mergulho, profundidade. É uma profundidade que nos deixa por vezes com a
respiração suspensa, pois sentimos nos espaços vazios, íntimos e silenciosos a força do
Aberto querendo falar. São silêncios variados. Silêncios que curam, que confortam, que
subsidiam o pensar, que expressam diálogos entre a luz e as trevas, o bem e o mal, o
justo e o injusto, na busca de superar ou avançar na separação dos opostos. A chave dos
caminhos não a encontramos em suas bifurcações, encontramo-la na natureza que reúne
esses opostos, não como soma ou mistura, mas como um terceiro termo, um caminho
mediano, alquímico.
A alquimia é a conjunção de princípios senão opostos, diversos, seja nos estados
sólidos, seja nos instantes efêmeros. A alquimia dos estados d’alma interessa aos seres
de poesia. Ao preparar um alimento, podemos encontrar o bem-estar de nossa própria
companhia; ao acompanhar o vôo de um pássaro, podemos encontrar uma flor caída
num galho de árvore; ao aceitar o exílio, podemos encontrar o amor; ao fotografar os
abismos, podemos encontrar o homem; ao caminhar adiante, podemos rever as estradas
já percorridas e ao investigar a transcendência, podemos encontrar um pouco de nós
mesmos.
51
Cf. BOFF, Leonardo; Frei Betto. Mística e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
39
O olhar místico é um olhar silencioso, muitas vezes voltado para dentro,
abismado pelo tamanho das nossas fendas, um lugar oceânico, tão amplo e espaçoso que
cabem dentro dele inúmeros desertos, diversos oásis, vastos mananciais.
O filósofo e poeta William James52
classificou a experiência mística através de
quatro marcas distintas: transitoriedade, passividade, qualidade noética e inefabilidade.
A transitoriedade corresponde aos chamados instantes luminosos, nada parecido com o
que os japoneses chamam de satori53
, no entanto, essa transitoriedade são despertares
repentinos provocados por um acontecimento. A passividade está ligada à quietude. É a
busca calma e meditativa por estados iluminados da alma. A qualidade noética se
aproxima da capacidade de acessar a divindade ou atingir o êxtase religioso através da
racionalização, comunicação, elucidação e visualização clara dos aspectos elevados. A
inefabilidade é o mergulho irrestrito nos mistérios, deixando-se tomar integralmente por
eles.
As diferentes formas de falar da mística revelam a dificuldade mesmo em
acessar o seu conhecimento. Já na Grécia antiga a experiência mística é plural e rica. O
local da experiência do sagrado não é o silêncio do recolhimento introspectivo, mas a
luz da realidade diurna. A sabedoria não se transmite à reflexão solitária e isolada, mas
é experimentada na conversa e no diálogo. Em Hesíodo54
(séc. VIII a. C.) percebemos
que é o poeta quem se recolhe em solidão para meditar e ouvir o que as Musas têm a lhe
mostrar da realidade superior.
A poesia encerra em si o mundo verdadeiro, exceto para Platão e Sócrates para
quem a busca do mundo verdadeiro é racional e dialogal. O neoplatonismo de Plotino,
no entanto, deu grande importância ao recolhimento, mas, de forma geral, a mística era
algo de que não se falava. Preceitos de silêncio eram fortíssimos na filosofia pitagórica,
mas de forma geral o pensamento helênico buscava pela palavra e pela imagem, isto é,
pela comunicação e pela visualização, o conhecimento dos mistérios.
Além de myein = silenciar sobre algo, os gregos tinham também a palavra
enthusiamós = entusiasmo para explicar o êxtase e a possessão divina em que a pessoa e
os deuses se uniam através do enebriamento. São muitos os casos em que a relação do
conhecimento encantado funde-se à palavra, à poesia e ao texto escrito. A palavra aqui
52
Cf. HONDERICH, Ted. Enciclopedia Oxford de Filosofia. Madrid: Tecnos, 2001.
53
Termo japonês para iluminação. A palavra significa “compreensão”. É tratada às vezes como
“acordar”, ou “primeira percepção”. Pode ser ainda a “verdadeira natureza”. É um estado de visão clara,
profunda e duradoura.
54
HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006.
40
pressupõe um recurso mágico/teúrgico para a “ascensão”. No idioma hebraico, por
exemplo, que tinha como pressuposto a ideia de que nele fora escrita a história da
criação, atribuem-se efeitos ditos sobrenaturais às letras, números e nomes, o que fez
desenvolver particularmente a Gematria, ciência cabalística que estuda o conhecimento
dos valores numéricos relativos aos nomes. A mais ampla utilização desse método de
conhecimento desenvolveu-se na Europa Central através do Hassidismo achquenásico
(séc. XIII-XIV). Quanto mais populares esses métodos se tornaram mais estreita a
crença na sua relação com o feitiço. A base desse feitiço estaria na correlação entre
língua e texto.
A este respeito, Juarroz conta em seu livro Poesia e realidade (2009)55
uma
história que ilustra bem essa relação da palavra com a mística hassídica.
Quando o grande rabino Israel Baal Shem-Tov acreditava que se tramava uma
desgraça contra o povo judeu, tinha por costume ir concentrar seu espírito em um
certo lugar do bosque; ali, acendia uma fogueira, recitava certas orações e o
milagre se cumpria: a desgraça era rechaçada. Mais adiante, quando seu
discípulo, o célebre Maguid de Mezeritsch tinha que implorar aos céus pelas
mesmas razões, acorria àquele mesmo lugar do bosque e dizia: “Senhor do
Universo, escuta-me. Não sei como acender o fogo, mas sou capaz de recitar a
oração”. E o milagre se cumpria. Mais adiante, o rabino Moshe-Leib de Sassov,
para salvar a seu povo ia também ao bosque e dizia: “Não sei como acender o
fogo, não conheço a oração, mas posso situar-me no lugar propício e isto deverá
ser suficiente”. E isto era suficiente: também, então, o milagre se cumpria.
Depois, coube a seu turno ao rabino Israel de Rizzin afastar a ameaça. Sentado
em sua casa, tomava a cabeça entre as mãos e falava assim a Deus: “Sou incapaz
de acender o fogo, não conheço a oração, nem sequer posso encontrar o lugar do
bosque. Tudo o que sei é contar essa história. E isto deveria bastar”. E isso
bastava. Deus criou ao homem porque gosta de histórias.56
As narrativas têm vocação à verticalidade e às dimensões ascensionais. Não
fosse isso não estariam tão intimamente ligadas ao conhecimento espiritual.
Encontramos no cristianismo duas formas místicas básicas: a comunhão ou a
participação no mistério e a oração proferida repetidamente como o terço e o rosário. A
concentração sobre a palavra pela repetição da oração é semelhante à mantras. O que
importa não é a concentração sobre cada palavra, mas o estado de devoção narrativa,
entrega ao dito e força de vontade. Por outro lado, a tendência para a contemplação sem
55
JUARROZ, Roberto. Poesia e Realidade. Trad. Florence Dravet e Gustavo de Castrto. Brasília: Casa
das Musas, 2009.
56
Idem, p. 10.
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  • 2. 2 Ser é transcender. Martin Heidegger A transcendência é, talvez, o desafio mais secreto e escondido do ser humano. Leonardo Boff O mistério apazigua meus olhos, não os cega. Antonio Porchia
  • 3. 3 SUMÁRIO Abertura, Edgard de Assis Carvalho 1. Ciência, Comunicação e Espiritualidade, p. 4 2. Palavra e senso de transcendência, p. 22 3. O princípio com, p. 41 4. Mídia, comunicação e sabedoria, p. 48 5. Narrativas e documentos de transcendência, p. 57 Referências bibliográficas, p. 72
  • 4. 4 ABERTURA A mística e os estudos da arte, da literatura, da poesia, da música e da pintura efetuam movimentos verticais para as profundezas do ser e conduzem a conclusões do tipo: é preciso acolher o desconhecido contido no homem. Ao utilizar pensadores advindos dos estudos midiáticos, artísticos, científicos e espirituais, Gustavo de Castro traça um panorama complexo das relações entre comunicação e transcendência em sua intrincada mediação com a poesia. Se o campo comunicacional é mais propício à religação dos saberes, como o autor afirma, o dispositivo interpretativo está em aberto. Em cinco blocos, o tema da transcendência é problematizado por intermédio de fundamentos poéticos, comunicacionais e midiáticos. Experiências pessoais vivenciadas em diferentes práticas religiosas também são explicitadas, demonstrando que vida e ideias, ciência e fantasia encontram-se inextricavelmente associadas. Por isso, as artes expressam necessariamente “devires de transcendência”. Esse é o sentido de história e de comunicação que tece esse livro. História e comunicação como partilha, narratividade, testemunho da aventura humana sobre a terra. Em tempos de insignificância ampliada que contaminam o planeta, o culto da felicidade, do individualismo, do hedonismo, do efêmero, do consumo conspícuo e da euforia perpétua, este livro postula, semelhante a Roberto Juarroz, um “modo de ser” poético, simultaneamente, queda e despertar. Trata-se de uma epistemologia da comunicação estruturada na poesia e naquilo que Castro chamou de “princípio com”. Uma vez perguntaram a Ilya Prigogine (1917-2003) o que era o mundo. Sua resposta foi incisiva e, ao mesmo tempo, dilaceradora. O mundo, ele afirmou, nada mais é do que o conjunto entrelaçado de saberes sobre a natureza, a terra, a vida, o cosmo, esse mundo das Mil e uma noites que Sherazade incumbiu-se de transmitir a quem se dispusesse a ouvi-la. Cabe a cada um de nós afinar a escuta e rearticular o conjunto de narrativas que construímos sobre nós mesmos e, talvez, formular utopias realizáveis de um mundo melhor, no qual a banalidade do bem se consolidará como veículo de uma política de transformação planetária. Este livro é um pequeno sopro de vitalidade no falatório geral da esfera comunicacional, espaço saturado de crítica iluminista e técnica, esfera ainda temerosa do hipercomplexo, do sensível e da transcendência. Edgard de Assis Carvalho / São Paulo - 2012
  • 5. 5 Ciência, Comunicação e Espiritualidade I Existe a sensação global, diz David Bohm, de que a comunicação está progressivamente se deteriorando. Para ele, é preciso recriá-la constantemente porque nossa forma de pensar e de falar sobre ela constitui um dos fatores que nos impedem de tomar consciência da sua real importância em nosso sistema de conhecimento.1 Como falamos da comunicação ao longo do século XX? Muito cedo começamos a adjetivar a comunicação de “social”, e voltamos nosso olhar com tenacidade para o conjunto de suas habilidades técnicas, analíticas, históricas, ideológicas e políticas. Estas palavras resumem um pouco as categorias chaves do século XX. Também muito cedo esquecemos, infelizmente, que a comunicação não era apenas “social”, mas também humana, ecológica, psíquica, filosófica, artística e espiritual. Não falamos, por exemplo, da comunicação como modo de ser no mundo, princípio e, por isso mesmo, deixamos de perceber nela a essência do con-vívio; a ação que produz este modo de ser. Utilizamos frequentemente a palavra comunicação sem atentarmos para a globalidade dos fenômenos que ela gerencia e comporta. Nosso sistema de conhecimento nos ensinou que aprender é um processo de separar e isolar as coisas. Separamos os objetos de seus contextos; separamos a realidade em disciplinas, categorias, classes de realidade que visam facilitar a compreensão desta mesma realidade mas, visto que a realidade é feita de laços e interações, nosso conhecimento por vezes é incapaz de perceber, nestas conexões, o “círculo mais vasto”, como assinala o poeta Rainer Maria Rilke2 . Este “círculo mais vasto” é a esfera que destacaremos em nossa analítica da comunicação. Ao mesmo tempo, nosso sistema de conhecimento nos ensinou que as coisas obedecem a uma lógica calculável, mecânica, que pode ser prevista e predita. Contudo, esse mesmo sistema não nos ensinou a perceber o caos deste sistema como um logos capaz de ver o conjunto complexo que o forma, isto é, capaz, simultaneamente, de selecionar e isolar uma coisa entre outras ou passar de uma para outra, indo das partes 1 BOHM, D. Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Atena, 2005. Cf. também BOHM, David. Sobre el diálogo. Barcelona: Kairos, 1997. 2 Cf. RILKE, M. Rainer. Elegias de Duíno. São Paulo: Globo, 2001. Heidegger analisa longamente a “tarefa para o pensamento”, que é a poesia a partir de R. M. Rilke no ensaio Para quê Poetas IN: HEIDEGGER, M. Caminhos de Floresta. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1998.
  • 6. 6 para o todo e do todo para as partes. Que campo é mais propício à religação dos saberes do que o campo comunicacional? O caminho do conhecimento disciplinar e das explicações racionalistas do mundo faz também por vezes o homem só e desamparado diante de um mundo, tornando insuportáveis as realidades da morte (cada vez mais relegada ao depois), da dor (que todos se apressam em aliviar com artifícios) e do amor (que também é, talvez, a mais difícil tarefa do homem). Do outro lado, a linguagem do coração e a da criatividade, a da estética e a sensibilidade em geral costumam ser tratadas como questões menores à comunicação, ocupando por vezes pouco do nosso tempo. A complexidade dos caminhos do conhecimento em comunicação favorece a dinâmica deste modos de ser na e diante a natureza. A conexão é o princípio que contém o movimento em direção à comunicação. Entender as conexões é uma forma de entender o sistema-vida, por isso é que entender as conexões com os diversos sistemas que o integram favorece também a compreensão da comunicação. Um sistema é um conjunto de partes diferentes, unidas e organizadas, em interações dinâmicas, assim é, por exemplo, que parte da sociologia define a sociedade como um sistema, pois é constituída por indivíduos e grupos sociais diversos. Mas não podemos conhecer a sociedade isolando indivíduos ou grupos num laboratório. É preciso juntar as partes ao todo e o todo às partes. A sociedade é um conjunto aberto de partes que produz capacidades e propriedades como a linguagem, a cultura, e é por elas produzida. Também produz qualidades e propriedades que não existem nas partes tomadas isoladamente. Sabemos, por exemplo, que uma bactéria não é constituída unicamente de elementos químicos que encontramos na natureza. A vida é constituída de moléculas, mas a organização vivente tem qualidades que não podemos encontrar nas moléculas tomadas isoladamente. É necessário portanto ter um pensamento que possa conceber o sistema, a interação e a organização e, entre eles, os tipos de conexão, pois tudo o que conhecemos é constituído da organização de elementos diferentes interagindo entre si. As conexões não dizem respeito só ao caráter retroativo do sistema como também aos elos e à forma com que esses elos são compostos. Produtores de conhecimento, nós também somos produtos dele. O efeito é ao mesmo tempo causa. As conexões são vistas como “plasmas generativos”, que se alteram em forma e volume constantemente, necessitando retroagir sobre o sistema para que o mesmo não se dissipe. Encontrar a forma ideal de retroagir, retroalimentar e conectar-se ao sistema-
  • 7. 7 vida é um dos riscos e um dos desafios da comunicação. Redes multiplicadoras de informação, operadores transversais, fluxos dialógicos, muitos foram e são os elementos pensados para que a comunicação circule pelo sistema de forma a alimentá-lo. II O conhecimento da ciência unido ao conhecimento da arte e da filosofia é aquilo que Ítalo Calvino considerou como essencial a ser explorado no século XXI. “Entre os valores que gostaria que fossem transmitidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia”3 .Essa proposta é um componente essencial para manter em relação diferentes sistemas de conhecimento. Só é possível o diálogo, dirá Edgar Morin, a partir de uma ética da compreensão4 . Essa ética passa pelo compromisso da ciência e da arte em promover tal diálogo e não se reduz à formação de especialistas nem à obediência ao conceito, nem ao uso puro e simples da metáfora, da imagem ou da obra de arte. Conhecemos os extremismos a que levaram os protocolos de verdades unitárias sobre a condição humana e os saberes. O compromisso da ciência em dialogar com o mundo do qual ela é parte, para que possa se tornar um discurso pertinente sobre o mundo, está em ultrapassar os muros dos laboratórios e gabinetes e se fazer entender. Nenhum discurso deixará de ser reflexo desse aspecto tateante e exploratório que são as incursões do pensamento humano na compreensão da realidade. Enquanto o saber científico cria uma hierarquia entre as ciências sobre o seu domínio, o saber poético é capaz, segundo Niels Bohr, de “em seu poder relembrar harmonias que ficam fora da análise sistemática”5 . Harmonias que representam um alargamento da nossa percepção de existência. Ciência e poesia são saberes intercomunicantes, dois modos de observação do mundo, opostos entre si, que podem chegar a formar uma complementaridade ou mesmo uma “unidade de conhecimento”. 3 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio – lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1992, p. 133. 4 MORIN, E. “A ética do sujeito responsável” IN: CARVALHO, E. A;. ALMEIDA, M. C.; FERRARA, N. F. ; COELHO, N.N; MORIN, E. Ética, Solidariedade e Complexidade. São Paulo: Palas Atena, 1998. 5 BOHR, N. Física atômica e conhecimento humano. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995.
  • 8. 8 III Existe entre os saberes da comunicação e os saberes científicos uma conexão simbionômica, que permite a partir deste ponto rever a nossa própria concepção de comunicação. Analisemos este ponto um pouco mais. A concepção moderna de mundo, elaborada a partir da física quântica de Niels Bohr e da teoria da relatividade de Albert Einstein em combinação com o princípio da indeterminação de Werner Heisenberg, sugere representar o mundo como uma complexa combinação de energias. Tudo, no fundo, é energia, dizem essas concepções. A própria matéria é um momento da energia que se cristaliza e o universo das energias é constituído por um tecido de relações. Emerge daí uma concepção segundo a qual o que é humano só pode ser definido a partir de uma interação/integração do homem com os fluxos e as conexões de energias diversas, seja as plantas, águas, o ar, os animais, os outros homens; a sociedade e as condições saudáveis de vida material, etc. Esses fluxos e conexões seriam processos de vitalização, internalização e externalização de forças e energias no seio da humanidade e não estariam necessariamente relacionados a uma religião, mas a uma transcendência. A escolha aqui pela relação comunicação e transcendência é uma forma do pensamento tentar ir além de seus aspectos filosóficos. Trata-se de entender parcialmente a permanência do transcendente6 na atualidade. Vimos que o saber poético é capaz, segundo Niels Bohr, de “relembrar harmonias que ficam fora da análise sistemática”. É justamente este saber poético que nos permitirá o acesso à difícil questão do transcendente. É neste sentido que poetas como Rainer Maria Rilke, Ítalo Calvino, Antonio Porchia e Roberto Juarroz podem nos ajudar a entender o diálogo entre o poético, a comunicação e o transcendente. Tudo interage com tudo, diz Juarroz7 , e se tudo interage, toda interação implica certo nível de vida e de espiritualidade8 . Até as pedras possuem a sua lógica de interação. Elas são 6 “É preciso que o fenômeno da transcendência seja trazido à luz e seja apreendido em toda a sua estrutura” (Heidegger, 2008, p.343). Para o filósofo, as formas de ligação com o mundo e da compreensão de ser se tornam mais claras em sua pertinência à transcendência. “Transcender significa ser-no-mundo” (p.326). Falar de transcendência é tratar da “ultrapassagem do ente” (idem). 7 JUARROZ, Roberto. Decimocuarta poesía vertical. Buenos Aires: Emecé. 1997. 8 Chamamos de espiritualidade a dimensão da pessoa humana que, indo além das confissões religiosas, pratica um modo de ser característico de um mediador que busca relação com o transcendente-imanente. Espiritualidade traduz uma dimensão do homem, de auto-cultivo intuitivo, sensitivo e intelectual que pode inclusive transcender a norma ou a expectativa formal da comunidade de adeptos. De um modo similar ao mundo da arte, a espiritualidade é sempre algo que se realiza na singularidade. O “estar juntos” da comunidade, a caracteriza em sua coletividade.
  • 9. 9 mais do que simples composição físico-química, estão em contato com a atmosfera e influenciam a hidrosfera, interagem com o clima e se relacionam com a biosfera. Sem contar que as pedras podem falar ao imaginário do poeta e ao coração do místico, podem evocar imagens de fortaleza, força, majestade, grandeza, solenidade e paciência. Por volta dos anos trinta do século XX, Theilhard de Chardin havia intuído que, quanto mais avança o processo evolucionário, mais ele se complexifica, mais se interioriza; e quanto mais se interioriza, mais consciência possui e quanto mais consciência possui mais se torna autoconsciente.9 A presença de uma força dinâmica que anima e movimenta as interações requer a atenção constante dos poetas. O senso de transcendência neste sentido, para o poeta, tem também característica de autopoiesis. A autopoiesis é fundamental para entender a comunicação já que nela podemos perceber aquilo que o astrofísico Trinh Xhua Thuan chamou de “melodia secreta”10 ou o que o poeta Antonio Porchia preferiu nomear como “logos secreto”11 , presença/acontecimento que vitaliza os corpos, os homens, as relações, as obras de arte sempre com vistas ao desequilíbrio, como se o universo inteiro fosse regido por uma sinfonia desconcertante que propicia o encontro e a comunicação, que une o ínfimo com o máximo, o dentro com o fora, o visível com o invisível. O universo no qual vivemos não é o universo da ciência. A ciência inscreve-se no mundo com o discurso de verdade, fornecendo interpretações possíveis da experiência sensível. O espírito científico progrediu caracterizando-se pelas premissas da teoria matemática e física, atingiu patamares técnicos assustadores, desbravando todos os limites do mundo sensível. Aproximar neste sentido comunicação e transcendência é uma proposta mais do que arriscada. Mais do que um desafio à comunicação, é uma necessidade premente de os saberes científico e poético defrontarem-se com o transcendente. IV 9 Cf. CHARDIN, T. O Fenômeno Humano. São Paulo: Cultrix, 1995. 10 Trinh Xuan Thuan nasceu em Hanói, estudou na Califórnia, no Instituto de Tecnologia da Universidade de Princeton, onde obteve o seu doutoramento em astrofísica. Desde 1976 é professor de astrofísica na Universidade da Virgínia. Em La mélodie secrète (1991), interroga-se sobre a realidade e sobre a possibilidade do universo inteiro ser regido por música secreta, porém, paradoxalmente, manifestante/presente. Abordando com especial atenção o universo contemporâneo, ou seja, o universo do big-bang, ele aborda a questão que se põe inevitavelmente: estamos aqui por acaso ou a nossa presença é parte integrante de um conceito de universo que construimos à nossa medida? Cf. TRINH, Xuan Thua. La melodie secrète. Paris: Gallimard, 1991. 11 Cf. PORCHIA, Antonio, Voces. Valencia: Pré-Textos, 2006.
  • 10. 10 A espiritualidade é um complexo que comporta a necessidade e a liberdade humana, que envolve o psiquismo, a subjetividade afetiva e sua sensibilidade junto à emergência do extraordinário e às diversas dimensões energéticas presentes em nós ou que nos circundam. C. G. Jung12 já dizia que a espiritualidade não é uma coisa que nós possuímos, que está em nós, mas ao contrário, nós é que estamos nela, ela é que nos possui com seu poder, sua força. Visto assim, a dimensão da liberdade deixa um tanto a desejar, já que, se somos possuídos por ela, em que temos liberdade e escolha? O Instituto de Psicologia Transpessoal, de Palo Alto, fundado em 1975, apostou na refundação do ideal educativo da Grécia clássica: a integração de todos os aspectos da experiência humana. Seu programa de estudos visava preparar homens capazes de investigar as seis dimensões básicas do indivíduo: intelectual, emocional, espiritual, física, social e criativa. Deste modo, o paradigma científico fundado ali preconizava uma aproximação com uma nova concepção de homem. Um dos mais influentes cientistas do século XX depois de Albert Einstein, Ilya Prigogine, disse, no final dos anos noventa, que o século XXI “ou seria do espírito ou não seria nada”.13 Desde então, a relação ciência-espiritualidade nunca mais foi a mesma. Hoje, cientistas em todo o mundo dedicam-se a investigar os chamados “saberes do amanhã”14 na tentativa de desdogmatizar a ciência, aproximando-a de áreas mais arejadas. Assim é que fenômenos como os dos ‘mediadores’, também conhecidos por médiuns, ou os estudos sobre a mente expandida, as experiências paranormais, os projetos de percepção extra-sensorial, entre outros, avançam em todos os grandes centros universitários e institutos de pesquisa do mundo. O fenômeno do “olho gordo” por exemplo, tido como crendice popular vem sendo estudado há mais de quinze anos pelo físico inglês Rupert Sheldrake. Ele observou que a crença em influências transmitidas pelos olhos é encontrada em quase todas as sociedades tradicionais do mundo. Em sua forma negativa, o ‘olho mau’ está associado à inveja, consegue secar plantas e provocar doenças. Na sua forma positiva, é conhecido na Índia por “Darshan”, olhar amoroso que, segundo dizem, confere benção e 12 Cf. JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental. Petrópolis: Vozes, 2011. 13 PRIGOGINE. Ilya. O fim das certezas. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp, 1996.; Cf. também A sociedade em busca de valores. Trad. Luis C. Feio. Lisboa: Instituto Piaget, 1998 e Ciência razão e paixão. Trad. Edgard de Assis Carvalho et alli. Belém, Eduepa, 2001. 14 Cf. SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade – comportamente, corpo e movimento. São Paulo: Summus, 1991.
  • 11. 11 saúde. O físico desenvolveu uma pesquisa que recebeu o nome de “A sensação de estar sendo olhado” em que investiga fenômenos da mente humana.15 A hipótese dele é que, se a mente se projeta através do olhar e ‘toca’ o que vemos, então seríamos capazes de afetar o que vemos apenas com o olhar. Pesquisas realizadas na Europa e nos EUA revelam que cerca de 80% das pessoas dizem já ter tido a sensação de estar sendo observadas. Contudo, o impulso de voltar-se para trás não é comum a todos. Há casos – garçons, artistas e professores, por exemplo,– em que esta percepção parece atrofiada, ignorada ou evitada. Sheldrake recomenda a experiência de olhar fixamente para a nuca de uma pessoa e ver o que acontece: ela vai ficando irrequieta e se volta para trás com um olhar contrafeito. O fenômeno também foi observado em cães e lobos. Naturalistas puderam constatar que quando um filhote de lobo se afasta demais do covil, a fêmea ergue a cabeça e mira fixamente; esse olhar, de alguma forma, tem o mesmo efeito que um chamado: paralisa o filhote como se lhe enviasse um grito. Se isso acontecesse apenas uma vez, dizem os cientistas, poderíamos dizer que é mera coincidência, mas acontece repetidamente e do mesmo modo intrigante. O filhote para súbito, volta-se então como se tivesse recebido uma ordem, repara no olhar da fêmea e volta como um cão treinado a escutar o assobio. Podemos tirar implicações transcendentais desta pesquisa? Se a resposta for positiva, uma delas resulta em entender a comunicação como o grande pólo gestor ou catalisador de energias dinâmicas que põem em interação uma cadeia de novas interações humanas e não humanas. Mas é justamente neste ponto que reside o problema. O homem avançou pouco no entendimento global das energias que nos circundam. O fenômeno da fé, por exemplo, começa também a ser explorado cientificamente mediante a dimensão da psique. Sabemos, no entanto, que este recorte ainda é pouco. Acredita-se que a fé seja o resultado da vontade pessoal com a crença numa dimensão além. Isso pode ser observado através do “efeito placebo”: tratamento sem nenhum valor terapêutico que, mesmo assim, ajuda doentes a melhorar. Não se trata apenas de ver pessoas ficarem curadas ao ingerirem pílulas que não possuem nenhuma substância química, mas também de cirurgias fictícias e psicoterapias fictícias. Estudos sobre a mente mostram que ela é capaz de ampliar a própria noção do que se entende por realidade. O pesquisador italiano Stephano Sabetti ficou espantado ao descobrir que monges budistas tibetanos brincavam de derreter neve com a mente. 15 Conferir o amplo relatório de pesquisa a este respeito em SHELDRAKE, Rupert. Sete experimentos que podem mudar o mundo. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000.
  • 12. 12 Eles se colocam em estado de meditação, sentados sobre a neve, e apenas com o calor do corpo e a força da mente, brincam de ver quem derrete o maior diâmetro de neve em torno de si.16 Muitas outras pesquisas vêm sendo realizadas nesta direção, como a que diz respeito aos lugares do planeta considerados sagrados e aos efeitos que eles provocam nas pessoas, ou às pesquisas na área de Biologia Molecular e Bioquímica que sugerem que pessoas que dizem ter “experiências extraordinárias”, “visões” ou qualquer outra sensação de teor místico são afetadas pela chamada “epilepsia do lóbulo temporal”. De acordo com especialistas em neurobiologia, os sintomas dessa epilepsia dependem de uma atividade elétrica anômala do lóbulo temporal do cérebro. Um levantamento dessas pesquisas, feito em 2002 pelo jornalista português Joaquim Fernandes, registrou pelo menos 57 estudos diferentes em várias universidades. Desde a relação astrológica com a psique, passando pela presença de seres extraterrestres entre nós, a engenharia da mente, o uso de sensitivos pela CIA, os relatos de experiência entre a vida e a morte, entre outros. Ao que parece, a ciência e as diversas dimensões do espírito serão as novas heterodoxias do século XXI.17 V Se se consegue atingir a instância de uma nova relação comunicacional com os campos energéticos que nos circundam, talvez a própria ciência comunicacional consiga alcançar uma visão consideravelmente complexa e ampliada de si mesma. Não que isso simplesmente irá melhorar o seu status no campo científico, mas será certamente um motivo a mais para reconsiderarmos as nossas posturas diante do campo. O homem apenas começou a investigar comunicacionalmente a natureza, e sequer iniciou uma reflexão lógica e duradoura sobre aquilo que a ciência chama hoje de “imaterialidade”. Neste sentido, desperta mesmo atenção de forma contundente a hipótese de Rupert Sheldrake, de que uma “conexão invisível” faz interagir passado e presente a tal ponto que campos de forças não só atuam no nosso organismo e na nossa história, como possuem autonomia própria. Entre esses campos de forças autônomos estão, segundo ele, as entidades ditas sobrenaturais, presentes em outros planos e esferas, conhecidas na história da humanidade como gênios, fadas, magos, duendes (no 16 SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade – comportamento, corpo e movimento. São Paulo: Summus, 1991. 17 FERNANDES, Joaquim. Heterodoxia para o século XXI. Lisboa: Campo das Letras, 2001.
  • 13. 13 caso dos relatos imaginários) e santos, virgens, caboclos e exús (no caso dos relatos das doutrinas). A ressacralização do mundo há muito já começou e parece que as religiões tradicionais têm pouco a ver com esse efeito marginal que tomou conta dos corações humanos. A ciência, sempre alheia a hipóteses aparentemente malucas como a de Sheldrake, será a primeira a buscar bases explicativas para fenômenos há muito deixados de lado. Por enquanto, a comunidade científica dá de ombros e torce a boca quando a assunto são as energias psico-interacionais; futuramente, talvez nos séculos vindouros, cientistas, místicos e teóricos da comunicação de todas as denominações possam congregar esforços para a compreensão global das energias da natureza. Por enquanto, a comunidade científica ainda trata filósofos naturais como Sheldrake como marginais ou alienígenas, excluem-no dos financiamentos oficiais ou denegam a sua atividade com o velho chavão: “isso não é ciência”. A posição de Sheldrake é contestada, entre outros motivos, porque se aproxima do animismo, concepção que sustenta que todas as partes da matéria implicam consciência e entende que como o cosmos e a natureza produzem criaturas vivas, deveriam eles mesmos ser vistos como organismos vivos e animados possuidores de razão, emoção e linguagem. Religare é a palavra latina que origina o termo religião. Como dissemos, se se consegue a instância dessa religação, talvez se atinja o patamar mais complexo da relação entre o homem e a transcendência. Atinge-se a potência mais radical, o universo dos “impossíveis”, alcançados até hoje somente pelos místicos ou pela fantasia. A possibilidade radical de vivermos cá com os deuses, em patamares diferentes de co- penetração nos respectivos mundos, respalda a antiga concepção de que os deuses estão em tudo, que o mundo é concebido como um organismo complexo, às vezes denominado pelo nome de Gaia, por sinal uma divindade grega que, segundo a tradição, é um dos princípios do cosmos junto com Caos e Eros. De Gaia (Terra) nascem o céu (Urano) e o mar (Ponto). A doutrina de que toda a matéria é dotada de vida foi assumida ao longo da história por filósofos e pagãos; entre os cristãos, a personagem mais famosa é São Francisco de Assis, padroeiro da ecologia, que interagiu com o lobo, o sol, o Papa e o leproso com a mesma reverência e o mesmo amor. Perceber não só o magnetismo das coisas como a alma que habita cada rincão do mundo (seja ele a montanha, o deserto, a pedra, a flor...) é uma experiência que o homem necessita reaprender. É uma outra
  • 14. 14 percepção do mundo que instaura outro tipo de racionalidade e de conhecimento sobre o próprio mundo. Entre os físicos é conhecida a história contada por Werner Heisenberg sobre seu professor e mestre Niels Bohr, prêmio Nobel de física em 191318 . Heisenberg, também Nobel em 1927, descreve em um texto dedicado à relação entre ciência e religião uma história que Bohr adorava contar em reuniões informais. Contava que um dos seus vizinhos em Tisvilde pendurou uma ferradura na porta de casa, quando um conhecido lhe perguntou se ele era supersticioso e se realmente acreditava que aquela ferradura possuía algum efeito mágico, respondeu, ponderando, que pessoalmente não acreditava, mas que haviam lhe dito que ela funcionava assim mesmo; mesmo quando não se acreditava nela. Essa história nos ensina alguma coisa. Tão logo a teoria da comunicação comece a se interessar por conexões e efeitos, como a que Bohr observou em Tisvilde, ela atingirá um considerável desenvolvimento das relações do homem com a sociedade e a natureza. Por enquanto a teoria da comunicação não saiu da cancela sociológica e mesmo com todas as contribuições dadas pelas diferentes escolas, a teoria pode e deve investigar outras lógicas de interação. Apesar da pesquisa em comunicação estar ainda sob o jugo de um padrão mecanicista, que coloca o emissor numa ponta e o receptor noutra, sabe-se hoje do princípio da não-separabilidade entre organismos diversos, que conservam um misterioso vínculo entre si, simultaneamente de reciprocidade e oposição, revelando com isso aspectos estranhos e paradoxais da natureza das relações. Há se não um tabu, um alheamento total na investigação da paranormalidade, por exemplo, assim como na relação do homem com animais, plantas ou entidades ditas sobrenaturais. Pouco comum, esse tipo particular de pesquisa pode revolucionar a teoria da comunicação e despertar para um novo senso de conexões vivas, visíveis e invisíveis, entre a esfera humana e a vegetal, animal e espiritual. Há casos de comunicação telepática com animais e entre humanos, há casos de premonições e aptidões fora do comum de pessoas capazes de uma comunicação com planos diferentes desses. Poucos são os casos onde os chamados médiuns são estudados como elementos de mediação que garantem uma comunicação entre as diversas esferas. Se esses humanos especiais forem desfocados do ambiente religioso ou supersticioso em que estão encerrados e forem observados como sujeitos capazes de auxiliar a 18 Cf. HEISENBERG. W. A parte e todo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
  • 15. 15 pesquisa e o desenvolvimento da capacidade humana em se comunicar, então pode-se começar a reconectar o homem à busca de um saber poético, elementar e primordial. Ignora-se, por exemplo, o modo de coordenação dessas comunicações, não se sabe se a ocorrência do acaso em nossas vidas está inscrita em um conjunto de probabilidades, se é somente puro evento casual ou se é fruto de magia, como supõem alguns povos indígenas.19 Claro, não se pode admitir que todas as ocorrências imprevistas são frutos de magia, mas que um evento, qual um encontro através de uma trombada na rua, um acidente ou o que chamamos de sorte ou azar, pode ser resultado do jogo sútil qualquer de forças que desconhecemos. Nem todos os tipos possíveis de interconexão entre os campos e organismos são conhecidos, podendo, em princípio, ser plenamente explicáveis, contudo, como relacionar campos desconhecidos da comunicação com a teoria vigente? Na percepção de uma comunicação expandida e animada por uma realidade ampla, observa-se que a religação do homem à natureza implica o redimensionamento de outras percepções. A alma não está confinada ao cérebro, mas estende-se pelo corpo e à sua volta. Liga-se aos ancestrais; prende-se à vida dos animais, das plantas, da terra e dos céus; pode vagar longe do corpo em sonhos, nos transes e na morte; pode comunicar-se com uma vasta esfera de espíritos - dos ancestrais, dos animais, da natureza - e ainda com elfos e fadas, elementais, demônios, deuses e deusas, anjos e santos.20 Se é isso mesmo o que a física contemporânea sinaliza, pode ser que as palavras e os pensamentos produzam também efeitos a distância noutras pessoas e grupos, o que pode fazer da televisão, por exemplo, a fonte privilegiada dos estudos sobre os efeitos das mensagens veiculadas por ondas magnéticas, efeitos do plasma que interferem na convivialidade humana. A pesquisa de Sheldrake verificou a possibilidade de diversas conexões da natureza ainda serem desconhecidas em suas lógicas. Verificou, em mais de mil experimentos, que os cães sabem quando os seus donos estão voltando para casa, que os pombos possuem uma conexão invisível qualquer que lhes permite saber o caminho de casa; que os humanos possuem uma sensação que lhes permite saber quando estão sendo observados; que a ação medicinal produzida pelo efeito placebo é plausível de ser 19 Estudos realizados com o povo Bororo, do Mato Grasso, e os Dogon de Mali, mostram que, em muitos casos, magia e ciência são considerados o mesmo fenômeno. Cf. BARBOSA, Andréa (org.). Imagem- Conhecimento, antropologia, cinema e outros diálogos. São Paulo: Papirus, 2009. 20 Sheldrake, 2000, p. 32.
  • 16. 16 incorporada ao tratamento das patologias humanas; que o método de organização dos insetos sociais como abelhas, cupins e formigas é mais complexo que o nosso. Ele insinua que o conjunto de energias na natureza pode indicar a hipótese de uma “ressonância mórfica”. A hipótese aparece no seu livro A New Science of Life (1995) a revelar que há campos ordenadores invisíveis que controlam todos os sistemas. Esses campos produzem a forma e o comportamento, sem precisar de energia convencional. Valem-se da energia escalar, virtual, que supera qualquer barreira de tempo ou espaço. Sempre que um indivíduo de uma espécie aprende ou descobre um novo hábito, procedimento, atitude, isso repercute no campo ordenador invisível da espécie toda, mesmo que ligeiramente. Se essa atitude for repetida por muito tempo imporá uma ressonância mórfica que influenciará todos os indivíduos da mesma espécie. A partir de Lyan Watson, sabemos que se um conjunto de macacos numa ilha exibir um novo comportamento, em outras ilhas distantes o mesmo comportamento novo era ostentado por outros macacos, sem nenhuma comunicação tradicional. Na sua pesquisa com cães verificou que há uma relação íntima entre o cão e o dono e entre o pombo e sua casa. Sheldrake escreveu a vários periódicos pedindo aos leitores que relatassem a relação que mantinham com seus cães. Para sua surpresa recebeu cartas de toda a Inglaterra, descrevendo histórias curiosas neste sentido. Do mesmo modo, Sheldrake procurou anúncios científicos em busca de histórias do tipo, foi à ficção, leu histórias de outros continentes... Descobriu que o conjunto de documentos sobre o assunto era significativo. Num caso ocorrido durante a primeira guerra mundial, um cão atravessou a canal da Mancha, entre a França e a Inglaterra, até encontrar seu dono nas linhas inimigas. Nossa relação com os cães e gatos é antiga o bastante para já ter sedimentado uma energia-qualquer-de-relação, possivelmente amorosa, íntima, que propicia tais eventos. O homem domesticou os cães há vinte e cinco mil anos, enquanto que os gatos apenas há quatro mil, no Egito. Num experimento com cães, Sheldrake colocou câmeras dentro das casas acompanhando-os, num tipo de filmagem comum nos bancos, espécie de vigilância, de monitoramento. Por outro lado, pesquisadores acompanhavam à rua os donos. Sheldrake simulou um sem número de situações: os donos decidindo retornar para casa; os pesquisadores decidindo quando o dono iria voltar; os donos saindo sozinhos, sem a companhia do pesquisador, e marcando eles mesmos no relógio o segundo da decisão do retorno. Em todos os casos, a atitude dos cães era recorrente: levantavam-se (no
  • 17. 17 ponto em que estivessem na casa) e dirigiam-se à porta. Em alguns casos, os cães conseguiam até antecipar em segundos a decisão do dono em retornar. Sheldrake acredita que os gatos também devem intuir o mesmo, mas a sua atitude não segue a dos cães. Na pesquisa sobre os pombos não foi diferente. Diversas simulações foram feitas, situações criadas e modificadas à exaustão para descobrir o que já suspeitavam. Um dos relatos dá conta que um pombo chegou a salvar 12 pessoas na queda de uma aeronave no oceano atlântico. Durante uma tempestade, um monomotor sofreu uma pane e caiu sobre o mar revolto, mas o capitão conseguiu anotar a latitude e a longitude da queda; anotou a informação em um papel e lançou o pombo ao rugido do tempo. O bicho voou contra o vento por mais de seis horas com uma tempestade ruidosa à sua volta. Chegou na base militar em tempo de salvar a todos. Salvos, homenagearam o pombo com uma placa de bronze e um jantar para o qual o pombo foi convidado. Numa das simulações, Sheldrake colocou um pombal sobre um automóvel, soltou os pombos e tomou uma direção qualquer seguindo por duzentos quilômetros. Estacionou o carro e esperou. Horas depois, lá estavam eles, os pombos, em gorjeio, sem algazarra. As outras experiências vão na mesma direção. Experiências mostram que existem muitos campos de interação desconhecidos. Como o homem sabe, na maioria das vezes, que está sendo observado? O que desperta nele essa sensação? Os olhos do outro? O pensamento, a intenção? Em uma pesquisa quase sem custo (apenas uma caneta e um papel) Sheldrake simulou situações em que grupos de dois onde o primeiro sentava-se costas para o segundo. Os grupos tinham que marcar se estavam olhando ou não, e se o olhado se sentia ou não mirado. A relação com os acertos era superior a sessenta por cento. Se os homens sabem que estão sendo observados, como é que eles ficam sabendo disso? Que sensorialidade há, capaz de detectar um movimento ocular alheio? As sete experiências do físico inglês podem ser recriadas em muitas situações onde essa comunicação extrasensorial acontece. Certamente, conhecemos casos da comunicação (como a da mãe com o filho) onde tais relações aparecem subscritas numa ”Ordem Implícita”, como descreveu o físico David Bohm.21 Segundo Bohm, as pessoas intuem uma forma de inteligência que, no passado, organizou o universo, e a personalizam chamando-a Deus. Imaginamos o místico como 21 BOHM, David. A totalidade e a ordem implicada. São Paulo: Madras, 2008.
  • 18. 18 alguém em contato com espantosas profundezas da matéria ou da mente sutil, não importa o nome que lhes atribuamos. Em sua teoria da Ordem Implícita sobre a origem do universo visível, da vida, da realidade que vemos, tocamos, medimos e quantificamos, ele vai muito além da ciência tradicional. Pesquisando a natureza da consciência, devido aos problemas que encontrou na mecânica quântica, Bohm procurou Krishnamurti – filósofo hindu -, com quem manteve grande amizade. Juntos, promoveram palestras e debates sobre assuntos importantes e que depois foram publicados em livros. Bohm é um dos cientistas que “por intermédio da ciência” percebeu um universo vivo, inteligente, belo e até mesmo bondoso; tornando essa percepção convincentemente viva para os demais. A teoria da ‘Ordem Implícita’ emergiu dos estudos de Bohm sobre as variáveis ocultas e a interpretação superficial da mecânica quântica – “propondo que uma ordem oculta atua sob aparente caos e falta de continuidade das partículas individuais de matéria. Em geral, a totalidade da ordem abrangente não pode se tornar manifesta para nós; somente um certo aspecto dela se manifesta. Quando trazemos essa ordem abrangente para o aspecto manifesto, temos uma experiência de percepção. Mas isso não quer dizer que a totalidade da ordem seja apenas aquilo que se manifesta. Na visão cartesiana, a totalidade da ordem, pelo menos potencialmente, é manifesta, embora não saibamos como manifestá-la por nós mesmos. Precisaríamos de microscópios, telescópios e outros instrumentos. A sugestão básica da teoria de Bohm, de início, é a de que vivemos num mundo multidimensional e a nossa moradia está situada no nível o mais óbvio e superficial: o mundo tridimensional dos objetos, espaço-tempo, ou seja, na Ordem Explícita. Neste nível, diz Bohm, “a matéria é densa e embora possa ser descrita em relação a si mesma, não é a maneira de explicá-la e entendê-la com clareza. Infelizmente é basicamente nesse nível que a maioria dos físicos trabalha hoje em dia; por isso suas descobertas são apresentadas na forma de equação de significado obscuro”. Então, o que fazer? Bohm entende que avançar para um nível mais profundo: a – Ordem Implícita – “Fonte” e “Fundo” abrangente de toda a nossa experiência física, mental e espiritual, Fonte que está situada numa dimensão de extrema sutileza, ou seja, na Ordem Superimplícita, implica postular também muitas ordens semelhantes: “mergulhando numa fonte ou esfera infinita–n-dimensional”. O que sabemos a fundo deste modelo de comunicação? Qual o seu processo interno, o seu funcionamento, a sua ordem e em que estrutura se orienta? Se nada sabemos, bem que poderíamos dizer que ainda estamos no “ano zero da comunicação”,
  • 19. 19 como escreve Ciro Marcondes Filho22 . Se nada sabemos, bem que poderíamos adotar na pesquisa uma postura mais simples e atenta e escutar mais a natureza, espreitar os “mistérios” cá entre nós, dispor o coração ao entendimento de uma razão que, por enquanto, a própria razão desconhece. VII Cada um de nós, ao se defrontar com a hipótese de que forças diferentes e variadas atuam em nossa existência, não pode deixar de se perguntar pelo sentido dessa presença. Ao nos defrontarmos com causas e efeitos aparentemente científicos como o revelado na pesquisa com pombos e cães, não podemos deixar de levar em conta nossa experiência com as conexões ainda inexplicáveis. Conhecemos pelo menos um caso de pessoas que nos revelaram um tipo qualquer de sensação não frequente ao dia-a-dia, como aparições, sonhos ou estados de êxtase, comunhão, iluminação... Mas quando somos defrontados com a vida cotidiana somos intensamente levados a rejeitar essas experiências, descartando-as como superstições. Em levantamentos preliminares feitos na Inglaterra e nos Estados Unidos, em populações escolhidas aleatoriamente, aparece em mais de um terço das pessoas interrogadas, que elas constataram “uma presença ou uma força” pelo menos uma vez na vida.23 Nos relatos coletados pela Unidade de Pesquisa sobre Experiências Religiosas, de Oxford, a maioria deles apresenta sentimentos de ligação com a natureza, mas, paralelamente, tais experiências são tratadas com dificuldade pelos entrevistados, semelhante muitas vezes à discussão sobre assuntos sexuais íntimos. O tabu no relato ou com as narrativas das relações com o que não podemos explicar facilmente na natureza ainda permanece. A radicalidade que tais relatos não conseguem esconder aparece sob o signo da co-presença na natureza de campos de forças inteligentes, energias capazes de se condensar numa forma e fazer contatos conosco, sem que para tanto sejam visíveis, e quando o são, os relatos enchem-se de descrições próximas aos da literatura fantástica. Pode ser que estas energias não sejam nada além da alma que os gregos antigos acreditavam estar misturada ao universo. Talvez seja por esta razão que Tales de Mileto (585 a.C.) acreditava que tudo estava pleno de deuses, que a alma era capaz de produzir 22 MARCONDES FILHO, Ciro. Comunicação ano zero. Abr./jun.,1990. Portcom Intercom. In: www.portcom.intercom.org.br/novosite/navegacaoDetalhe.php?option=artigo&id=7771 23 SHELDRAKE, R. O Renascimento da Natureza. São Paulo: Cultrix, 1989, p. 212.
  • 20. 20 movimento e que ela estava presente até mesmo em coisas inertes como a pedra, o âmbar e o imã. Sabemos que a proximidade entre ciência e religião parece nunca ter feito muito bem à ciência, em especial. Durante toda a idade média a ciência involuiu devido à limitação da mentalidade religiosa da época, e que, somente após o iluminismo, é que esse laço foi desfeito. Agora, novamente, as pesquisas físicas começam a se aproximar novamente do que há muito a religião procurou tratar. Mesmo com a evolução da ciência laboratorial tais investigações não deixam de parecer exóticas. Quando se fala de inteligências desencarnadas ou entidades espirituais não-humanas logo o assunto parece fugir inteiramente do âmbito científico. Devido ao tremendo número de relatos dessas entidades ditas sobrenaturais em todos os povos e civilizações, um outro campo do saber, além da antropologia, poderia investigar tais relatos com rigor laboratorial. Trata-se de aproximar tais energias das pesquisas físicas, químicas e biológicas. De qualquer forma, sabemos que isso vem sendo feito, ainda que muito discretamente. Em Paris, fala-se de grupos de doutores em química que realizam experiências laboratoriais com o objetivo de transmutar substâncias em outras substâncias; seriam eles os alquímicos modernos? Não se pode dizer que tais forças e manifestações interessem apenas a diletantes ou obscurantistas. São inúmeros os relatos de cientistas que tiveram uma relação com experiências místicas. Sabemos hoje que o próprio René Descartes (1596-1650) interessava-se pelo ocultismo24 . Conta-se, inclusive, que num sonho um anjo havia aparecido e lhe dito que o segredo da conquista da natureza estava na medida e no número. Friedrich August Kekulé (1829-1896), descobridor do anel benzênico, sonhou com o símbolo urobórico (a cobra que morde a própria cauda) e entendeu que estava ali a solução de um problema de estrutura molecular que vinha procurando. Desde o empirismo pré-iluminista de John Locke (1632-1704) já se falava da necessidade de uma religião natural. Talvez se fale nisso há muito tempo, se é que podemos assim caracterizar o pensamento pré-socrático, especialmente em ‘físicos- filósofos’ como Tales de Mileto e ‘místicos’ e médicos como Empédocles de Agrigento (493-433 a.C.). Depende de Locke, substancialmente, um tipo de deísmo que influenciou os livre-pensadores iluministas, notadamente na França. Deísmo caracterizado de religião natural, racional e universal, ainda sem conotações sobrenaturais. Deísmo, contudo, que resvala quase sempre para um panteísmo abstrato, sem que se consiga ir além do discurso de que é necessário devolver a humanidade à sua religião originária e primordial, que é o culto à natureza. 24 Cf. DESCARTES, R. Meditações metafísicas (1641). Rio de Janeiro: WMF Martins Fontes, 2011.
  • 21. 21 Ir além do discurso significa começarmos a ser “intérpretes e inventores entre a natureza e os homens” como autodefiniu-se Leonardo Da Vinci25 . Podemos mais do que constatar tais eventos ditos sobrenaturais, tentar dialogar, catalogar, pesquisar sua dinâmica e suas ocorrências. Podemos pelo menos, começar a tentar fazê-lo, já que nesse campo tudo parece ainda incipiente e difuso. Interessante é notar que a comunidade científica tenha visto a ocorrência de tais fenômenos como algo irrelevante à pesquisa, sem propósito ou relação com a vida do dia-a-dia. Em várias partes do planeta a união da pesquisa científica à investigação da imaterialidade presente nas crenças religiosas substancia uma terceira via, que se funde entre fé e ciência. Dessa união abrem-se novas hipóteses e possibilidades como a do desenvolvimento da física das novas energias, com destaque para a física da energia vital. Historicamente, o vitalismo é a doutrina filosófica que afirma a existência de uma força autodeterminada, hereditária, atuando em todos os fenômenos. A força surgida da religação entre os saberes da análise, verificação e classificação e os domínios noológicos apresenta-se, também historicamente, sob a forma de uma visão de mundo que trabalha com as probabilidades de interconexões, ou seja, uma forma de produção científica dialógica, com os elementos laboratoriais e o rigor analítico, colaborando para redescobrir o fluxo de energias do mundo natural. O vitalismo na ciência ou a pesquisa das energias psico-interacionais não é assunto recente. Paracelso, em 1530, nomeava tal força de “munia” ou “mumia”, Johannes Kepler (1620) chamou de “facultas formatrix”; Sigmund Freud (1895) de “libido”; Rudolf Steiner (1900) entendeu por “força formativa etéria”; Henri Bergson (1920) chamou de ”elã vital”; Wilhelm Reich (1940) de “orgônio”; Erwin Schroedinger (1948) de “entropia negativa”; Carl Gustav Jung (1951) de “sincronicidade”; Abrahan Maslow (1960) de “sinergia”; enfim, muitos cientistas e filósofos se interessaram pela manifestação de certas energias (que podem nem sempre representar a mesma vibração ou ter o mesmo conceito), nomeando-a de vários modos: “alma do universo” (Stronberg), “princípio unitário da natureza” (Bertalanffy e Whyte) “paraeletricidade” (Worral), “energia noética” (Musès), “energia biocósmica” (Brunler), “Spiritus” (Fludd), “luz astral” (Blavatsky). 26 Somente nessa relação, identifica-se que a ciência e a espiritualidade aparecem muitas vezes confundidas sob nomenclaturas que visam descrever a mesma potencialidade da natureza. Fé, dúvida, razão e ciência entrecruzam-se e combatem-se no espírito do homem. Cientistas e filósofos como Pascal, Spinoza, Galileu, entre 25 DA VINCI, Leonardo. Trattato della pittura. Firenze: Neri Pozza, 2000. 26 Cf. SABETTI, Stephano. O princípio da totalidade. São Paulo: Summus, 1991, p.60 e 61.
  • 22. 22 outros, até contemporâneos como Edgar Morin, David Bohm, Henri Atlan alimentam-se das contradições e complementaridades entre ciência e religião. Cientistas como Atlan não vêm conexão possível, mas filósofos como Morin fazem até uma distinção dos tipos de forças imateriais presentes em nossa vida. Ele entende que são dois os tipos de entidades imateriais: 1) entidades cosmo-bio-antropomorfas como mitos, gênios, espíritos e deuses e 2) entidades logomorfas como doutrinas, teorias, filosofias, formas pensamento que por vezes nos dominam e arrebatam.27 É a relação dessas entidades materiais com a comunicação que nos interessa investigar como condições de possibilidade de entendermos melhor o senso de transcendência presente (e por vezes, oculto) nas interações humanas. 27 Cf. MORIN, E. O Método IV - As Ideias. Porto Alegre: Ed. Sulinas, 1998.
  • 23. 23 2. Palavra e senso de transcendência28 Toda palavra chama outra palavra. Toda palavra é um imã verbal, um pólo de atração variável que inaugura sempre novas constelações. Uma palavra é toda a linguagem, mas é também a fundação de todas as transgressões da linguagem, a base onde se afirma sempre uma antilinguagem. Uma palavra é todavia o homem. Duas palavras são já o abismo. Uma palavra pode abrir uma porta. Duas palavras a apagam. Roberto Juarroz I A antropóloga e poeta Tereza Vergani pesquisou na África algumas formas de manifestação da palavra entre o povo Dogon, de Mali, publicando os resultados de sua investigação no livro Excrementos do sol: a propósito de diversidades culturais (Lisboa, Pandora, 1995). Ela constatou que o conceito Dogon de palavra é superior àquele que se limita a abarcar a emissão do conjunto de sons dotados de sentido. Os Dogon possuem quarenta e oito categorias para classificar o papel da palavra na sua sociedade. Além de estar relacionada à própria criação do mundo, a palavra é, para eles, uma semente que pode render diversos frutos que nascem, crescem e morrem tal qual o homem. O seu entendimento abrange uma dupla complexidade temporal: a da palavra que cria o homem e a da palavra pela qual o homem cria o mundo. Naquela sociedade, a pessoa vale o que vale a sua compreensão da palavra. A fala é vigiada com cuidado extremo, porque basta uma única delas ser pronunciada de forma vil ou desatenta para que o homem tenha de pagar por sua irresponsabilidade, já que a palavra é a manifestação energética tornada ação a partir do seu pronunciamento. Para eles, muitas são as palavras “podres”, “mortas” e “sem sementes” que podem 28 Entendo este ‘senso’ a partir do “caráter estrutural da transcendência” que, segundo Heidegger (2008, p.362-66), está fundado em dois fenômenos: 1) Ter-sido-jogado e 2) a Nulidade. Ter-sido-jogado à existência implica em lidar com a multiplicidade das ligações essenciais que nos rodeiam e que permitem, por sua vez, tornar visível a nulidade. A nulidade revela a finitude, a “ausência de apoio do ser-aí” diante da existência; revela que nenhum ser-aí existe em função de sua própria resolução e decisão.
  • 24. 24 ocasionar a desgraça daquele que a usa. “Os Dogon não atribuem qualquer grau de realidade a um pensamento que se não venha a exprimir por palavras, isto é, que se não revele como força atuante no mundo”. (p.78) É notável a descrição da poeta a partir da sociedade Dogon: “é impensável, por exemplo, que uma mulher passe por um campo onde um homem labuta sem lhe dirigir uma palavra de ânimo, de compreensão, de solidariedade. Negar a palavra a alguém é como negar-lhe água num deserto. Quem conhece a aridez desta zona de Mali, compreende que tanto a água como a palavra produzam o mesmo espanto festivo. O coração emudece-nos quando, depois de horas a atravessar a espessa solidão da areia, vemos de repente uma pequena (única) árvore levantando-se milagrosamente na secura! E que dizer quando é um homem que surge subitamente da poeira branca levantada pelos seus pés? Poder pronunciar uma palavra no deserto transcende tudo o que a natureza nos consiga vir a dar. É aí que a palavra nos aparece como a verdadeira fronteira entre o mundo natural e o mundo cultural: só aí sabemos e sentimos que a palavra está para o homem assim como a água está para a terra”. (p.79) A sua pesquisa conseguiu mapear a forma peculiar com que esse povo classifica a palavra. Ela é simultaneamente um corpo astral e físico, ao mesmo tempo divina e humana. A semente astral da palavra está dividida em sete vibrações que correspondem às sete notas musicais ou “a natureza vibratório do som”. Às “sementes da palavra” estão relacionadas ainda aos elementos água, ar, fogo e terra, enquanto que o “corpo da palavra” à sua natureza e forma de manifestação. Para melhor esclarecer, ela apresenta o seguinte quadro: Semente astral da palavra Corpo da palavra humana Água Saliva, umidade necessária à correta articulação da palavra Ar Sopro vital, pulmões, mecanismo de respiração, vapor d’água que se expira ao falar Fogo Temperatura da palavra (relaciona-se com o calor corporal e as condições psicológicas do sujeito que fala) Terra Ossadura da palavra, sentido ou ‘peso’ da palavra, inteligência do discurso Fecundidade da semente Tom e natureza da palavra, relacionados com a força vital do sujeito que a profere.
  • 25. 25 Esse estudo ‘físico’ da retórica humana, se é que podemos assim nomeá-lo, não pára por aí. O sangue humano é o que confere o encanto à palavra, influindo no timbre da voz, suave ou quente, amável ou calorosa, a modelar o discurso, provocando ou não prazer na escuta. A tonalidade da voz revela o estado psicológico daquele que fala e dá a conhecer as intenções do discurso. As oposições de timbre, intensidade ou altura traduzem a constante passagem da razão a emoção e da afetividade à consciência por parte daquele que fala. Do mesmo modo, revela o galanteio, a indiferença, a cólera, a mágoa, o vigor. Tanto a palavra quanto a voz carregam consigo altos graus de sexualidade. A boca é o local do tear da palavra. A orelha o ponto de fecundação. Para os Dogon, a palavra possui cheiro e gosto, e comunica diversos ‘sabores’, podendo ser “doce como o mel, ardente como a pimenta e amarga como a verdade”, diz Vergani. Ainda seguindo a sua investigação, a palavra possui perfume, através dela podemos produzir a nossa purificação, como se ela fosse uma espécie de incenso. Assim como a “palavra morta” é capaz de produzir “mal cheiro”, a palavra viva é como um óleo aromático, a produzir embelezamento, saúde e bem estar. Uma palavra que renove o nosso espírito é escutada entre eles como se aspirassem o aroma das ervas e fragâncias. A riqueza do estudo de Vergani sobre os significados da palavra dogon está também no fato de ser ela uma poeta, que sabe o tom, valor, medida, altura e profundidade de cada expressão. Sabe que a palavra é capaz de trazer harmonia àquele que a maneja bem, mas também capaz de fazer com que a pessoa se ‘afogue’ ou se ‘perca’ nela. A palavra, diz ela, é capaz de moldar a personalidade de quem a usa, por isso e por outros motivos é que ela é o dom mais precioso que os Dogon estimam possuir. II A concepção Dogon se entranha nas definições cosmológicas que penetram (ou parecem flertar) com a physis e as noções da filosofia da linguagem. A partir do que vimos anteriormente, a comunicação é potência da necessidade e da intensidade da physis. A necessidade é força impulsionadora e sedimenta parte do viver. Necessidade e manutenção da essência são aqui o mesmo. Que força é necessária para sustentar uma flor, uma borboleta ou uma palavra? Toda obra de arte é filha do seu tempo e mãe dos
  • 26. 26 nossos sentimentos, afirmou Kandinsky29 . A intensidade, por sua vez, é a vivência do ânimo e o instante (espaço-tempo), seja extraordinário ou ordinário, encantado ou desencantado, é um fluxo instável, acuado sob o fogo cerrado de Heráclito. Heidegger entendeu que a essência da arte é a poesia e o artista. Mais poesia do que artista, visto que a morada do ser é a linguagem. A questão é que o homem é traspassado de linguagens e, entre elas, as poéticas. Praticando o riso, o jogo, a graça e a sátira ou, como prefere Edgar Morin, a simpatia (syn pathos), continuamos nosso “jogo” transcendental com a vida. Para Morin, ao expressar e, sobretudo, ao linguajar sentimentos mesclados com encantamentos – eis que surge a arte. Mythos e logos nascem entrelaçados: são os motores da poiesis. Da linguagem30 . Os nascimentos da condição humana passam pelo mito, pela contemplação da palavra e do silêncio, pela interpretação apaixonada da natureza e pela releitura de si e do mundo. A referência ao uso do barro, a pintura parietal e a de corpos por nossos antepassados tem longa história. Já na Bíblia vemos citações às maquiagens e antes mesmo disso, os egípcios que misturam água e carbonato de sal com argila proveniente do Nilo. A cada manhã, eles esfoliavam braços, pernas, pés, cotovelos, para em seguida, após o banho, passar óleo de palma e de oliva no corpo, que servia para amaciar a pele, proteger do sol e afastar os mosquitos. Os egípcios possuíam também cremes, pós, perfumes, ungüentos, ceras, máscaras, perucas e toda uma sorte de símbolos que associavam ao corpo. Mas não só ao corpo. Também pintavam, escreviam, desenhavam e esculpiam. Nnenhuma destas tarefas estava afastada da esfera encantada. A relação onto-essência ainda não havia sido quebrada. Thoth, o deus egípicio da arte é também o deus da linguagem e da matemática. Foi ele que ensinou o homem a pensar por números e letras. Thoth assemelha-se a Hermes, grego. Hermes é o deus da comunicação, o mensageiro da aurora; o transitante. O deus do comércio e das trocas. No Brasil, vemos Hermes na logomarca do Sesi/Senai. É a figura com capacete e asas. Se os egípcios praticavam logos e símbolos divinos, nós praticamos os mundanos. Mais do que Hermes, certamente, vemos a figura de Che Guerava por todos os lados. O que pode significar no imaginário da humanidade as ondas da logo da Coca-Cola? 29 KANDISKY, V. Do Espiritual na arte. São Paulo: Martins, 2000. 30 Cf. MORIN, E. Cinema ou o Homem Imaginário. Lisboa: Relógio D’água. 1997. Sobre a relação mito e logos ver também MORIN, E. O Método III – O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005, p 168-194.
  • 27. 27 Primeiro foram as figuras das cavernas, em seguida, os desenhos, as imagens todas que nos acompanharam até o advento da fotografia, do cinema e da publicidade. A união imaginário-publicidade-tecnologias da comunicação gerou a superdifusão de imagens em uma escala nunca vista. Surgiu a cultura visual. A cura e a peste pelas imagens sobreveio. Sabemos hoje31 , devido aos estudos embrionários, que um dos primeiros desenvolvimentos do feto é justamente aquilo que vai configurar amanhã no olho humano. Será a visão o que temos de mais arcaico, embrionário e sensível? Duvido. Primeiro foi a figura nas cavernas, o canto da chuva na floresta, os grunhidos de amor, as onomatopeias da natureza e dos animais; em seguida o desenho e as técnicas, para recebermos, a difusão das/dos logos, a nova simbologia contemporânea (marcas, heróis, cores, maquiagens, filmes, narrativas em estruturas de linguagens diversas). Identificamos em estudos anteriores 32 a questão da transcendência ligada àquilo que Gaston Bachelard chamou de “dimensão vertical”, sendo a verticalidade a dimensão-símbolo do ser, fonte e fim de todas as coisas no coração do homem. Centro cósmico e ontológico, a busca pelo alto entendida como princípio ativo da criação: o homem evolui para ascender. Descobrir o que há de elevação e verticalidade nos fenômenos é um desafio não só para a comunicação mas para o espírito humano. Esse desafio Bachelard viu bem: Uma verticalidade real se apresentará no próprio âmago dos fenômenos psíquicos. Essa verticalidade não é uma vã metáfora; é um princípio de ordem, uma lei de filiação, uma escala ao longo da qual experimentamos os graus de uma sensibilidade especial. Finalmente, a vida da alma, todas as emoções finas e contidas, todas as esperanças, todos os temores, todas as forças morais que envolvem um porvir têm uma diferencial vertical em toda acepção matemática do termo. Bergson diz em La pensée et le mouvant que a ideia de diferencial leibniziana, ou antes, a ideia de fluxo newtoniana, foi sugerida por uma intuição filosófica da mudança e do movimento. Acreditamos que se pode precisá-la mais e que o eixo vertical bem explorado pode ajudar-nos a determinar a evolução psíquica humana, a diferencial de valorização humana.(...) Formularemos, pois, este primeiro princípio da imaginação ascensional: de todas as metáforas, as metáforas da altura, da elevação, da profundidade, do abaixamento, da queda, são por excelência metáforas axiomáticas. Nada as explica, e elas explicam tudo. Mais simplesmente: quando queremos vivê-las, senti-las e sobretudo compará-las, percebemos que elas trazem uma marca essencial e que são mais naturais que todas as outras. (...) A valorização vertical é tão essencial, tão segura, sua supremacia é tão indiscutível, que o espírito não pode esquivar-se a ela depois de tê-la reconhecido uma 31 Estudos no campo do desenvolvimento embrionário revelam que, a partir do segundo mês de gravidez, já se pode identificar a formação dos olhos na formação do feto. 32 Sobretudo trabalhos publicados em periódicos: CASTRO, Gustavo de., DRAVET, F. “Razão-Poesia: Comunicação, Poesia e Pensamento”. Contracampo (UFF). , v.18, p.112 - 123, 2008; CASTRO E SILVA, G. “Imaginação, linguagem e consumo”. Comunicação, Mídia e Consumo (São Paulo). , v.4, p.55 - 69, 2007; CASTRO, Gustavo de., DRAVET, F. “Mediação dos saberes e pensamento comunicacional”. Revista FAMECOS. , v.32, p.71 - 77, 2007.
  • 28. 28 vez em seu sentido imediato e direto. Não se pode dispensar o eixo vertical para exprimir os valores morais. Quando tivermos compreendido melhor a importância de uma física da poesia e de uma física da moral, chegaremos a esta convicção: toda valorização é verticalização.33 Para Juarroz a verticalidade é uma noção que se pode associar com o movimento de queda, que traz em si um ensinamento ontológico e que implica outro movimento contrário, de subida ou de plenitude. Cair, rebotar, subir. Cair. O poema atua como um tempo de outra dimensão, um tempo vertical. Por isso, para mim, o poema tem sido cada vez mais uma presença, põe adiante algo que antes não estava e isso é o que lhe dá sua razão de ser. De todos os movimentos do homem há um para o qual inevitavelmente vamos, que se repete ao longo da vida até que se dá na forma definitiva: a queda. O cair abarca desde a folha da árvore até tudo o que existe no universo. A queda é algo assim como o centro de nossas vidas e de nós mesmos. Certamente senti que paradoxalmente se produzia também o movimento inverso. Como se no fundo da queda tivesse um rebote, e é ali onde se encontra a ascensão. Isto foi tecendo com outros pensamentos. Diz Heráclito "o caminho que desce é o mesmo caminho que sobe". Assim como o movimento para baixo é uma resposta ao peso concreto sobre a terra, se dava um movimento inverso, uma espécie de lei da gravidade invertida.34 A verticalidade está ligada queda, à experiência poética e à vida interior. “Muito mais que as vinculações entre poesia e biografía interessa-me a relação entre a poesia e a vida interior. Meu objetivo é sentir que estou vivendo o que devo viver”. Em outro momento Juarroz relaciona a poesia a um modo de ser. A partir do momento em que se dá a experiência poética, ela se confunde com o vital, se integra. A poesia é um modo de vida ou não é nada: se é um modo da linguagem, da expressão, é portanto um modo do ser, não de fazer.35 A noção de verticalidade está ligada à de intensidade, mas o que fazer nos momentos de ausência de intensidade? Às vezes tenho sonhado um ideal, o da vida humana vivida a fundo, com força, com decisão poderia converter-se em um traslado de um ponto de intensidade a outro ponto de intensidade. Saint Exupéry, o escritor e aviador francês, que 33 BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 10-11 (ed.original 1943). 34 JUARROZ, R. “Un Rigor para la Intensidade” IN: BRAVO, Luis. La Poesia de Roberto Juarroz. Especulo - Revista de estúdios literários, Universidad Complutense de Madrid, 1999. Cf. também www.ucm.es/info/especulo/numero11/juarroz.html 35 JUARROZ, R. Cesar Vallejo. Serie homenajes, Academia Argentina de Letras, Vol.VIII Buenos Aires, 1994. Cf. Também JUARROZ, R. “Sobre a Transdisciplinaridade” IN: CASTRO, Gustavo; DRAVET, Florence. (Orgs.) Sob o céu da cultura. Brasília: Ed. Casa das Musas/Thesaurus, 2004.
  • 29. 29 esteve aqui para a instalação do Aeropostal, tem uma expressão que faz a gente meditar, ela diz; “a vida do espírito é intermitente”. Isso nos leva a outro problema. Se o homem não pode viver sem a tensão permanente, porque suas condições são de fragilidade e muitas vezes de fracasso, que faz ele nos momentos de ausência de intensidade? Quer dizer, na ausência do poema. Nos movimentos em que o místico chamaria de etapas de aridez, o que fazemos? O que fazemos é ler outra poesia, é escutar outra música, o que fazemos é ficar na sombra de uma árvore, como se essa árvore fosse o bosque em um pensamento oriental.36 Temos nestas referências a base de compreensão de uma estética da poesia e da verticalidade como algo que direciona no aberto, como diferencial capaz de conectar a unidade múltipla. Em Bachelard, a verticalidade é um princípio de ordem, um “axioma”, uma lei de filiação, uma escala ao longo da qual experimentamos os graus de uma sensibilidade especial. Isto quer dizer que a verticalidade é o eixo fundamental da vida: a vida da alma, todas as emoções finas e contidas, todas as esperanças, todos os temores, todas as forças morais que envolvem um porvir. Tudo aquilo que realmente vale a pena tem uma diferencial vertical. Nos dizeres de Juarroz, a verticalidade é inevitável. Ela se associa a tudo aquilo que vale a pena, às coisas maiores do homem: o gozo e a dor, a morte e o amor. Por trás de todas as superfícies da vida existe a profundidade, ela é o que realmente importa. É por isso que nada pode ser analisado simplesmente em uma perspectiva horizontal. Juarroz chama também de realidade aquilo que está escondido no invísivel, nas camadas ascendentes e descendentes do real aparente e que a linguagem poética pode fazer aflorar ou abrir para a percepção. Para ele, a verticalidade possui a possibilidade de reunir de uma vez por todas o que tem sido tão falsamente dividido: o pensar e a emoção. E a busca vertical da realidade se dá através do pensamento poético. Juarroz chega a falar37 que a conquista da postura ereta do homem é uma conquista da verticalidade, ou seja, trata-se de uma velha busca por elevação. Ele indaga: “Por que, diferente de outros animais, o homem ergueu-se?” O que o levou a buscar o equilíbrio sobre duas pernas, apontando a cabeça para o alto? Depois que o homem se ergueu, nunca mais deixou de tentar soerguer tudo o mais. Construiu casas nas árvores, ergueu prédios, quis voar e criou técnicas que o levaram a invenção do avião. Morin especula se o fato dos irmãos Wilbur e Orville Wright terem criado o avião quase no mesmo ano ao da criação do cinematógrafo, pelos irmãos Lumière, não 36 JUARROZ, R. “Un Rigor para la Intensidade”, Op. Cit. 37 Cf. JUARROZ, R. Poesia y Creación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1980.
  • 30. 30 teria a ver com o “sonho de vôo” que habitava o imaginário social no final do século XIX. O homem quis aproximar o olho de todos os objetos, para isso sofisticou a metáfora38 ; ao ceder espaço dentro de si para a arte, quis dar asas à imaginação, o que o levou ainda mais para o alto; quis satisfazer sua necessidade de transcendência, para isso deu vazão a religiões e filosofias espirituais; quis pela metáfora ir além, evocar divindades para elevar-se junto com elas e quis registrar-se, para isso também deu vazão à palavra, à arte e todos os suportes de linguagem. “Que realidade tem a palavra?”, pergunta Juarroz. Ela nasce da mimesis, da necessidade do homem em expressar os seus sentimentos e necessidades, da imitação dos sons da natureza, de uma revelação, dos primórdios de atividades cognitivas ou de todas essas formas juntas? Qual a natureza e a realidade da palavra? Como fazer para transformar os signos em palavras? Como fazer para transformar as palavras em visões? Como fazer para celebrar aquilo que se dá sem negar aquilo que se escapa? Como fazer para converter a linguagem em um refúgio antes que em uma prisão, em um altar ou antes, em um cemitério?39 Como todas as coisas elevadas, a palavra, qualquer que seja ela, é impossível de ser definida em sua totalidade. O desenvolvimento da filologia e da etimologia a partir do século XVIII nos revelou isso de maneira menos poética. Podemos dizer que cada palavra é uma aproximação, um acercamento, por isso mesmo a poesia seria a forma mais alta, mais plena e mais intensa de comunicação e de relação entre os homens. Juarroz fala da necessidade de transcender o nome como veículo de designação das coisas. A poesia, a ciência e a filosofia não podem simplesmente nomear (na metáfora, na teoria ou no conceito) sem a percepção de que a palavra não só nomeia, mas também desnomeia. “Se a primeira etapa é nomear, a segunda é desnomear, 38 O desenvolvimento da ótica, sobretudo a partir de Galileu Galilei, propiciou um novo entendimento da metáfora. A partir do séc. XVI, os homens, paulatinamente, voltam os seus olhos do aparato técnico, com o qual media e catalogava o cosmos, para a razão, que passa, por sua vez, a tudo esquadrinhar. A noção de metáfora amplia-se. Já em Aristóteles, na Poética, ela é um aparato técnico que permite à língua acessar o conhecimento, a verdade, enxergar longas distâncias. Já a metáfora/luneta de Galileu é uma extensão de si mesmo, prótese do olhar. Ao longo da história, mediante a arte, a literatura e o cinema, a humanidade passou a se compreender cada vez mais a partir desta extensão. Para uma melhor compreensão da metáfora na comunicação ver: DRAVET, F. Para uma crítica da razão metafórica – mito, magia e poesia. Tese/Pós-Doutoramento. PPGCom/FAC, UnB, 2011. Ver também MAILLARD, C. La creación por la metáfora. Barcelona: Anthopos, 1992. 39 JUARROZ, R. Conferência apresentada na Biblioteca Nacional de Buenos Aires e depois publicada no periódico Bajo Palabra, Diário de Caracas, Venezuela, 9 de abril de 1995. (Consulta no www.comala.com/modelo/fragmetaciones)
  • 31. 31 poderíamos suspeitar que há outra função possível da palavra, uma terceira etapa que unicamente ocorre na poesia: seria uma espécie de transnomear. (...) Desbatizar o mundo, / sacrificar o nome das coisas / para ganhar sua presença.”40 . Nomear algo equivale a adquirir poder sobre essa coisa. Desnomear é desfazer o poder, capturando sua in-significância. Trasnomear é a ultrapassagem destes pólos com vistas à conquista de uma presença (Dasein). Na China, dava-se importância capital às denominações corretas. A ordem do mundo decorria disto. Lá, surge em 479-221 a.C. a Escola dos Nomes (Ming-jia), onde se acredita que conhecer algo, pronunciando corretamente o seu nome, é uma forma de exercer poder sobre a pessoa ou objeto nomeado. Esse poder está em absorver a força do objeto para si ou mesmo jogar sobre ele o que se queira jogar, positiva ou negativamente. Mas será que é possível esse poder? Conhecemos nas ciências o poder do conceito e das definições que, ao se associarem à ideia de verdade, tomam para si o critério do desvendamento da realidade. Temos dito tantas vezes41 que a comunicação, assim como as coisas importantes e decisivas da vida, não tem uma definição, como se diz agora, consensuada, aceitada, unitária. As coisas grandes não se podem definir. O dicionário é uma ajuda pragmática, operativa, que às vezes nos faz ver com um pouco mais de clareza algum detalhe. Mas todas as coisas importantes são praticamente indefiníveis. Incompletas, por terminar. “As letras igualam as estrelas: mesmo poucas são infinitas.”42 Letras e palavras são luminosidades/levezas a abrir a percepção na noite dos sentidos. Juarroz definiu a palavra em sua Decimocuarta poesia vertical (1996) como uma estrutura que está permanentemente de “olhos abertos”. Como a poesia, a palavra é uma forma de despertar; é uma forma de voltar a abrir os olhos do homem para a realidade, e fazê-lo participar do que todas as correntes da filosofia e da sabedoria disseram ao longo dos séculos, que não basta nascer uma vez, é preciso voltar a abrir os olhos; é preciso nascer de novo. Nascer de novo equivale a uma tomada de consciência por parte do sujeito. Para nascer, não basta ao homem o parto, é necessário nascer para si mesmo, autoconhecer- se. Juarroz entende assim a palavra como abertura: não se trata de falar, não se trata de 40 JUARROZ, R. Poesia y Creación. Buenos Aires: Ed. Carlos Lohlé, 1980, p.147. 41 Sobretudo em aulas, mas também aparece em CASTRO, G. Filosofia da Comunicação – Comunicologia. Brasília: Casa das Musas, 2005. 3ª Ed. 42 COUTO, Mia. Cronicando. Lisboa: Caminho, 1998.
  • 32. 32 calar, se trata de abrir algo entre a palavra e o silêncio. A palavra converte em presença todo o cosmo de objetos, sentimentos, ideias e seres. Mas a palavra também rompe e enclausura, porque ao se dizer algo, se deixa de dizer algo que poderia se dizer. Juarroz acredita que a poesia, por sua vez, possui em si uma tríplice ruptura: em primeiro lugar é ruptura com certa concepção de realidade, pois é uma abertura à visão de realidade e de mundo. A segunda ruptura é a da linguagem. Não se pode continuar usando noções gastas, pragmáticas, convencionais para expressar novas cosmovisões. A terceira ruptura é com o medo, o medo de abertura que a poesia provoca em nossa vida ao nos colocar desnudos diante de nós mesmos. Com todas as rupturas, a poesia é uma das formas de desenlaçar o homem das amarras da realidade material, do prestígio social, status quo, escalada profissional e financeira, padrões sociais, enfim, todas essas horizontalidades43 que o cercam e seduzem a uma vida prosaica. Enquanto a horizontalidade é prosaica, a verticalidade é poética.44 Mas isso não é tão simples assim. A relação entre prosa e poesia é bem mais complexa e intercambiada: a penetração de uma na outra vai além da imaginação. A poesia é uma das formas de verticalidade que o homem encontrou. Mas nem toda poesia é vertical assim como nem toda a palavra. A palavra da comunicação intersubjetiva, das trocas cotidianas, da comunicação diária, do jornalismo e até mesmo da poesia que não tem pretensões transcendentes, não possuem o primado da verticalidade. Ao contrário, a poesia de R. M. Rilke, a filosofia de Blaise Pascal e Gaston Bachelard, são exemplos de palavras que buscam senão unir imanência e transcendência, ao menos problematizá- las, valorizando sem dúvida a dimensão ascensional como marca distintiva do homem. O homem alça a palavra tentando ouvir o eco que, vindo dali, explique a ele o mundo e a si mesmo. O poeta, pois, mais do que ninguém, parece viver com as palavras um jogo tenso e obstinado entre o sentido e a comunicação, entre o ascendente e o descendente, entre a palavra-enigma e a palavra-revelação. E talvez seja justamente esse dinamismo da palavra o que transpõe sua função de comunicação usual, dando-lhe outra função, agora, como signo verbal de elevação. Uma tensão vertical eleva a palavra; outra força, vertical também, mas descendente, neutraliza (ou a nega) [...]; ou - ao menos - põe em evidência a 43 Nossos primeiros apontamentos sobre a horizontalidade e a verticalidade da palavra aparecem em DRAVET, F; CASTRO, G. (Orgs.) Sob o céu da cultura. Brasília: Casa das Musas/Thesaurus, 2006. 44 Sobre diferenças e semelhanças entre ‘vida poética’ e ‘vida prosaica’ ver: MORIN, Edgar. Amor, poesia e sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
  • 33. 33 incapacidade do instrumento verbal para manter essa delicada equidistância entre enigma e lucidez, onde o poeta se debate, e onde quer que se debata sua escritura. Dinamismo interior, fluxo constante e subterrâneo que se, por uma parte, define o movimento intelectual do escritor, descobre - por outra - a progressão fecundante da palavra mesma, alheia já às servidões dos significados.45 A palavra é dotada de força encantada porque toda a palavra é uma e-vocação e uma in-vocação. O que quer dizer que toda palavra é um chamamento. Quando e-voca o chamado é de fora, quando in-voca é de dentro. Em ambos os casos, a palavra sempre con-voca. Na raiz da palavra Vocação está a palavra vox, vocis, voz, isto é, chamamento. Quando alguém é chamado para exercer uma atividade, ele tem pela frente uma destinação e uma incerteza. Se falarmos aqui então de vocação vertical implica dizer que existe aí um chamado à poesia e ao incerto. O que não deixa de ser um serviço aos deuses e às Musas, esse chamado é, para o poeta, antes de tudo, uma condenação, um desafio. Por vocação vertical entendemos aquela vocação ao transcendente, que se apresenta em algum momento da vida com o objetivo de nos conduzir para o Aberto, nos dizeres de Hölderlin e Rilke, mas também para nós mesmos. Qual a vocação última do homem e a que ele está sendo chamado? O homem é chamado a ser totalmente ele mesmo na realização de todas as suas capacidades latentes. A própria natureza o convida à vida, o que pode ser entendido na poesia como um convite à elevação. Um dos significados da palavra Deus está no latim, dies, que significa “dia”, “luz”, “claridade”. A luz não é eminentemente aquilo que se vê, mas aquilo que permite ver. Deus não o vemos, não sabemos o que ele é, mas o vemos nas coisas que ele nos permite contemplar e abordar. Em um primeiro momento, somos chamados à vida, nossa mãe “dá a luz”, depois somos chamados a crescer e a caminhar, convidados a participar da natureza presente em todas as coisas, e a perceber a realidade e os seus níveis. Penso em duas hipóteses para explicar o chamamento humano à poesia. Primeiro, como chamado mesmo, segundo, como escolha. No primeiro modelo está o dom, a destinação; no segundo, está uma incerteza escolhida, um caminho a ser seguido por vontade própria. No primeiro, a ideia de “vontade própria” não parece definir o chamado poético. Ela não foi uma escolha consciente e autônoma; o homem foi 45 PADRÓN, Jorge Rodríguez. “La aventura poetica de Roberto Juarroz”. IN: Banda Hispânica, www.secrel.com.br/jpoesia/bhjuarroz2.htm
  • 34. 34 “arrastado” até aquilo, mesmo sem querer, tem para com aquilo uma missão e um compromisso. No segundo, ele escolheu livremente a jornada, assumindo os riscos e as implicações da escolha. Como saber se o chamado do poeta pertence ao primeiro ou ao segundo tipo? Há indícios, obviamente de um e outro modo, mas a dimensão do mistério da escolha perpassa ambos. Em toda vocação, assim como em toda discussão pela escolha das carreiras profissionais, existe uma dimensão de dom e uma dimensão de escolha, que podem unir-se, associando-se uma à outra, como uma perspectiva única. A pessoa pode ter o dom e não seguir aquele caminho, assim como pode segui-lo por escolha e vontade, sem estar amparada pelo dom. Mas se cogitarmos que todos os homens possuem intrinsecamente a dimensão ascensional, transcendente, então podemos supor que todos são chamados a algum tipo de exercício poético, seja na escritura, seja nas ações cotidianas, seja na visão de mundo, porque é toda a natureza que o chama. Não necessita fazer uma distinção entre “a voz de dentro”, a voz do interior da consciência e do coração e “a voz de fora”, a voz da escritura, do desejo de objetivar e de partilhar o universo das palavras. Quando não fazemos a distinção entre a “voz de fora” e a “voz de dentro” é porque acreditamos que a vocação poética reside no fato de que o chamado da arte é integral. O chamado poético pode advir da contemplação da linguagem, pois na natureza da palavra árvore, teoria, filete, água, riacho, chaleira, abóbora, conceito, plástico, águia, luminária, capitel, pneu, abraço, pitomba, penhasco, agulha, paradigma... existe, para o poeta, uma con-vocação. O chamado da palavra é um chamado ao religamento do objeto com o sentido, mesmo que aproximado, é uma forma de re-ligar todas as coisas: homem e deuses, natureza e palavra, coração e razão, ecologia e cultura, espiritualidade e ciência, filosofia e mitologia, religião e conhecimento. O chamado da palavra não imiscui a integralidade que envolve e define o próprio homem: natureza, razão, paixão, família, humanidade, tudo o con-voca (e-voca e in-voca) a participar, seja na imanência, seja na transcendência, da realidade e dos mistérios da verticalidade. Primeiro, a palavra poética. Para Sócrates, via Platão (Fedro46 ) essa palavra é Mania, delírio, possessão, inspiração, audiência com níveis diversos. A nosso ver, a mais arriscada das aproximações é da comunicação com a mística. Tida como conhecimento ascensional, por vezes inacessível por ser uma experiência particular, 46 PLATÃO. Fedro. Lisboa: Ed. 70/Brasil, 2009.
  • 35. 35 própria a cada ser humano, a mística não possui definição uníssona. Compete a cada homem sentir na intimidade a força do sagrado, que Hölderlin chamou de Aberto47 . A primeira grande dificuldade em compreender a mística está portanto no fato dela não poder ser experimentada coletivamente, como a comunicação e a poesia. Alega-se que a verdadeira experiência mística ocorre subjetivamente. A segunda grande dificuldade está na ideia equivocada de que o caminho místico passa necessariamente por uma religião. A religião trata de sistemas articulados de crenças, práticas rituais e explicação do mundo, os quais podem se manifestar nos casos mais fechados, sob o formato de dogmas ou, nos mais abertos, nas representações coletivas; enquanto a espiritualidade é o modo que um determinado indivíduo internaliza, absorve e desenvolve, de maneira idiossincrática, aquele caminho particular ou modelo de união (ou de re-ligação, se queremos recordar a origem do termo) proposto pela religião à qual se adere. Assim, espiritualidade implica em uma dimensão de subjetividade trabalhada, de experiência religiosa que pode inclusive transcender a norma ou a expectativa formal da comunidade de adeptos. De um modo similar ao mundo da arte, a espiritualidade é sempre algo que se realiza na singularidade.48 Podemos dizer que, historicamente, o místico – muitas vezes sem querer – tende a restabelecer as condições de uma nova concepção de vida dentro da comunidade em que vive, criando uma comunidade à margem do Estado. Conventos, associações de anacoretas, ordens religiosas, congregações e sociedades espiritualistas nascem muitas vezes motivadas por este espírito inicial de retomada da tradição. Essas comunidades surgem quase sempre num momento de esgotamento dos valores humanos e espirituais. Devemos ter em mente que falar de comunicação, poesia e mística como gêneses da busca vertical humana, implica falar que o estado místico é uma norma intrínseca ao homem, pertença ele a que cultura, credo, raça ou tempo histórico pertencer. Assim sendo, a dimensão encantada é um componente antropológico essencial, um signo da universalidade do homem, queira ele ou não. Para Elémire Zolla49 o conhecimento encantado, notadamente o místico, é uma forma de regresso à unidade, ao Uno. Enquanto no Ocidente a busca pelo Uno muitas vezes ocorre pela via da experiência, seja ela intelectual ou vivida, no Oriente a busca passa pela concepção ou 47 Não exageramos ao dizer que F. Holderlin foi o primeiro poeta a pensar o Aberto. Heidegger observa e trabalha isto no livro dedicado ao poeta. HEIDEGGER, M. Hinos de Holderlin. Lisboa: Instituto Piaget, 2004. Ver também PAU, Antonio. Holderlin – El rayo envuelto em canción. Madrid: Trotta, 2008. 48 CARVALHO, José Jorge de. El misticismo de los espiritus marginales. Conferência. Universidade do México, 2000. 49 ZOLLA, Elémire. Los místicos de occidente. Vol. I. Barcelona: Paidós, 2000.
  • 36. 36 formulação de um Nada ou Vazio que deve ser meditado, sentido, cogitado. No Ocidente, por exemplo, é raro encontrar um místico como João da Cruz que instaura uma linguagem hermética para racionalizar a natureza não compreensível da experiência mística. Enquanto a religião tenta reger o homem a partir de dogmas exteriores, a espiritualidade vai buscar no interior da alma humana os componentes de auto- conhecimento e graça. A noção de abismo representa o interior da alma humana e em todas as cosmogonias, os abismos simbolizam a evolução universal, o Ser que devora os seres para depois vomitá-los, renovados. Mundo das profundezas e das alturas indefinidas, o abismo é a grande mãe ctoniana, é o arquétipo da mãe amante e terrível, do caos gerador, da pessoa que se decompõe e dos estados indeterminados da existência. Por natureza, é um estado místico. Não no sentido dereístico, afastado do real, mas no sentido de superação do real aparente. O abismo da alma é a integração suprema da união mística com o cosmo. O místico não se situa por isso fora do real, já que tal estado se apresenta como uma força de estabelecimento do próprio real, mas se situa como campo singular de orientação da vida, como encarnação do cosmo. Por muito tempo, o estado encantado foi tido como essencialmente pré-lógico. O adjetivo “encantado” representava um estado que não aderia ao regime da razão esclarecida, algo que não poderia ser elucidado intelectualmente. Assim como o mito, o encanto se aproximaria apenas do conhecimento discursivo e representacional. Hoje sabemos que o principal da experiência encantada não se narra porque envolve um conteúdo subjetivo, emocional, sensível, afecção por demais pessoal para ser alcançada pela razão ou pela palavra. Há na experiência encantada, um traspassamento poético porque é o logos ampliado, mais-do-que-racional, o que domina ali, por isso não necessita de palavra. O encantado pode ser entendido como um estado numinoso de abertura, de presença do incondicionado e de certas contingências aladas. Assim como se diz que o sábio é aquele a quem falta a sabedoria, assim o encantado é aquele a quem falta a completude das deidades, talvez porque sua teologia seja selvagem, numinosa demais; uma existência plena de instantes de buscas. III Ex-sistir é uma secessão, implica apartar-se de algo, separar. É necessário lembrar que as palavras “místico” e “mistério” vêm do verbo grego muein que significa
  • 37. 37 “calar-se”, fechar a boca e os olhos diante do que só pode ser expresso pelo silêncio. “Eu gostaria de não falar”, disse certa vez Confúcio aos seus discípulos.50 Mas como é possível a um mestre não falar? O seu dever não é ensinar, exortar, proferir? Em certo sentido, para Confúcio, as palavras interrompem o fluxo silencioso das coisas, criam obstáculos e, de certo modo, são desnecessárias porque a lógica da auto-regulação do cosmo tudo provê e comunica. Ao tomar o mundo por objeto, a palavra mantém (ou deveria manter) com o mundo uma relação de transcendência, falando do mundo e constituindo-o como objeto a ser pensado, meditado, dito. Para Confúcio é no silêncio que tudo se realiza. Ele aspira a não falar em demasia, não porque veja a palavra como desnecessária, mas porque entende que ela é usada de forma errônea e em excesso. Enquanto a filosofia “fala”, a sabedoria “cala” ou fala o menos possível. O místico então usa tanto o silêncio como a palavra no sentido ascensional. Algo que caracteriza tanto os místicos quanto os poetas é justamente a repetição, o rito das palavras, a capacidade de dizer o essencial e fazer desse essencial o elemento de graça e reencantamento da vida. A mística e a poesia são mais do que repetições, são estruturas e hábitos que agregam determinadas forças. A lembrança, a memória, a reativação de determinados campos magnéticos, emocionais e inconscientes podem ser despertos pelo rito essencial presente na poesia e na mística. Em uma civilização que já não é unânime da importância da experiência iniciática, o rito e a repetição representam um retorno, um reavivamento, uma recordação involuntária de uma realidade sepultada. É o regresso a um estado de ânimo arcaico, despreocupado com o acúmulo de riquezas e o prestígio social. Na antropologia, é clássica a constatação crítica de que a separação do homem da natureza, através da exploração desenfreada da Terra foi uma tentativa de subjugá-la, dominando-a. Tal tentativa afastou o homem ainda mais desses ritos de reencantamento da vida. Ao explorar a natureza o homem quis não apenas subjugá-la mas também conhecer todos os seus segredos. Assim, separou os conhecimentos em disciplinas para melhor compreender. A medicina ‘esquartejou’ os seres em partes que se tornaram especialidades médicas deixando de vê-los em sua complexidade; a biologia mergulhou para o microcosmo celular, fazendo a Vida parecer regulada pelo determinismo genético; a química por sua vez esqueceu-se da alquimia; a filosofia encastelou-se nos 50 JULLIEN, François. Um sábio não tem ideia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
  • 38. 38 departamentos universitários, a antropologia limitou o homem à cultura e assim por diante. Ao tentar desvendar todos os conhecimentos da natureza, o homem moderno parece ter deixado o encantamento de lado como expressão do conhecimento não útil ao conhecimento, mas também por ser uma noção difícil de ser objetivada e verificada ou por propor a noção de enigma, segredo, cifra, código como condição de acesso ao saber. Isso desconcertou cientistas e pensadores pelo crivo paradoxal e por séculos vem sendo deixado de lado. No sânscrito, mística é mus e remete ao que é secreto, o que está escondido. Escutar o que é secreto e o que está escondido em nós e fora de nós; escutar o silêncio do que é expresso nos momentos numinosos pode nos levar a participar do mistério e do conhecimento presente na natureza. De fato fascina o silêncio dos espaços amplos: abismos, vales, pampas, desertos, oceanos, praias, assim como assusta o interior da alma humana e o que ela é capaz de promover contra a Terra e o próprio homem. Às vezes, sentimo-nos fascinados por esse não-sei-quê que a mística aponta em sua amplidão, ao passo que também somos atraídos por ela. Leonardo Boff51 diz que a mística é mergulho, profundidade. É uma profundidade que nos deixa por vezes com a respiração suspensa, pois sentimos nos espaços vazios, íntimos e silenciosos a força do Aberto querendo falar. São silêncios variados. Silêncios que curam, que confortam, que subsidiam o pensar, que expressam diálogos entre a luz e as trevas, o bem e o mal, o justo e o injusto, na busca de superar ou avançar na separação dos opostos. A chave dos caminhos não a encontramos em suas bifurcações, encontramo-la na natureza que reúne esses opostos, não como soma ou mistura, mas como um terceiro termo, um caminho mediano, alquímico. A alquimia é a conjunção de princípios senão opostos, diversos, seja nos estados sólidos, seja nos instantes efêmeros. A alquimia dos estados d’alma interessa aos seres de poesia. Ao preparar um alimento, podemos encontrar o bem-estar de nossa própria companhia; ao acompanhar o vôo de um pássaro, podemos encontrar uma flor caída num galho de árvore; ao aceitar o exílio, podemos encontrar o amor; ao fotografar os abismos, podemos encontrar o homem; ao caminhar adiante, podemos rever as estradas já percorridas e ao investigar a transcendência, podemos encontrar um pouco de nós mesmos. 51 Cf. BOFF, Leonardo; Frei Betto. Mística e Espiritualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
  • 39. 39 O olhar místico é um olhar silencioso, muitas vezes voltado para dentro, abismado pelo tamanho das nossas fendas, um lugar oceânico, tão amplo e espaçoso que cabem dentro dele inúmeros desertos, diversos oásis, vastos mananciais. O filósofo e poeta William James52 classificou a experiência mística através de quatro marcas distintas: transitoriedade, passividade, qualidade noética e inefabilidade. A transitoriedade corresponde aos chamados instantes luminosos, nada parecido com o que os japoneses chamam de satori53 , no entanto, essa transitoriedade são despertares repentinos provocados por um acontecimento. A passividade está ligada à quietude. É a busca calma e meditativa por estados iluminados da alma. A qualidade noética se aproxima da capacidade de acessar a divindade ou atingir o êxtase religioso através da racionalização, comunicação, elucidação e visualização clara dos aspectos elevados. A inefabilidade é o mergulho irrestrito nos mistérios, deixando-se tomar integralmente por eles. As diferentes formas de falar da mística revelam a dificuldade mesmo em acessar o seu conhecimento. Já na Grécia antiga a experiência mística é plural e rica. O local da experiência do sagrado não é o silêncio do recolhimento introspectivo, mas a luz da realidade diurna. A sabedoria não se transmite à reflexão solitária e isolada, mas é experimentada na conversa e no diálogo. Em Hesíodo54 (séc. VIII a. C.) percebemos que é o poeta quem se recolhe em solidão para meditar e ouvir o que as Musas têm a lhe mostrar da realidade superior. A poesia encerra em si o mundo verdadeiro, exceto para Platão e Sócrates para quem a busca do mundo verdadeiro é racional e dialogal. O neoplatonismo de Plotino, no entanto, deu grande importância ao recolhimento, mas, de forma geral, a mística era algo de que não se falava. Preceitos de silêncio eram fortíssimos na filosofia pitagórica, mas de forma geral o pensamento helênico buscava pela palavra e pela imagem, isto é, pela comunicação e pela visualização, o conhecimento dos mistérios. Além de myein = silenciar sobre algo, os gregos tinham também a palavra enthusiamós = entusiasmo para explicar o êxtase e a possessão divina em que a pessoa e os deuses se uniam através do enebriamento. São muitos os casos em que a relação do conhecimento encantado funde-se à palavra, à poesia e ao texto escrito. A palavra aqui 52 Cf. HONDERICH, Ted. Enciclopedia Oxford de Filosofia. Madrid: Tecnos, 2001. 53 Termo japonês para iluminação. A palavra significa “compreensão”. É tratada às vezes como “acordar”, ou “primeira percepção”. Pode ser ainda a “verdadeira natureza”. É um estado de visão clara, profunda e duradoura. 54 HESÍODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2006.
  • 40. 40 pressupõe um recurso mágico/teúrgico para a “ascensão”. No idioma hebraico, por exemplo, que tinha como pressuposto a ideia de que nele fora escrita a história da criação, atribuem-se efeitos ditos sobrenaturais às letras, números e nomes, o que fez desenvolver particularmente a Gematria, ciência cabalística que estuda o conhecimento dos valores numéricos relativos aos nomes. A mais ampla utilização desse método de conhecimento desenvolveu-se na Europa Central através do Hassidismo achquenásico (séc. XIII-XIV). Quanto mais populares esses métodos se tornaram mais estreita a crença na sua relação com o feitiço. A base desse feitiço estaria na correlação entre língua e texto. A este respeito, Juarroz conta em seu livro Poesia e realidade (2009)55 uma história que ilustra bem essa relação da palavra com a mística hassídica. Quando o grande rabino Israel Baal Shem-Tov acreditava que se tramava uma desgraça contra o povo judeu, tinha por costume ir concentrar seu espírito em um certo lugar do bosque; ali, acendia uma fogueira, recitava certas orações e o milagre se cumpria: a desgraça era rechaçada. Mais adiante, quando seu discípulo, o célebre Maguid de Mezeritsch tinha que implorar aos céus pelas mesmas razões, acorria àquele mesmo lugar do bosque e dizia: “Senhor do Universo, escuta-me. Não sei como acender o fogo, mas sou capaz de recitar a oração”. E o milagre se cumpria. Mais adiante, o rabino Moshe-Leib de Sassov, para salvar a seu povo ia também ao bosque e dizia: “Não sei como acender o fogo, não conheço a oração, mas posso situar-me no lugar propício e isto deverá ser suficiente”. E isto era suficiente: também, então, o milagre se cumpria. Depois, coube a seu turno ao rabino Israel de Rizzin afastar a ameaça. Sentado em sua casa, tomava a cabeça entre as mãos e falava assim a Deus: “Sou incapaz de acender o fogo, não conheço a oração, nem sequer posso encontrar o lugar do bosque. Tudo o que sei é contar essa história. E isto deveria bastar”. E isso bastava. Deus criou ao homem porque gosta de histórias.56 As narrativas têm vocação à verticalidade e às dimensões ascensionais. Não fosse isso não estariam tão intimamente ligadas ao conhecimento espiritual. Encontramos no cristianismo duas formas místicas básicas: a comunhão ou a participação no mistério e a oração proferida repetidamente como o terço e o rosário. A concentração sobre a palavra pela repetição da oração é semelhante à mantras. O que importa não é a concentração sobre cada palavra, mas o estado de devoção narrativa, entrega ao dito e força de vontade. Por outro lado, a tendência para a contemplação sem 55 JUARROZ, Roberto. Poesia e Realidade. Trad. Florence Dravet e Gustavo de Castrto. Brasília: Casa das Musas, 2009. 56 Idem, p. 10.