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Daniel
Gabriela gostava de entrar na sala e ficar uns instantes na soleira
da porta, olhando as carteiras alinhadas e vazias, a secretária
juncada de flores, os quadros negros cuidadosamente limpos, o
crucifixo brilhante com aquele Cristo sempre na mesma posição
serena e tensa, como quem espera libertação ou conforto... Os olhos
prendiam-se-lhe nele um momento, numa prece muda e
interrogativa, e depois iam até às janelas sem cortinas, abertas sobre
a planura doirada, por onde entravam, ao desafio, os raios do Sol e
os gritos alegres das crianças saudando as borboletas. Gabriela
gostava de identificar esses gritos: - João... Pedro... Rui... Jorge...
Tantos gritos! Tantos nomes!
Era tão doce ouvir os miúdos gritar, correr, dizer ao Sol que os
queimasse, que lhes doirasse os rostos e ao vento que guiasse os
papagaios de papel!...
Era tão divertido espreitá-los, da janela, e observá-los nas
brincadeiras, sem que eles notassem!...
Era tão... Era tão maravilhoso viver!...
- Minha Senhora! Está aqui um que vem de novo...
Voltou-se. Sentiu a porta deslizar atrás dela impelida pela
corrente de ar e ficou de braço estendido a trancá-la. Depois,
olhou...
Um grupo de crianças traziam-lhe mais um aluno. Foi para ele de
sorriso nos lábios; mas subitamente, parou muito pálida, quase
transfigurada. Na confusão de corpos e de braços, não tinha visto
senão um rosto branco, emoldurado de caracóis negros, onde
brilhavam os olhos mais estranhos e belos que nunca lhe tinha sido
dado a conhecer em toda a sua vida. Rosto duma beleza
impressionante, duma serenidade mística, duma placidez dolorosa.
A criança fitava-a, deixando transparecer no olhar encarnado um
misto de receio e animosidade... Gabriela quis caminhar, quis
estender os braços e erguer o pequeno até ela, quis perguntar-lhe o
nome, a idade, afagar-lhe as faces expressivas e apertar-lhe as mãos
pequeninas, mas não conseguiu mais do que esboçar um gesto de
silêncio em direção do grupo barulhento. A criança que os outros
arrastavam, gritando, movia-se a custo, balouçando o corpo dum
lado para o outro, numa ligeireza espantosa para tão limitados
recursos de deslocação: tinha uma perna de pau.
......................................................................................................
Silêncio morno. Cabeças que se inclinam num gesto de espreitar
para todos os lados... Lá fora os campos repousam num arraial de
luz ardente. A planura torna-se extensa, a perder de vista, e parece
implorar ao Céu uma gota de frescura. Maio vai em meio. Dos lados
do trevo em flor, vem o grito estrídulo dum grilo... As crianças
inclinam-se mais sobre as lousas, escondendo um sorriso de
deslumbramento.
Os olhos de Gabriela, luminosos e serenos, vão de fila em fila,
espreitando também... Param um instante num lugar vago da
quarta fila e tornam-se inquietos... Lentamente, ergue o braço
direito e pergunta:
- Quem falta...
As crianças respondem em coro:
É... É o «manco»... O Daniel «manco»!...
Gabriela fica séria. Aperta as mãos com força... Irá ralhar? Aquele
gesto de erguer a cabeça significa inconformidade... No entanto, as
crianças nunca saberão o esforço enorme que a professora acaba de
fazer para não perder a habitual serenidade... Anda uns metros em
direção ao quadro, e depois volta-se para a classe. A voz sai-lhe
pausada e firme, um tudo nada arrastada:
- Meus filhos: vou pedir-vos uma coisa. Não chamem «manco»
ao Daniel. É feio. É uma falta de Caridade...
As crianças parecem escutar, de rostos erguidos e olhos abertos.
Mas... não compreendem... Sim. Não chamarão mais, porque a
Senhora pede... A Senhora manda... Mas... os grandes também
chamam... Até a madrasta do Daniel chama!... Até já disse que lhe
havia de marcar a outra perna!!!...
Aos poucos, o barulho de vozes cessa. A lição prossegue. Gabriela
agita-se e não sorri. O grilo escondido no trevo em flor, junto à
janela, mesmo ao pé da secretária, continua a cantar... Pelas janelas,
espalhando perfumes da terra florida, a brisa penetra a medo...
Soa a hora da saída. Quando os pequenos correm, caminhos fora,
Gabriela fica encostada à secretária, de olhar fito na cadeira vazia o
dia todo... Daniel... Estranho miúdo!... Depois do primeiro dia,
vencida aquela timidez quase exasperante, o pequeno parecia ter-se
adaptado ao ambiente... Quantas vezes, tem de ficar junto dele, todo
o recreio, tentando uma conversa que a ajude a descobrir a causa
daquele olhar parado!... Ela sabe que os outros fogem de Daniel.
Para eles, Daniel é um inválido que nem para brincar serve.
Gabriela compreende... Ela mesmo. Sim. É horrível aquele toc...
toc... toc... da perna, batendo no soalho... Quando o veem entrar as
crianças seguem-lhe os movimentos dolorosamente inarticulados...
Ela, para não ver, vira o rosto. Se as crianças a vissem chorar, que
diriam?... Tem de reagir. A ideia de procurar Daniel desperta-a. O
Circo ergue-se do lado de lá da aldeia... Bate a porta e sai resoluta.
Cantam os pássaros na sebe. Sol alto. Para lá da enseada, os
moinhos gemem. Vida. Calor. No ar uma luminosidade que magoa
os olhos. Na curva do caminho, para escutando. A medo, queda-se...
Por detrás do silvado, num eido deserto, a voz de Daniel, cheia de
lágrimas, ergue-se no silêncio quente da tarde luminosa... Gabriela,
ajoelhada na terra poeirenta, escuta:
- Não... Nunca mais vou à Escola... Ontem chamaram-me
«manco»... Ninguém gosta de mim! Os outros podem saltar atrás
das borboletas... Os outros podem correr... Eu não. Eu... ep... tenho
uma perna de pau!... Ó minha Mãezinha eu não quero andar mais
por aqui... O pai já não é tão bom como era... Levou para a nossa
tenda uma mulher muito feia e muito má! Batem-me... Passo fome e
frio, no inverno... Andamos de terra em terra com o Circo, mas já
ninguém se ri com as habilidades da nossa burrinha branca... O que
me custa mais é acertar com a minha perna de pau, quando o pai
toca pelas feiras... E, se me engano, a tal mulher grita-me: -«Eh,
Manco, que nem para bater com as pernas serves!...» Então, o povo
bate palmas e ri muito. Eu sei que não sirvo para nada, mas não
tenho culpa nenhuma... Agora, nesta terra, o pai obriga-me a ir à
Escola... Quem me dera saber onde fica o céu! Quando vejo passar
as borboletas e as andorinhas, lá muito alto, apetece-me correr atrás
delas e dizer-lhes: - «Eu sou o Daniel! Eu sou o Daniel! Levai-me...
Levai-me... Levai-me...» Mas, elas não ouvem... Não posso correr! A
minha perna faz só: toc... toc... toc... Disseram-me na escola, que
ando tão depressa como um caracol... Noutro dia, no moinho, vi cair
um passarinho na água, e não pude salvá-lo! Sentei-me no chão e
um bichinho veio pousar em cima da minha perna... Fiquei tão
quietinho que até adormeci. Quando acordei, tinha fugido... Tive
tanta pena! Não... não vou mais à Escola, porque me chamam
«manco» e ninguém gosta de mim... Quem me dera morrer! Quem
me dera morrer!
Gabriela inclina-se toda sobre o lado de onde vem o apelo
angustioso de Daniel. A criança, de olhos no espaço, não chora. Um
riso amargo marca-lhe o rosto... Ele hesita. Depois...
O pequeno ergue-se, custosamente, estremecendo. Brilham-lhe
os olhos. A emoção ruboriza-o. Reconhecendo-a, solta um grito e
dobra-se todo até ao chão. Gabriela ouve-o murmurar: «Ela vai...».
Docemente, senta-se ao lado do petiz e espera uma reação
amarga, talvez. Daniel ergue o rosto e olha-a com receio. Numa
vozita insegura, onde se adivinha a cólera dum futuro homem,
pergunta:
- A Senhora ouviu?
Gabriela sorri-lhe, acenando com a cabeça. Depois, fala-lhe numa
linguagem que mal conhece. Daniel escuta-a de olhos bem abertos.
A sua mãozinha morena repousa na tosca perna de pau... No ar, as
borboletas voltejam. O Céu é mais azul, mais extenso. A tarde desce.
A terra enche-se de cânticos e, na planura, as nuvens desenham
sombras desmaiadas.
À noite, na barraca do Circo, Daniel adormece. As estrelas, que
espreitam por uma nesga do telhado, ouvem-no dizer, de olhos
brilhantes: - Podem chamar-me Daniel «manco»... Não me
importo! A Senhora gosta da minha perna de pau!
Um dia posso ser como os outros... Era tão mau, se eu não
tivesse a outra... Que me importa?...».
Ao lado da enxerga, a sua feia perna de pau descansa serena como
uma sentinela.
......................................................................................................
Romance perfeito é a vida de todos os dias. Rolam, deslizam os
tempos numa dança ligeira. Almas que se transformam... Vidas que
se erguem do nada... Recordações que permanecem... Daniel
cresceu. Deixou o pai, a madrasta, a barraca de Circo, as tardes de
espetáculo nas feiras, e foi à procura de novos horizontes. Correu
cidades. Já não é mais o menino da perna de pau, que arrastava
pelos bancos da Escola um rosário de amarguras.
Fez-se homem. Quem o vê, assim, imóvel, muito direito, alto e
espadaúdo, não acredita que a perna esquerda seja apenas um toco
disforme... Aprendeu até a caminhar com certa elegância... O seu
defeito físico não lhe pesa. Foi precisamente ele que chamou à
atenção daquela alma boa que o ajudou a subir, a vencer-se, a
encontrar na vida um lugar honroso. A Arte foi a descoberta
radiosa. Daniel aprendeu a esculpir no gesso crianças e mulheres,
de pernas harmoniosas e perfeitas. Por vezes, a lembrança dos dias
menos felizes vem até ele. A barraca do Circo... As tardes de torreira
pelas feiras... Tudo é doloroso de recordar... No entanto, entre os
dias sombrios da meninice, os meses de Escola, naquela aldeia
perdida na planície, são raios de Sol na sua memória. João...
Pedro... Rui... Nomes que não esquece. Lembrar-se-ão dele? E a
Senhora? Teria morrido? No fundo sente uma pontinha de remorso
por ter desaparecido, durante as férias, sem lhe dizer nada... Não
tinha culpa. Se não tivesse ido naquela noite com os palhaços à
cidade, nunca poderia ter abandonado a barraca de propósito... A
ideia da fuga tomara vulto na altura em que o deixaram à porta da
feira mendigando por conta do palhaço mais velho. Coisas velhas!
Coisas que não morrem!
Caminha vagarosamente, meditando, indiferente à chuva que
fustiga o rosto. Pois... irá à aldeia. Se está tão pertinho... Um salto
de autocarro. Pelo caminho, a paisagem torna-se sombria. O
inverno fez estragos. Dos lados da serra, deslocam-se pesadas
nuvens. O caudal do rio que serpenteia na berma da estrada
assusta. Além, o povoado surge cinzento e húmido. Daniel desce do
autocarro e embrenha-se pelos caminhos, à procura de rostos
conhecidos. Adiante a Escola... o silvado... o moinho... Para para
enxugar o rosto molhado da chuva. Sorri. Sabe-lhe bem aquela
chuva fria. Recorda-lhe as borboletas... as flores... Volta a ser o
menino da D. Gabriela!
Nisto, subitamente, do lado da represa, um grito ecoa nos ares
como o brado de uma pessoa ferida. Estremece. No fundo dele
próprio, tem ainda um não sei quê parecido com indecisão, fruto da
sua invalidez aparente. Recorda, de repente, o passarinho morto...
porque não pudera salvá-lo. Então... tenta correr. Tropeça, mas
equilibra-se imediatamente. O corpo balouça-lhe rapidamente como
se dançasse. Recua ao tempo em que era para todos o Daniel
«manco». Chega por fim. Mas... que vê? Um pouco abaixo, junto à
represa, um vulto escuro luta desesperadamente com a água
lamacenta. Faz subir no ar um grito de socorro, mas só o eco lhe
responde. Então, deixa-se resvalar pela encosta, corpo colado à
terra húmida, procurando um processo rápido de fazer quedar o
corpo que luta com a lama. Num instante, todo o corpo se lhe crispa
numa dolorosa ansiedade. Só mais uns metros... Num esforço,
levanta o rosto e clama novamente por socorro. O vulto escuro
parece prestes a soçobrar... Com um pau seguraria a taipa da
represa quase a rebentar. Ergue-se um pouco. No chão, apenas
seixos. Senta-se novamente e deixa-se levar pelo terreno
escorregadio. Solta um brado ao vulto indiferente já ao restolhar da
água e, num movimento rápido, estende um braço aos ramos dum
salgueiro próximo. Com o outro braço, num esforço que faz ranger
dolorosamente todos os seus músculos, apanha de fugida pelos
vestidos o vulto abandonado à corrente. A perna sã fincada na terra
mole é um esteio seguro. Frente à represa, a sua perna de pau
sustem a taipa quase a desmantelar-se. Surgem crianças e homens
gritando. Uma alegria selvagem estontece-o. Quando o içam e com
ele a carga humana salva milagrosamente, Daniel cai no meio do
caminho, molhado até aos ossos, o rosto sujo, a perna válida
sangrando, soluçar como uma criança:
- «Salvei a Senhora... Com a minha perna de pau, salvei a
Senhora!...».
.................................................................
Gabriela ainda gosta de entrar na sala e ficar uns momentos na
soleira da porta... Sabe sorrir à pequenada como outrora, e, quando
lhe falam que vai ter um novo aluno, corre ligeira a despeito da
idade, à espera de ver surgir, no meio da confusão de cabeças e
corpos, um rosto branco com olhos estranhos e belos. Impossível! O
Daniel casou há tão poucos anos!... Quase a seguir ao acidente da
represa… Que alma a do Daniel! Duas lágrimas teimosas espreitam
nos olhos dela. Recorda aquela tarde quente de maio, quando o foi
encontrar no silvado, a falar de olhos no Céu:
- Chamam-me «manco»... Dizem que corro tanto como um
caracol... As borboletas... Os pássaros... Quem me dera ir com eles!
Nessa altura, o Daniel era já um pequeno artista - pensa Gabriela.
E recorda, de novo, o apelo angustioso: -«Eu sou o Daniel... Eu sou
o Daniel... Levai-me... Levai-me...».
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973, p. 121-126.
Data da conclusão da edição no blogue – 19 de agosto de 2013
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

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A Professora e o Menino Manco

  • 1. Daniel Gabriela gostava de entrar na sala e ficar uns instantes na soleira da porta, olhando as carteiras alinhadas e vazias, a secretária juncada de flores, os quadros negros cuidadosamente limpos, o crucifixo brilhante com aquele Cristo sempre na mesma posição serena e tensa, como quem espera libertação ou conforto... Os olhos prendiam-se-lhe nele um momento, numa prece muda e interrogativa, e depois iam até às janelas sem cortinas, abertas sobre a planura doirada, por onde entravam, ao desafio, os raios do Sol e os gritos alegres das crianças saudando as borboletas. Gabriela gostava de identificar esses gritos: - João... Pedro... Rui... Jorge... Tantos gritos! Tantos nomes! Era tão doce ouvir os miúdos gritar, correr, dizer ao Sol que os queimasse, que lhes doirasse os rostos e ao vento que guiasse os papagaios de papel!... Era tão divertido espreitá-los, da janela, e observá-los nas brincadeiras, sem que eles notassem!... Era tão... Era tão maravilhoso viver!... - Minha Senhora! Está aqui um que vem de novo... Voltou-se. Sentiu a porta deslizar atrás dela impelida pela corrente de ar e ficou de braço estendido a trancá-la. Depois, olhou... Um grupo de crianças traziam-lhe mais um aluno. Foi para ele de sorriso nos lábios; mas subitamente, parou muito pálida, quase transfigurada. Na confusão de corpos e de braços, não tinha visto senão um rosto branco, emoldurado de caracóis negros, onde brilhavam os olhos mais estranhos e belos que nunca lhe tinha sido dado a conhecer em toda a sua vida. Rosto duma beleza impressionante, duma serenidade mística, duma placidez dolorosa. A criança fitava-a, deixando transparecer no olhar encarnado um misto de receio e animosidade... Gabriela quis caminhar, quis estender os braços e erguer o pequeno até ela, quis perguntar-lhe o nome, a idade, afagar-lhe as faces expressivas e apertar-lhe as mãos pequeninas, mas não conseguiu mais do que esboçar um gesto de silêncio em direção do grupo barulhento. A criança que os outros arrastavam, gritando, movia-se a custo, balouçando o corpo dum lado para o outro, numa ligeireza espantosa para tão limitados recursos de deslocação: tinha uma perna de pau.
  • 2. ...................................................................................................... Silêncio morno. Cabeças que se inclinam num gesto de espreitar para todos os lados... Lá fora os campos repousam num arraial de luz ardente. A planura torna-se extensa, a perder de vista, e parece implorar ao Céu uma gota de frescura. Maio vai em meio. Dos lados do trevo em flor, vem o grito estrídulo dum grilo... As crianças inclinam-se mais sobre as lousas, escondendo um sorriso de deslumbramento. Os olhos de Gabriela, luminosos e serenos, vão de fila em fila, espreitando também... Param um instante num lugar vago da quarta fila e tornam-se inquietos... Lentamente, ergue o braço direito e pergunta: - Quem falta... As crianças respondem em coro: É... É o «manco»... O Daniel «manco»!... Gabriela fica séria. Aperta as mãos com força... Irá ralhar? Aquele gesto de erguer a cabeça significa inconformidade... No entanto, as crianças nunca saberão o esforço enorme que a professora acaba de fazer para não perder a habitual serenidade... Anda uns metros em direção ao quadro, e depois volta-se para a classe. A voz sai-lhe pausada e firme, um tudo nada arrastada: - Meus filhos: vou pedir-vos uma coisa. Não chamem «manco» ao Daniel. É feio. É uma falta de Caridade... As crianças parecem escutar, de rostos erguidos e olhos abertos. Mas... não compreendem... Sim. Não chamarão mais, porque a Senhora pede... A Senhora manda... Mas... os grandes também chamam... Até a madrasta do Daniel chama!... Até já disse que lhe havia de marcar a outra perna!!!... Aos poucos, o barulho de vozes cessa. A lição prossegue. Gabriela agita-se e não sorri. O grilo escondido no trevo em flor, junto à janela, mesmo ao pé da secretária, continua a cantar... Pelas janelas, espalhando perfumes da terra florida, a brisa penetra a medo... Soa a hora da saída. Quando os pequenos correm, caminhos fora, Gabriela fica encostada à secretária, de olhar fito na cadeira vazia o dia todo... Daniel... Estranho miúdo!... Depois do primeiro dia, vencida aquela timidez quase exasperante, o pequeno parecia ter-se adaptado ao ambiente... Quantas vezes, tem de ficar junto dele, todo o recreio, tentando uma conversa que a ajude a descobrir a causa daquele olhar parado!... Ela sabe que os outros fogem de Daniel. Para eles, Daniel é um inválido que nem para brincar serve.
  • 3. Gabriela compreende... Ela mesmo. Sim. É horrível aquele toc... toc... toc... da perna, batendo no soalho... Quando o veem entrar as crianças seguem-lhe os movimentos dolorosamente inarticulados... Ela, para não ver, vira o rosto. Se as crianças a vissem chorar, que diriam?... Tem de reagir. A ideia de procurar Daniel desperta-a. O Circo ergue-se do lado de lá da aldeia... Bate a porta e sai resoluta. Cantam os pássaros na sebe. Sol alto. Para lá da enseada, os moinhos gemem. Vida. Calor. No ar uma luminosidade que magoa os olhos. Na curva do caminho, para escutando. A medo, queda-se... Por detrás do silvado, num eido deserto, a voz de Daniel, cheia de lágrimas, ergue-se no silêncio quente da tarde luminosa... Gabriela, ajoelhada na terra poeirenta, escuta: - Não... Nunca mais vou à Escola... Ontem chamaram-me «manco»... Ninguém gosta de mim! Os outros podem saltar atrás das borboletas... Os outros podem correr... Eu não. Eu... ep... tenho uma perna de pau!... Ó minha Mãezinha eu não quero andar mais por aqui... O pai já não é tão bom como era... Levou para a nossa tenda uma mulher muito feia e muito má! Batem-me... Passo fome e frio, no inverno... Andamos de terra em terra com o Circo, mas já ninguém se ri com as habilidades da nossa burrinha branca... O que me custa mais é acertar com a minha perna de pau, quando o pai toca pelas feiras... E, se me engano, a tal mulher grita-me: -«Eh, Manco, que nem para bater com as pernas serves!...» Então, o povo bate palmas e ri muito. Eu sei que não sirvo para nada, mas não tenho culpa nenhuma... Agora, nesta terra, o pai obriga-me a ir à Escola... Quem me dera saber onde fica o céu! Quando vejo passar as borboletas e as andorinhas, lá muito alto, apetece-me correr atrás delas e dizer-lhes: - «Eu sou o Daniel! Eu sou o Daniel! Levai-me... Levai-me... Levai-me...» Mas, elas não ouvem... Não posso correr! A minha perna faz só: toc... toc... toc... Disseram-me na escola, que ando tão depressa como um caracol... Noutro dia, no moinho, vi cair um passarinho na água, e não pude salvá-lo! Sentei-me no chão e um bichinho veio pousar em cima da minha perna... Fiquei tão quietinho que até adormeci. Quando acordei, tinha fugido... Tive tanta pena! Não... não vou mais à Escola, porque me chamam «manco» e ninguém gosta de mim... Quem me dera morrer! Quem me dera morrer! Gabriela inclina-se toda sobre o lado de onde vem o apelo angustioso de Daniel. A criança, de olhos no espaço, não chora. Um riso amargo marca-lhe o rosto... Ele hesita. Depois...
  • 4. O pequeno ergue-se, custosamente, estremecendo. Brilham-lhe os olhos. A emoção ruboriza-o. Reconhecendo-a, solta um grito e dobra-se todo até ao chão. Gabriela ouve-o murmurar: «Ela vai...». Docemente, senta-se ao lado do petiz e espera uma reação amarga, talvez. Daniel ergue o rosto e olha-a com receio. Numa vozita insegura, onde se adivinha a cólera dum futuro homem, pergunta: - A Senhora ouviu? Gabriela sorri-lhe, acenando com a cabeça. Depois, fala-lhe numa linguagem que mal conhece. Daniel escuta-a de olhos bem abertos. A sua mãozinha morena repousa na tosca perna de pau... No ar, as borboletas voltejam. O Céu é mais azul, mais extenso. A tarde desce. A terra enche-se de cânticos e, na planura, as nuvens desenham sombras desmaiadas. À noite, na barraca do Circo, Daniel adormece. As estrelas, que espreitam por uma nesga do telhado, ouvem-no dizer, de olhos brilhantes: - Podem chamar-me Daniel «manco»... Não me importo! A Senhora gosta da minha perna de pau! Um dia posso ser como os outros... Era tão mau, se eu não tivesse a outra... Que me importa?...». Ao lado da enxerga, a sua feia perna de pau descansa serena como uma sentinela. ...................................................................................................... Romance perfeito é a vida de todos os dias. Rolam, deslizam os tempos numa dança ligeira. Almas que se transformam... Vidas que se erguem do nada... Recordações que permanecem... Daniel cresceu. Deixou o pai, a madrasta, a barraca de Circo, as tardes de espetáculo nas feiras, e foi à procura de novos horizontes. Correu cidades. Já não é mais o menino da perna de pau, que arrastava pelos bancos da Escola um rosário de amarguras. Fez-se homem. Quem o vê, assim, imóvel, muito direito, alto e espadaúdo, não acredita que a perna esquerda seja apenas um toco disforme... Aprendeu até a caminhar com certa elegância... O seu defeito físico não lhe pesa. Foi precisamente ele que chamou à atenção daquela alma boa que o ajudou a subir, a vencer-se, a encontrar na vida um lugar honroso. A Arte foi a descoberta radiosa. Daniel aprendeu a esculpir no gesso crianças e mulheres, de pernas harmoniosas e perfeitas. Por vezes, a lembrança dos dias menos felizes vem até ele. A barraca do Circo... As tardes de torreira pelas feiras... Tudo é doloroso de recordar... No entanto, entre os
  • 5. dias sombrios da meninice, os meses de Escola, naquela aldeia perdida na planície, são raios de Sol na sua memória. João... Pedro... Rui... Nomes que não esquece. Lembrar-se-ão dele? E a Senhora? Teria morrido? No fundo sente uma pontinha de remorso por ter desaparecido, durante as férias, sem lhe dizer nada... Não tinha culpa. Se não tivesse ido naquela noite com os palhaços à cidade, nunca poderia ter abandonado a barraca de propósito... A ideia da fuga tomara vulto na altura em que o deixaram à porta da feira mendigando por conta do palhaço mais velho. Coisas velhas! Coisas que não morrem! Caminha vagarosamente, meditando, indiferente à chuva que fustiga o rosto. Pois... irá à aldeia. Se está tão pertinho... Um salto de autocarro. Pelo caminho, a paisagem torna-se sombria. O inverno fez estragos. Dos lados da serra, deslocam-se pesadas nuvens. O caudal do rio que serpenteia na berma da estrada assusta. Além, o povoado surge cinzento e húmido. Daniel desce do autocarro e embrenha-se pelos caminhos, à procura de rostos conhecidos. Adiante a Escola... o silvado... o moinho... Para para enxugar o rosto molhado da chuva. Sorri. Sabe-lhe bem aquela chuva fria. Recorda-lhe as borboletas... as flores... Volta a ser o menino da D. Gabriela! Nisto, subitamente, do lado da represa, um grito ecoa nos ares como o brado de uma pessoa ferida. Estremece. No fundo dele próprio, tem ainda um não sei quê parecido com indecisão, fruto da sua invalidez aparente. Recorda, de repente, o passarinho morto... porque não pudera salvá-lo. Então... tenta correr. Tropeça, mas equilibra-se imediatamente. O corpo balouça-lhe rapidamente como se dançasse. Recua ao tempo em que era para todos o Daniel «manco». Chega por fim. Mas... que vê? Um pouco abaixo, junto à represa, um vulto escuro luta desesperadamente com a água lamacenta. Faz subir no ar um grito de socorro, mas só o eco lhe responde. Então, deixa-se resvalar pela encosta, corpo colado à terra húmida, procurando um processo rápido de fazer quedar o corpo que luta com a lama. Num instante, todo o corpo se lhe crispa numa dolorosa ansiedade. Só mais uns metros... Num esforço, levanta o rosto e clama novamente por socorro. O vulto escuro parece prestes a soçobrar... Com um pau seguraria a taipa da represa quase a rebentar. Ergue-se um pouco. No chão, apenas seixos. Senta-se novamente e deixa-se levar pelo terreno escorregadio. Solta um brado ao vulto indiferente já ao restolhar da
  • 6. água e, num movimento rápido, estende um braço aos ramos dum salgueiro próximo. Com o outro braço, num esforço que faz ranger dolorosamente todos os seus músculos, apanha de fugida pelos vestidos o vulto abandonado à corrente. A perna sã fincada na terra mole é um esteio seguro. Frente à represa, a sua perna de pau sustem a taipa quase a desmantelar-se. Surgem crianças e homens gritando. Uma alegria selvagem estontece-o. Quando o içam e com ele a carga humana salva milagrosamente, Daniel cai no meio do caminho, molhado até aos ossos, o rosto sujo, a perna válida sangrando, soluçar como uma criança: - «Salvei a Senhora... Com a minha perna de pau, salvei a Senhora!...». ................................................................. Gabriela ainda gosta de entrar na sala e ficar uns momentos na soleira da porta... Sabe sorrir à pequenada como outrora, e, quando lhe falam que vai ter um novo aluno, corre ligeira a despeito da idade, à espera de ver surgir, no meio da confusão de cabeças e corpos, um rosto branco com olhos estranhos e belos. Impossível! O Daniel casou há tão poucos anos!... Quase a seguir ao acidente da represa… Que alma a do Daniel! Duas lágrimas teimosas espreitam nos olhos dela. Recorda aquela tarde quente de maio, quando o foi encontrar no silvado, a falar de olhos no Céu: - Chamam-me «manco»... Dizem que corro tanto como um caracol... As borboletas... Os pássaros... Quem me dera ir com eles! Nessa altura, o Daniel era já um pequeno artista - pensa Gabriela. E recorda, de novo, o apelo angustioso: -«Eu sou o Daniel... Eu sou o Daniel... Levai-me... Levai-me...». Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973, p. 121-126. Data da conclusão da edição no blogue – 19 de agosto de 2013 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/