O documento discute como as mídias independentes podem promover a ética do discurso de Habermas ao permitir o diálogo aberto entre membros de uma comunidade para chegar a consensos através do melhor argumento. A ética do discurso defende que questões morais devem ser resolvidas coletivamente por meio da linguagem sem coerção. As mídias independentes propiciam este diálogo ao dar voz a questões silenciadas e permitir debates em larga escala.
1. Mídias independentes e a Ética do Discurso
Túlio Madson Galvão1
Em uma época marcada pelo advento de novas tecnologias de informação e
comunicação, as relações éticas, políticas e socais modificam-se de modo cada vez mais
acentuado. Mudanças nas formas de produção e distribuição da informação acarretam
em mudanças na forma como uma sociedade enxerga a si própria e ao mundo.
Trazendo, com isso, novos dilemas, novos desafios, e, sobretudo, novas
responsabilidades. Toda uma constelação de constructos teóricos tem surgido nas
últimas décadas para dar conta desses novos dilemas éticos, mas suas consequências
práticas ainda são imprevisíveis.
Contudo, para lançar uma luz sobre esses novos dilemas, remeteremos ao pensamento
do alemão Jürgen Habermas e sua tentativa de conceber uma razão comunicativa em
oposição à razão instrumental, predominante na tradição filosófica ocidental até então.
Seu objetivo com isso era conceber uma teoria que forneça um princípio moral baseado
nas relações intersubjetivas entre os indivíduos, que se efetiva através do diálogo e da
argumentação. Nesse contexto, nasce a Ética do Discurso fundada na década de 60 por
Karl-Otto Apel e posteriormente retomada por Habermas.
A Ética do Discurso tem forte influência da teoria moral kantiana, porém, difere-se
desta pela caracterização da razão dialógica ou comunicativa como fundamento de todo
princípio ético e moral. Ou seja, enquanto para Kant cada sujeito, envolto em sua
subjetividade, determinava para si aquilo que é ou não moral, para Habermas tais
questões devem ser resolvidas não mais por um sujeito atomizado, individualista, mas
sim, pelo consenso alcançado através do diálogo entre sujeitos capazes de linguagem e
ação. Esta é a diferença fundamental entre a razão instrumental e a razão dialógica: uma
é baseada no indivíduo, outra no coletivo.
Nesse contexto, cabe-nos refletir sobre o papel das mídias independentes para a
construção de uma comunidade ideal de comunicação proposta por Habermas. Já que a
Ética do Discurso tem por pretensão a construção de relações comunicativas, solidárias
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2. e participativas entre os membros de uma comunidade. Com isso, a linguagem torna-se
o principal meio de integração social, e as mídias independentes, pelo seu caráter
libertário e participativo, pela ausência de intermediadores políticos, econômicos e
institucionais, desempenham um papel fundamental para a criação de consensos.
Chamo aqui de mídias independentes àquelas surgidas após o advento da internet, que
permitiram potencialmente a qualquer individuo atingir a mesma capilaridade de
grandes conglomerados de comunicação. Não apenas em textos, mas em imagens,
permitindo a qualquer um com um celular conectado à internet transmitir em tempo real
qualquer acontecimento para um grande público, sem que seja necessária uma estrutura
ou um veículo de comunicação de massa. Permitindo ainda que esse público interaja
com a transmissão, seja compartilhando, comentando, ou trazendo informações que
possam mudar a própria forma ou perspectiva de como a transmissão é feita.
As mídias ditas hegemônicas encaram, geralmente, os indivíduos não como
colaboradores, mas sim, como espectadores. Para os indivíduos de uma determinada
comunidade cabe tão somente “espectar”, isto é: assistir, observar determinado
conteúdo; cabendo-lhe tão somente a escolha entre receber as informações deste ou
daquele veículo de informação, integrante de um “universo” composto por meia dúzia
de grandes veículos. As informações, nesses veículos, não são compartilhadas ou
debatidas por uma rede de pessoas, mas, destinadas a núcleos dispersos que não
necessariamente interagem entre si.
Ora, para motivar e controlar sujeitos atomizados, a autoridade e os aparatos repressivos
tornam-se poderes secundários, basta entretê-los, excita-los, amedronta-los, e ao mesmo
tempo, bombardeá-los com informações irrelevantes ou intencionalmente direcionadas.
Assumindo esse papel, os grandes veículos de informação, voluntariamente ou não,
acabavam por fazer o papel antes desempenhado pelo Estado, a saber, homogeneizar e
padronizar os discursos sem a fomentação do diálogo e do consenso entre os membros
de uma mesma comunidade.
Por uma combinação de fatores, políticos, técnicos, eleitorais, econômicos ou
ideológicos, as políticas públicas têm cada vez menos intenção em intervir na atuação
dos grandes grupos midiáticos em nosso país. Nesse contexto, a mídias independentes
3. surgem em oposição ao Estado e ao monopólio da comunicação, em defesa dos valores
de livre expressão que permeiam atualmente os discursos – ao menos em teoria – das
mais diferentes matizes ideológicas, tanto à esquerda, quando à direta.
A internet forneceu as condições necessárias para a criação de meios alternativos de
informação, capazes de rivalizar com os grandes veículos de comunicação de massa.
Permitindo que questões até então silenciadas pelos grandes veículos viessem à tona.
Oferecendo o espaço ideal para que essas questões fossem articuladas e debatidas em
uma escala sem precedentes. Aproximando-se, em certa medida, da construção do que
Habermas chamou de comunidade ideal de fala.
Para Habermas, toda ação é coordenada pela linguagem, a própria racionalidade se
efetiva através da linguagem. Sendo assim, o único meio das pessoas alcançarem um
mútuo entendimento é através da intermediação da linguagem. Não uma linguagem que
dialoga introspectivamente com si mesma através de um diálogo interno do indivíduo,
mas sim, um diálogo intersubjetivo e aberto entre membros de uma mesma comunidade
linguística.
Sendo assim, todas as questões inerentes à vida humana devem ser resolvidas através do
diálogo e da argumentação, todas as decisões devem ser tomadas através do consenso.
Toda busca pela verdade deve ser empreendida coletivamente, sem nenhum meio
coercitivo, seja ele estatal, corporativo, ideológico, religioso, histórico ou cultural.
Portanto, para se chegar a um consenso, para se empreender uma práxis argumentativa
devem-se observar esses critérios. Ou, como nos diz Habermas em Direito e
Democracia: “Todo aquele que se envolve numa prática de argumentação tem que
pressupor pragmaticamente que, em princípio, todos os possíveis afetados poderiam
participar, na condição de livres e iguais, de uma busca cooperativa da verdade, na qual
a única coerção admitida é a do melhor argumento”.
Dessa forma, as condutas e normas morais devem ultrapassar a mesquinhez dos
interesses privados e basear-se no interesse de todos. Do mesmo modo, os meios de
comunicação devem ser compartilhados de modo livre e igualitário, por sujeitos que
pensam e agem comunicativamente em busca de consensos. Para além de informar – ou
formar – eles devem propiciar o diálogo, sempre em busca do melhor argumento.
4. A relevância da Ética do Discurso de Habermas consiste em encorajar e promover a
participação efetiva do cidadão nas discussões públicas e nas definições das normas
morais e jurídicas. As mídias independentes, livres, participativas, propiciam os meios
tecnológicos e comunicacionais necessários para que os membros de uma determinada
comunidade – seja ela uma nação, um Estado ou uma cidade – determinem e
convencionem suas condutas através do diálogo, de modo participativo, aberto e plural.
Transpondo a barreira entre ação e comunicação.
Publicado originalmente na Carta Potiguar em 13/01/2014:
http://www.cartapotiguar.com.br/2014/01/13/midias-independentes-e-a-etica-do-
discurso/