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O Gabriel Brust é um jornalista que está morando em Paris e que será correspondente do blog do David Coimbra. Eis o primeiro texto (de 16/10/10):<br />“Com trabalho, não trabalhamos.<br />Grégoire mora não muito longe aqui de casa, no 19eme arrondissement de Paris. Tem 38 anos. Em 2005, cansado do “sofrimento psíquico” do trabalho como técnico em informática, resolveu parar de trabalhar. Antes, ganhava 2000 euros por mês. Nos primeiros dois anos sem fazer nada, ganhou 1200 do governo. Hoje a barbada caiu para 650 mensais. Mas ele segue firme no propósito de não mais integrar o mundo do trabalho. Gasta 410 euros no aluguel de um quitinete e passa 90% do seu tempo em casa mesmo jogando vídeo game. Sair para a rua significa sempre gastar. E ele não pode se dar a esse luxo. A única despesa diária pelas ruas de Paris é um expresso matinal na cafeteria da esquina, onde aproveita para ler os jornais de graça e roubar os saquinhos de açúcar. “Trabalhei durante 9 anos”, contou Grégoire à revista descolada Les Inrockuptibles. “Ao final, senti aborrecimento e frustração. Hoje, recuso todas as ofertas de trabalho. Temo pelo dinheiro, mas o sofrimento ligado ao trabalho era grande demais”.<br />Trabalhar é coisa do passado. Os franceses não querem mais trabalhar e, para deixar isso claro, há dois dias estão tomando as ruas de Paris e de outras capitais da França para protestar. Fazendo greve, claro, para que o trabalho não atrapalhe a manifestação. O objetivo é barrar a reforma das aposentadorias proposta por Nicolas Sarkozy. A França tem a duração de trabalho regulamentar mais curta da Europa – o pessoal, por aqui, se aposenta aos 60 anos. A conta da previdência, claro, não fecha mais, e o congresso aprovou nova idade para colocar o pijama: 62 anos. Os franceses ficaram indignados.<br />Gregóire foi uma das 10 pessoas entre 25 e 40 anos entrevistadas pela Les Inrocks que não se conhecem entre si, mas já integram um movimento: a dos jovens franceses que não vêem mais no trabalho a fonte de suas realizações e decidiram preencher as tardes com uma soneca. Todas as suas tardes. Esta geração está retratada no livro recém-lançado Libre, Seul et Assoupi (Livre, Sozinho e Sonolento), de Romain Monnery. A única reclamação comum dessa turma: fica difícil manter uma vida afetiva. Ao optar por este estilo de vida, é preciso ser forte para lidar com a escassez de amigos – já que você não frequenta muitos lugares – e com namoradas e namorados sem um pingo de compreensão. Os cônjuges da maioria dos entrevistados acabaram pulando fora do barco, diante da falta de perspectivas dos parceiros. Mesmo assim, os neo-aposentados afirmam preferir o novo estilo de vida à vida conjugal. Vale a pena.<br />Na terça-feira resolvi ir para o Boulevard Saint-Germain protestar também. Enquanto caminhava entre a multidão, tentei fazer uma ligação entre o fenômeno dos jovens encostados e aquilo que eu estava vendo. Linh, minha namorada cambojana que nunca ouviu falar dos Beatles, dava palpites:<br />– A greve é para trabalhar menos?– É.– Mas eles não estavam reclamando do desemprego?– …<br />As manifestações, pensei eu, são para proteger um direito adquirido e dizem respeito apenas aos sessentões. Aparentemente, não há maior relação com este fenômeno dos jovens aposentados. Mas talvez só aparentemente. Percebi isso ao tropeçar, entre as milhares de pessoas, em batalhões de adolescentes que vieram direto dos lycées. As escolas francesas aderiram em massa aos protestos desta semana. Não eram jovens adultos como Grégoire, mas teenagers mesmo, 15, 16 anos, empunhando bandeira e gritando palavras de ordem contra a reforma da aposentadoria.<br />Ta aí: trabalhar é coisa moderna demais para a pós-modernidade. E não existe nada mais velho do que a modernidade por aqui. Está lá, escrito na porta de um dos banheiros da Sorbonne, os mesmos de maio de 68, pichado por algum jovem intelectual bastante ocupado com suas atividades intestinais: “O trabalho mata”.<br />– Mas vamos parar de trabalhar para fazer o que?– Aproveitar a vida, ora…– Tipo jogando vídeo game?– Isso.<br />Linh nunca ouviu falar dos Beatles, mas já começa a entender o Ocidente.”<br />
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