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O Rato
(Diário duma professora)
Não conhecem o Rato? Sim, o Rato... Claro que não é esse
animalzinho nocivo que corre em busca dum bom pedaço,
introduzindo-se na dispensa por buracos ignorados... Não, não
pensem nele...
O Rato, sabem, o Rato foi meu aluno! Chamavam-lhe assim por
ser ligeiro, metediço, miudinho e... esperto.
Um dia, em meado de janeiro, vieram trazer-mo à Escola.
Magrito, pequeno, pele tostada, olhos vivos, sorriso matreiro, o Rato
entrou-me na sala e ficou a olhar para mim à mira de qualquer
novidade...
Parecia um pedaço de papel chamuscado, com a roupa toda em
trapos e os pés nus, pousados um sobre o outro, contrastando
grotescamente com a limpeza do soalho recém-lavado. Vieram com
ele cartas verbais de recomendação pouco satisfatórias, mas eu
simpatizei com o garoto e recebi-o.
O Rato... Sabem que não queria sentar-se na carteira? Na casa
dele, era tudo tão vazio de móveis! As mãos pequenas, negras,
sujas, andavam-lhe nos bolsos para a cabeça, da cabeça para os pés,
dos pés para a boca... Calças sem fundilhos, camisola sem mangas,
mãos a abanar, olhos fitos na secretária a tentarem descobrir o
porquê de tantos papéis espalhados, de tantos gestos decididos, de
tantas exclamações sem sentido...
Gostei dele, sabem?
No começo, encolhia-se todo, mirava-me pelo canto dos olhos
piscos, franzindo a testa ampla e tisnada, cruzando as mãos
enegrecidas por cima da lousa partida e ensebada, fingindo não
reparar na minha constante vigilância.
Se o encontrava no pátio, corria como um possesso e ia
esconder-se em qualquer parte, onde ninguém desse pela sua
presença.
Um dia...
Chuviscava. Na estrada húmida, deslizavam carros de faróis
luminosos, rasgando a bruma dum anoitecer outonal. Parada, na
berma da estrada, esperando a camioneta, eu sentia bater-me no
rosto a chuva miudinha e persistente.
Mergulhada em mim mesma pensava...
-«'Inha Sinhôra!»
- Ó rapaz! Que fazes tu aqui?!
A exclamação havia-me saído, de repente... Junto de mim, todo
encostado à esquina da casa ao lado, o Rato erguia para mim os seus
olhos negros, pequenos, escancarados, patéticos...
A cabeça, reluzia-lhe na noite toda encharcada, e o narizito era
um ponto vermelho e brilhante no rosto sem expressão.
- Vim prá sua beira...
Vai-te embora, rapaz! Está frio...
Não fez um movimento e chegou-se mais à parede molhada,
deixando atrás de si um charco de água. Eu própria me sentia
húmida, a despeito do impermeável.
- Tens fome?
- Tenho assim... assim...
Sabem que falou dentro de mim a tal voz boa e dei-lhe de comer?
Boroa, comprada na tasca do outro lado da rua... O Rato veio
saboreá-la, ao pé de mim e ... falou!!!
O que me disse o Rato?
-«... E o nosso Tône faz o caurdo... Sémos dêz... Témos uma cama
e uma mésa... Os nossos meninos, éu e a Aida dormimos no
borralho, em cima da fagulhada... Éu durmo sempre... O méu pai
bai ó marí... A minha mão bendi peixe... Hoji não fizemos caurdo...
Chi! 'Inha Sinhôra, que a caminheta bem à cunha! Bai-se ber à rasca
para inrajar lugar...».
Dito isto, desapareceu de um salto.
Desde essa tarde, o Rato fez-se meu guarda-costas.
Levava-me à camioneta e ficava na valeta a acenar com os braços
a gritar:
- «Chi! 'Inha Sinhôra! 'Inha Sinhôra...».
Um dia, levei o Rato à igreja, enquanto não vinha a camioneta.
Ajoelhamos. Pedi-lhe que rezasse...
- «Num sei...».
- Diz comigo, Carlos Alberto!
- «E... Bocê sabi?»
- Diz comigo: Pai Nosso... Que estais no Céu...
- «Sinhôra está a bê-lo...».
- ...
Era assim o Rato. Na aldeia queixavam-se dele. Maroto,
linguareiro, desordeiro, fino... como rato! Nada lhe escapava...
- «Hoji a Sinhôra traz roupa nóba... Que categoria!»
Ele e o Sérgio. Também não conhecem o Sérgio?
Mas...
O Rato já não é meu aluno. O Sérgio também não.
Marotos. Que serão, quando homens?
De vez em quando, o Rato vem visitar-me. Sobe as escadas
sorrateiramente e a entrar na sala saúda, num murmúrio:
- Boa tarde, 'inha Sinhôra!
- Tens fome?
- Tenho assim... assim...
Dou-lhe comida. Come sofregamente, levanta-se, limpa a boca à
palma da mão direita e foge escadas abaixo. Nem um
agradecimento. Estranho rapaz.
A roupa em tiras, os pés descalços, a cabeça rapada, as calças sem
fundilhos, o Rato é mesmo o retrato do garoto da rua, cheio de
qualidades e defeitos, de virtudes e vícios.
Quando puder, hei de contar-vos mais coisas dele...
O Rato... Gosto dele, sabem?
Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973, p. 121-126.
Data da conclusão da edição no blogue – 24 de março de 2014
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/

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  • 2. Mergulhada em mim mesma pensava... -«'Inha Sinhôra!» - Ó rapaz! Que fazes tu aqui?! A exclamação havia-me saído, de repente... Junto de mim, todo encostado à esquina da casa ao lado, o Rato erguia para mim os seus olhos negros, pequenos, escancarados, patéticos... A cabeça, reluzia-lhe na noite toda encharcada, e o narizito era um ponto vermelho e brilhante no rosto sem expressão. - Vim prá sua beira... Vai-te embora, rapaz! Está frio... Não fez um movimento e chegou-se mais à parede molhada, deixando atrás de si um charco de água. Eu própria me sentia húmida, a despeito do impermeável. - Tens fome? - Tenho assim... assim... Sabem que falou dentro de mim a tal voz boa e dei-lhe de comer? Boroa, comprada na tasca do outro lado da rua... O Rato veio saboreá-la, ao pé de mim e ... falou!!! O que me disse o Rato? -«... E o nosso Tône faz o caurdo... Sémos dêz... Témos uma cama e uma mésa... Os nossos meninos, éu e a Aida dormimos no borralho, em cima da fagulhada... Éu durmo sempre... O méu pai bai ó marí... A minha mão bendi peixe... Hoji não fizemos caurdo... Chi! 'Inha Sinhôra, que a caminheta bem à cunha! Bai-se ber à rasca para inrajar lugar...». Dito isto, desapareceu de um salto. Desde essa tarde, o Rato fez-se meu guarda-costas. Levava-me à camioneta e ficava na valeta a acenar com os braços a gritar: - «Chi! 'Inha Sinhôra! 'Inha Sinhôra...». Um dia, levei o Rato à igreja, enquanto não vinha a camioneta. Ajoelhamos. Pedi-lhe que rezasse... - «Num sei...». - Diz comigo, Carlos Alberto! - «E... Bocê sabi?» - Diz comigo: Pai Nosso... Que estais no Céu... - «Sinhôra está a bê-lo...». - ... Era assim o Rato. Na aldeia queixavam-se dele. Maroto, linguareiro, desordeiro, fino... como rato! Nada lhe escapava...
  • 3. - «Hoji a Sinhôra traz roupa nóba... Que categoria!» Ele e o Sérgio. Também não conhecem o Sérgio? Mas... O Rato já não é meu aluno. O Sérgio também não. Marotos. Que serão, quando homens? De vez em quando, o Rato vem visitar-me. Sobe as escadas sorrateiramente e a entrar na sala saúda, num murmúrio: - Boa tarde, 'inha Sinhôra! - Tens fome? - Tenho assim... assim... Dou-lhe comida. Come sofregamente, levanta-se, limpa a boca à palma da mão direita e foge escadas abaixo. Nem um agradecimento. Estranho rapaz. A roupa em tiras, os pés descalços, a cabeça rapada, as calças sem fundilhos, o Rato é mesmo o retrato do garoto da rua, cheio de qualidades e defeitos, de virtudes e vícios. Quando puder, hei de contar-vos mais coisas dele... O Rato... Gosto dele, sabem? Maria Helena Amaro In, «Maria Mãe», 1973, p. 121-126. Data da conclusão da edição no blogue – 24 de março de 2014 http://mariahelenaamaro.blogspot.com/